NONO  TROVÁRIO

 

 

ENTÃO NA QUADRA A AMAR, SONHAR COM ALEGRIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 674 e 815 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                674 – Então na quadra a amar, sonhar com alegria

 

                                                Então na quadra a amar, sonhar com alegria,

                                                Na popular métrica e rima regular,

Irei tentando depurar com fantasia

                                                Primeiro o amor, depois o sonho que me espia,

                                                Sintetizando-os em palavra lapidar.

 

                                                Jeito de povo, a quadra simples, bem rimada,

                                                Transporta afectos, prevenções, lições de vida,

                                                Orienta o jeito de acertar cada pegada

                                                Quando a miragem em comum é prosseguida.

 

                                                Com os afectos, com os laços apertados,

As utopias que intentar a toda a brida

                                                Ficam mais perto e os sonhos não findam vedados.

 

                                                Resumo em quadras o saber de amor e mito,

                                                É na palavra que, afinal, eu me acredito.

 

 

 

675 – Debruçada

 

Não a vês bem ao luar

Debruçada da janela?

Vê que a lua vai corar

Se ninguém repara nela.

 

 

676 – Adúltero

 

Que é que isto de ser adulto

Tem com adúltero ser?

Isto é um parentesco oculto

Ou nada ao fim quer dizer?

 

 

677 – Finda

 

Mulher que não é mulher

É semana de quaresma:

A alegria de quenquer

Finda em mãos de tal seresma.

 

 

678 – Vale

 

Apenas vale na vida

O que amor for e amizade.

O mais, vida presumida,

Não vale o que nos enfade.

 

 

679 – Nascer

 

O nascer atrai papéis

E mais papéis vida além:

Quem nasce para dez reis

Não chega nunca a vintém.

 

 

680 – Séria

 

Gente séria que te ameia,

Dedo em riste, mal contida…

- Não faz a menor ideia

Do que tem valor na vida!

 

 

681 – Barcos

 

Somos barcos da utopia

Firmemente se ancorados:

Mesmo sofrer é alegria

Se estamos acompanhados.

 

 

682 – Avaro

 

Uns amam com todo o ser,

Outros supérfluo só dão…

- Deus nos livre até de ver

O avaro de coração!

 

 

683 – Apatia

 

Melhor é morrer lutando

Pelo bem de quem amamos

Do que extinguimo-nos quando

De apatia definhamos.

 

 

684 – Instante

 

O instante de simpatia

Revela melhor alguém

Do que meses de vigia

A ver nele o que contém.

 

 

685 – Gestos

 

Por muito que os gestos doam,

Algo há sempre bem mais reles:

Os homens nunca perdoam

Que possam prescindir deles.

 

 

686 – Mantenha

 

Não mantenha nada em casa

Senão se de útil o preza

Ou, se inútil, porque a brasa

Tem de lhe encontrar beleza.

 

 

687 – Filão

 

De promessas andam cheios

Mil políticos boçais.

Se filão és doutros veios,

Promete pouco e faz mais.

 

 

688 – Paixão

 

A paixão andar à roda

Faz o mundo com apuro.

O amor joga noutra moda,

Torna-o lugar mais seguro.

 

 

689 – Sonho

 

Sonho com um chocolate,

Não é chocolate, é sonho.

Se é viagem que ele acate,

Já viajando me ponho.

 

 

690 – Miséria

 

Da miséria que vagueia

Pelo mundo, o mais, o mais

É um produto que semeia

A negligência dos pais.

 

 

691 – Perfeito

 

Daquele que é perfeito desconfia,

De quem na manga tem a solução,

Desconfia de tudo todo o dia,

Menos do que te diga o coração.

 

 

692 – Alegria

 

Cada alegria é um proveito.

Por mais pequeno que seja,

Cada proveito faz jeito

Se vida a sério se almeja.

 

 

693 – Imagem

 

A imagem a te evocar

Ando pelo mais amável:

- Quanta ausência a te tornar

A presença desejável!

 

 

694 – Duro

 

Para além doutros abrolhos,

É duro ver aviltar

Debaixo de nossos olhos

Quem nascemos para amar.

 

 

695 – Sorte

 

A sorte dum homem

Mora no desvão

Dos fins que consomem

Dele o coração.

 

 

696 – Estranho

 

Tem isto de estranho o amor

Do lume contra a função:

O amor cresce quando for

Ameaçado de extinção.

 

 

697 – Afecto

 

Por mais que possua

Nada mais me importa

Se o afecto actua

E me bate à porta.

 

 

698 – Índios

 

Índios hopis cantam chuva

Porque a chuva é um bem mui raro.

Nós no amor pomos a luva:

- Perdemos o que é mais caro.

 

 

699 – Falar

 

Ao falar, não esquecer

Que és bem mais interessado

No que tens para dizer

Do que qualquer convidado.

 

 

700 – Previsão

 

Previsão? Não é fatal:

Mudar o porvir podemos

E torná-lo no fanal

Daquilo que apetecemos.

 

 

701 – Questão

 

A questão mais importante

Para um lar resultar bem

É o poder que o casal tem

De às taras ser tolerante.

 

 

702 – Rodear

 

Quando a vida nos magoa

Não é de bíblias citar,

Mas de rodear a quem doa

De íntimas mãos a se dar.

 

 

703 – Continua

 

Para além do sofrimento

Continua a vida doce:

Beleza e amor – fundamento

Do que vale ter em posse.

 

 

704 – Feita

 

Muitos se consomem

Sem ver o evidente:

- A vida dum homem

É feita de gente.

 

 

705 – Pensar

 

O pensar vem do querer

E o que aquece o pensamento,

Colorindo o malmequer,

É uma flor de sentimento.

 

 

706 – Sapato

 

Só o marido, só o marido

Que o sapato calça sabe

Onde lhe aperta o ferido

Pé que nele não cabe.

 

 

707 – Pára

 

Há muito pouco quem queira

Ficar fora da corrida:

Pára de correr e à beira

São mortos quem te convida.

 

 

708 – Compreender

 

Compreender de nada serve

Se não tivermos ninguém

A quem, para que o conserve,

Se comunique também.

 

 

709 – Amor

 

Será sobrestimação

Todo o amor, pela magia.

Se vir como ele é tão chão,

Então ninguém amaria.

 

 

710 – Realmente

 

Doutrem ninguém pensamentos

Realmente quer ouvir,

Por mais valor que a atribuir

Lhes ande quem lê os eventos.

 

 

711 – Palmilha

 

Com gente falsificada

Jamais eu me envolveria,

Quem palmilha tal estrada

Nunca preserva a magia.

 

 

712 – Longas

 

As longas separações

São perigos, têm desertos,

Que escorre o amor em sezões

Por mil areais incertos.

 

 

713 – Filhos

 

Os filhos são a viagem

Bem ao íntimo de nós

Em que corpo e alma reagem

Ao centro indo e atando os nós.

 

 

714 – Aliados

 

O que quiser ofender

Ou ser ofendido espera

Aliados vai querer,

Companheiros requisera.

 

 

715 – Entre

 

Entre pensar uma empresa

E realizá-la medeia

A ruptura (onde nos reza

O sonho) dos medos cheia.

 

 

716 - Servir

 

Não há superioridade

De homens sobre homens que justa

Possa ter-se em dignidade

Senão de os servir à custa.

 

 

717 – Encontrar

 

Faz bem a quem mais puderes,

A miúdo, é a melhor via

De encontrar rostos que queres

Que te causem alegria.

 

 

718 – Medir-me

 

O que outrem pensar de mim

Não é assim tão importante:

A meta a medir-me ao fim

Só eu é que a ponho diante.

 

 

719 – Algures

 

Algures no mundo alguém

Há sempre melhor que nós.

Pouco importa: o que convém

É melhorar sempre após.

 

 

720 – Pais

 

Quando os pais nos andam vivos

Na vida vemos que há via.

Quando nos morrem, furtivos,

Fecham o que a protegia.

 

 

721 – Aflorar

 

A energia da beleza

Mora na capacidade

De surpreender quem a preza

O aflorar da eternidade.

 

 

722 – Merece

 

Não mereces ser amado,

Crerás porventura há muito.

Mas quem merece tal fado?

Todo o amor é um dom gratuito.

 

 

723 – Marido

 

Se eu não fora sonhador

Que é que iria então ser mais?

Marido era por amor:

- Todos seríamos pais!

 

 

724 – Corrida

 

Que a tua corrida seja

Para ideais atingir

E não fuga onde te veja

A de algo te escapulir.

 

 

725 – Desistir

 

Desistir daqueles nadas

Que à vida nos dão sabor

É esquecer-nos, nas jornadas,

De a nós próprios ter amor.

 

 

726 – Acaba

 

Quando tudo acaba, o drama

É sempre tanto maior,

Findo o nó final da trama,

Quanto maior foi o amor.

 

 

727 – Culpa

 

Nunca a pátria atraiçoada

Parece tanto tal quando

Sou infeliz sem deitada

Lhe a culpa ser do desmando.

 

 

728 – Renuncia

 

Um homem às evidências

Renuncia quando aspira

Ao impossível de essências

Que ele escolheu ter em mira.

 

 

729 – Desejo

 

O desejo é singular:

É como a perenidade

Do pendor de me elevar,

Parente da eternidade.

 

 

730 – Nada

 

Não somos nada, o que busco

É que me empresta a ilusão

De que sou, no lusco-fusco,

Algo aqui de pé no chão.

 

 

731 – Partida

 

A partida dos que amamos

Alimenta, no desvão

Do vácuo em que sufocamos,

A fome da criação.

 

 

732 – Companheira

 

Companheira de naufrágio

E jamais estrela-guia

É da mulher o apanágio

Com que salva cada dia.

 

 

733 – Mitos

 

Os mitos pagãos serão

Deus através dos poetas

A revelar ao serão

Fragmentadas vias rectas.

 

 

734 – Número

 

O número da amizade

Não são dois, não é o melhor:

Cada qual que um grupo invade

Aumenta um novo valor.

 

 

735 – Contra

 

Contra Deus o revoltado

Produz o inverso do intento:

Ele e não um afilhado

Devém de Deus instrumento.

 

 

736 – Cobertor

 

O mito é para a verdade

Cobertor que a nudez tape:

Não fuga da realidade,

Para a realidade escape.

 

 

737 – Consegue

 

Um homem consegue a glória,

Seja embora ele o que for,

Se dele fala a memória

Para além dele em penhor.

 

 

738 – Criança

 

Criança que a eterna noite

Gritas no peito da gente,

Chama (não há quem te acoite…),

Marca-nos eternamente!

 

 

739 – Trocar

 

Por medo, não há virtude,

Por amor, não há pecado.

E quanta gente se ilude,

Bocado a trocar bocado!

 

 

740 – Serve

 

Serve a Deus homens servindo,

Deus não temas nem a vida.

Serás logo, o dia advindo,

Bom pastor: prado e guarida.

 

 

741 – Tualete

 

Usar boa educação

É a tualete vestida

Para a exacta ocasião

Que era a da festa da vida.

 

 

742 – Amigo

 

Um amigo é sempre alguém

Que colmata enorme falta:

Ter ali à mão com quem

Pode pensar-se em voz alta.

 

 

743 – Gratidão

 

Gratidão é o coração

A lembrar-se, de longada,

Em qualquer ocasião,

Duma bondade passada.

 

 

744 – Degrau

 

Ao usar bem o passado

Não será como muleta

Mas como degrau fincado

Trepando a cauda a um cometa.

 

 

745 – Inimaginável

 

Tentar o maravilhoso

No inimaginável é

Ter de pensar, fabuloso,

Buscando aflorar-lhe o pé.

 

 

746 – Outrem

 

Ter amor à liberdade,

Por outrem é ter amor.

Amor ao poder que invade

De nós próprios é senhor.

 

 

747 – Conhecer

 

Conhecer não é mostrar,

Demonstrar explicação.

É aceder, em lugar,

Do misterioso à visão.

 

 

748 – Trata

 

Como são trata as pessoas,

Tais quais permanecerão;

Trata-as tal se foram boas

E a ser boas passarão.

 

 

749 – Fé

 

Toda a crença é só verdade

Contida, fria, na mente.

A fé tem fogo que invade

Todo o coração da gente.

 

 

750 – Muda

 

A quem vem chorar

Sopra, clandestino:

Muda de lugar,

- Muda de destino!

 

 

751 – Jamais

 

Jamais houve uma nação

Boa suficientemente

Outra para ter à mão

Subjugada mas contente.

 

 

752 – Pássaro

 

Um pássaro na gaiola

Se sonhara todo o dia

Será que ainda sofria?

- É o sonho que a mim me imola!

 

 

753 – Cônjuge

 

Do cônjuge a morte, após

Intensa vida em comum,

Arranca o ser aos bandós

Da raiz posta em jejum.

 

 

754 – Incumprido

 

Um amor jovem ainda

Incumprido em qualquer acto,

Do entusiasmo no impacto

Torna qualquer casa linda.

 

 

755 – Tempestades

 

Que bom é ter um amigo

Quando todos nos odeiam:

Conto então com um abrigo

Se as tempestades ameiam!

 

 

756 – Nome

 

Quando já nada se tem,

Mesmo o nome duma moça

Que só um retrato retém

Algo é já que nos remoça.

 

 

757 - Primeira

 

A minha primeira morte

Foi minha pátria deixar.

Outra qualquer vinda à sorte

Secundário tem lugar.

 

 

758 – Pareça

 

Extraordinário demais

É que nada extraordinário

Nos pareça a nós jamais

Em todo o curso diário.

 

 

759 – Gota

 

A sonhar eu me disponho

Em tudo o que me convida,

Pois uma gota de sonho

Basta a adoçar-nos a vida.

 

 

760 – Tristeza

 

Devolver um bebé morto

Nada o consegue, infecundo:

Nada a tristeze do porto

Apaga que fecha ao mundo.

 

 

761 – Desilusão

 

A desilusão nos junca

A terra com que sonhemos,

Pois nada acontece nunca

Tal qual como nós quisemos.

 

 

762 – Faço

 

Tanto o amor é de nós amo

Que o mais deixa para trás:

Justamente é quando eu amo

Que eu faço o que não se faz.

 

 

763 – Ame

 

Ser amado não diverte,

Muito mais interessante

É alguém ter que me liberte:

- Alguém que eu ame diante.

 

 

764 – Efeito

 

Não é viável prever

Todo o efeito ao que se faz,

Limites dum acto ver

Nos elos que arraste atrás.

 

 

765 – Vida

 

Minha vida, justamente,

É feita de relações

Com outrem, com toda a gente:

Pontes entre corações.

 

 

766 – Mudar-lhe

 

Não crias o mundo instável

Mas podes mudar-lhe os modos.

Cada qual é responsável

Por tudo perante todos.

 

 

767 – Cala

 

Ao mundo, para ter voz,

Basta a minha voz sozinha.

Quando ele se cala, a sós,

É que então a culpa é minha.

 

 

768 – Morte

 

É uma morte a fogo lento,

Cada instante sem abrigo,

Quem amo, em meu pensamento,

Cuidar que vive em perigo.

 

 

769 – Formiga

 

Formiga num formigueiro,

Que horror pensar-me em tais ligas!

Se o nazi vence, é o primeiro

E nós, ante ele, formigas…

 

 

770 – Queremos

 

Ao menos saber podemos

O que queremos, enfim:

Em prol de tal, pois, rememos,

O mais não respeita a mim.

 

 

771 – Pedra

 

São requeridas as pedras

Para rasgarmos a estrada.

És pedra, tu, quando medras,

Senão como ir de jornada?

 

 

772 – Marcha

 

Não creias ter, à cabeça,

A meta ao jogar o laço.

A longa marcha começa

Sempre num primeiro passo.

 

 

773 – Práticos

 

Os práticos que se crêem

Imunes a intelectuais

São escravos que o não vêem

De algum defunto dos tais.

 

 

774 – Arriscar

 

Arriscar é perder pé

Por momentos, em seguida.

Não arriscar, porém, é

Acaso perder a vida.

 

 

775 – Exemplo

 

Longo e penoso é o caminho

Se através de normas, leis…

Curto e eficaz o adivinho

Se pelo exemplo que deis.

 

 

776 – Política

 

Política é compromisso:

Gerir recursos finitos

Ante o permanente enguiço

De desejos infinitos.

 

 

777 – Ilusão

 

Uma ilusão que é desfeita

É um momento lamentável,

Vida sem ilusões feita

É a vida inteira inviável.

 

 

778 – Inábil

 

O inábil em relações

A si mais prejudicial

Vai ser do que outros senões,

Mesmo que incurável mal.

 

 

779 – Vento

 

Quando o vento sopra e range,

Uns levantam-lhe barreiras,

Outros, moinho que o abrange

Ou barco à vela a abrir leiras.

 

 

780 – Exposto

 

Cá fechado em meu abrigo,

Daqui lanço o frágil grito

Em que aqui moro ao postigo

Ao cosmo exposto infinito.

 

 

781 – Ignorância

 

A fé mora enraizada

Na ignorância radical

E a religião de cada

Aflora mistério tal.

 

 

782 – Humildes

 

Quanto mais enfim soubermos

Mais  humildes nos sentimos

Da ignorância que tivermos

- E ao fim a luz atingimos!

 

 

783 – Vazio

 

É o vazio a sensação

De atravessar-nos a Vida,

Tal se condutor, no vão,

Fôramos bom e à medida.

 

 

784 – Ilusão

 

Desta ilusão da certeza

Liberto, posso explorar

Dos mistérios a beleza

Que a vida vão conformar.

 

 

785 – Halo

 

Tudo um mago halo contém:

Se algo é simples, conhecido,

Mais certo é nada, porém,

Dele saber bem sabido.

 

 

786 – Crença

 

A crença tem uma sombra,

Todo um poder para o mal,

Grande como o potencial

Para do bem toda a alfombra.

 

 

787 – Mistérios

 

A fé não é segurança

De tudo ir pelo melhor,

Nos mistérios confiança

É de sentido e valor.

 

 

788 – Inspirado

 

Raro encontro um voador,

Inspirado em boa ideia,

Que, a mais crítico, o fulgor

Não sangre da vida à veia.

 

 

789 – Voltas

 

Lei do espírito a trocar-nos

As voltas às singelezas:

Não podemos elevar-nos

Senão indo às profundezas.

 

 

790 – Quedas

 

Nossas quedas desastradas

Podem marcar a descida,

Reais que são nas estradas,

Ao mais profundo da vida.

 

 

791 – Desafio

 

O desafio maior

É do espírito o convite

Para me tornar quem for,

Não quem quero que me habite.

 

 

792 – Desintegrar

 

Sempre me transmudo em todo

E, portanto, nunca o sou,

Por constante, deste modo,

Me desintegrar no voo.

 

 

793 – Próprios

 

Não devíamos tentar

Do que somos ser diversos

Mas, ao invés, arriscar

Ser nós próprios e bem tersos.

 

 

794 – Guia

 

Aquele que arrisca a vida

Pode ser guia melhor

Que aquele que apenas cuida

De em virtude ser maior.

 

 

795 – Perfeccionista

 

O perfeccionista, não

Satisfeito com quem é,

Busca um objectivo em vão,

Não goza o que tem ao pé.

 

 

796 – Fardo

 

É o espírito uma pedra,

Não alado, éter vazio,

Fardo pesado é que medra

Da vida ao centro onde a guio.

 

 

797 – Deus

 

O nome Deus pode usar-se

A imobilizar o espanto,

Ídolo falso entretanto,

- Ou pode ao mistério alçar-se.

 

 

798 – Atraem-me

 

Atraem-me os impossíveis,

Exprimir algo inefável:

- Que é que são vidas vivíveis,

De Deus que real é viável?…

 

 

799 – Teologia

 

Um Deus para lá de Deus,

Um nome que não nomeia,

Teologia de ateus:

Saber do que nem se ameia.

 

 

800 – Imagens

 

Com imagens conviver

Não é de as clarificar,

Com elas é de aprender:

Levam a um novo lugar.

 

 

801 – Sonho

 

O que importa não é o sonho

De quem de sonho é capaz,

Nem o que de mim lhe aponho,

- Mas o que o sonho nos faz.

 

 

802 – Religião

 

Religião em geral:

Modo mais inteligente

Como menos racional

Que à vida um sentido invente.

 

 

803 – Questão

 

Religião é questão de alma,

Entusiasmo e visão

Do espírito acolhe, calma:

- Tenta o céu sem perder chão.

 

 

804 – Sacrifício

 

O sacrifício esvazia

Da vontade pessoal:

Pode o espírito em tal dia

Ter mais presença, afinal.

 

 

805 – Ingénua

 

A vida é sofisticada

No material, mecânico,

Mas ingénua, desarmada,

Do invisível ante o pânico.

 

 

806 – Diálogo

 

Ao diálogo com a vida

A oração requer me incline,

Na intuição do outro mantida,

Dum Outro que me define.

 

 

807 – Brilho

 

Brilha em teus olhos, se agita

O termo que rasga os véus.

Faz que teu rosto reflicta

O brilho, o brilho dos céus.

 

 

808 – Aprendizagem

 

Aprendizagem capaz

Não são factos, ir a exame:

Olhos cintilantes traz,

Brilham céus no que conclame.

 

 

809 – Ponto

 

O mestre um aluno leva

Ao ponto de ele aprender

E este ao mestre a fome ceva

De um eterno aprendiz ser.

 

 

810 – Meta

 

Meta da religião

Não são teses de intelectos

Mas que válidos virão

Santos vivos e concretos.

 

 

811 – Intuito

 

O melhor para ensinar

É tal intuito não ter:

Quão mais longe este ficar

Mais ensinar vai poder.

 

 

812 – Reflectir

 

Reflectir profundamente

Sobre uma coisa qualquer

É descobrir, de repente,

Que é um mistério a aparecer.

 

 

813 – Vera

 

A vera religião

É o mundo tão secular

E tão sagrado que então

Não há como os separar.

 

 

814 – Preparo-me

 

Cada vez que me transcendo

Nesta vida germinal

Preparo-me indo acedendo

À transcendência final.

 

 

815 – Exponho

 

Uma vez aprendido o vazio,

Preparado me exponho aos mistérios,

Tenho o espírito cheio, que enchi-o

Com o sangue dos entes sidéreos.