OITAVO  TROVÁRIO

 

 

ATÉ VER CLARO EM QUE CONSISTE ESTE MEU GRITO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 628 e 673 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                628 – Até ver claro em que consiste este meu grito

 

                                                Até ver claro em que consiste este meu grito

                                                Vou poemando regular as minhas rimas

                                                Captando aspectos de qualquer vector, quesito

                                                Que em nossa vida surpreenda quanto fito,

                                                Conto o que sou como o que sois, da vida os climas.

 

                                                Métricas certas, rimas claras a captar

                                                O traço fino de pessoas, conjunturas,

                                                Que se não percam culminâncias do lugar

                                                Por entre a selva inextricável das posturas.

 

                                                Ao conhecer ponho um degrau ao meu alcance

                                                Nas escadas que enfrentar rumo às funduras

                                                Como às alturas da ignorância que me canse.

 

                                                Pelo saber vou retraçando o bom agoiro

Deste meu mapa com sinais de onde há o tesoiro.

 

 


629 – Capaz

 

Ser capaz de arrebatar-me

Com o mundo das ideias

É de instruído meu carme.

Culto é ter eu delas cheias

Mil vidas na minha vida

E ser delas a medida.

 

 

630 – Simplicidade

 

A simplicidade de algo

Não pende da coisa em si,

Mas da pegada em que galgo

A lonjura que haja ali:

 

Provém da complexidade

De quem entrar em contacto

Com essa mesma entidade,

Jamais é questão de facto.

 

 

631 – Caras

 

Num registo ninguém vê

Como as caras transmudaram,

Como vão mudando ao pé

Das horas que se esgueiraram.

 

Ora, o que é mais importante

É o que o tempo faz mudar,

Não um nome invariante,

Mal o eterno a arremedar.

  

 

632 – Confidências

 

Confidências não me faz,

Apenas ordens recebo.

Nunca, porém, sou capaz

De cumprir o que percebo.

 

Tenho de as interpretar

Às ordens que ele comanda,

Que, entre aquilo que mandar

E o que quer, outro mundo anda.

 

Há sempre uma diferença

E, se ultrapasso a aparência,

Traio, na final sentença,

Toda a primeira evidência.

 

 

633 – Criança

 

Cada qual deixa a criança

Morar nele muito mais

Que se a trouxera no ventre.

Dela o medo nos alcança,

Tem as marcas canibais

De boca que em nós se adentre

 

Na mera capacidade

De crescer e de actuar

Como uma pura ficção.

No campo que humilde grade

Ando-me a refugiar

Na capa da submissão,

 

Mas por trás sou valdevinos

Com as artes do prazer,

Das brincadeiras, dos ócios…

Imito ir ao som dos sinos,

Arremedo obedecer,

Nem sei bem que são negócios?…

 

Não me iludo, que provoco

Mais no silêncio, afinal,

Do que através da palavra:

Ali clandestino toco

A furtiva bacanal

Que por dentro me escalavra.

 

 

634 – Queimava

 

Queimava as bruxas a igreja,

Localizando o diabo

No orgulho da confissão?

Queimava mas era a inveja,

Escondendo, ao fim e ao cabo,

Dos povos sua aversão

 

Por tudo aquilo que brilha:

Um rosto muito formoso,

Uma seara abundante,

A espada que maravilha,

Caneta que escreve o gozo…

O invejoso ataca adiante

 

Prodígios onde é impotente

E acaba a ver reduzida,

Por quanto ele se ressente,

A vida à sua medida

Que é tão míope e mesquinha

Que, esconsa, mal se adivinha.

 

 

635 – Verdade

 

A verdade não possui

Sentimentos à mistura,

É uma nudez que se intui,

Dispensa o pudor, que é pura.

Por rejeitar qualquer fita

Diagnósticos facilita.

 

 

636 – Reacções

 

Reacções emocionais

Ocorrem sempre em cachão

Mas há um algo de antemão

Que não vou contar jamais

 

E não é porque o não queira.

É que vejo em minha jeira

 

Que isto pertence ao silêncio

Mais às auras da fiança

Que nunca a palavra alcança.

Mas o quê, o quê? Convence-o

 

Cripta em mim selada após:

Dos afectos o cadinho

Veda além sempre o caminho,

Jamais lá chegamos nós.

 

 

637 – Tempo

 

Num tempo de vida humana

É tão grande a alteração

Que já longe todos vão

De ir a par cada semana.

 

Os mais velhos, hoje em dia,

Emigram involuntários

Do passado que os servia

Aos presentes mais precários.

 

E quando algum fica morto

Já nem sabe onde era o porto…

 

 

638 – Nunca

 

Nunca o fim da economia

É o de acumular riqueza

E aumentar a produção.

Deveras o que ela preza

É quanto responderia

Do sonho à satisfação,

Ao que cada um de nós quer.

 

O verdadeiro tesoiro

É que a flor há-de valer

Sempre muito mais que o oiro.

 

Quem isto não entendeu

Nunca a economia viu.

 

 

639 – Constantes

 

Há constantes permanentes

Mas não algo irreformável.

Essência e forma não sentes

Numa relação estável

 

Dum conteúdo a um continente,

Dum núcleo inatacável

A um invólucro fluente.

 

Uma essência sem ter forma

É, por informe, irreal.

Forma sem essência, em norma,

É quimérica, afinal:

Não é menos irreal.

Tudo em tudo se transforma,

Nada amanhã será igual.

 

 

640 – Abrigo

 

Pode sempre haver mau uso

Do que for essencial:

O melhor o abrigo escuso

Há-de ser sempre do mal.

 

Aquilo que há de mais santo

Dá lugar, em algum lado,

Falseando todo o encanto,

Ao mais perverso pecado.

 

 

641 – Normas

 

Princípios, normas, sistemas

São clareza e precisão,

De simplicidade temas,

De estabilidade chão.

 

São fáceis de conceber

E os enuncia quenquer.

 

Todavia, desprendidos

Do concreto e singular,

Do que é real abstraídos,

Sem cor ficam a adejar.

 

Conduz sempre uma abstracção

Quase necessariamente

À indiferenciação,

Rigidez, pobreza ingente

 

Dum conteúdo evolado,

Padecendo o corpo inteiro

Duma fraqueza de estado,

De pensamento biqueiro.

 

Os termos são desprovidos

Do movimento da vida,

A existência sem ouvidos

Fica a tudo o que a convida.

 

O pensamento não pode

Abarcar todo o real,

Que a realidade acode

Sempre além, noutro total.

 

 

642 – Mentir

 

Que querias aprender

Com mestres e com doutrinas,

Eles que tanto ensinaram

E que agora nem sequer

Te podem mentir as sinas

Daquilo que os astros aram?

 

Não te podem ensinar

O que és tu nesse teu eu,

Que sentido e natureza

Se pode em ti desvelar.

Bem tu queres libertar

Aquele fundo que é teu,

Que em ti prezas no que preza,

Em vão tenta-lo apanhar.

 

Não és capaz de o vencer,

Apenas de o enganar,

De fugir, de te esconder.

 

Nada no mundo ocupou

Tanto esse teu pensamento

Como teu Eu, este enigma

De vivo dizer: “Eu sou!”,

Ser separado elemento

Dos mais isolado estigma.

 

Põe-te louco, põe-te louco

Teu fundo de frenesi.

E nada sabes tão pouco

Como sabes sobre ti.

 

 

643 – Roda

 

Tal como a roda de oleiro

Quando impulsionada gira

Muito tempo o tempo inteiro

E apenas lento que lento

Se lhe lá longe retira,

Num suspiro, o movimento,

Assim a roda da ascese

Nas almas deste Ocidente,

A roda do pensamento

Onde há muito que se preze,

A roda do diferente,

Continuou com o vento

A girar, mas cada vez

Mais lenta, mais lentamente,

Hesitante no revés,

Já mesmo quase a parar

Um pouco em todo o lugar.

 

E lento como a humidade

Que os troncos mortos invade,

Incha e leva a podrecer,

O mundo com a indolência

Rói as almas onde quer,

Enche-as por consequência,

Torna-as pesadas e as cansa,

Adormecê-las alcança.

 

Os sentidos, todavia,

Tornam-se muito mais vivos,

Experimentam, cativos,

Tudo quanto aparecia.

 

- Questão é se nos arquivos

Alguém sabe ainda da Via.

 

 

644 – Morte

 

Há muito sabe o que é morte,

Pensa nela e tem-lhe medo,

Mas nunca lhe viu recorte,

Para vê-la é sempre cedo.

 

Quem pela primeira vez

A viu mesmo em carne viva

Percebe o que jamais fez,

Entende o que se lhe esquiva,

 

Vê que antes nada sabia

Nem da morte nem da vida,

Tudo se abala em seu dia,

Não tem na razão medida.

 

A ideia de sofrimento

Não tem qualquer relação

Com o ser que sangra e sofre:

Entre da morte o que invento

E da carne a convulsão

Não há comum moeda em cofre.

 

A humana sabedoria,

Como toda a linguagem,

De teatro são fantoches,

Ante o real, fantasia,

Ante lodo e sangue, imagem,

Não são de horror os deboches.

 

- Só vivendo-a, só vivendo

É que a morte vou morrendo.

 

 

645 – Ódio

 

Ódio que sabe o que quer

Se aplaca, atingido o fim.

Mas o malfazejo ser

Que por tédio for assim

Nunca as armas deporia:

- É que sempre se entedia.

 

Do tédio nasce um inferno

Que já nesta vida é eterno.

  

 

646 – Livre

 

Para quê a liberdade

Se ser livre não souber?

Não é prenda a oferecer,

Direito que persuade.

 

É de espírito um estado.

Mesmo não livre é liberto

O que houver algo criado,

Semeado a flor no deserto.

 

De ser livre não impedem

Nem grilhetas nem prisões:

Mais fundo nos corações

Os livres livres procedem.

 

Liberdade não é igual

Em homens e passarinhos:

Voam uns no ramalhal,

Outros vão em mente aos ninhos.

 

 

647 – Orador

 

Se um orador posso olhar

A perorar com afã

Ou num vídeo o projectar,

Prefiro vê-lo no ecrã:

Assim é que o virtual

Vem engolindo o real.

 

Na escolha entre real e sonho,

Deste é que sempre disponho.

 

Para bem ou para mal,

É meu prato principal.

 

 

648 – Juntos

 

Somos feitos de tal forma

Que sofrimentos e dores

Que juntos mordem por norma

Se não somam nos humores,

 

Mas se escondem mutuamente,

Menor atrás de maiores,

De modo que o que alguém sente

A primeira é só das dores.

 

É o homem insuperável

Na incapacidade humana

De a dor ser verificável

Nas camadas donde emana.

 

Das camadas sobrepostas

O nome apenas vai pôr,

Tal se as mais não traz às costas,

À dor só que for maior.

Depois, quando esta faltar,

Descobre então a seguinte

Como caso de espantar,

Escondida por acinte,

 

E logo outra mais à frente…

- E assim é constantemente!

 

Isto é providencial

E permite-nos viver:

Assim o peso do mal

Mal o sentimos sequer.

 

 

649 – Progresso

 

A ideia de progresso é o pão dos imbecis.

A grandeza impõe grandes, grandes servidões,

Enquanto progredir vai por si, aos baldões,

Aonde conduzir a massa dos perfis.

 

Bastará não lhe opor resistência ou desprezo,

Além do incontornável que é o próprio peso.

 

 

650 – Filão

 

O delgado filão do metal precioso

Suspeita vagamente o povo que provém

Dos cemitérios alvos que os avós lhe têm,

Depois mergulha às vezes num algar brumoso

 

Até que um belo dia brota, independente,

Em outro cemitério que é o mais recente.

 

Para o dinheiro o povo tem aquele instinto

Que nos economistas preclaros desminto.

 

 

651 – Património

 

Nem ordem nem Estado vos pertencem,

Dos que já não existem são legado.

Património ainda do não-nado,

Em nós buscam os nós que os entretecem.

 

Não é, não, vosso o mundo que habitais,

- É a morada comum, nossa e dos mais.

 

 

652 – Sentais

 

Se sentais um homem médio

Num monte de lenha em brasa,

Secai-lo, é certo, do tédio.

Mas do fogo que o abrasa,

 

Corre a se refugiar

Na primeira ideologia

Que lhe abra, de par em par,

Porta que o refrescaria,

 

Mesmo se dela fugira

Antes, temendo outra pira.

 

Não há lógica na fuga:

Sempre a urgência é que madruga.

 

 

653 – Descontentes

 

Qualquer comunidade vive com os pobres

E absorve os descontentes pelos hospitais

Ou por prisões, enquanto aos mil os não desdobres.

Quando a desproporção de descontentes mais

 

For perigosamente trepando, ela chama

Então os seus gendarmes, dela os cemitérios

Escancara: com ambos então rói a trama

Que lhe ameaça eterna os seus pobres impérios.

 

E assim ao pé coxinho vai andando o mundo,

Apenas no confronto a lograr ser fecundo.

 

 

654 – Defender

 

Um homem defender pode seu lar a tiro,

Mesmo que muitas casas tenha pela estrada,

Mas o salário, não, nunca assim o confiro,

Nem que, além do salário, não tenha mais nada.

 

Direito de legítima defesa, então,

Só com direito de propriedade à mão.

 

 

655 – Cresos

 

Os de boa vontade auxiliam na guerra

Os cresos do dinheiro e da propriedade.

Reposta acaso a paz, o creso a porta cerra

E um secretário ouve o de boa vontade…

 

“Não está salva a ordem? Que mais então queres?”

Se o outro insiste, trata-o de indisciplinado.

Enquanto pôs a força ao lado dos talheres

De oiro, teve a polícia, o tribunal ao lado.

 

Se posteriormente ele entender vir pô-la

Doutra categoria social em prol,

Da desordem mentor, será como uma bola

De prisão em prisão pontapeado ao sol.

 

 

656 – Vício

 

A sabedoria

É vício de velhos.

Nenhum, qualquer dia,

Mais vive os conselhos:

 

Demasiado cedo

Levam o segredo

 

E há que principiar

No vago lugar.

 

E assim a correr

Vamos devagar

Ao que há que aprender.

 

 

657 – Virgens

 

Parvoíce, ignorância, medo,

Virgens não, não formam.

Ao invés, bem cedo

Tudo em si deformam.

 

Dali vinda a virgindade

Segue estúpido padrão:

O da castidade

Obtida por castração.

 

 

658 – Origem

 

De qualquer forma, o dinheiro

Não tem nunca, não tem cheiro,

 

Mas um de origem cristã,

Mesmo se o crime é que o soma,

Tem logo a bênção malsã

Muito especial de Roma.

 

De Roma ou doutra entidade

Que do que é de sua seita

Diga que é o Bem e a Verdade

Sem mais tolerar suspeita.

 

E logo o crime é virtude

Com que os ingénuos ilude.

 

 

659 – Ocupar-se

 

Requer a filosofia

Ocupar-se da verdade

E acaso só fantasia

É o que ao fim a persuade.

 

Depois a literatura

Só fantasia parece

Mas talvez lá na fundura

Seja vero o que aparece.

 

Sempre a vida troca as voltas

Às barcas de velas soltas.

 

 

660 – Vida

 

Não é a vida destinada

Para muitos, a ser peso,

Para alguns, festa bailada,

- Emprego é, no fim de contas,

Onde o que prezo e desprezo

É do que ao fim presto contas.

 

 

661 – Vertente

 

A vertente gloriosa

Boa e honesta da fé

Compensa bem quem a goza:

Se a quem pratica alguém vê,

Transpira, na realidade

Vero amor, vera bondade.

 

Esta fé não é de ritos

Nem ora com frases feitas,

Ouve os gemidos e os gritos

Das mais secretas maleitas

E então aplica os unguentos

Que mais curem os tormentos.

 

Na guerra, morte e dor faz

Quem tal crê sentir-se em paz.

 

 

662 – Funções

 

Das funções mais elevadas

Próprias dos contos de fadas

 

Uma é a recuperação

Duma nítida visão

 

Da real realidade:

-É a mentira que é verdade!

 

 

663 – Possuir

 

Possuir é não pensar

Mais no que um homem tiver.

 

Ao invés, contudo, a par,

Quando tudo se perder,

É possuí-lo então assim,

Em espírito, sem fim.

 

 

664 – Destino

 

O destino é de acordar

Sempre no dia seguinte

E o mundo, entretanto, a par,

Sempre, sempre a voltear…

- E ninguém ali que o finte

E ninguém para o parar!

 

 

665 – Dezoito

 

Quando é dos dezoito anos

Os grandes problemas são

Tiros de pólvora seca:

Estoiros de mil enganos,

Fazem mesmo um barulhão,

Não marcam fato nem beca.

 

 

666 – Metamorfose

 

Tem apenas um defeito

A metamorfose jovem:

Só a vejo e lhe presto preito,

Mortos os sonhos que a movem.

 

É da falta de experiência,

O veneno da existência:

 

Se o tomo, não a conserto,

Fica longe o que era perto.

 

 

667 – Decadência

 

A decadência começa

Logo que queimam os vivos

Salvando a ordem à peça

Com mil mortos nos arquivos.

 

Eis o sintoma do fim,

Do cisne o canto fatal.

É sempre o cume que assim

Devém, na queda, mortal.

 

 

668 – Miséria

 

Miséria apenas existe

Para ser reconfortada?

Que o miúdo rico a despiste,

Dê com prazer a soldada?

 

- Só que atrás ferve um vulcão

Fermentando em contramão.

 

  

669 – Obcecadas

 

As gentes espirituais

Obcecadas pelo sexo

Mostram quão requerem mais

Sexual conforto conexo.

 

Tudo é mera aceitação

Que do sexo têm ou não:

 

Quão mais se este repudia

Mais à esquina ele vigia.

 

 

670 – Lateja

 

De oculta vitalidade

Tudo lateja e borbota

De algum mistério escondido.

Numa vida a santidade

É harmonia com a gota

Da fonte imersa que olvido.

 

Não são rituais nem preces,

Nem modelos conceptuais,

São espigas doutras messes

Radicadas, se o mereces,

Em águas fundamentais.

 

 

671 – Opostos

 

A sensualidade,

O irmão erotismo,

À interioridade

De opostos os crismo.

 

O espírito perde,

A emoção também

E a vida que os herde,

Que o prazer convém,

 

Que o desejo oferta

Seu ímpeto à vida,

É uma porta aberta,

Motor para a lida.

 

Desejar convida,

Faz-nos avançar,

É questionar vida

Dele suspeitar.

 

Corre a vida em dois,

Dois braços de rio:

Afecto e, depois,

Mente em que confio.

  

Quando um preferir,

Logo o outro reage:

Se só reflectir,

O afecto a sós age.

 

Quão materialista

Mais eu me tornar,

Mais o ideal à vista

Vai desatinar.

 

O espírito são,

Todo espiritual,

Do erótico é chão

Puro e sensual.

 

 

672 – Encontro-te

 

Aonde quer que me volte

Encontro-Te sempre lá,

Omnipresença que escolte,

Deus que mal vislumbrará

 

Quem mal olhe, distraído,

E ubiquidade de orar

De quem fundo vê o sentido

Da fundura do lugar.

 

Preciso ser recordado,

Não de que devo rezar,

Mas de sempre ter estado

Rezando em todo o lugar.

 

 

673 – Transcendência

 

No sentido mais profundo,

Religião é uma atitude,

Um pendor em que o mistério,

A transcendência do mundo,

Tanto o mal como a virtude,

Tudo em conta é tido a sério.

 

Religião é reverência,

Visão, piedade, prática…

Se uma fé vaso de essência

For de toda esta didáctica,

 

É religião deveras

E qualquer instituição

Que reais torne tais quimeras

É mesmo religião.

 

Se a fé for ideologia

E a visão, a ditadura,

A religião se oporia

Às duas até ter cura.

 

Se a moral for um papão,

Tudo é menos religião.

Por muito que em nome desta

É que as algemas apresta.