DÉCIMO SEGUNDO
TROVÁRIO
EM TROVÁRIOS, DE VIDA COM MIL
SÓIS ME ALUMBRO
Escolha um número aleatório entre 1176 e 1416 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu
dia de hoje.
1176 – Em trovários, da vida com mil sóis me alumbro
Em trovários, da vida com mil sóis me alumbro,
São caminhos de amar, são de sonhar carreiros,
São roteiros de agir, traços que enfim vislumbro
Na noite dos prodígios: pelos céus deslumbro-
-Me com os astros mil, de os ver de mim parceiros.
Em trovários alinho as trovas nesta escada,
Vou da quintilha à quadra, do terceto breve
À parelha final onde me fica atada
A ideia rematada que me o ar susteve.
Então é com mais força que a pequena luz
Que vem das profundezas como um sopro leve
No verso compassado a madrugada induz.
No trovário, por fim, vai revelar-se o lado
Onde, afinal, não mostro, onde antes sou mostrado.
1177 – Cara
A outra cara
da motivação
Que parte faz
da natureza humana
É o gosto
inato da competição,
Que ser
competitivo é uma razão
Da qualidade
que de nós emana.
Não é à toa
que a sobrevivência
Dos que mais
fortes são está na base
Da evolução
bem como da cadência
Dos saltos
pelas eras que ela apraze.
Competitivo
espírito, eis a chave
Do adulto bem
logrado, em evidência,
Enxada com que
as várzeas ele cave.
Se é o que
muros derrui, ata cadilhos,
Por que não
incuti-lo então nos filhos?
1178 – Ilustram
Jogos,
concursos e competições
Ilustram a
importância da conduta
Que sofre da
agonística impulsões,
Cobram poder
de tomar decisões
E ensinam a
perder numa disputa.
Com isto vêm
as demais lições
De indubitável
e feliz valor:
Como dos erros
tirar ilações
Outros
caminhos como me propor,
A melhorar
saber e desempenhos,
A apurar
finamente as aptidões,
A ter
critérios para meus empenhos,
A ter vontade,
contra meu revés,
Para tentar,
teimoso, uma outra vez.
1179 – Compensação
Uma
compensação que a idade traz
É que é mais
fácil o passado velho
Com o presente
celebrar a paz
E mantê-la
virente, bem vivaz,
Que idade bem
vivida traz conselho.
O tempo dilui
as penas
Que dimanam
dos desgostos
E as
cicatrizes nos rostos
Mais e mais
ficam pequenas.
As culpas
também se esbatem
Nelas e nos
pressupostos
E os muros
dentro se abatem.
O vinho melhor
Tem velho
sabor.
1180 – País
Este meu país
é antigo,
Tem vindo a
ser assolado
Quanta vez
pelo inimigo!
Faz dele
sempre um mendigo
Cada invasor
desvairado.
Caminhamos por
entre estas ruínas,
Sobrevivemos
há três milhões de anos
E da
sobrevivência os bons arcanos
Da família
reduzo-os às vacinas:
Pois a família
não é só questão de sangue,
De relações é
teia (ilusões, desenganos…)
São dívidas,
favores, risos com que mangue,
- É todo o
seguro
Contra o mal
futuro.
1181 – Transmutações
Quem as
transmutações ignora dos amores,
Por eles
operadas no carácter do homem?
Eis que os
tristes alegres ficam, doutras cores,
O extrovertido
finda de negros humores,
O optimista
deriva em freimas que o consomem,
O pessimista,
ao invés,
Abre os olhos
de alegria,
O covarde
ganha pés
De enfrentar a
apostasia
E a coragem
retoma, é uma bandeira
Trilhos
rompendo aonde ecoam fés,
O indeciso
decide com canseira…
- É o amor
mudança
Que outro
mundo alcança.
1182 – Sempre
Sempre o mesmo
ocorreu e ocorrerá:
Sempre o amor
é o amor antes de o veres,
Poderás
encontrá-lo, ora acolá,
Ora com outrem
que nem te verá,
Em qualquer
parte, mal por ti não deres…
Sempre o mesmo
e nunca igual
Ou igual só na
traição,
Que, ao mudar,
então já não
Teremos de
amor sinal.
Eterno é
sempre o amor no que visar devir
Mas o tempo,
afinal, o terá curto à mão:
Conservá-lo
não hás-de jamais conseguir,
- Só se morrer
dele
For o que te
impele.
1183 – Satisfatória
Dum indivíduo
quão maior a activação
Menos
satisfatória vai ser nele a vida:
Primeiro no
domínio do que é o coração,
Depois nos
pessoais laços que entretecerão
As domésticas
freimas, de íntimos a lida.
Mesmo as
esposas, os irmãos, os filhos
Ou quaisquer
próximos demais parentes,
Até do grande
líder assistentes
São bêbados,
drogados, - mil sarilhos!
Uns são
invertidos frustes,
Outros, loucos
descontentes
E não vês como
te ajustes:
- É o que aos
céus faz que cometas
Tantas
podridões secretas!
1184 – Raso
Por temermos o
elitismo,
(Que nós somos
democratas!)
Impomo-nos o
estrabismo
De não ver de
oiro o que crismo,
Todas as jóias
são latas,
Seja o génio
que abre mundos,
Seja o santo
que nos salva,
O herói de
tempos fecundos,
O artista
luzeiro de alva…
Qualquer ente
de excepção
À mostra lhe
ponho a calva,
Ignorando-o,
raso ao chão.
Da libertação
são remos
- E aguardam
que nem olhemos!
1185 – Duas
Sendo nós duas
verdades,
Uma de Árvore
da Vida,
Pela qual te
persuades
A buscar com
que te agrades
Sempre da fome
à medida,
Outra da
Sabedoria,
Flor da
receptividade,
Por onde entra
a luz do dia
A luzir na
opacidade,
Aquela a viver
a luta,
Esta a lei que
concilia,
Se uma com
outra disputa,
Uma doutra
divorciada,
Serão doença
pegada.
1186 – Contrato
O amor deveras
amor
Não pode ser
colocado
Num contrato,
num valor,
Que tal base,
é de supor,
É um desafio
adiado,
Pois contrato
é desafio
Que, logo no
próprio acto,
Me vai tentar,
desconfio,
A quebrar o
que há no pacto.
Há o cálculo
pessoal,
Cada qual ata
seu fio,
Combina
aparte, letal.
Contrato é de
humano tino,
O amor amor é
divino.
1187 – Radiações
Há radiações,
dioxina,
Mil e um
resíduos letais,
Muita espécie
que declina
E as de que
findou a sina
E nem sabemos
que mais…
Concordaremos
que é mau,
Que é o
desafio maior,
Trepa degrau a
degrau
E acaso o fim
nos vai pôr.
Teremos,
todavia, de anotar,
Por terrível
que disto seja o grau,
Que outro maior,
silente, anda a lavrar:
- Bem mais que
de radiações,
Morres da
mágoa às lesões.
1188 – Fora
Aqueles a quem
tudo corre mal
Olham às
vezes, fora, a natureza,
Vêem o
crescimento sem igual,
O equilíbrio,
a beleza bem real
Que a freima
de cotio só despreza,
Milhares de
milhões de anos de efeitos
De
desenvolvimento gradual.
Sentem-se
envergonhados, mal afeitos,
Tão
insignificantes ante tal!
Ficam parados
a olhar
Como bonecos
sem jeitos,
Olhos fixos,
com vagar…
- Mas se eu
sou que em mim noto a maravilha,
Que faço aqui
parado preso à cilha?
1189 – Monumentais
As monumentais
formas de sofrer,
A peste, o
cataclismo, a guerra, a fome,
A escravidão
que eterna nos tiver,
Universal a
dominar quenquer,
Decerto que, a
quem lá se não consome,
O torna um
sobrevivente
Humanamente
mais fundo.
Mas convirá
ter em mente
O sofrer livre
do mundo.
O
totalitarismo, doutro modo,
Iríamos
sagrando, convincente,
Como quem tem
da honestidade o bodo.
Mas trilhas
mortalmente perigosas
Sofrem os
livres que aram o que gozas.
1190 – Idosos
Idosos há, com
mais de oitenta os vejo,
Ainda furiosos
pelo modo
Como perderam
em criança ensejo
De uma bacia
utilizar sem pejo,
Ou como um
jogo lhes frustraram todo…
Vivem a vida
infantil,
Escravos de
pai, de mãe,
Decénios de
fraldas mil,
- Toda uma
vida refém.
Dele próprio
ninguém com o respeito
Se vai
escravizar ao que ali tem
De antanho a
marca duma faca ao peito.
Desliga de
teus pais em paz, se podes;
- Se não,
rompe caminho: é a ti que acodes!
1191 – Arranha-céus
O
arranha-céus, ergástulo opressivo,
Nem sempre tem
de ter este sentido.
Eles exprimem
o pendor que é vivo
Da aspiração
de quem se vê cativo
E à liberdade
tende, ao céu volvido.
É neste
erguer-me mais alto
Que escapo da
gravidade,
Que busco, no
que me falto,
O peso do que
me invade.
Empresas
poderão enchê-los, execráveis
No chão ao
esmagar raízes donde salto,
Que evocam
transcendência de altos invejáveis…
Talvez ma
traiam, induzindo em erro…
- Mas a
esperança acorda a que me aferro!
1192 – Vida
Uma vida
humana,
De humana, que
densa
No que dela
emana!
Mesmo se se
fana,
Como a vida é
intensa!
Porque o que
nela acontece
Não é o que
acontece nela,
É bem mais que
o que parece,
Infindo além
da janela,
Fronteira do
infinito onde asas soltas
Vou abrir
respirando a infinda messe
Das vertigens
sidéreas nela envoltas.
Pouco importa
o que ocorre a uma vida qualquer,
Mas o que
ocorre em nós neste imenso ocorrer.
1193 – Aprendi
Com a vida
aprendi que objectos são objectos,
Podemos
substituí-los, se for caso disso.
Objectos não
são gente, terminam completos
No limite em
que os toco em meus dias concretos,
Neles jamais
encontro dum porvir o esquisso.
Hoje, quando
um filho ou neto
Parte ou
gasta, em brincadeira,
Um brinquedo,
se o detecto,
Não o censuro
da asneira.
Em vez de o
castigar por descuidado,
Prefiro da
aventura andar à beira,
A infância
festejar de mui bom grado.
É uma alegria
festejar a vida
Pagando os
prejuízos de seguida.
1194 – Casal
Todo o casal
chegado partilha um segredo,
Não termos
cintilantes onde brilha o sol
Nem sexo
doutro mundo onde Deus reza o credo,
Embora em
comum possam ter tudo sem medo:
- É que ambos
descobriram da bondade o rol.
Bondade, ou
seja, ternura,
Atenção,
delicadeza,
Qualidade da
doçura
Que hoje o
mundo, enfim, despreza.
São os
pequenos momentos
Em que a
sintonia apura
Que do casal
são fermentos.
- Eternos
apaixonados
E é por mor de
tais bocados.
1195 – Acaso
Todos seremos
por acaso amáveis
Para com nosso
cônjuge, porém,
O casal mais
feliz logra fiáveis
Maneiras
naturais quase incontáveis
De o mesmo
prosseguir como ninguém.
Não serão mais
altruístas,
Compreenderam,
todavia,
Que a
amabilidade cria
Um trilho do
amor nas pistas:
Um pequeno e
doce gesto
Outro igual
inspiraria,
De boa vontade
apresto.
E eis se
reconcilia então o todo
De ambos
quando ambos forem deste modo.
1196 – Gesto
O mais
simpático dum gesto, às vezes,
Consiste
apenas no banal dum toque:
Pôr-lhe a mão
num joelho, se corteses
Temos de ser,
mesmo que, enfim, desprezes
A festa onde
te encontres a reboque,
Ou de
encorajamento aquele abraço
Que lhe dás
quando vai a uma entrevista
Com um
empregador que se revista
Dum peso para
o qual o jeito é escasso…
Pele com pele
o contacto
Mais pode quão
mais insista,
Serenidade é
de facto.
Um gesto é
capaz:
- Cria logo a
paz!
1197 – Toque
Há no toque
envolvimento
Físico e
químico amável,
Vai levar cada
elemento
A
aproximar-se, sedento,
De outrem como
desejável.
Parece,
provavelmente,
De somenos
importância.
No atropelo da
corrente,
Na confusão
plena de ânsia
Destas vidas
agitadas,
Corre o
passado, o presente,
E vemos, eras
passadas,
Que os vivemos
sem tocar
Nunca, acaso,
em nosso par.
1198 – Cotio
Quanto mais
introduzir
Mil pequenas
gentilezas
No cotio que
erigir,
Mais nelas
hei-de fundir
Minha energia
e defesas
Da relação
afectiva.
Nada, pois, de
grandes gestos,
Um nada
pessoal cativa,
Mais caro que
outros aprestos.
Prepara-lhe o
que vestir,
O carro da
fila esquiva
Lhe tira,
quando sair…
- Bom, em
todos os assuntos,
É ver quanto
andamos juntos.
1199 – Aprendemos
O que
aprendemos no jardim de infância
(“Ouçam, não
interrompam!”, “Obrigado!”
Ou “Peçam por
favor!”…), mais que elegância,
Da ternura
retém toda a fragrância,
Ao casamento,
pois, vive aplicado.
Quando com
alguém se vive
É fácil deixar
à porta
Bons modos a
que me esquive
Como o que já
não importa.
Mas
“obrigado!” dizer
Ou “desculpa!”
é o que me exorta
Ao respeito
por quenquer.
- Ora, é
sempre no respeito
Que a ti,
amor, presto preito.
1200 – Problema
O problema é
abandonar
Hábitos
indelicados,
Importa
através do olhar
Nunca mais os
sinais dar
De impaciência
enervados.
Entender que é
mesmo má,
Má educação
entre nós.
E, quando não
houver já
Do amor no fio
tais nós,
Constataremos,
enfim,
Que a
animosidade lá
Feneceu de vez
assim.
- Vamo-nos,
amor, ouvir
Sem ter mais
de discutir.
1201 – Lindas
Ao não guardar
para mim
Palavras
lindas que penso
De meu amor,
digo assim
Que tem ar de
querubim:
Logo ateio
nele o incenso,
Fica tão
iluminado
Como árvore de
Natal.
Um mero”tens
ar lavado!”
Troca-lhe ao
dia o sinal,
Tudo logo
corre bem:
De quem mais,
por outro lado,
Ouvi-lo pode
também?
- Se a
formosura lhe aponto,
Aumento-lhe a
fé de pronto.
1202 – Espontâneos
Espontâneos
gestos tem
Que te lembrem
divertido
Como é estar
com o teu bem.
Visita-o lá no
armazém
Para o almoço
inatendido.
Se o não
encontras, sozinho
Deixa um
recado também
Alegre num
papelinho
Que o alegre
quando vem.
Ou faz-lhe um
favor.surpresa
Se carente, de
mansinho:
Nos dias maus,
põe-lhe a mesa…
- Mostrar
quanto assim crês nele
Para a frente
é o que o impele.
1203 – Jaula
Na jaula,
cinco macacos
Aprendem que
quem trepar
Leva a tudo
pôr em cacos:
Os bens de
parcos patacos,
Fome e dor
logo a gerar.
Então quem
trepa é abatido
Com uma surra
bem dada.
Se entra um
novo, é repetido
O castigo,
logo à entrada.
Se um a um se
trocam todos,
Quem trepa
apanha pancada,
Sem já porquê
de tais modos.
- Quantos
assim não agimos
Quando à mão
há outros cimos!
1204 – Coração
A natureza, ao
criar
O ser humano,
criou
Um coração a
pulsar
Que a si
própria se quis dar:
Logo a
compaixão brotou.
Não existe no
ADN,
Mas sim na
pessoa inteira
E não há quem
a condene
Quando uma dor
lhe aligeira.
Dum alheio
sofrimento
Manter-se fiel
à beira,
Mas que
estranho sentimento!
Dos homens,
ante um apelo,
É deveras o
mais belo.
1205 – Discrição
Pela discrição
domino
Os meus
impulsos primários,
À consciência
me inclino,
A controlar o
destino
Perdido em
gestos sumários.
Nada obriga a
contar tudo,
Revelar a
intimidade
Não faz parte,
por miúdo,
De ser par na
Humanidade.
Ser discreto
poupa a insónia,
Constrangedora
verdade
Fecho em mim
sem acrimónia.
- Detemos o
poder de afinar a torneira
Por onde o imo
derramo pela terra inteira.
1206 – Talhantes
Há talhantes
disfarçados,
Dos cadáveres
se servem
A fabricar,
denodados,
Não os bifes
cobiçados
Que nos gestos
se preservem,
Não, que o
cadáver humano
Provocaria o
engulho
E um talhante
que é de engano
Vai aos
salvados no entulho,
E não fabricam
sabão,
Que um morto
humano traz dano
E há mais
recursos à mão,
- São
talhantes onde apura
De espaventos
a cultura!
1207 – Comanda
Nosso passado
tem pouco sentido,
Não vejo
claridade, ordem, caminhos
E morrem os
propósitos de olvido,
Às cegas
aventura onde despido
O instinto me
conduz dos adivinhos.
Incontroláveis
factos me desviam
Da sorte o
curso, talham-me o destino.
Não houve o cálculo
que os pés queriam,
A presumir o
rumo a que me inclino.
Mil boas
intenções apenas houve
E, após, esta
suspeita me imagino
Que o
respeito, por fim, impõe que louve:
- Um projecto
a que nem diviso os traços
Fatal comanda
superior meus traços.
1208 – Maga
Agora e
noutras ocasiões desesperadas,
Quando orações
tento evocar e não encontro
Ritos, nem
termos, nem imagens incensadas,
E mudo fico,
indefinido entre as estradas,
Das
frustrações e sonhos preso ao desencontro,
A visão única,
consolo e reconforto,
A que poder
vou recorrer são os atalhos
Entre os
canteiros verdejantes de meu horto,
Serpenteantes
no pinhal onde ando aos galhos,
São
gigantescos fetos indo o céu lamber,
Os troncos
negros a elevar-se ao azul morto,
Perfil de
montes e os nevões lá num qualquer…
- Estar em
Deus deverá ser, pois, com certeza,
Andar deveras
nesta maga natureza.
1209 – Escala
À escala do
Universo imensurável, frio,
Da História no
trajecto a nós alheio, imposto,
Como
insignificantes vamos ser no rio
Do nascimento
à morte, a correr sempre o fio
Implacável,
fatal, de pedregais sem rosto!
Depois de
nossa morte continua tudo
Tal qual se
não contáramos jamais em nada,
Seremos o
balão oco, vazio e mudo,
Não já na
morte só, desde na vida a entrada.
Na medida,
porém, desta precária sorte,
Tu, filho, és
para mim mais importante e agudo
Que minha
própria vida ou a que aos mais importe.
- Setenta
milhões hão-de hoje o fim deles ter?
Só tu nasceste
e apenas podes tu morrer!
1210 – Doença
Da doença as
misérias nos igualam todos,
Não há rico
nem pobre no limiar da dor,
Um hospital, a
campa apagarão os bodos
Que a todos
nos dintinguém pelas classes, modos,
E a morte nos
nivela num igual bolor.
Este umbral ao
cruzar, no cemitério finda
A busca ao
privilégio, quer o queira ou não
Aquele que no
leito de finado ainda
Não haja
reparado que lhe falta o chão.
Em fumo se
desfaz toda a vantagem tida,
Vaidade das
vaidades as vanglórias são
E todos os
haveres se rirão da lida.
Iguais nos
descobrimos na raiz mais funda:
- Humildes nos
tornamos quando a dor fecunda.
1211 – Cuidar
Tentemos não
cuidar num amanhã de escuro
Quando a noite
enoitar a cada luz do dia,
Quando a dor
dentro em nós nos rematar o muro
Que
intransponível corta o fino trilho e puro
À festa
prometida que de além luzia.
Tentemos não
cuidar, já que o porvir existe
Mas só no
imaginário, que nos factos, não:
Futuro é
projecção do que algum dia viste,
Se o tentas
agarrar é pueril cotão.
Apenas
contaremos com o antigo rumo
De antanho a
oferecer-nos o sabor do pão,
O passado a
espremer até nos dar o sumo,
E com presente
aqui, breve e subtil faísca,
Que em ontem
se converte, logo, mal nos pisca.
1212 – Dor
Dor é
inevitável
No correr da
vida
Mas é
suportável
Se,
identificável
E bem
comedida,
Minha
resistência
Eu não lhe
opuser
E se da
aparência
Não a
enaltecer
Dos ecos em
mim
Que encobrem
qualquer
Traumatismo:
enfim,
Se a aplacar
meu credo
Na angústia e
no medo.
1213 – Efémera
Como é efémera
a existência!
Que é que
importa o material,
Já que é de
toda a evidência,
Seja qual for
a excelência,
Que o perdemos
no final?
Antes tu te
preocupes
Com as
inquietudes de alma,
Que com mais
nada te ocupes,
A recuperar a
calma.
Para a cova
num lençol
Vamos sem oiro
nem palma
E ninguém
escapa ao rol.
- Tanta
azáfama porquê,
Quando ao fim
nada se vê?
1214 – Portas
Que não tenhas
medo,
Pois
fortalecido
Sairás do
degredo,
Mais tarde ou
mais cedo,
Após ter
sofrido!
É que nos
momentos
Mais
desesperados,
Em meio aos
tormentos
Mais fatais,
danados,
Se as portas
se trancam
E se
aprisionados
Ali nos
desancam,
- Eis se abre
passagem
Logo a nova
viagem.
1215 – Surpresa
Para mim foi
surpresa descobrir que o mundo
São infinitas
vias de maldade humana,
Já que é tão
violento, um predador imundo,
A estraçalhar
as flores do jardim fecundo
Que infante me
sonhei, na candidez mais lhana.
Regida pela
lei dos fortes mais, fatal,
A selecção da
espécie não serviu jamais
Para que a
inteligência refloresça igual
À dos lídimos
homens onde cresceu mais,
Nem o espírito
humano desenvolve, enfim,
Onde as
vivências puras se imporão reais,
Que a porta
aos maus instintos fica aberta assim.
Na ocasião
primeira, ratazanas presas,
Logo nós
destruímos lendas com vilezas.
1216 – Aprendi
Tudo quanto
aprendi nos manuais, nos cursos,
Há o momento
em que não me servirá de nada,
O momento em
que o trilho destes meus percursos
Se incarna nas
pegadas, já não são discursos
Que de roteiro
servem na feliz largada.
A rota
inaugurada já parar não pode,
Correremos
direitos à novel fronteira
Como que
iluminados pela luz que acode
Da madrugada
estranha que de nós se abeira.
Cruzamos
através da misteriosa porta
E então
amanhecemos do outro lado, à esteira
Do fulgor da
magia que a espantar exorta:
Entrei bebé no
mundo, germinei consciência,
Acordo – e
neste Além sou a integral vivência.
1217 – Ignoro
Ignoro como e
porque escrevo os livros meus,
Da mente, não,
não brotarão, o ventre os gera,
São criaturas
caprichosas, de escarcéus
Com vida
própria, a arremedar inferno e céus,
Sempre
dispostos a trair-me na quimera.
Não, não escolho
tema, entrecho, eles me escolhem
A mim que
deles mal vislumbro a sombra esquiva,
E nem ao menos
me toleram nem acolhem,
Antes me
obrigam a viver de névoa viva.
O meu trabalho
simplesmente consistiu
Em
dedicar-lhes de meu tempo o que recolhem
Quando meu
fôlego sozinho se esvaiu.
Tempo
bastante, solidão e disciplina
E por si
próprios já se escrevem como sina.
1218 – Mergulhei
Na dor da
morte mergulhei nas águas frescas
E descobri que
uma viagem pela dor
Finda em
vazios absolutos, sem dantescas
Figurações com
que repeso te refrescas,
Antes é um
nada na brancura do estupor.
Ao diluir-me,
porém, fiz a descoberta
De que o vazio
anda, afinal, cheio de tudo,
Da realidade
do Universo recoberta,
Do que contém
o inteiro Cosmos por miúdo.
Este vazio é
mesmo o nada de ser cá
E ao mesmo
tempo é pelo inverso, sobretudo,
Tudo, que o
vivo quando vivo o ser de lá.
Porque vazio,
sou também tudo o que existe,
Sou nada e
tudo o que imortal por fim persiste.
1219 – Confrade
Aquele meu
confrade que com risco
O partido
tomar contra opressor
Poderoso em
favor de fraco cisco
É o cordeiro
que sai do firme aprisco
Ao canino do
lobo a se propor.
Irá comprar
maçadas a dinheiro,
Tentando
endireitar ao cão selvagem
As tortas
pernas em que ele anda useiro,
Quebrando as
próprias dele na viagem.
Então os cães
dirão que nas profanas
Matérias se
imiscui e a camuflagem
É que a mais
altos fins aplique as ganas:
Antes devera,
alheio ao vil império,
Consagrar-se a
um sagrado ministério…
1220 – Prepotentes
Provocadores,
prepotentes, todos quantos
De qualquer
modo a outrem fazem qualquer mal
São não só
réus do que cometem, dor e prantos,
De escurecerem
vida além mil e um recantos,
Mas de
estenderem bem mais longe o vil sinal.
Da perversão
serão os réus a que levarem
Os ofendidos
corações, linhas de vida,
Comportamentos
que à vindicta se apontarem,
Amargurados da
justiça nunca havida.
Então alheio
quem ao sangue sempre fora,
Quem inimigo
da traição descomedida
Já militou, é
doravante quem lá mora.
- Um homicídio
que este vier a maquinar
É culpa dele
ou daqueloutro a o incitar?
1221 – Recuar
Um poderoso
recuar ver algum dia
Da prepotência
de que impune sempre foi
Sem coagido
ser a tal por força fria,
Só por golpe
inesperado de magia,
É mais que
raro, é o inaudito que nos dói.
Condescendência
por pedidos desarmados
Sem camuflagem
ser da algum fito escondido,
De poderosos
não é nunca, habituados
Como andam
todos ao arbítrio desmedido.
Disto a
certeza, sem embargo, é sempre um soco
Contra os
inermes que sonharam um sentido
Aos que na
vida repudiam qualquer oco.
E, se alguns
baixam a cabeça, resignados,
A frustração
outros desperta e ei-los irados.
1222 – Voluntário
Naquele
voluntário que de vós se parte,
De encostas de
rebanhos, moradias pobres,
Da esperança
arrastado que talvez acarte
Fortuna
alhures feita com labor e arte,
Parco o passo
pesado da escassez dos cobres,
Desdoura a
fantasia, no momento triste
Deste alongado
adeus, de tal riqueza o sonho.
Admira-se de
haver-se resolvido, insiste
Em que atrás
voltaria do sofrer medonho,
Não fora
acreditar que um dia torna rico.
Quanto mais na
planura avança, mais tristonho,
Cansado, seu
olhar fixa do monte o pico.
Perante a
magnitude de espantar da estranja
Ele na aldeia
sonha e no casal da granja.
1223 – Consolações
É das
consolações mais cordiais da vida
Esta de alguém
contar com amizade fiel.
Depois, quando
a amizade singular haurida
Mais o amigo
conforta é quando, enfim, convida
Um segredo a
confiar, desabafando dele.
Porém, como os
amigos nunca são a dois,
Como era num
casal, cada qual tem mais que um,
O que forma a
cadeia cujo fim, depois,
Ninguém achar
poder vai em lugar algum.
Quando um
amigo dá consolação secreta,
A outrem se
confiando como a mais nenhum,
Neste uma
senda igual vai acordar discreta.
Vai de amigo
em amigo e eis que o segredo junca
Ouvidos,
afinal, que o não deveram nunca.
1224 – Providência
Nem toda a
providência deste mundo atinge,
Por muito
rigorosa que ela fora acaso,
Diminuir uma
fome que alimento finge,
Porquanto,
incontrolável, ao fatal se cinge,
Nem germinar
mais géneros nos faz a prazo.
Há-de ter de
atrair com sensatez, virtude,
Os alimentos
falhos donde os haja fartos,
Quando às
meras palavras algo mais se grude,
Actos,
iniciativas que à luz tragam partos.
A
superabundãncia, onde a pudera haver,
Ninguém com
providências de ilusão se ilude,
De muito suor
e freima se há-de enfim colher.
Doutro modo as
maleitas que haja cada dia
Todas
perdurarão e o fim do mal se adia.
1225 – Tratar
Por norma é
bem melhor ter de tratar com quem
Comande
sobranceiro sobre infindos mais
Do que com um
apenas sobre o qual detém
O poder e a
visão de quem vê mais além,
Que o súbdito
de si apenas dá sinais.
Este mais não
verá que dele a causa só,
Não ouvirá
jamais senão paixão que sofre,
Dele o
interesse cuida, o mais é cinza e pó,
As jóias que
preserva são as dele em cofre.
Aqueloutro
verá duma só vez mil laços,
Mil e uma
consequências de alegria e dó,
Mil coisas a
evitar, mil a salvar nos traços,
E então pode
pegar não só por seus cuidados,
Porém, em
simultâneo, pegará cem lados.
1226 – Abismos
Deus, se o
vira, se o ouvira!
Mas onde é que
anda tal Deus?
- É o que o
coração te vira,
Que a calma em
ti pressentira
No fundo de
abismos teus,
É o que te
atrai e te agita,
Te não deixa
sossegado,
Mas uma
esperança aflita
Dele
pressentes ao lado
Duma
consolação plena,
Imensa mesmo,
infinita,
Superior a
toda a pena.
Se o
reconheces, confessas
Que é tua vida
às avessas.
1227 – Contentam
Os santos,
como os tratantes,
Hão-de ser
sempre azougados.
Não se
contentam, impantes,
Em multiplicar
instantes
Deles por
todos os lados,
Antes querem
arrastar
Ao baile, se o
bem puderem,
Toda a
humanidade a par,
A ser tal como
entenderem.
E sempre os
mais irrequietos
Na vida a se
intrometerem
Com gestos mil
e um concretos
São aqueles
justamente
Que inquietam
mais meu presente.
1228 – Atingido
Os que fazem o
bem sempre o farão por grosso:
Uma vez
atingido o rebrilhar da festa,
Mal
experimentado o salto além do fosso,
Mal aflorada a
borda que livrar do poço,
Isso lhes vai
bastar, não querem ver a gesta
Da cadeia de
efeitos que se irão seguir.
Mas os que têm
gosto de fazer o mal
Mais
diligência põem no vilão porvir,
Seguem-me até
ao fim, a controlar o real,
Nunca
descansarão, já que o fatal destino
As voltas
trocará de quem se distrair
E ao cabo é de
finados o tocar do sino.
Nunca
descansarão porque o que mais lhes dói
É o cancro que
têm dentro que sem fim os rói.
1229 – Desabafar
Geralmente
falando, os homens quando não
Podem
desabafar sem um perigo grave
Deles a
indignação que então sentir irão,
Tanto ali se
controlam, inibir-se vão
Que tudo
redundou num vão furor suave.
Primeiro, para
fora demonstrarem menos
É condição
prudente, é não correrem riscos,
Pelo que os
grandes ódios vão-se olhar pequenos,
Avalanches de
agravos ficam vagos ciscos.
No limite
conservam dentro em si fechados
Os gritos de
revolta, nos confins de apriscos
Onde os tigres
ninguém já vislumbrou irados.
De tanto
mostrar menos quanto, enfim, se sente
Se acaba a
sentir menos efectivamente.
1230 – Revoltados
Vivem os
homens atreitos
A estranha
contradição:
Indignam-se,
mal afeitos,
Revoltados nos
trejeitos,
Fúrias de até
mais não,
Com os males
medianos,
Com a pedra no
sapato
Que não
provoca mais danos
Do que o dano
do aparato.
E em silêncio
nos curvamos
Debaixo do
desacato
Do mal extremo
que achamos.
O insuportável
de início
Tolero, ao
fim, como ofício.
1231 – Cólera
A cólera quer
punir:
À perversidade
humana
Os males vai
preferir
Com ira fera
atribuir,
Já que dela o
poder mana
De exercer
logo a vindicta,
Que
reconhecê-los vindos,
Por nossa
maior desdita,
De problemas
jamais findos,
De causas tais
ante as quais
Nem gestos
feios nem lindos
Delas mudam os
sinais,
Tais que não
haja disfarce
A ter só que
resignar-se.
1232 – Marca
A marca de
expectativa
É crédula,
imaginosa,
Segura dela e
mui viva,
Tão presente
quanto esquiva
No seio de
quem a goza.
Depois, em
prova, é exigente,
Difícil até
mais não,
Nunca atinge o
suficiente
Que lhe baste
ao coração.
É que a sério
não sabia
Dos factos em
turbilhão
Afinal o que
queria.
E faz pagar
sem piedade
O quão doce
nos invade.
1233 – Humanidade
No mundo, a
humanidade é tal enfermo em leito
Mais ou menos
incómodo que viu em torno
Dele mil
outros leitos, tudo a bom preceito,
Arrumados, com
colcha, liso, tudo a eito
E muito
nivelado como um belo adorno.
Imagina que
neles deve estar-se bem,
Optimamente
acaso, ao invés dele ali.
Mas se mudar
de leito lhe ocorrer, porém,
Mal se acomoda
ao novo, sente a ponta aqui
Aguda a o
espetar e um mazarulho após
Que o comprime
dolente pela noite além,
Em suma, fica
igual, contras medindo e prós.
Melhor é bem
fazermos do que estarmos bem,
Assim
acabaremos bem melhor também.
1234 – Dissabor
O dissabor às
vezes realmente vem
Por nós lhe
havermos dado ocasião a tal.
Nem o
comportamento mais ingénuo nem
O mais cauto,
inocente bastará, porém,
Para distante
pôr o dissabor geral.
Quando nos
atacar, com ou sem culpa nossa,
Quem quer o
dissabor que tão connosco bole,
Como nos
defender do que nos causa mossa,
Como o pé
libertar que nele já se atole?
Não depende de
mim, na derradeira instância,
Que o que na
vida é duro de vez vire mole,
Não me obedece
o fado, que mantém distância.
É confiando em
Deus, o infindo mar do Todo,
Que lhe emboto
o ferrão e que lhe acolho o modo.
1235 – União
O amor é uma
união com outro ser, o amado,
Humor é uma
união connosco próprios, modo
De olharmos
nossa vida ou a desgraça, o fado,
Ou nosso
desconforto, humilhação, fanado
Proceder que
falhou de nosso fito o engodo.
Se soubermos
deveras mesmo amar, amar,
Tal como se
soubermos de nós rir, sorrir,
Na relação
connosco o resultado, a par,
Há-de ser
muito igual, ao vislumbrar porvir.
Deixaremos
então de para nós ser centro,
Mais para além
olhando há outra meta onde ir,
Não olho mais
o umbigo que terei cá dentro.
As fronteiras
saltando, doravante meço
Quanto por
mim, além e aqui, de mim me esqueço.
1236 – Agir
Deveras nosso
agir o pensamento segue
Como a carroça
segue o afadigado boi.
Não podemos
viver sem que uma ideia cegue
A mente
deslumbrada que uma luz persegue
E o luzeiro na
via semeando foi.
É sempre o que
faremos modelado a ideias,
Já que elas
determinam o querer, o agir.
Viver obrar é
inteiras sempre mil e a meias
Actividades já
por onde acabo de ir.
Neste sentido
nós não somos mais quem somos,
Este corpo de
membros, órgãos, tantas teias
Que ao fim nem
divisamos nem raiz nem pomos.
Neste sentido
somos, de medidas cheias,
Na primeira
matriz, nossas viris ideias.
1237 – Grassando
Temos um
imperativo,
Ao vermos algo
de errado,
Qualquer mal
grassando altivo,
Poder que
rouba, furtivo,
Alguém na rede
apanhado
Dos que raptam
e violam,
Dos que impõem
sem razão,
Dos que a vida
nos degolam
Fingindo ter
coração,
Pois se
julgamos poder
Contribuir
para o travão
Que o chão os
leve a perder,
É urgente
tentar, ao menos,
Minarmos-lhes
os terrenos!
1238 – Prefiro
Prefiro muito
o barulho
Dum
despertador antigo.
Música de hoje
é um engulho,
Murmúrios
meigos, que entulho,
A enganar o
sem-abrigo!
E, depois,
quem me garante
Que em meio a
tanta meiguice
Não readormeça
adiante
Sem que o
despertar ouvisse?
E não suporto
a mentira
De apontar que
me levante
Quando nem
vigília vira.
De manhã, que
demasia
Suportar a
hipocrisia!
1239- Portas
Quando a olhar
para o passado
Volta qualquer
um de nós,
Portas para
todo o lado
Se abrem no
negrume instado,
Perde-se o fio
aos avós.
Depende de
quem dormiu
Lá nas eras de
quinhentos
Com quem quis,
que é que venceu
Nos novelos de
elementos.
Quem é o
historiador,
O curioso de
eventos,
Que os
desvendar vai propor?
Perdem o fio à
meada
Nos mil
desvios da estrada.
1240 – Batalhas
Temos todos a
tendência
Para acreditar
que a História
É feita da
prevalência
Nas batalhas,
da sequência
Dos coroados
de glória.
E é deveras ao
contrário,
Se bem que, de
facto, os mortos
Tenham o fado
sumário
De devir de
vez abortos.
É feita a
História na cama,
Conforme o
destino vário
De quem mata e
a quem ama:
- O invasor
não mata a bela
Que invade,
dorme com ela.
1241 – Eminente
A conjuntura
de eminente ver a morte
Numa armadilha
cancerada ou virulenta
Fez-me encarar
a vida inteira doutra sorte,
Ver que
trabalho é só trabalho e não a corte
A que
homenagem prestarei com vénia benta.
Na vida tudo
não será nunca o labor,
Pensar não
devo que agirei sonhos um dia,
Antes agora
sem esperas mos propor
É o que farei,
que irei fazer o que devia.
A apreciar me
conduziu a quem faz parte
De minha vida,
a apreciar cada pendor
Sofregamente e
com requintes de quem parte.
A ter cuidado
me ensinou para não ter
De que, por
fim, alguma vez me arrepender.
1242 – Vencedores
Os vencedores
adoramos, que conseguem
Ultrapassar
mil e um obstáculos, recordes
Bater
constantes com que o mais além nos leguem,
Que em
euforias de vitória nos congreguem,
Duma outra
vida iniciáticos acordes.
E também nós
bem desejamos ser assim!
Mas que será
que nos faz ter tanto desejo
De dos demais
nos destacarmos, mal o ensejo
Se nos aponte
em qualquer campo como um fim?
A evolução é
um radical primo factor,
Esta vontade
de vencer é gene em mim,
Código invicto
ante das eras o fragor.
Eis o alicerce
onde me talho a moradia
Com formação e
educação de cada dia.
1243 – Criança
Uma criança
inicialmente interessada
Apenas vive em
atingir mil e um progressos.
Ao desempenho
é aquela fase orientada,
De actividades
toda inteira programada
Pura a visar a
euforia dos sucessos.
Os desafios
aqui moram tão somente:
Capaz serei ou
findarei ali vencido?
A meta apenas
é a vitória a ter em frente,
Vai ser mais
tarde que outro alvor é amanhecido.
É no
infantário, na primária escola após
Que em ser
melhor vai a criança pôr sentido,
Quer ser
melhor do que os demais e só ter prós.
É actividade
motivada por poder
E vai, se a
deixam, dominar então quenquer.
1244 – Perigo
Real perigo
corre aquele que não tem
Justo triunfo
conseguido pelos meios
Mais
adequados, pois recorre então também
Múltiplas
vezes a medidas que provêm
De extremos
drásticos, violência sem receios.
Porém nem
todos compensar vão desta forma,
Com explosões
que mais destroem que realizam,
A frustração
de quem cumpriu, enfim, a norma
E viu
furtarem-lhe então prémios que outros visam.
Alguns
compensam a inferior demarcação
Espampanantes
com modelos que então gizam,
Com gestos
fúteis a chamarem a atenção…
- Mas
perdedores todos são, que não aprendem
Como assumidas
nossas perdas tanto rendem.
1245 – Convencer
Quem não
consegue convencer por persuasão,
Mormente os
jovens mais inermes do País,
Bem mais
propensos hão-de ser em ter à mão
Meios
violentos de atrair mais a atenção
Que eles
desejam e só logram sendo vis.
Se a bem não
vencem, vencerão então a mal,
- Crerão
revoltos e com pouca lucidez.
Por onde
passam passarão tal vendaval
Que da
intempérie arrasta as marcas do revés.
Vencer, porém,
nem sempre quer significar
Ser o melhor,
fruir de eleito o bom sinal,
Ter num céu
mago a própria estrela que é polar.
Vencer também
pode ser algo conseguir
Cooperando com
os outros com quem ir.
1246 – Sós
Embora
inteiramente sós num mundo alheado,
Se tiverem
acaso sido mães um dia
Já o centro de
atenções foram de alguém criado
Que entretanto
as terá divinamente olhado
Como a força
motora donde o alvor nascia.
Alguém quando
for mãe, devido embora a acaso,
Embora em
desamor não corresponda ao feito,
Gerou a
conjuntura, o irremovível caso:
Ninguém de
retirar-lho encontrará mais jeito.
Poderá todo o
resto se perder na vida,
O amor, a
segurança a que se andar afeito,
A memória das
festas ser até delida,
Que nunca
poderemos afastar de vez
De ter sido
adorada a marca ali que fez.
1247 – Solidão
Quando houver
solidão dentro de mim a mais,
Quando ela for
demais dentro de nós um dia,
Não deixamos
então se aproximar demais
De nós mesmos
ninguém, ninguém, de amor vitais
Foram embora
os gestos de curar que havia.
É que, se se
aproxima demasiado alguém,
Então vai
ocorrer que precisamos dele,
Quer porque a
dependência se gerou de além,
Quer porque a
um com outro enfim amor nos sele.
Ora, quando eu
passar de outrem a ter a falta,
Por hábito ou
amor, daí o risco advém,
Se ele se for
embora da comum ribalta,
De a solidão
devir no coração demais:
- Então,
fugindo a outrem, fujo a riscos tais.
1248 – Filho
Um filho ensina-nos
a vida no presente,
Este momento,
este momento aqui preciso
É tudo quanto
no fim temos consistente,
Sendo o
passado ou o futuro um sono ausente
Com que me
iludo e de que um filho tem o aviso.
Fora talvez a
melhor forma de viver,
O aqui e agora
usufruir no que vão sendo,
Que é que me
ofertam ou propõem ser e ter,
Gozando após o
que lhes compro e que lhes vendo.
A vida cheia
talvez seja só começo,
Princípio de
algo que serei jamais o sendo,
Já prevenido
de antemão contra o tropeço.
Um atrás
doutro só começos, tantos, tais
Que o que
inauguro fica eterno sem finais.
1249 – Comum
Aquilo que é
comum na vida a todos são
As coisas que
explicar não conseguimos, vagas
Neblinas que
por trás nos esconder irão
Da realidade
estrelas que jamais se dão,
Deixando-nos
nos trilhos de pé só nas fragas.
Nós de alguma
maneira descobrimos isto
Quando
planificamos nossas vidas claras,
Na ilusão
cuidadosa de tudo ir previsto
E no fim as
lacunas nunca irão ser raras.
Olhamos para o
céu todo estrelado à noite,
Jamais
descobrirei nele até onde existo
Nem até onde
vai o solidéu que acoite.
Onde é que o
verdadeiro deus dos feitos ditos
E do tempo
vigia este cuidar de aflitos?
1250 – Apostara
A dada altura
da vida
Eu bem cuidara
ter tudo.
Apostara na
corrida
Sempre em
frente empreendida,
O êxito era
meta e escudo.
O pináculo
atingido,
Percebo agora,
contudo,
Que nunca
tinha seguido
O conselho
mais agudo,
O de me
embalar de sonho
Em vez de
sempre fugido
Lhe andar tal
se era medonho.
No fundo do
coração
Toda a força
força em vão.
1251 – Indivíduos
Os indivíduos
não são
Uns dos outros
tão diversos:
Quer jovem,
quer ancião,
Homem, mulher,
todos vão
Recitando os
mesmos versos:
Querem coração
em paz,
A vida sem
sobressaltos,
De feliz quer
ser capaz
Cada qual sem
mais ressaltos.
A diferença é
que o jovem
Crê que o que
isto enfim lhe traz
É o porvir que
os gestos movem.
Os idosos, por
seu lado,
Crêem mais que
é do passado.
1252 – Sexo
Amor único e
durável
Não é o sexo
proibir
Nem tachá-lo
de culpável,
Antes é por
modelável
O entender e
prosseguir.
Modelação
sexual
Decerto a
forma correcta
É, tal na vida
real,
Em qualquer
campo, outra meta.
E acaso é a
melhor maneira
De a
satisfação completa
De nós termos
mesmo à beira.
De álcool
moderar consumo
Torna o vinho
um suprassumo.
1253 – Esgota
Quando se
esgota o encantamento ou esmorece
Mesmo que
apenas simplesmente um tudo-nada,
Julgam que um
erro cometeram na quermesse,
Que a
desejável alma gémea lhes fenece,
Por encontrar
perdida algures na jornada.
Então por
norma a verdadeira se revela
Em quem atraia
sexualmente e que apareça,
Com quem
podiam partilhar do sonho a estrela
Se ao menos
fora, se ocorrera, se aconteça…
Eis que o
divórcio proporciona aos ses resposta,
Ei-los
correndo, na ruptura vendo a vela
Que as trevas
rasga dum caminho à nova aposta.
Mas alma gámea
verdadeira há só naquela
Com quem viver
do bom e mau toda a sequela.
1254 – Par
Um par
predestinado a certo amor de lua,
Capaz de
grandiosa e de esplendor paixão,
Que inúmeros
poemas escreveu na rua,
Que magas
fantasias incendeia, acua
No íntimo dos
que o sonham como real em vão!
Nem a melhor,
porém, daquelas lendas fala
Do feliz
matrimónio de tão grande amor
Mas na
separação atormentada embala
As mágoas que
o frustraram sem pagar penhor.
Do deveras
grandioso aproximar-se alguém
Num mundo
decaído antes vai ser propor
Que tal melhor
vislumbra pela dor que advém.
Num amor
malfadado suspeitamos só
Como é que um
lar seria se eu não fora pó.
1255 – Felicidade
Felicidade a
sério mágoa traz com ela,
Lágrimas
origina, a qualidade tem
Similar à
tristeza que em balança apela
A equilibrar
os pratos, do viver sequela
Que apenas a
lutar qualquer conquista tem.
Vem a
felicidade donde a vã tristeza
Com a alegria
em festa ambas estão de acordo,
Que ir para a
romaria após as pedras reza
Que piso no
caminho onde o suor remordo.
Assim
reconciliadas as irmãs contrárias,
De mim para o
mistério mais profundo acordo,
Pagarei
qualquer ganho sempre em perdas várias.
Tal e qual o
egoísmo e o altruísmo vão
Perder-se
superados dum Amor no pão.
1256 – Transmitir
Longe de ser
mentira sempre os mitos são
De transmitir
verdades a melhor maneira,
Já que
incompreensível doutra forma em vão
Se procura
explicar, todo e qualquer serão,
Deles a
realidade a que ninguém se abeira.
Descendemos de
Deus, deste Universo um imo,
Inevitavelmente
o mito aqui tecemos
Que, erro
embora contenha, nos reflecte o cimo,
Fragmento
entrecortado donde a luz bebemos.
A verdadeira
luz, aquela eterna fonte
Que do fundo
borbota do mais fundo limo,
Até ao mar
Infindo nos estende a ponte.
O mito avança
trémulo a rumar ao porto:
Ao invés, o
progresso é, dele só, mar morto.
1257 – Trevas
Nós nascemos
de trevas em humana era
E de nosso
devido tempo sempre fora.
E, por mais
madrugada que apurar pudera,
Jamais este
meu tempo doutra luz soubera
Que a do vago
vislumbre duma eterna aurora.
Existe,
todavia, um pertinaz consolo:
É que, se tal
não fora este comum destino
De crianças
famintas a espreitar o bolo
Na montra
proibida a enlouquecer o tino,
Jamais
conheceríamos, jamais nós tanto
Amaríamos,
pois, o que é de amar sem dolo,
Nem nos
encantaria o mais fugaz encanto.
O peixe fora
de água é que talvez sentir
Vai poder
qualquer água de qualquer porvir.
1258 – Destinada
Dos mitos a
verdade destinada diz
Respeito não
apenas ao ambiente em volta,
Mundo que nos
rodeia onde tomei raiz,
Mas mais ainda
à outra radical matriz,
O mundo dentro
em nós tão ignorado à solta.
E não tanto à
aparência, superfície fina
Que sempre
há-de estalar ao mais pequeno toque,
Mas à forma
interior, cuja textura inclina
Ao abismo do
real, a me prender reboque.
Um mito é uma
maneira de escrever as normas,
As regras a
partir das quais o mundo atina,
Aquilo de que
é feito ao borbotar das formas,
É a profunda
magia anterior de vez
Ao princípio
dos tempos que este mundo fez.
1259 – Peso
O peso da
iniquidade
Faz-nos sentir
deprimidos.
Velha como a
eternidade,
Repete com
gravidade
Mil incuráveis
feridos.
Todas as
vilas, aldeias,
Moradas de
homem algum
Se afundam
podres de cheias
A feder a tal
fartum.
Mas também lá
mora o bem,
Mais oculto,
portas-meias,
Quase nem
palavra tem…
E pouco é o
bem que faremos
Só com o mal
que evitemos.
1260 – Escape
Um escape a
fantasia
Não oferta à
realidade,
Mas o escape
que haveria
Num real de
parceria
Aos píncaros
da cidade.
Um mundo
nítido, intenso,
Feliz e triste
a dobrar,
Onde bem e mal
são denso
Conflito a se
defrontar.
Onde a
possibilidade
Da tragédia
singular,
Derrota que
tudo invade,
Nas horas de
cada dia
Torna mais
forte a alegria.
1261 – Urgente
É urgente
contemplar, recuperar o azul,
Sentirmo-nos
surpresos do vermelho, o verde,
O amarelo das
fadas ver nos véus de tule,
A magia dum
conto a servir chá num bule
Que tanto mais
se ganha quanto mais se perde.
Recuperar a
nítida visão das coisas,
Não tal como
elas são, como devemos vê-las,
Como
exterioridades em que te repoisas,
Exausto
marinheiro de após as procelas.
É preciso
limpar bem as janelas todas
Com os contos
de fadas a polir sequelas
Para que a
casa fique enfim aberta às bodas,
Da névoa do
trivial por uma vez liberta,
Do hábito
familiar de que ninguém desperta.
1262 – Árvore
Árvore alguma
deixa de crescer, mudar,
Mas o bordo
rodeia um imutável centro,
Os anéis
interiores crescem sempre a par
Desde quando é
rebento até que, enfim, findar,
Invisíveis
embora estão lá eternos dentro.
Quando lhe
nasce um ramo, eis que a raiz no fundo
O alimenta
escondida, nada os dois separa.
Ao invés, quão
mais alto o ramo trepa ao mundo
Mais a raiz
com força singular o ampara.
A energia dum
homem, da cidade, em tudo
Requer este
equilíbrio do ancestral que olhara
O vindoiro
porvir que semeou jucundo.
A tradição
sentir importa tanto à vida
Quanto importa
inovar no que ao além convida.
1263 – Ingratos
Tais são os
homens, sempre ingratos, inconformes,
Insatisfeitos
do teor de qualquer vida:
Quando
ordenada, rasgarão os uniformes;
Quando num
caos, ordenar gestos informes
Será tarefa que
se impõem preferida.
Se rejeitados,
a mulher por tal odeiam,
Mas acolhidos,
por qualquer outra razão
A irão odiar
ou com nenhuma causa ameiam
Para o combate
que fatal declararão.
São
descontentes, embirrentas más crianças,
Batem eternos
com raivosos pés no chão,
Nem com
brinquedos nem com mimos os alcanças.
Satisfazê-los,
nada, pois, os satisfaz:
Mulher nem
vida são milagre tão capaz!
1264 – Ofegantes
A glória,
deusa-cadela,
É por milhares
de cães
Ofegantes e
sem trela
Perseguida, de
tão bela,
Língua de
fora, reféns.
O primeiro que
a apanhar
No jogo de
espreita e caça
Vai ser um cão
singular
No meio dos
cães da praça.
Pelo êxito a
diferença
Se se puder
implantar,
Obtém-lhe a
grande sentença:
Glória de pais
e de mães,
Vai ser o Cão
entre os cães!
1265 – Corpo
Eu quero o
corpo, o corpo inteiro, inteiro e vivo,
Ínfimo cosmos
que do imenso dá o resumo,
Da euforia
receptáculo e motivo,
Ao que o
subverte, ao que o ataca sempre esquivo,
Sempre a
harmonia a procurar como bem sumo.
Do corpo a
vida bem a creio superior
À que do
espírito emanar edulcorada,
Quando de
perto à vida a sério o corpo for,
Não a um
fantasma qualquer dela simulado.
A maioria das
pessoas anda acaso,
Olhando ao
corpo no que ele é, muito enganada,
Crendo que o
cume implica vê-lo no chão raso.
A maioria
tem-no em máquina volvido:
Mantém o
espírito a um cadáver reunido.
1266 – Utopia
No reino da
utopia são aldeias várias,
Comunidades
simples a alargar em roda,
Nenhuma se
elevando sobre as outras, párias,
Nunca a vida é
pirâmide a implantar primárias
Pedras de
alicerçar a cumeeira toda.
A vida é um
oceano, imenso mar, e ao centro
Sempre o
indivíduo fica pela aldeia pronto
A morrer, como
a aldeia pelas mais, que dentro
Do mesmo mundo
inteiro o mesmo contam conto.
No reino da
utopia que arrogância vem,
Ou que
agressividade marca a orgulho o ponto?
Será tudo
harmonia tal e qual convém.
Compartilhando
humilde a modelar tal arte,
Que bom seria
ser dele integrante parte!
1267 – Ancestral
Ancestral é
minha fome.
Desde que te
conheci,
Esfomeado que
não come,
Que fruta em
mãos nunca tome,
Foi que outro
reino entrevi.
Medito em
transfigurar
Desde então
inteiro o mundo,
Para os meus
irmãos, a par,
E os filhos
deles, no fundo,
E os filhos de
nossos filhos
Dente são
terem fecundo,
Numa vida sem
atilhos,
Capaz de
morder a fruta
Da terra
inteira sem luta.
1268 – Actos
Os nossos
actos seguem-nos em passo lento,
De corpo nos
vestimos para agir em nome,
Em nome de nós
mesmos a habitar-lhe o intento
Desde o
primeiro alvor ao terminal momento,
Quando o corpo
despimos que este chão consome.
Entre os
limites salta para a terra inculta
Toda a pléiade
de actos, gestos, sonhos, gritos,
Que, nela se
incrustando, cristaliza inulta
A marca, o
testemunho de indeléveis fitos.
Ficam
testemunhando um rasto já passado,
Pendurando ao
cabide gestos bons, delitos,
Largados para
trás com intocável fado.
Finda
cristalizado na aparência o acto,
É para a
eternidade meu cendal, de facto.
1269 – Semi-recta
Serei a
semi-recta outrora atrás nascida
Que agora aqui
prolongo até sei lá bem onde,
Até
provavelmente a uma memória erguida
Após a minha
morte, do infinito ermida
A prolongar o
traço que no Além se esconde.
Aí será que a
morte meus cabelos prende,
Então me irá
puxar magnetizado, inerme,
Meus
fragmentos colhendo que o caminho fende
Do tempo que
passou onde então fui em germe.
Então sou de
estilhaços recoberto enfim,
Por uns cobro
saúde, doutros sei que enferme,
Mas no Todo
serei: eu afinal em mim!
Sou fêvera do
dia a rebolar no espeto,
E eis como no
Infinito minha marca enceto.
1270 – Espera
Isto de
irrealizar-me
Tem um valor
definido:
É que o
fracasso desarme
E, embora além
vá meu carme,
Ao fim tudo é
inatingido.
Ainda por
realizar
Tudo, enfim,
sempre estará:
Tal é meu
tempo e lugar
Na vida que
houver por cá.
Um perpétuo
movimento,
Perene fome
dum já
Que é sempre
um adiamento,
Sou a espera
acumulada
Dum tudo que é
sempre nada.
1271 – História
Quando debaixo
de nós
Começa a
História a mexer,
O melhor é ver
após
Se nos prendem
os cipós
À sela que ela
tiver,
Segurar bem
nos arreios,
Ajustar-lhe ao
peito a cilha,
Controlar
firmes os freios
Para escapar à
armadilha,
Interpretar o
que fala,
Seja inferno
ou maravilha,
A ver bem como
montá-la,
E cavalgar-lhe
os sentidos,
- Que, senão,
somos cuspidos!
1272 – Choques
Alguns choques
são bons, enquanto a dor não mata,
Depois de a
dor fugir e me obrigar o alento
A retomar
tremendo com a vénia grata
De criança
perdida no terror da mata
Que no perigo
acaso não tomara tento.
Quem não
reparou nunca em qualquer copa após
Um raio a
haver fendido, fulgurante e bravo,
Em cinzas
consumando ramos, tronco e nós,
A vida
retalhando no ribombo cavo?
A parte
renitente que virente então
Persiste em
continuar contra o destino, o agravo,
Com muito mais
raízes vai prender-se ao chão.
De mais ramos,
mais folhas inaugura implantes,
Duas vezes
mais viva ficará do que antes.
1273 – Copo
Um copo de
água beber,
Copo de água
cristalina,
É o pensamento
ocorrer
Duma nascente
qualquer
Longínqua,
irreal, divina…
Nascente nada
nascente,
A brotar da
fantasia
Em busca de
remetente,
Que é que,
afinal, anuncia?
A origem será,
talvez,
O prenúncio
que alumia
O alvor da
noite de pez.
É, porventura,
irrestrito,
Pressentir
mesmo o Infinito.
1274 – Nada
Vale a pena
ter vivido
Se nada fica
na terra
Depois de
havermos sumido?
Talvez um
subentendido
Ao pensamento
se aferra:
Esta busca
permanente
Do que nunca
nós tivemos,
Sonhar o Verão
ausente
Na praia além
dos extremos…
Põe no prato
da balança
Aqui o que
feito havemos,
Além o que não
se alcança:
- Que
equilibra a morte, ao fim,
E a viver que
manda assim?
1275 – Vazio
Há um vazio na
existência
Do herói como
do banal,
Nem daquele a
preeminência
Lhe diminui a
evidência
Que é de
todos, afinal.
Quero apenas
preenchê-lo
De qualquer
coisa, qualquer,
Seja embora
vulgar elo
Com que tal
vazio encher,
Para deixar de
existir
Este buraco de
ser
Com que ando
sempre a fremir.
Nem me importa
que ele acarte
A vida de que
faz parte!
1276 – Dança
A dança é como
um ser vivo,
Dela o
desenvolvimento
Nenhum
bailarino esquivo
Regula em cada
motivo,
Envolto no
encantamento.
É que a dança
algumas vezes
Complica o
fado a quenquer,
Destrança o
sonho em reveses
Que ninguém
logrou prever,
Outras vezes
dinamiza
O destino que
há-de ter
Quem nela os
cumes divisa.
Ao acaso
um deus reparte
Aos que nela
tomam parte.
1277 – Espera
Como a espera
é deliciosa,
Que saboroso
aguardar
Se a
expectativa entrosa
Na beleza de
que goza
O prometido
meu par!
Como é gostoso
evocar,
Antecipar em
imagem
O paraíso a
criar
No termo da
crua viagem!
Que calor por
entre o frio,
Que perfume na
triagem
A respirar já
o estio!
O glacial
Fevereiro
Cheira a Verão
soalheiro.
1278 – Único
Como ser único
foste, Homem, tu, criado,
Cada qual peça
irrepetível, um modelo,
Um miradoiro
na vertente acomodado
O mundo
inteiro a revelar daquele lado
Em que não
vejo, igual a ti, nenhum janelo.
Quem suprimir
uma existência só que seja,
Mais que uma
vida finalmente no atoleiro
Do
esquecimento ele atirou que ninguém veja,
Antes destrói,
na realidade, o mundo inteiro.
E quem salvar
tal existência solitária,
Por muito que
isto configure o que ele almeja,
Mais que uma
vida, finalmente, salva pária,
Nela salvou,
dela ao fazer-se, enfim, parceiro,
Uma janela
onde vislumbro o mundo inteiro.
1279 – Companheiros
Ter
companheiros é uma grande gesta,
De sofrimento
embora a sejam todos,
Que a solidão
é dor, a mais molesta,
A mais terrível
que no mundo apresta
A falta de
sentidos e de engodos.
Um homem
suportar pode o maior
Dos terrores
sofrendo-o em comum,
Porém a
solidão que vem se impor
É mortal, é
mortal a qualquer um.
Quando isto
for a marca duma vida,
Que me importa
eu provir de povo algum,
Se nada em mim
for mais que uma ferida?
Aqui ou noutro
ponto, o mundo inteiro
É todo ele,
afinal, meu carcereiro.
1280 – Terra
Minha terra
natal, minha mulher querida
Que qualquer
leigo desposar requer fervente,
Durante um
tempo estranha, de ignorada vida,
Logo após
desposada, que paixão subida,
Mais que tudo
no mundo que o amor consente!
Tal como nossa
mãe, como de sangue irmãos
Nós os
abandonamos pela bem-amada,
Minha terra
natal, assim aceno as mãos
Quando de
retornar for a manhã chegada.
Mesmo quando
estrangeira for a terra minha,
Longe dos
ancestrais que a entreviram grada,
Não a posso
largar, prendido a tal gavinha.
Não posso me
amputar desta vital raiz,
Meu sangue era
secar na mais lustral matriz.
1281 – Prometida
A Terra
Prometida que a mulher procura
Não é uma
terra, não, mesmo sequer de sonho,
Nela não há
caminhos que ninguém augura,
Não ergue
moradias a imitar ternura,
E as regras
nem as leis de arrebanhar lá ponho.
A Terra
Prometida é região-mistério,
Bater de
coração a tricotar magia,
É terra de
nenhures de cordial império,
Cujo poder o
afecto apenas tal veria.
E não mora num
tempo, embora o Tempo ocupe,
A Terra
Prometida de nenhuma via
Que o Infinito
logra que nela se agrupe.
É o instante
em que um homem a mulher, jucundo,
Ame mais, ame
mais que tudo o mais no mundo.
1282 – Sofrem
Nas mulheres
que sofrem, o cabelo logo
É o primeiro a
morrer, torna-se baço, triste,
Fraco como a
vã cinza de apagado fogo
Onde em vago
morrão o lume antigo afogo,
Passageira
alegria que perdeu o chiste.
As mulheres
alegres têm cabelo vivo
Como asas a
adejar numa alvorada de anjos,
Em requebros
se move, a se ofertar furtivo,
Cabeleira de
luz onde retinem banjos.
É com o sofrimento
que este brilho morre,
O sol vai com
as nuvens devir mais esquivo
E a dor, não
tarda, é chuva e pelo rosto escorre.
A cabeleira
fica lentamente mate
E não há luz
de vida que ela então acate.
1283 – Brilho
Nas mulheres
que sofrem morre o brilho aos olhos,
Devém qualquer
olhar nítido enfim, preciso,
Tão sóbrio
como a terra, de evitar escolhos,
Buscando
dirimir da vida inteira abrolhos,
Dolentes,
resignados ao final juízo.
Os olhos que
sofreram são aquela terra
Em que as
flores murcharam na tolhida seca,
No rosto são
cravado este punhal que aterra
Vertendo o
sangue puro, que trocou quem peca.
Os olhos das
mulheres que sofreram são
A terra em que
morreu qualquer ervagem peca
Ao frio que
enregela ou ao calor suão.
As fontes já
secaram e ninguém lá brada
Na terra
improdutiva de estertor gelada.
1284 – Tempo
Há tanto tempo
ninguém
Pergunta se
estou de acordo!
É a primeira
vez que vem
Há muitos anos
alguém
Ver se viso o
que aqui bordo.
Todos fizeram
de mim
O que quiseram
então
Sem me
pedirem, enfim,
Nem sequer a
opinião.
Pois ninguém
pergunta a escravos
De acordo se
acaso estão.
Se ora o
perguntam, agravos
É que de
escravo não mordo…
- Estou de
acordo, de acordo!
1285 – Camponês
Se o camponês
deixa a terra,
O grão de
trigo entristece,
Pois ninguém
volta da serra
Ceifar a
espiga que ferra
O sol e o
vento arrefece.
Partida de
lavrador
As ervas
entristeceu
Que a roçá-las
com o amor
Não vai que
tiver de seu.
Se o camponês
abandona
Campo, aldeia,
todo o céu,
Vem toda a
tristeza à tona.
Quem se
contrista é o parceiro:
- É mesmo o
Universo inteiro!
1286 – Civilização
A civilização
vais tu salvar querer
Passando o
tempo inteiro os homens a matar.
Matas homens
salvando quem o não quiser,
A civilização,
mesmo a cultura a haver,
A igreja que
não dobre o joelho em teu altar.
Vê se salvas
um homem: meritório mais
Tal evento
será do que salvar inteira
A humanidade,
pois dela não tens sinais,
Oca palavra
sempre, de verniz, ligeira.
Humanidade,
não, que jamais ela existe,
Tal ente não
subsiste, de ti posto à beira,
Em teu redor
tal ser nem mesmo abstracto o viste.
Homens apenas
homens é que existem vivos,
Tudo o mais
são papéis de bem letais arquivos.
1287 – Prolonga
Não há cultura
ou requinte
Que nos possa
separar
Da Pátria, por
mais pedinte
Que ela afinal
se nos pinte
Ante o mundo
que a julgar.
Do próprio
corpo ninguém
Se poderá
desligar.
E a pátria
prolonga além
Do próprio
corpo o lugar.
Faz-se ouvir a
voz da terra
No exilado,
como amar
Ao anacoreta o
ferra:
O sangue de
nós se adona
E vem,
regular, à tona.
1288 – Muda
Se nós não
fizermos nada
O mundo muda
sozinho?
Muda em cega
caminhada,
Finda a
esperança gorada
Num molde que
é tão mesquinho.
Este modelo
não presta,
Outro fabricar
prefiro
Dos bocados do
que resta
Depois de
quebrá-lo a tiro,
Outro
inteiramente novo
Que pelo sonho
confiro,
Com que,
creio, tudo inovo…
- Este, porém,
só subsiste
No vão sonho
que eu enriste.
1289 – Pegada
Um corpo
humano precisa
Para si de
pouco espaço,
Tem a pegada
concisa
E o movimento
ele giza
No fino perfil
dum traço.
Para quê o
apartamento,
Uma casa, a
moradia,
O carro sempre
em aumento,
Balão a inchar
dia a dia?
Monstruosa
carapaça
Enorme,
inflada – e vazia,
Que em redor
de nada grassa…
- Que casca
descomunal
Num tão
modesto animal!
1290 – Atentos
Ante os olhos
atentos, a viver os quadros
Principiam,
parados, num pulsar sereno,
Despertam
ancestrais, dantes da vida, os adros,
Dantes do
alvor do mundo. Neste ignoto esquadros
Em talhe
imprevisível vão marcar terreno.
A pintura o
segredo libertar da raia
Irá, deserto
além, sempre a animar as dunas,
Segredo
solitário a repousar na praia,
Que para o mar
a mente ainda não tem escunas.
Este mundo sem
rosto, conformado em sal,
Pelo incêndio
da morte chamuscada maia
No vau
carbonizado, é duma ausência aval.
Ausência que,
porém, apenas mora ali
Porque lhe
empresto a força do que em mim já vi.
1291 – Ímpeto
Como deter um
instante
No ímpeto dele
implacável?
Avança, avança
adiante,
Decide sempre,
constante,
O teu gesto
inadiável!
Cada batida no
curso
Daqui deste
coração
Lança ao
mundo, sem recurso,
Uma nova
decisão.
Era bom fechar
a porta,
Fechar os
olhos. Em vão
Este desejo me
importa:
- Fechar ainda
é decidir…
Como não ver o
que vir?
1292 – Gesto
Um gesto e eis
que de novo
Aparece algo
no mundo,
Algo que criei
do ovo,
Se desenvolve
entre o povo,
Fora de mim,
bem fecundo.
Doravante
estou de fora,
Tudo decorre
sem mim,
Mas fui na
primeira hora
Responsável
pelo sim.
Na cadeia dos
efeitos
Tudo se
desdobra agora
Com feitos
mil, mil trejeitos.
E há sempre
dele nas pistas
Aventuras
imprevistas.
1293 – Habita
Esta verdade
que me habita não a posso
Tirar de mim
nem arrancar senão por meio
Destas
palavras dessoradas, sem caroço,
Que me
abandonam descarnado até ao osso,
Vazio enfim
onde a princípio me vi cheio.
É que as
palavras te ressoam aos ouvidos
Com um sentido
fatalmente já imprevisto,
Em ti não têm
nunca mais os meus sentidos,
Outros terão
que eu nem já sei se houvera visto.
De mim saídas,
quando as ouves, nesse instante,
Estas palavras
não são minahs, que o que invisto
Não me
pertence, é teu agora, doravante.
E o que
descobres é apesar de meu intuito:
Ser eu, ser eu
(o que me encanta) é tão fortuito!
1294 – Decide
Ninguém decide
por ti,
Nem sequer
mesmo o destino.
Doutrem o
destino vi
Que és tu, sem
mais alibi:
Decide, vento
divino!
Tens tal
poder: uma coisa
Que não era,
de repente
Brota do
vácuo, repoisa
Sobre teu
gesto somente.
Separa-a de ti
o abismo,
Sobre o abismo
fica assente,
Sem mais
razão, ao que cismo,
Sem razão além
de si
Cuja razão
mora em ti.
1295 – Retirar
Não me posso
apagar, retirar dentro em mim,
Fora de mim
existo e em toda a parte além,
Até ao
derradeiro mundial confim.
De meu caminho
um palmo não progride, assim,
O qual não
desemboque no que doutrem vem.
E nenhuma
maneira encontrarei de ser
Que me possa
impedir, a cada instante haurido,
De extravasar
de mim, mui caudaloso a ser
Este rio sem
margens no aluvião mexido.
Esta vida que
teço com meu cerne do imo
Oferta aos
outros homens, no tropel sabido,
Os mil rostos
do ignoto jurando outro cimo.
Impetuoso
cruzo, fatal, seu destino,
Queira ou não
queira, a ser da malha nó me inclino.
1296 – Fito
Mesmo um deus falhar
devia
Neste fito
presunçoso
Que os homens
transmutaria
Em peões tais
de fancaria
Que
manobrá-los dê gozo.
Não são força
a controlar
Nem para
manobra pedras:
Cada qual tem,
singular,
No imo o ser
com que tu medras.
No mais
secreto de si,
Fora de
alcance a pairar
Mora alguém
que nunca vi.
Ele o vê e o
que nos vence
É que a ele só
pertence.
1297 – Estranho
É estranho
pensar
Que és única
em mim.
Ilusão vulgar,
Porém,
singular,
É verdade
assim.
Quem decide
disto
Eu se não for,
eu?
É todo o
imprevisto
Que mora no
céu.
O que é
comovente
E amor tem de
seu
É que é cada
ente
Que a paixão
invade
Que tal faz
verdade.
1298 – Queria
Queria que o
meu poema
Fora por si,
sem ninguém.
Mas os outros
são que o lema,
Se o poema a
fundo atrema,
Lhe irão dar
como convém,
São quem o faz
existir.
Mas então sou
eu que os forço
A lhe traçarem
o escorço
Que ao fim irá
refulgir.
Eles são
livres, é certo,
E venho eu,
sem prevenir,
E violo a raia
de perto.
Só que a deixo
livre ao fim
E é o mais
fascinante assim.
1299 – Sonhos
Mil sonhos
vocês terão
E com alguém
irão ter
E convictos
lhe dirão:
“É uma grande
ideia, não?”
E ele vai-vos
responder:
“Ah, não, de
maneira alguma!”
Tereis logo de
voltar,
Desconcertados,
em suma,
Ao vosso
inútil lugar.
Resta agora
esta pergunta
Que inteira
vai perfilar
Tudo o que o
porvir assunta:
- Entre vós e
os que tal ditam,
Vocês em quem
acreditam?
1300 – Aventura
A aventura
sempre foi,
Com Dias,
Magalhães, Gama,
O espírito o
que constrói,
Não os locais
onde rói
O dente da
espera a trama.
Curiosidade de
ir
Mais além que
o atingido,
Buscar o
desconhecido,
Cosmos além
perseguir
Incógnitas do
Universo,
Longe ou
perto, o que convém
É virar pelo
reverso
Quer, ao lado,
a minha rua,
Quer a Via
Láctea à Lua.
1301 - Lidar
De lidar com
ninguém tempo ninguém terá,
Atribuímos à
pressa o crescimento disto,
Deste alargado
egoísmo que aprisiona já
Encurralado
quem reconverter-se vá,
Tentando algo
ser mais do que um ligeiro quisto.
Porém, não é
desculpa, que isto de ir correndo
Atrás de não
sei quê e desde não sei quando
É culpa nossa,
enfim: a pressa não defendo
Que nos seja
fatal nem um destino brando.
Pois
freneticamente cada qual de nós
Em seus
próprios problemas absorvido andando,
São roubadas
as horas, sem remorso atroz,
Sem que de
fora ou dentro nada mais acuda,
São roubadas à
causa das de mútua ajuda.
1302 – Aprendi
Com o Zen
aprendi que jamais é verdade
Que a verdade
atingido tenha alguma vez
Ou
compreendido até o que é que enfim me invade.
O tauismo me
achou submisso a ser na idade
De nunca
acreditar que a via exacta vês.
O místico
cristão contentar-me-á, de ignaro
Na nuvem me
manter, a eliminar a noite
Escuríssima de
alma, a cultivar o amparo
Da ignorância
profunda, riso ao qual me acoite.
Entre os sufis
descubro aquela imagem tola
Que o tolo me
dará como sacral açoite,
De santidade
via a que a razão se imola.
Assim me
esvaziando é que a aprender me vi:
Quanto menos
de mim, mais eu no ser em si.
1303 – Comédia
Caímos sempre
mal nesta comédia humana,
Por vezes
rir-nos vamos de nós mesmos mais,
Porém da
maioria dos cenários mana
Que a nós nos
tomaremos com tão séria gana
Que perfeitos
tentamos, parvos, ser demais.
Pretendemos
saudáveis nos manter, felizes,
No labor,
eficazes, na carreira a ter,
Aos comunais
problemas encontrar matrizes
Que os venham
a contento e duma vez solver…
Fica a
comicidade na visão à beira
Deste caminho
agreste onde não há juízes
Que
espirituais se riam de tão tola asneira.
A irreflexão
sagrada a inteligência funda
Da
espiritualidade que a mim, rindo, inunda.
1304 – Mistério
É um profundo
mistério a vida humana inteira:
De correntes
profundas, invisíveis, feitos
Somo-lo todos,
todos, e de tal maneira
Que à nossa
volta o mundo é das malhadas eira
Onde debulho
as leis no intuito de meus preitos.
De problema a
tratamos, solvido há-de ser,
O impossível
farei por informado andar,
De modo a
controlar rostos sacrais que houver
A vida de
colher em quanto em mim pulsar.
Porém outro
caminho, humilde ao me curvar,
Se me revelará
que outro melhor qualquer,
Que em meus
limites leva a me acolher, larvar:
Alma e
religião, num criativo império,
Só abraçam,
compassivas, o que é o meu mistério.
1305 – Vazio
Não é o nada o
vazio espiritual que tento,
(O nada
literal jamais existe em mim)
É de me
desprender o gesto enfim que invento,
Em que
resistir vou à tentação atento
De me aferrar
aos pontos meus de vista assim.
É um tipo de
vazio confiante apenas,
Contudo jamais
certo, de inquirir pejado,
A dar-me
território de abalar pequenas
Certezas
infundadas, meu perfil chagado.
É um nada de
mim próprio consciente e frio,
A lancetar-me
o pus que acumulei de lado,
Até do espúrio
vírus me encontrar vazio.
As religiões
estão deste vazio cheias,
Porém não o
praticam, nem sequer a meias.
1306 – Estridente
Uma estridente
insistência
É duma crença
que é frágil,
Se grita certa
a evidência,
Se de impor
tem a tendência
Aos demais,
ferina e ágil.
A brutalidade
esconde
O medo frio e
profundo
Que às
questões nunca responde
De quem nunca
entende o mundo.
Receiam o que,
afinal,
É religião no
fundo:
Duma abertura
o sinal.
Sinal que o
mistério alcança
A quem se abre
em confiança.
1307 – Palco
O palco de
teatro, o de bailado, o ecrâ
De cinema ou a
tela do pintor também
São janelas
abertas que, à frugal manhã,
Tomam o
imaginário, na beleza chã,
E a contactar
o põem o Infinito além.
Por deveras
aberta, é religiosa em arte
Qualquer obra
talhada, que óculo é uma tela
Se o pintor a
tratar como quem visa a estrela
Que do
Infinito espreita quem tal sonho acarte.
Uma tela
vazia, se a pintar com jeito,
É
rigorosamente meditar aparte,
Alargando a
visão a quem lhe presta preito.
Abre o artista
ao contacto e todos mais também
Com tudo o que
se encontra sempre mais além.
1308 – Intenções
De objectivos
vazios, de intenções fortuitas
Nos libertando
dentro, um novo rumo à vida
Podemos
encontrar: pois cada qual tem muitas
Portadas e
janelas culturais gratuitas
Que pode na
cabeça abrir, soltando a brida.
Então
descontraído conduzir deixar-se
Há-de poder
por algo que o excede fundo,
É um tipo de
vazio que é da fé disfarce,
Da crença uma
vertente de se abrir ao mundo.
É uma calma
ignorância acompanhada então
De confiança
de base, com a qual me inundo,
No que em mim
me ultrapassa abrindo novo chão.
Não sendo em
demasia ingénua, mera peita,
Flui através
de mim e a mim por fim respeita.
1309 – Visto
Ser é bem mais
ser visto, o que é sentir o peso,
O peso de
existir: que precisamos fundo
De ser vistos
de amigos, deste olhar aceso
Duma
comunidade que afectiva prezo
E meu rosto me
entrega de enfrentar o mundo.
Visto
absolutamente também ser requeiro,
Saber que
minha vida não será vivida
Sem um
significado a suportá-la inteiro,
Que o óculo do
templo aponta ao céu a ermida.
Sentir por
verdadeiro este absoluto olhar
A olhar com
afeição minha pequena vida
É a força a
pôr de pé meu vacilante andar.
É viável olhar
do céu na várzea o pasto
E os anjos
surpreender, de divindade um rasto.
1310 – Religião
Corajosa e
sincera a religião anota
O mistério que
impregna, se acercou, retém
O centro a
nossas vidas, dele fina cota
A protegê-lo
fiável, donde tudo brota
Que depois
irei ver, do sensual refém.
Tecnologia,
ciência abordarão a vida
Como de
resolver qualquer problema mais.
Segue a
religião a trilha inversa à ida:
Ao mistério
confere o eterno alor dum cais.
Em vez de o
resolver, procura modos vagos
De o
contemplar e honrar, deixa as lacunas reais
Para a ciência
encher, deixa-a beber os tragos.
Religião
celebra espaciais vazios,
Transforma-os
num modelo: de sonhar são rios.
1311 – Neurose
A neurose do
ciúme,
Como a da
inferioridade,
Do narcisismo,
resume,
Na tentativa
que assume,
Que ansiosa
impedir há-de
Que a vida nos
aconteça.
Vê que, quando
esvaziadas,
Contrário são,
peça a peça:
Ciúme sem ego
gradas
São paixões e
o inferior
Devém
humildade egressa,
Como o
narcisismo, amor…
Crês-te delas
livre após?
- Vejam-se é
livres de nós!
1312 – Imprevisto
Sem o nosso
impedimento
Vida de alma é
rica a plena,
Imprevisto
embora evento.
Mas confiar no
elemento
Do desejo me
condena,
Que me
arrastará, vital,
E em mim
sempre se derrama,
Pois raiz
primordial
Se bole,
estremece a rama.
Cuidamos nós
de saber
O que há-de
ser, que se trama,
Como tudo
há-de ocorrer…
- E é da vida
desistir,
Em vez de
deixá-la ir.
1313 – Correctos
Do espírito ao
nós falarmos
Somos
correctos mas vagos.
E parte ao não
decifrarmos
Modo é de às
ideias darmos
Vazios, cachos
sem bagos,
De que os
termos bem precisam
Para não
cristalizarem.
Da zona os que
não se avisam
Da ilusão, que
a não encarem,
Ficam no
literalismo
Sem mais voos
que voarem,
São um
fundamentalismo.
Para além alma
sem elos
Só topa dela
flagelos.
1314 – Centro
Ao centro é o
poema um oco
E os críticos
explicar
O mais
possível tal foco,
À fenda
ajustando um toco,
Sempre irão,
sempre, tentar.
De que trata
exactamente
Quadro, música
ou poema?
Falham nisto
fatalmente:
Sempre outrem
busco e outro lema…
Das artes é
natureza
Os centros
ocos nos temas
Alimentarem
beleza.
E este vazio
inerente
Põe o espírito
presente.
1315 – Conhecimento
Sempre o
conhecimento arrastará consigo
A dose de
ignorância que ser sábio tem,
Que não
compreender tudo é de quem sabe abrigo,
Como a
ignorância tem intelectual postigo,
Senão
estupidez é no que então devém.
Conhecimento
vero é uma mistura atenta
De inventiva
certeza e nomeado escuro
E de saber que
luz, à noite, enfim, nos tenta
Um passo
além-fronteiras, ao que achar procuro.
Sabedoria
prima por saber que sabe,
Muito mais
primará pelo porvir que auguro,
O nocturno
anotando que na luz não cabe.
A magia é
sabermos do saber que aprende,
É de entender
o que há mas que ninguém entende.
1316 – Ignorância
A sagrada
ignorância repreender ninguém
Por tudo não
saber não há-de em caso algum,
O que nos
alivia, que culpar alguém
Não há como
operá-lo, pois não há refém
Duma sabedoria
de lugar nenhum.
As nossas
emoções mistificadas são
E a vida
imprevisível, misteriosa ocorre,
As nossas
soluções na Humanidade vão
Falhar a longo
prazo como quanto morre.
Saber que não
conheço os terminais segredos
Da existência
humanal nos deveria então
Dar esperança:
a falha apela a outros credos.
Modo de
conhecer que mais bem traz também,
Há lugar para
aquilo que nos fica além.
1317 – Frágil
Do imaginário
frágil a ansiedade brota:
Em troca de
viver da descoberta à beira,
Ciente de que
tudo ninguém nunca anota,
Muito há quem
afivele duma crença a cota
Que de
qualquer questão tem a resposta inteira.
Tais respostas
transmudo em protectora sebe
Sempre em
redor dum núcleo que nervoso treme.
Este ilusório
muro tudo em mim embebe,
Falsa certeza
cria, a me servir de leme.
Tudo é
incapacidade de encontrar, atento,
Satisfatória a
fórmula ao mistério, geme
Dos temporais
após o que levanta o vento.
São as
reclamações extravagantes já
Que me
demonstram quanto ao fim não vivo cá.
1318 – Transcender
A tarefa-mor
da crença
É educar o
imaginário
A transcender
sem detença
O limite da
sentença,
Buscando o
puro, sumário,
Para poder
conceber
O infinito sem
fronteiras,
Sem nos marcos
se deter
Que o chamam
de mil maneiras,
Os objectos
limitados
Transpor em
gestas cimeiras
Sem se prender
aos bocados.
São estes que,
em desavença,
Aprisionam
nossa crença.
1319 – Enraizada
Se a crença
enraizada se encontrar no amor,
Esperar
poderíamos que os crentes logo
Souberam entre
si se amar do amor maior,
Bem como aos
outros mais, à natureza em flor,
A tudo o que
em redor tiver do ser o fogo.
Porém,
publicamente quem se afirma um crente
É quem vezes
demais é intolerante mais,
É quem, na
crença assente, alheio e qual demente,
Capacidades
tais mostra não ter jamais.
É difícil, por
vezes, complacente alguém
Da
espiritualidade que em si for presente,
Amar como
alguém crente, como ali convém.
Muitas vezes
mais viável há-de ser àquele
Que questione
e duvide e então Além apele.
1320 – Objecto
Da crença
nunca é puro algum objecto dado,
Que todos
adoramos um bezerro de oiro.
Contudo, cada
dia pode ser limado
O modelo
grosseiro que se houver talhado
Para uma
divindade que somente agoiro.
Religião é
caminho, não lograda meta,
Não é lista de
crenças mas procura eterna,
A refinar
constante o que melhor cometa
À procura da
esquiva sacra luz superna.
A crença é tal
e qual como um amor humano,
Muda tão
lentamente que, parece, hiberna,
Mas súbito dá
um salto e tudo era um engano.
Resistir à
mudança e a rigidez manter
É o que nos
fragiliza e nos fará morrer.
1321 – Profundezas
Pouco à
vontade a religião nos deixa acaso,
Que a crença
aponta o misterioso e não apenas:
Das
profundezas se levanta e a nenhum prazo
Inteiramente compreendida
em meu chão raso
Nem controlada
pode ser a quaisquer penas.
Tem a raiz no
coração e o pensamento
Nunca se
encontra inteiramente a gosto aí,
Vem do desejo
e mora envolta no tormento
Duma
ansiedade, não se tranca nunca em si.
As nossas
crenças radical o imaginário
São quem
conforma pelo qual vivo o momento,
Delas depende
dar à vida o curso vário.
Elas se
encontram a tão grande profundeza
Que com
melindre cada qual vive as que preza.
1322 – Importante
Tão importante
como a crença é uma descrença,
O que sem
crença enfim viver inconsistente
Vive a
existência, mora em rio a que pertença,
A que jamais
pôde observar a tira imensa
De qualquer
margem altaneira e previdente.
A crença à
vida quotidiana a hesitação
Dá que permite
reflectir e apanhar ar,
Os longes
mostra como encolhem a porção
Do dia-a-dia
como um nada singular.
Uma pitada
duma crença acaso o incréu
Venha a salvar
duma absorção no secular,
Erguendo a
ponta, a revelar do imenso o véu,
E uma pitada
de descrença há-de salvar
De se afogar
qualquer devoto num altar.
1323 – Ameaça
À crença a
ameaça verdadeira pode ser,
Não uma
dúvida, a questão sem ter resposta,
Antes a falta
de interesse no que houver
Além da
simples de momento paga a ter,
Chama apagada,
saciada do que gosta.
Mais o
problema será, pois, o da não-crença
Do que a
descrença alguma vez o reporá,
Já que, hoje
em dia, todos buscam quanto vença,
Dinheiros e
êxito valoram no que os dá.
Experimentam
da descrença e fé o avesso,
São atacados
por sintomas, desde já,
Da fé ignorada
que se muda num tropeço:
No sofrimento
é que, confusos, questionar-se
Vão, quando a
vida lhes desata a esbarrondar-se.
1324 – Céptico
Não acreditar
importa,
Ser céptico,
criticar,
Entrar tanto
nesta porta
Que a vida a
que tal exorta
A crença venha
a adiar
Para mais
tarde, exigente,
Entrando nela
a compasso,
Um recuo, um
passo em frente,
Sondando o
fundo ao que faço.
Adiar, mas o
lugar
Para ela aqui
presente,
À medida a se
ocupar:
Que eu a
implique sem detença,
Subtil, em
minha descrença.
1325 – Paciente
Com mistérios
ao lidar
Há sempre a
boa maneira:
De ser
paciente cuidar,
Como
observador sem par
Das pistas que
houver à beira,
Vigiar os
quase invisíveis
Vestígios que
mal aflorem,
Adiar juízos
credíveis,
Por muito que
nos demorem,
Para o último
momento,
Quando ao
fundamento forem
Do que for
cada elemento…
- Em alma a
contemplação
Mergulha mais
que uma acção.
1326 – Imaginação
O que a
imaginação for
Sabe-o
qualquer detective:
Age a sós, ao
se propor,
Sem nada mais
se lhe impor
E sem que a
pressa a motive.
Se espicaçada
ou forçada,
Falha a meta
que tiver.
Sê receptivo à
pegada
Dela, nela ao
te envolver.
Deixa os dados
dela entrar,
Misturar,
padrões tecer,
Se algo dela
vais tirar.
Não concluas
de corrida
Antes da peça
volvida.
1327 – Bruma
Aquilo que
procuramos
Se encontra
bem escondido,
Disperso por
muitos ramos,
É aquilo só
que alcançamos
Bruma do
desconhecido.
Quanto mais
nos afastarmos
Mais nós nos
aproximamos
E, ao mais nos
aproximarmos,
A afastar nos
obrigamos.
Devimos
sofisticados
Com os
mistérios que amamos,
Rodeando-os de
mil cuidados.
Medito-os e,
relutante,
Não os saldo
logo adiante.
1328 – Bilhetes
Vejo vários
descobrirem
Que as
questões originais
São bilhetes
para irem
Ao teatro a
que assistirem
No assombro
dum além mais.
Uma vez lá
dentro os ditos
Bilhetes
deixam de ser
Interessantes
quesitos,
Nem precisos
são sequer.
Tudo mais
rapidamente
Muda que
espera quenquer,
O desejo é que
o não sente.
Nesta excursão
ao mistério
De alma o
eterno impõe o império.
1329 – Cega
Sempre a fé
será vazia
Como a
religião genuína,
Não cheia de
ideologia,
Nem dela
própria mania,
Cega a adorar
a doutrina.
Ideolatria de
ideias
Não tem onde
questionar,
Nem da opinião
às teias
Diferentes dá
lugar.
Há-de ser
fixista a fé
E simplista a
que afirmar
Este tipo em
rodapé.
Fé com alma
tem mudança,
Fracassa,
regride e avança.
1330 – Sábio
Se algum de
vós se imagina
Mais sábio que
os mais naquilo
Que por sábio
o mundo ensina,
Melhor é do
louco a sina,
Que sábio
devém tranquilo.
Aceitar
pensar, viver
De modo
inverificável
É confiança
que há-de ter
Qualquer fé
que seja fiável:
Pode não ter
sensatez,
Inteligência
qualquer,
Nem a
prudência talvez…
Mas louca, a
fé de verdade
Dá luz na
inferioridade.
1331 – Manual
Encontro-me
nesta vida
Sem manual de
instruções
Com quem crê
sem ter medida,
Numa terra sem
guarida
A ameaçar-nos
com grilhões.
É normal ser
ansioso,
Mas quem tiver
fé parece
Não ser às
ânsias poroso
Nem as
camuflar na prece.
As igrejas
mudariam
A noite em dia
que aquece
Se a segurança
esqueciam:
- Valor e
significado
Quem afronta
deste lado?
1332 – Alimentar
Como alimentar
a vida
Espiritual dum
filho?
É mesmo a
melhor medida
Confiança
comedida
Ir instilando
em seu trilho.
Se for
profunda, ela goza
De eficácia
bem maior
Que doutrina
religiosa
Mecânica a lhe
propor.
Quando pais e
professores
Contagiam sem
impor
A fé dá passos
maiores.
Segue a
criança adiante
A vida por
vir, confiante.
1333 – Insiste
Sempre quando
a fé for oca,
Insiste na
crença o crente,
Aos mais impõe
dele a toca,
Em demasia se
foca
No dogma a que
se acorrente.
Rígidos eles
são tanto
Que devêm
beligerantes,
Tanto querem
ser o santo
Que o diabo
serão antes.
Crêem tanto
num sistema
Que de si
moram distantes,
De si jamais
serão tema.
Rigidez
frágil, de perto
São o erro
tido por certo.
1334 – Confia
A fé confia na
vida,
Confia no
próprio eu,
Mesmo quando
desmentida,
É do amor
chama acendida,
Não-saber de
Prometeu.
Sempre o amor
tem precedência,
A fé, no
fundo, é intuitiva,
Força de alma,
de inerência,
Não é razão
discursiva.
Arranca do
mais subtil,
Da percepção
mais esquiva,
Visa de bruma
um perfil.
Vem do coração
aberto
Ao mistério a
que desperto.
1335 – Acende
O mestre, na
encruzilhada,
Acende a
lâmpada forte
E a vela, um
pouco afastada.
É sob esta luz
de nada
Que lê o livro
que transporte.
Quem o vê fica
confuso.
Por que não
quer luz capaz?
“A atrair
traças a uso,
À vela, então,
leio em paz.”
Muitos há num
frenesim
Se acham o que
os satisfaz
E assim lhe
goram o fim.
Não se
afastando algo dela
Perdem o pé na
sequela.
1336 – Gostaríamos
Pelo espírito
empurrados,
Gostaríamos em
anjos
De ser mesmo
transformados,
Ar fora a ser
elevados
Aos corais de
lira e banjos.
Mas embebidos
em alma
Preferíamos
tomar
Antes a
refeição calma
Com os amigos
num bar.
O espírito
trepa ao cume,
Alma à fundura
chegar
É sempre o
intuito que assume.
Sem alma funda
aquele há-de
Cindir-se da
humanidade.
1337 – Enraíza
O espírito
sempre anseia
Pelas cósmicas
alturas.
Mas alma ao
cotio ameia,
Se enraíza e o
permeia,
De metas sem
mais figuras.
Aquele é força
motriz,
Quer
progredir, transcender.
No dia-a-dia
condiz
Esta com o que
ocorrer.
Visa o
espírito o objectivo,
Marca os
degraus a vencer;
Alma é sabor
do que é vivo.
Mais de
espírito que de alma
Murcha a
actual cultura a palma.
1338 – Implica
Vida com
significado
Não é busca
intelectual,
Nem valor, nem
saber dado.
Pode implicar
o outro lado,
De laços,
medos, sinal,
Um exame a
relações,
Experiências
insondáveis,
Feixes de
recordações
Se calhar
inexplicáveis…
Os sentimentos
mais fundos
Que a um rumo
dão empurrões
Serão sempre
ignotos mundos,
Tanto o
emocional momento
Luz como um
discernimento.
1339 – Transcender-me
Tão sagrado e
religioso
Transcender-me
é no profundo
Como na via
que entroso
Ascendente à
luz que gozo,
Fugindo à
noite onde afundo.
A voz de Deus
pode ouvir-se
Vinda do poço
sagrado,
Da caverna do
intocado,
Na funda
emoção sentir-se,
Pode-o com
tanta certeza,
Sem precisar
de exibir-se,
Aura esquiva
de beleza,
Como se
proveniente
Do altar na
montanha assente.
1340 – Vergonha
Parecer pode
ansioso
O espiritual
indivíduo
Por evitar
pressuroso
A vergonha:
misterioso,
Vive na terra
envolvido,
Enlaçado aos
animais,
Em fatal
intimidade.
Não é de culpa
jamais
Por erro que
não lhe agrade,
É de ente de
luz não ser,
Feito de ar e
brevidade,
Como sonhara
quenquer.
Se a meta a
trepar obriga,
A vergonha à
terra o liga.
1341 – Riso
Há um riso que
de Deus vem,
Que salva da
seriedade,
Abre o trilho
ao que contém
O que a ser
feliz convém
Em nossa
mediocridade.
É a postura
tolerante,
De nós capaz
de nos rirmos,
Que nosso
esforço garante
Que entende
para sempre irmos
Tentar chegar
ao que não
Podemos saber
adiante,
Perdido na
escuridão:
Para tornar-se
quenquer
No que nunca
pode ser.
1342 – Oculta
Libertarmo-nos
do entulho
Que oculta o
espírito importa:
Preconceitos
mais orgulho,
Das defesas o
gorgulho,
Literalismo
que exorta,
Mais a
preguiça mental
E a ignorância
de raiz.
Todos são de
igual matiz,
A esconder o
espiritual.
Todo o
espírito é exigente,
Jamais trata
por igual
Quem luta e
quem é indolente.
Espírito que
tal dita
Estrangula o
que me dita.
1343 – Daninhas
De perfeição
fantasias
Como ervas
daninhas crescem
Na mente que
aponta as guias
Ao espírito
que as vias
Dos cumes quer
que florescem.
O mito de ser
perfeito,
Saudável,
iluminado,
Anda de ego
sempre eivado:
Por que o
nível sempre espreito
Do progresso
que eu tiver?
O mundo
repleto a eito
Anda de quem
me requer:
Tradições
espirituais
Não querem o
eu, mas os mais.
1344 – Luta
A emocional,
empenhada
Luta que
jamais se ganha
Afecta as
almas na estrada,
Vence as
marcas da pegada
Que ali cada
qual desenha.
A visão mais
alargada
Nos permitirá
da vida,
Do mistério
que é de entrada,
Mistério que é
de saída.
A iniciação
pulveriza
A rigidez
encontrada,
As falsas
protecções visa.
A gruta de
alma conduz
O espírito a
dar à luz.
1345 – Conflitos
Os conflitos
comezinhos
Dão a
espiritual lição:
Não avançamos
sozinhos.
Ser humano é
dos vizinhos
Depender, de
mão na mão.
Quando todo o
resto falha,
Aguardamos uma
ajuda
Duma igreja,
de quem calha
Que à desgraça
nos acuda.
É básica a
dependência,
Mesmo a vida
mais miúda
É de divina
ascendência.
Jogo-me então
de mim fora:
Além da razão
Quem mora?
1346 – Inconscientemente
Inconscientemente
olhamos
Uma imagem dum
Deus homem,
Patriarca e
avô, queiramos
Ou não sempre
nos rodeamos
Desta imagem e
as mais somem.
Eis porque a
deusa Mulher,
A Natureza, se
esconde.
Não vai
desaparecer,
Governa sei lá
bem donde,
Sob a pele do
que entendo,
Do rosto que a
vida houver.
O impacto dela
exercendo
Em cada um,
invisível,
A vida torna
impossível.
1347 – Secular
Muita
espiritual paixão
Hoje em dia é
disfarçada
De dinheiro,
guerra, em vão,
De política,
senão
Duma atlética
jornada…
Em conjunto,
hierarquias,
Uniformes,
rituais,
Discursos com
histerias
Formam
religiões banais.
Comícios e
convenções
Como os credos
sociais,
De ídolos
celebrações
Um tipo
apontam-nos chão
De secular
religião.
1348 – Difícil
Por que é que
a prática certa
Difícil é de
encontrar,
A comunidade
alerta?
É que é uma
busca desperta
O espírito
cultivar.
Total,
imediatamente,
Não acontece
jamais,
É procura que
se tente
Mesmo em fés
tradicionais.
Amadurecer
aqui,
Como noutros
campos mais,
É a norma de
que nasci.
E, na cultura
em geral,
Funda um traço
individual.
1349 – Transcende
Deus do que
grande é maior,
Mais pequeno
que pequeno,
Mais
transcende que o fulgor,
Mais imo do
que este for,
Mais pleno que
o que for pleno.
Além de
qualquer imagem,
Requer a
melhor de todas
E depois quer
a coragem
De ao lixo
jogar tais modas.
Seja lá o que
for que eu diga
Acerca de
Deus, as codas
Tenho de
quanto o desdiga.
Tanto isto
há-de ter lugar
Que até deixe
de falar.
1350 – Ídolos
Nós de imagens
precisamos,
Porém estas
facilmente
Em ídolos
transformamos,
Para elas
apontamos,
Não para o
Além que haja em frente.
Da imagem
religiosa
É o intuito
uma janela
Ofertar-nos,
graciosa,
À eternidade a
que apela.
Qualquer ídolo
bloqueia
Da visão toda
a sequela
Dos possíveis
a que ameia.
Então o
implícito abraço
À vida corta
dum traço.
1351 – Beleza
A beleza é
transcendente,
Sublime e
satisfatória,
Por inteiro,
plenamente.
Ao limite toda
a gente
Pela mão leva,
à vitória.
Mesmo abarca o
doloroso,
Quantas vezes
o cruel.
O artista
mostra, teimoso,
Que, à natureza
fiel
Mais obscura,
baixa e triste,
É a beleza que
o impele,
Que o belo
também lá existe.
Sem beleza o
mundo ouvido
É de seu Deus
desprovido.
1352 – Impacto
Alguém, quando
falar, tem um impacto forte
Por vezes tão
profundo que parece haver
Nos termos
qualidade de imortal transporte,
São palavras
eternas e teremos sorte
De a divina
vontade aí sentir a ser.
Tanta força,
eficácia, que, por vezes, o anjo
Porventura
aparece com figura de homem,
(São amigos ou
membros que em família abranjo)
Fala através
de nós e em nós os medos somem,
Mensagens a
ofertar de espiritual valor.
Se distinguir
não logro afirmações que tomem
Cara humana,
se angélico, ao fim, tudo for,
Acaso
confundido irei sentir-me a sério
E não persigo
em vida mais nenhum mistério.
1353 – Formiga
Se à formiga
perguntar:
“Deus
parece-se contigo?”
“Não, que uma
antena em lugar
Das duas tem
que eu abrigo” –
- Responde,
sem hesitar.
É o que se
passa comigo,
Se O quiser
representar:
Serei sempre
este formigo
Sempre um
Outro a desenhar
À medida do
postigo
Que daqui ando
a espreitar.
Nunca de mim
me desligo:
Por mais que o
tente sonhar
Sou sempre eu
em seu lugar.
1354 – Âmago
Se no âmago
andar Deus duma oração que houver,
Conversarmos
com ele poderemos nós
E nossa
relação então irá pender
Do nosso
compromisso com o mundo a ter,
Que a chave
sempre foi não desatar os nós,
Não cindir o
divino da divina acção,
Nem esta
criação do mundo a ir trilhar,
A ir
desenvolver com a ciência à mão,
Com a
tecnologia com que o vou mudar.
Se quando me
elevar eu cavernal descer
À gruta mais
profunda que ocultada andar
No centro do
Universo, então aprendo a ser.
A fenda entre
a ciência e qualquer crença então
É de ambas
fracassarem visionário chão.
1355 – Inviável
De Deus quando
o mistério, o inviável fito,
Fito de O
entender e nomear, por fim,
De vez for
respeitado, há-de tombar o mito,
Surge a
oportunidade de meu ver estrito:
Em toda a parte
e em tudo Deus nos mora enfim.
Poderemos
então nos religar com Deus,
Tais pessoas
que somos, tudo laços, nós,
Uns aos outros
presentes, cada qual aos seus,
Sem excesso
nem falta, mas atando ilhós.
Já não
preocupados com quem nós seremos,
Poderemos
falar, o ouvido atento aos céus,
À espera de
atendidos de alguém ser que vemos.
Podemos
escutar, por entre sons sumidos,
Na esperança
de sermos finalmente ouvidos.
1356 – Paradoxo
Do inominável
Deus o paradoxo brota
Da crescente
consciência da presença viva
No coração
pulsando do que alguém anota,
De tudo o que
é real, que o mundo já não cota
Nada como
vazio em tudo quanto arquiva.
Então a vida
inteira encantamento toma
Onde a
imaginação apontará o caminho
Para
significado mais valor que soma
O rosto
sonhador de que é nosso imo o ninho.
Ao mistério me
chego e busco modos fiéis
De o poder
exprimir, de partilhar o vinho
E o pão com
que alimenta as mais variadas greis.
Na religião o
afecto a senda achou perdida,
Ao espírito
aqui então uniu-se a vida.
1357 – Romântico
No romântico
pesa o sofrimento haurido,
Que em nossa
humanidade nos obriga a entrar.
Quenquer ao se
entregar, à vida dá sentido,
O sofrimento e
a dor garante haver nutrido
Que daí
vulgarmente hão-de fatais brotar.
Generosos
vivemos, no imo enfim moldados,
Amamos e
perdemos, separamos tanto
Quanto atamos
os nós e, na prisão cerrados,
A prosseguir
forçados nos verão em pranto.
Embora sem
saúde, em confusão total,
Na vida nós
entramos para um breve encanto
Como para a
beleza. E o peso têm igual,
Quer nos
venham de agrados ou de reais tormentos,
Que em tudo a
curta vida são só tais momentos.
1358 – Donzela
A donzela é o
momento de esperar atento,
Uma
preparação, expectativa frágil,
Vulnerabilidade
de aguardar momento
Em que a
fecundem, dócil, em qualquer segmento
Em que um
germe de vida brote incerto e ágil.
A
espiritualidade, se a buscarmos nós,
Poderá ser
chamada para aquela via:
Cuidar da
intimidade delicada após
Para se
preparar ao que vital viria.
Teremos de
estar prontos, como a noiva esquiva,
Para quando a
mensagem que inaugura o dia
Chegar e
transformar tudo o que em nós aviva.
Espiritualidade
de promessa feita,
Janela
inacabada, nisto é que é perfeita.
1359 – Poderosa
É muito
poderosa a poderosa imagem.
Números,
abstracções, prefere de hoje o homem,
Porém quem de
alma vive outra requer viagem,
Sabe o que a
imagem pesa, jamais é cofragem
De ideias
racionais, juízos vãos que a somem.
Um romântico
ser, em epocal ruptura
Contra os
racionalismos, no exterior se fica,
Rompe a
tecnologia, um outro centro augura,
Devém tolo
sagrado e em devir tal se aplica.
Os românticos,
nós, vamos triar imagens,
Fugindo à
redutora que ao fim tudo explica
A vida
reduzindo a factos só, sondagens…
Preferimos
manter-nos no brumoso ser,
Surpreendendo
um saber bem mais profundo a ter.
1360 – Abrir
Busca
iluminação o espiritual pendor,
Enquanto as
almas buscam ligação, afecto.
Acolá de mim mesmo
acabarei senhor,
Aqui já não a
mim é que me irei propor,
Meus braços
vou abrir além de meu projecto.
A uma imagem
sagrada alguém ficar presente
Não é ser
instruído, o que ignorou, colher,
É ser receptor
da irradiação que houver
De lenta o
transformar lá na fundura assente.
O efeito do
devoto é mui difícil ver-se,
Medir-se ou
explicar-se como facto crente,
Que mergulhou
raiz no que tal lei não verse.
Mas a
veneração que é confiante, entregue,
À
quinta-essência aponta qualquer fé que adregue.
1361 – Anjos
As palavras
são anjos, como o são imagens,
Entre divino e
humano intermediários breves,
Anjos que
mediadores se tornaram, pajens
Deste mundo de
tempo em permanentes viagens
Para o da
eternidade, voando em passos leves.
Da imagem o
papel, o verbo então profético
Um novo lugar
medem ao pensar que tenho,
Um alvo
inesperado em meu pensar poético,
Na atenção
distraída que afinal mantenho.
Eis-me então
afastado de meu ego intenso,
De meus
projectos já me descansando o cenho,
Vivo mais o
mistério, menos já o que penso.
Mais longe do
que é prático no sal do mundo,
Entro no
intemporal quase entrevendo o fundo.
1362 – Sério
É bastante
diferente
Olharmos
através duma
E a sério ser
uma lente.
Quantos
prémios apresente
De
investigação, em suma,
A lente
através da qual
O investigador
já fez
Descoberta
genial
Ninguém conta
alguma vez.
Ser uma lente
é viver
Da vida o raro
entremez
De modo a vir
meio a ser,
Não sujeito, e
transparente,
Nunca opaco Eu
lá presente.
1363 – Natureza
A natureza
revela
Deus presente
onde vivemos
E desdobra
inteira a tela
Dos campos que
são sequela
Da devoção que
teremos.
Formam a vida
devota
Que não é
comodidade,
Antes o
espanto que anota,
Contemplação
da verdade.
O mundo é do
que vivemos,
Partilha a
comunidade,
Sábios nos
transmuda extremos.
Protegendo a
natureza
A espiritual
vida reza.
1364 – Passeio
Um diário
passeio na floresta umbrosa,
Serena
caminhada junto ao mar, à noite,
Podiam
fornecer-nos a secreta glosa
De nossa mais
profunda identidade aquosa,
Ao nos
apercebermos que o que ali se acoite,
Aquilo que
observamos somos nós, enfim,
Mui
misteriosamente a se espelhar no mundo,
Nele a
desabrochar, rosa do além-confim,
Tão eu quanto
for dele que eu a mim me inundo.
Se olharmos
mais além podemos ver os traços
Difusos,
negaceando num cendal fecundo
Duma presença
etérea, de divinos passos.
Mais que da
transcendência a natureza é fonte,
É dentre nós e
Deus a misteriosa ponte.
1365 – Respostas
Não são de
juízo rectas
Que nos dão
respostas claras,
São de
espirais nossas metas,
Labirintos que
acometas
Até
intimidades raras.
Envolvidos de
interior,
As lições mais
importantes
Despertam para
o valor
Do sabor de
meus instantes.
E toda a
existência humana
Revela a
fundura de antes
Na via donde
ela emana:
- Provém de
atmosferas, formas,
Textura,
jamais das normas.
1366 – Tentativa
A tentativa de
entender o mundo actual
Em que vivemos
nosso espírito ocupou
Mas não o todo
da pessoa e afinal
Vai-nos manter
sempre cortados, tal e qual,
Do mundo ali
que, de estudá-lo, se afastou.
A ele chego
como vindo além de fora
E
transformando-o num objecto e não num nós.
Contudo as
formas religiosas são agora
Quem nos
envolve totalmente em laços, nós.
A ter visão
mui diferente nos ajudam,
Atam e
atraem-nos, prendendo com cipós
Da vida ao
bosque os frutos sãos que nos acudam.
Eis que os
mistérios exteriores, enfim, são
Mesmo o
mistério que nós somos neste chão.
1367 – Clarividente
Tem o
clarividente, para ver sinais,
De lograr
distanciar-se da vulgar maneira
De obter
conhecimento. O amante ainda mais
Terá de se
deixar, pelas paixões cruciais,
Deixar-se
conduzir quando do amor se abeira.
O artista de
encontrar uma profunda fonte
De imagens
preciosas precisou decerto,
Por onde a
fantasia estabeleça a ponte
Que, a lonjura
apontando, a venha a pôr cá perto.
E o ente
espiritual pode encontrar aquilo
Que procurar
apenas num estado aberto,
Disponível e
atento, a confiar tranquilo.
É baixa e
apertada a porta que abre a via
Para a fresta
assombrosa onde nossa alma espia.
1368 – Inteligência
De
inteligência a ideia segue o tom geral,
Confiamos nos
factos, na razão tão-só,
A educação
talhamos com perfil mental,
Alunos aos
milhões vão aprendendo mal
A investigar
com números, com mero pó.
A medicina
orgulha-se de ter mais provas,
Como a
psicologia, de mais testes ter.
E ninguém quer
saber de quaisquer outras novas,
Nenhum outro
vector, aliás, já pensa haver.
Materialista
margem do saber que cobre
Todo o
conhecimento que há-de ter quenquer,
Que a religião
e as artes hoje em dia encobre.
A vida
espiritual não tem sequer pesquisa,
Se a reduzir a
um número ninguém a visa.
1369 – Intelectualismo
De hoje o
intelectualismo o irracional atrai,
O risco faz
correr de o racional negar,
Com isto
duplamente qualquer homem trai,
Que, se razão
apenas não me esgota, esvai,
Menos é a
desrazão que a mim me irá marcar.
Eu prefiro
explorar tradicionais maneiras
De ter o
imaginário alimentado a sério,
Adivinhas,
magias, poemárias leiras,
O véu me
levantando do que for mistério.
Ao mesmo tempo
irei aproveitando a ciência
Como a
tecnologia, desprezando o império
E antes aproveitando-lhe
a fiel potência.
Nada quero
eclipsar que inteligente for,
Antes
complementar num integral valor.
1370 – Envolver
Quanto mais se
envolver de espiritual fervor,
Tanto mais
cego fica quanto ao mal que faz,
A si como em
redor, o que empenhar-se for
Em nome da
razão que se tentar impor
E das metas
que busque, que no sonho traz.
Será mesmo
cegueira, que a energia, a luz
Do espírito
ocultar irão real perigo,
Obcecado que
fica no que fiel traduz
Quanto sob o
projecto ele puser de abrigo.
Jamais o
seguidor ou guia tem cuidado
E pode por
engano já nem ser o amigo,
Pelo que
descobriu sem se frenar armado.
Tomado pelo
espírito, a atear o fogo,
Os mais finda
a incendiar do próprio credo logo.
1371 – Sacrificavam
Sacrificavam
animais povos antigos
Os alimentos
ofertando à divindade,
Não os usando
em seu proveito, como artigos
A consumir,
mui desejáveis, nos perigos
De fome crua,
de carência, insanidade.
Antes desistem
dum frumento que apreciam,
Criam vazios
onde a chaga dói do lado,
Então com isto
um outro mundo propiciam:
Espaço criam
dentro deles ao sagrado.
As religiões
nos ensinaram que, genuíno,
O sacrifício,
quando é puro, é um novo dado,
Obriga o
espírito a acatá-lo sem destino.
É darmos algo
onde um fito antes desemboca
E receber o
inesperado então em troca.
1372 – Sacrifício
Sacrifício
privação
Não deve ser
masoquista,
Antes a
disposição
De entregar à
vida o chão:
Que aconteça e
nos revista!
Graciosa
aquiescência
Donairosa e
criativa,
É toda uma
complacência
Com o ignoto
que se esquiva.
Pretende
arranjar espaço
Para aquela
força viva,
Generoso
dá-lhe o braço.
E o ego ao não
reforçar,
Alma é que faz
germinar.
1373 – Ciúme
Quenquer que
for consumido
Pelo ciúme
requer
Da religião
sentido:
Descobrir,
surpreendido,
Que o amor que
retiver
É divinal,
infinito.
Não lhe cabe
nas canadas,
Extravasa todo
o fito
De saídas e de
entradas.
Tem de
aprender a deizxar
A vida ir sem
atrito,
Sem barreiras
caminhar.
E reconhecer
que actua
Com força
maior que a sua.
1374 – Visão
De que serve a
abnegação?
Abre à visão
interior
Que houver na
religião:
Pois dum ego a
negação
Transmuda tudo
o que for
Até lá
qualquer pessoa,
Vai transpô-la
a uma noção
Tão vasta até
que atordoa
Do que entes
humanos são.
Com os
incompreensíveis
Mistérios que
em nós serão
Implanta laços
sensíveis,
Mesmo quando
os eu não meço
Nem por eles
tenha apreço.
1375 – Alinhado
O sacrifício
mutila,
Mutila o eu
racional,
Põe-no, quando
se perfila,
Bem alinhado
na fila
Das almas sob
o sinal.
Em vez de
insistir nas lidas
Darei lugar a
um apreço
De feições
descontraídas
Pelo que
ocorre e nem meço,
Logrando seus
próprios fins:
Cruza a Vida o
que eu pareço
Através de
meus confins.
Rosto cria em
mim mais pleno
Que o que for
meu meio aceno.
1376 – Essencial
É essencial o
sacrifício,
Que, sem ele,
não há espaço
No pensar, nem
há resquício
Na vida dum
benefício,
Se meu
controlo ultrapasso.
Sacrifício dá
visão
Além do
conhecimento
Em que se
apresentarão
Os mistérios
de momento.
Somos destes
os peões,
Súbditos do
encantamento,
Mexem-nos
nossos tendões.
E assim nos
tornamos mais
Que seríamos
jamais.
1377 – Reagir
Poder reagir
ao mundo
À nossa volta,
em redor,
Se alma em
ética aprofundo,
É que à
vontade me fundo
Em paz comigo
e melhor.
Minha empatia
se estende
Muito longe de
bom grado:
Já nada em mim
se defende,
Ao mundo vivo
abraçado.
Ser ético
simplesmente
É tanto em mim
ter entrado
Que descubro,
de repente,
Que faz
sentido a verdade:
- Sou mesmo
comunidade!
1378 – Ético
Ético é
reconhecer
Que, se cada
qual sozinho
Neste Universo
estiver,
Conjuntamente
há-de ter
Seu solitário
caminho.
Podemos viver
a vida
Muito bem,
muito a contento,
Uns aos
outros, de seguida,
Dando a mão
cada momento.
Uns aos outros
proteger
E criar cada
elemento
Renova o dia
que houver.
E gozar a
companhia
Uns dos
outros, que alegria!
1379 – Sente-se
A vida humana
a servir
Sente-se
realizada
Bem como a
contribuir.
A alegria
comum ir
Alimentar,
esforçada,
É um ético
evento raro:
As igrejas
moralizam
Dos mínimos
com preparo,
Mil pecados
enfatizam…
Ética é
oportunidade,
Não exigências
que visam
Travar meu pé
na cidade.
Isto é minha
natureza:
Germinar
quanto alguém preza.
1380 – Individual
Individual é a
consciência humana:
Ao escolher
fiel manter-me a ela,
Ao cultivá-la
a vida inteira, insana,
Então
transformo-me no que ela emana,
De quanto sou
me tornarei sequela.
Mas, se a
trair ou me sentir parado
Ante ela após
a negligente vida,
A identidade
minha então gorado
Terei perante
esta lanterna erguida:
Sei lá quem
sou ao fim da trilha andada,
Nuvem de pó
que o vento incônscio lida,
Casca vazia na
ocasião jogada!
- É que
inconsciente então traí a voz
Que nos dá
forma à vida em todos nós.
1381 – Religião
Religião vai
ser igreja,
Mil crenças, a
tradição,
Estrutura que
se veja,
Ritual, quando
se almeja
Os mistérios
ter à mão.
Tudo isto,
porém, são meios
De a fé vir a
tomar forma
Na atitude,
sem rodeios,
Postura a
assumir por norma.
Outros modos
há, porém:
Do lar os
fundos anseios
São religião
também…
Nossa devoção
vivida
Forma a fé,
modela a vida.
1382 – Espiritualidade
A
espiritualidade em seu melhor é jeira,
Área mais
sensual de experiência, aponta
À
intensificação do que se vive à beira,
Mais que à
diminuição do que existir, peneira
O meu
quotidiano quando o tomo em conta.
Pergunto
muitas vezes e ninguém responde
Por que é que
um sacerdote tanto estudo alia
Com a
preparação de não sei quê nem onde:
Dogmas,
definições, dele são fé que avia?
Com o
significado a religião a ver
Mais que com a
vivência terá dia a dia,
Cuidam os que
tal via, pois, irão correr.
O ritual,
porém, agir, conselho amigo,
Nunca em
raciocinar hão-de encontrar abrigo.
1383 – Revelações
Revelações
sensuais
São mais
ricas, mais complexas
E misteriosas
mais
Que as
revelações gerais
Com o
intelecto conexas.
As vidas
espirituais
Junto ao mar
beneficiam,
Que oferta
mais que jamais
Os livros que
lá se liam.
Tem o mar
sabedoria
Que na praia
aos que jaziam
Derrama da
almotolia.
Ali, sentado
na areia,
Fecho o livro,
de alma cheia.
1384 - Acolhemos
Em vida de
sensações
Acolhemos o
que o mundo
Nos ofertar
nos balcões,
O que nas
inspirações
O artista em
transe fecundo
Vislumbrou
extasiado.
De investigar
o mistério
Será o modo
apropriado
E de procurar
a sério
De Deus a
presença fina.
Da análise sob
o império
Apenas o juízo
atina.
Mas sentido é
facto frio
Mais segredo
em desafio.
1385 – Abstracta
Quão mais
abstracta e distante
A vida se vai
tornando,
Tanto mais
devém gritante
O risco de
logo adiante
O dom ir
subvalorando
Que nos traz a
sensação.
Toda a fé logo
enfraquece,
É
secularização
Que o espírito
arrefece.
Deus,
transcendendo a razão,
Incorporado
aparece
No mundo em
primeira mão:
Conheço-o na
criatura,
Não na lógica
figura.
1386 – Borboleta
Da borboleta
Deus está no voo,
Da madressilva
neste aroma doce,
E no vapor que
da panela eu vou
Verificar que
da fervura voou,
Está nos
cheiros, sons e luz que endosse
A perpassar da
casa os cantos todos.
Deus também
mora em sensações horríveis,
Na bomba ou
tiro, inundação, os modos
De espicaçar
que crenças são credíveis.
Ali se
encontram para serem lidas
As sensações
que à fantasia níveis
De entender
pedem a sagrar as vidas.
Quem o não
vir, na reflexão perdidas
Tem impressões
já da raiz cindidas.
1387 – Sagrado
Sagrado é quem
se encontra de sentidos plenos,
O imaginário
pronto ao divinal sinal
No instante
revelado em mundanais terrenos.
É quem não crê
nos dons de saborear pequenos,
Desde que para
um imo promover final,
Nem irá
defender-se duma fértil, densa,
Inefável
torrente de fervor vital
Que corre para
nós enquanto o ignaro pensa
E momento a
momento nos inunda igual.
É a mulher que
viver logrou num corpo vivo,
Num mundo com
um corpo, uma extensão real
Do ser dela
mais físico, jamais furtivo.
Ter o físico
em conta é que o convite apura:
- Deus toda a
cor habita, em pormenor figura.
1388 – Sexo
Não é o sexo
reservado
Para ser
espiritual.
Pode ser
considerado
Moralmente
comandado,
Não do diabo
um sinal,
Que à
moralidade não
É um obstáculo
primário.
A
dicotomização
É um equívoco
sumário,
Mostra quão
enviesada
É de espírito
a noção
Que nos anda
encomendada.
Reprimir oa
apetites?
- Melhor é
ficarem quites.
1389 – Antagonismo
O antagonismo
imaginário entre o sexo
Que há-de
convir e o que é espírito revela
Uma tragédia
pessoal no lar conexo,
No casamento
que uma igreja vê complexo,
Quer preservar
e mata em vez, em tal sequela.
Sexo sincero,
generoso, não entendem
Que gerar pode
uma alegria bem profunda,
Ela é que pode
os casamentos que se fendem
Manter unidos
que a família então fecunda.
Às frustrações
da intimidade não há fuga,
São
tempestades cuja chuva tudo inunda,
Mesmo se o
passo denodado ali se estuga.
Mas serão
pegos contornáveis se se apoiam
Num sexo
alegre em que felizes lares boiam.
1390 – Constrição
No sexo
constrição, no desempenho ansioso,
Nervosismo
assustado, evocações temíveis,
- São
disfunções sexuais onde se perde o gozo.
Porém, mais
largamente, o que às imagens coso
É mais o
antagonismo às mais vitais, credíveis,
Aparições da
vida a fluir leve, a gosto.
Não é o
equivalente a resistir, ignaro,
À vontade
divina do que me é imposto
Sem um aviso
prévio nem nenhum preparo?
Deus na
sexualidade mora e acaso pode
Este ser o
motivo pelo qual encaro
Ir refreá-lo
assim e a tentativa acode.
É que
vitalidade sendo Deus, presente
No sexo há-de
aflorar mais que no mais da gente.
1391 – Oração
A oração é uma
maneira
De ultrapassar
os limites
De que o
secular se abeira,
Que o
pensamento entrincheira
Num mundo sem
mais palpites
Na estreiteza
circunscrito.
Intelectual
sacrifício,
Da ilusão lá
me desquito
De
autoconfiante exercício.
E alongo para
o infindo
De outrem a
busca, de ofício,
De mim para
além vou indo.
De mim aumenta
o sentido
E do mundo a
mim unido.
1392 – Reze
Quer que eu
reze sempre o santo,
Que da graça
ande consciente
Que tudo
penetra, tanto
O instante
como o recanto,
Água no lago
jacente.
Não há mais
nada a fazer
Que ficar
dentro do lago,
No seio
infindo do Ser,
Da brisa leve
ao afago.
Respiramos
como peixes
Nos nutrientes
que houver
Lá dentro em
naturais feixes.
Graça aparte
nunca a viste:
- Satura tudo
o que existe.
1393 – Orar
Orar torna-nos
sagrados,
Alimenta a
consciência
De vivermos em
dois lados,
O mundo onde
vejo os dados,
Com controlo
de experiência,
E o da
intemporalidade,
Do mistério
que transcende
A nossa
capacidade,
Que a sonho
apenas rescende,
Mantendo entre
eles ligados
Os dois
mundos, de orar pende
Ao que é santo
dar cuidados.
Orar já
executa o fim,
O eterno
entremostra assim.
1394 – Rejeitar
É viável ver
diferente,
Rejeitar mitos
cientistas
Como ecrã
eficiente,
Único
pretensamente
A captar do
mundo as vistas.
Os poros da
percepção
Se escancarar,
porta aberta,
Mais mil
mundos se abrirão
Que os dos
olhos descoberta:
Discirno do
mundo o belo,
A presença em
relação
A nós, com
todo o desvelo.
Há nele a
centelha, um olho
Que me observa
enquanto escolho.
1395 – Certos
É mui fácil
aprender
Com certos em
certos casos,
E difícil se
qualquer
Das
conjunturas que houver
Se alterar
fruto de acasos.
É que o ensino
acontece,
Actuação
criativa,
Quando há musa
que o aquece,
Semente a
germinar viva.
Algo então ali
o início,
Em gesta
profunda e esquiva,
Tem a partir
dum resquício:
De mestre e
aluno em escorço
Galvaniza
intuito e esforço.
1396 – Mister
Os
especializados
Num mister às
vezes tentam,
Embora
desesperados,
Ensinar, mesmo
falhados
Redondamente,
o que inventam.
Não falta o
conhecimento
Nem mesmo a
capacidade.
Falta espírito
no intento,
Da magia a
novidade,
Extrair a
fantasia
Com a paixão
que então há-de
Algo ensinar
algum dia.
- Todo o
ensino, espiritual,
É iniciação
ritual.
1397 – Lição
Ao que vem
para aprender
Diz o mestre:
“um tempo fique”.
Quando o tempo
se estender
Por anos, sem
nada haver,
O aluno, sem
que lho explique,
Uma lição
aprendeu
Que não
cuidara à partida:
O que dever
saber creu
Nada importa,
de seguida.
E aquilo que,
finalmente,
Aprende, em
boa medida,
Rejeitou-o
antigamente.
- A vera
sabedoria
É do outro
lado da via.
1398 – Amargo
O bom mestre
aprofundou
Tanto, tanto,
o saber dele,
Que, amargo, o
que constatou
Honesto, após
todo o voo,
É nada saber,
imbele.
Falam da
incapacidade
Para falar e
ensinar,
A cruel
opacidade
Do que de
comunicar
Impossível é
de vez.
Podem bem
mesmo encontrar
Métodos para o
entremez
Do saber
além-saber:
- Só estranhos
vão parecer.
1399 – Parteira
Não dá uma
parteira à luz,
Assiste
apenas, prestável.
Aos factos não
se reduz
O bom mestre
que traduz
Doutrem o
parto admirável.
Muitos
espirituais
Transmitem
saber correcto,
Baseado nos
sinais
De qualquer
fonte em concreto.
Porém, a
melhor maneira
É ajudar muito
discreto
Cada qual em
sua jeira.
Por muito que
em nós se esquive,
De nós ao
fundo Deus vive.
1400 – Ajuda
Só pode
ensinar alguém
Quem for mesmo
como um tolo,
Se a
transmitir nada tem,
Se à
descoberta que advém
Como ajuda der
o colo.
O professor
não é nada
E, mesmo
aquilo que ensina,
Mal o aluno
der entrada,
É o nada que
este ilumina.
O dia de achar
um mestre
De abandoná-lo
é o da sina,
Não vá ser que
outrem amestre:
Outrem vai ter
de acordar,
Não quanto
acordou mostrar.
1401 – Igreja
Na melhor das
circunstâncias
Uma igreja
será o meio
De inspirar,
orientar ânsias
De retornar às
infâncias,
Do espírito
fundo anseio,
Tanto para os
membros dela
Como aberto ao
mundo inteiro.
Oferta ritos,
modela
A visão, é um
conselheiro
Como um local
de oração,
Do
transcendente pioneiro…
Mas isto elas
jamais são,
Da igreja o
facto é um eunuco:
- Quanto
ritual caduco!
1402 – Liga
Ao mesmo
tempo, uma igreja
É sempre
humana e divina,
Liga ao eterno
que almeja,
O inefável que
viceja
Aonde o
coração se inclina,
E às antigas,
más tendências,
Nervosa
autoprotecção,
Frases feitas
de evidências
Onde mora a
escuridão.
O mais
importante é ver
Com nossa
própria visão,
Entre a
imperfeição que houver,
Com fantasia
instruída,
- A margem
outra escondida.
1403 – Poder
Quando das
gentes o poder se libertar
Uma torrente
vai jorrar para o ribeiro,
Vitalidade
imensurável do lugar.
De controlar
será difícil, de formar,
Inesperada que
vai ser bem por inteiro.
Sentem-se os
líderes tentados a sanções,
Regras demais
que uma ansiedade irreprimida
Neles então
assim trair vem, envolvida
No vão receio
dum ignoto em turbilhões.
Porém se os
líderes acaso ao fundo foram,
Aprenderiam a
fiar dos furacões
Da vital
força, como a guiar os que a edulcoram.
Reprimir mata
o mundo inteiro: incita as gentes
Alternativas a
buscar que andem virentes.
1404 – Vazia
A religiosa
visão
É vazia no
sentido
Profundo do
sacro chão
E as igrejas
poderão
Vir a ser
vácuo intuído.
Poderão ter
forma externa,
Doutrinas e
tradição,
Hierarquia
superna,
- Mas, tudo
poroso e vão,
Não seriam
carcereiras
Nem rígidas no
que dão.
Eram da vida
parceiras
E em laços nos
ataríamos
Ao mistério
que lá víamos.
1405 – Ligamo-nos
Ligamo-nos na
vida religiosa à fonte
Da existência,
às origens viscerais do tempo.
Ao mito mais
profundo estenderei a ponte,
Aos arquétipos
mágicos dos quais desponte
A vida e então
vivemos, sem mais contratempo,
A partir dum
lugar das profundezas quente,
Com o eterno
envolvido e o temporal instável.
Com a religião
funda então serei corrente
De pensamento,
imagem, de emoção fiável,
De nossas
profundezeas borbotando eternas.
Por isto a
religião, neste meu solo arável,
Mergulhando as
raízes em funduras ternas,
Finda
estruturalmente sendo matriz viva
E é curativa
força sumamente activa.
1406 – Prospera
Prospera a
religião quando os mentores dela
Inspiradoras
mostram perspectivas finas,
Como
interpretações da conjuntura em tela
Mui ricas de
sentido em perspicaz sequela,
Se
verdadeiramente a desminar as minas
Que a vida nos
coloca nos ajudam lestos,
A lidar
responsáveis com a morte, enfim,
Acaso
esperançosos com da vida aprestos,
A conseguir o
amor, de qualquer sonho o fim.
Também quando
admirar nós os podemos, santos,
Como eles ser
um dia desejar assim,
Naquela vida
acima de alegria e prantos.
Sem mais o que
estipulam com terror seguir
Nem por mera
revolta os recusar ouvir.
1407 – Tempo
Na vida duma
igreja, tal de alguém na vida,
Numa
organização, na história, um tempo existe,
Até dum
indivíduo na vivência havida,
Hora em que
autoridade e regras vão, na lida,
Para o lixo e
o vital é o que afinal persiste.
Logo após o
que ocorre é o refinar atento
Tanto da
religião como do que eu aliste
Como
prioridades em que o dia assento,
Mais poesia
que dogma faz que enfim registe.
Competição,
defesa murcham lentas, vagas,
Desaparecem
mesmo ante o luar que viste
A despontar
além, oriundo doutras plagas.
As profundezas
veras se revelam fundas
Da espiritual
visão com que as, total, fecundas.
1408 – Eclipsa
Um espírito
sozinho
Anda apenas se
importando
Com
hierarquias, mesquinho,
Ordens,
regras, comezinho,
Tradições que,
relevando,
Lhe aumentam o
narcisismo:
“Preciso de
tempo e espaço,
As crianças
são o abismo
Onde o
espírito deslaço.”
Quando uma
comunidade
Alma prende
num abraço,
Inverte a
prioridade:
- Eclipsa as
regras então
Em nome da
comunhão.
1409 – Caras
Duas as caras
serão
As que a
autoridade tem,
Corre em dupla
direcção:
Ora para
dar-me a mão,
Ora a impor-me
o que convém.
Tem privilégio
e prazer
De outrem
servir à medida
Que se
expandir em seu ser,
Dá-lhe rumo,
fibra erguida.
Há, porém,
quem não respeite
A carência que
é sentida
E a libertar
não se ajeite.
Resta o dogma,
a instituição:
É o sadismo e
a sujeição.
1410 – Visão
Beleza,
comunidade,
Toda a visão
interior,
Amor,
criatividade
Que busco em
minha verdade
Incitam-me com
vigor.
Retiram-me cá
de dentro
E fazem-me
entrar no mundo
E, quando lá
fora eu entro,
Doutro que não
eu me inundo.
Mas, quando
fora de mim
Tudo me
exalta, jucundo,
É que me
apercebo, enfim,
Que só quando
de mim vou
Me descubro no
que sou.
1411 – Eterno
De eterno esta
qualidade
Que há nas
coisas mais vulgares
Permite que a
eternidade
Almas gozem de
verdade
Em momentos
singulares,
No tempo de
cada dia.
Os objectos
são sagrados
E quem tal os
não veria
No diabo os vê
transmudados.
O mundo ou são
sacramentos
Ou fetiches:
consagrados
Ou do diabo
instrumentos.
Toda a
diferença, então,
É apenas
religião.
1412 – Mesmo
À medida que
envelheço
Sou o mesmo
que em criança,
Toda a vida me
pareço,
Me rodeio do
que meço,
Do tempo o
curso me entrança.
Reparo que as
decisões
Vêm dum lugar
tão fundo
Que em cada
instante os guiões
São mais que a
raia do mundo.
O eterno um
papel constante
Desempenha,
então, fecundo,
Por meu cotio
adiante.
Não forço a
necessidade
De ver a
imortalidade.
1413 – Através
Se eu sinto a
vida passar
Através de
mim, em vez
De por mim
sempre iniciar,
Mais a tendo a
venerar,
Mar a entrar
em meu convés.
O mesmo tipo
de vida
Poderei
apreciar
Através
doutrem, fluída,
Bem a
protegê-lo a par.
Entendo que
errem os mais
Quando a vida
vão buscar
Quase como
irracionais.
Transcendo o
eu, de empatia:
Morto em mim
dou Vida ao dia.
1414 – Atravessa
Se me julgo
transparente,
Que me
atravessa a energia,
Que oco e
vazio aparente
Sou no fundo
de meu ente,
E que a
riqueza me enchia
Da Vida que
não possuo,
Nem dirijo ou
compreendo,
A morte em que
eu evoluo
Estranha então
não vai sendo
E mesmo a
imortalidade
Familiar a vou
vendo.
É do santo a
identidade:
- Aqui neste
corpo a vida
Vivo de Eterno
envolvida.
1415 – Fim
Não há fim
para a viagem
Neste rumo à
eternidade.
Quão mais
perto na triagem,
Mais longe aos
que se encoragem
Parece na
realidade.
Ao ritmo da
descoberta
Vamos e do
esquecimento,
Do êxito que
nos desperta,
Da falha,
nosso tormento.
Se me entrego
inteiro à vida,
Às profundas
levo o intento
Do eterno que
me convida.
Poroso é o
cotio dado
De orifícios
de sagrado.
1416 – Tarefa
A nossa tarefa
não,
Não é procurar
um fim,
Mas sim vê-lo
aqui no chão,
Morte e eterno
sempre à mão
Em tudo o que
agir por mim.
Este tipo de
visão
Tem pendor
espiritual,
Toque de
religião:
Li de vez um
manual,
É tinta sobre
papel,
Quando reparo,
afinal,
(Se o mais
fundo vejo nele)
Que é bem mais
uma janela,
- O Infinito me revela.