PRIMEIRO VERSO
HORIZONTE DE AMOR É O QUE SEREMOS
Escolha um número aleatório entre 1 e 109 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 – Horizonte
Horizonte de amor é o que seremos
Quando o que somos pesquisarmos perto,
Horizonte em devir ao porvir certo,
Nós que nunca o atingimos nos extremos.
Em passos de amor pobre no deserto
Acertamos as vozes que sonhemos,
Em nome das lonjuras nós viemos
Doendo da pegada o calo experto.
Em verso incerto trocaremos lemas
Até o compasso se acertar de vez
E cada qual viver do todo os temas.
Então, ritmando unidos o entremez,
Transporemos sarcasmos e ironias
E riremos inteiras alegrias.
2 – Horizonte de amor é o que seremos
Horizonte de amor é o que seremos
Em poemas de compasso desgarrado
Até que no passo trocado
Nos encontremos.
No presente, a pegada, em todo o lado,
Revela sempre quanto desviemos
Ao canto dos demos
Que nos hajam encantado.
Porém a rota nos mantém a luz
Desta lareira a acalentar serões
Da eterna ceia que nos mais seduz,
Por onde ao colo exorcizei papões
E encontrei, no repouso convivido,
Minha cósmica fonte de sentido.
3 – Rumo
A alegria
Tem um rumo.
Perde o sumo
Se se perde em fantasia.
O trabalho
Mediria
Cada dia
O valor de quanto valho.
O sonho
Traça a rota do destino:
Só quando a caminho me ponho
É que com o sonho me combino.
4 – Sorte
Podes desistir e acusar
O mundo de te privar
Duma vida em condições,
Por ter-te cabido em sorte
Sorte que não têm milhões.
Bem melhor seria teu porte
Se tua incapacidade
A encarasses como um dom
Que, se tua vida invade,
Aos mais, normais, recusa o condão.
Erguer-se não vão poder
Por sobre o mal que em ti vige,
Não irão desenvolver
A força que tal te exige.
Poderás ser bem melhor
Que os normais a que vens te contrapor.
5 – Coragem
Os homens não seguem títulos,
Mas a coragem:
São dela os capítulos
Da viagem.
Esta é a verdade
Em primeira mão:
- Condu-los à liberdade,
Seguir-te-ão!
6 – Força
A cura do mal,
Da injustiça, do cuidado,
É a força vital
Que, divina, em todo o lado
Produz e renova a vida,
Dos desgostos e do crime
Nos redime.
Com que lida
É o amor a que convida.
7 – Cariz
Olha bem qual teu cariz,
Vê-o:
- Se queres ser feliz,
Não olhes ao que se diz,
Sê-o!
8 – Carência
Como se luxo e conforto
Foram requisito-mor
Da vida a que me transporto!
Quando a carência maior
Para um homem ser feliz
Não é nada que nos pasme:
- É um sonho que, de raiz,
Me entusiasme!
9 – Feliz
Há quem creia ser feliz
Por possuir e comprar,
Por dos outros ser servido.
Ser feliz de raiz
É dar
E ter outrem no sentido.
10 – Valor
Dá, sobretudo, valor,
Porque irá sobreviver
Ao amor
Que recebes de quenquer.
Muito depois de teu oiro,
De tua saúde haver
Ficado, resta o tesoiro:
O que te traz bom agoiro
É o que irá prevalecer.
11 – Segredo
A vida tem um segredo
Que convida
De vez a findar-lhe o medo
E a viver a vida às boas:
O segredo da vida
É fazer rir as pessoas.
12 – Olhar
Ante o olhar extasiado,
Assustadiça, pensou:
“Não sou
A tua Jerusalém,
Nem teu deus ressuscitado.
Teu olhar, porém,
É o olhar dos peregrinos
Quando ao longe os encanta
A visão da Cidade Santa:
- Dentro em ti repicam sinos!”
13 – Fim
É o fim
Quando a fornalha do pensamento,
Enfim,
Apague e arrefeça.
O fermento,
Embora ruir pareça,
Ainda é o alimento
De algumas dezenas de formigas
Que mordiscam a carcaça
Da aranha entre os escombros.
Destas nas frágeis ligas
Perpassa
Aos humildes ombros
Dum novo mundo toda a graça.
14 – Janela
A vida: janela
Fechada
E cá dentro só cuidado…
- Como é que a verdadeira estrada
Pode ser aquela
Que não vai dar a nenhum lado?
15 – Deus
Deus não é credível,
Não o vejo…
- É meu desejo inexprimível,
O inexprimível do desejo.
Ter fé em Deus,
No fim,
É, como nos ateus,
Ter fé em mim.
É isto:
Ou tenho fim
Ou é o meu fim.
Afinal, Cristo
É o facto de que existo.
Ter
Fé
Não é:
- É Ser!
16 – Faz
Que importa o que um homem diz
Da sua fé?
O que importa é
O que tal fé faz daquele homem.
Ou condiz
Com os sonhos que o consomem
Ou ele e ela se somem
De raiz.
17 – Um
No amor que se dá
Não há dois, mas um.
Pelo amor um homem devirá
Naquilo que ama:
Não há mais homem algum.
No coração acama,
Dele próprio em lugar,
Todos os amores que forem seus.
Quando o homem Deus amar
Torna-se Deus!
18 – Nunca
Deus fora de nós,
Não!
Nunca agirá Deus a sós,
Se não lhe emprestas a mão.
A palavra de Deus está
No Livro onde ele a coloca?
- Deus jamais nos falará
Se não lhe emprestas tua boca!
19 – Ateísmo
O não do ateísmo
É o dum antropocentrismo.
Tudo aquilo que eu disser
Da História, Deus, Natureza
É dum homem o dizer
E de seu ângulo presa.
Relativo, provisório,
Intrínseco inacabado,
Vive um homem o ilusório
Confundindo o sonho e o dado.
A pretensão
É o produto
De quem vive a confusão
De relativo e absoluto.
O ateísmo então impede,
Em seu gaguejar estrídulo,
Que um metro com o que mede,
Que um ícone com um ídolo,
Alguém confunda algum dia:
Sinal com realidade
Ninguém então trocaria,
Seja conceito, amuleto,
Ou cruciifixo o que invade
A crença de nosso tecto.
O ateísmo tem razão
Em rejeitar este deus
De imagens e de palavras:
Porque é sempre a tentação
De o retraçar com os meus
Terrenos ferros das lavras.
O deus das religiões
É um deus a ser recusado,
Primeiro passo bem dado
Da fé para quaisquer revelações.
De Deus sempre o que afirmámos
À imagem deste homem foi
E eis porque nos enganámos:
Tudo é de homem, só não dói.
Mas a pura transcendência
Sem ter nada de imanente,
Exterior, é mera ausência,
Não tem coração nem mente.
Ora, o ateísmo
Elimina o dualismo:
Não mais objecto e sujeito,
Corpo e alma, crença e peito,
O espírito e a matéria,
Ciência e fé nos sonhos meus,
Nenhum muro é coisa séria,
Nem entre o homem e Deus.
O risco
Que a prevenir eu me exorto,
Não me vá levar a palma,
É evitar isto:
- Que a uma alma sem corpo
Suceda um corpo sem alma.
20 – Ressuscitar
Ressuscitar é todos os dias:
É o despertar,
Tomar consciência da presença inefável dos possíveis.
Encarnar é todos os dias:
Deus devagar
A misturar-se na vida do homem, ambos indivisíveis.
21 – Acto
Deus não é um ser,
É um acto.
Acto cujo acontecer
Me revela grande demais
Para me poder contentar, pacato,
Com o que até agora fui, sem mais.
Deus é tentar ir, de quando em quando,
Em Deus me tornando.
22 – Degraus
Saber experimental
É descoberta de meios,
A sabedoria procura fins.
O ideal
De que caminhamos cheios
Tem de trepar aos altos patins,
Do fim subalterno
Ao intermédio,
Deste ao mais nédio,
Até ao superno.
Os degraus da escadaria
O saber os põe aos pés
Da sabedoria
Até um dia seres o que és!
23 – Sacrifício
Ser um e dois,
Como dum íman os pólos,
Uma estrela de dois sóis,
Sinfonia com dois solos…
O sacrifício é o que há
De mais humano no amor:
Ser prazer o que se dá
À custa da própria dor,
A alegria pura e nua
Doutrem preferir à sua,
Até mesmo a própria vida
De outrem ser a preferida.
Noutrem me perco e renovo:
Nele é que nasço de novo.
Por todo o lado
Começo a ser:
A ser um ressuscitado.
E a ressurreição pode-se ver!
24 – Xisto
“Penso, logo existo”,
Como se eu não existira
Antes de pensar!
Como se o bloco de xisto
Na montanha não cumprira
Eras fora o seu lugar!
Amamos, logo existimos:
Em ti eu existo
- Eis a lei dos cimos
Quando de humano me revisto.
Esta é a lei única e primeira
Da vida verdadeira.
25 – Morta
Permanece morta
A vida de quem não ama.
A primeira porta
Para sair do caixão
Vai-nos ser a que reclama
Que me entregue com paixão
Ao amor de quem amar.
Cria a reciprocidade,
Nova forma de permuta,
Não a deste lupanar
Da compra e venda que invade
Toda a vida prostituta.
Do dom e do sacrifício
A que o amor persuade
É que aflora o benefício,
Discreto por trás do pano,
De tornar o homem humano.
26 – Pueril
O pueril amor da aldeia natal,
Sincero e único, inconvencional,
Eterno, eterno chama…
É que, ao amá-la assim,
Cada qual a si próprio se ama:
- Amo-me nela a mim!
27 – Fome
Finda a colheita,
Torna o camponês à fome.
À fome atreita
A barriga que não come,
Enquanto o tutano não suga,
Ao homem dá mais energias
Do que a fuga
Dos banquetes e orgias:
Um fósforo risco
E logo ele é uma fogueira,
Lanço de semente um cisco,
Sai-me uma árvore altaneira…
- Foi sempre a fome
Que me obrigou a que nas mãos o mundo tome.
28 – Cheias
As côdeas repartidas
Por força das ideias,
Solidárias pobres vidas
Entre tantos divididas
Por mor dos sonhos, por fantasias…
- Que mãos vazias
Tão cheias!
29 – Fogo
A doença o que requer
É o que a depura:
Só o amor pode acender
O fogo que cura.
Não é só o remédio, não.
- Vale mais o coração:
Depende muito do que ele apure
Que a mezinha cure ou não cure.
30 – Rezo
Não rezo por um motivo,
Lembro só que não estou sozinho:
O ilimitado revivo
Que eu sou no fundo, adivinho.
A minha parte infinita
Pelo tempo e pelo espaço
É o que a oração concita
E após
O Universo inteiro abraço:
Não estamos sós,
Não sou eu, nem tu, nem eles - somos Nós!
31 – Importante
O importante
Não é S. Bento ou Belém,
Lisboa, Paris, Jerusalém,
Nem atrás quem vai ou adiante.
Importante é a laranjeira
Acolá, longe da estrada,
A dar sombra na ribeira,
A florir desenganada,
De perfume embriagada,
Toda coberta de abelhas
Na indiferença cimeira
De quem do condão é a fada
Que renova as lendas velhas.
32 – Corpo
Se Deus um corpo me deu
É de usá-lo, usá-lo bem.
Para quê poupar o meu
Se a terra o come no tempo que vem?
A inteligência de alguém
Não reside na cabeça
Mas no corpo que ele tem.
O corpo sabe o que quer,
Intui-o bem e depressa.
O que importa é aprender
Com atenção e coragem
Do corpo a secreta linguagem.
Depois é só abrir-se-lhe quenquer
E tratar de ser feliz
Neste corpo que Deus quis.
33 – Visão
Ter do mundo uma visão
Que é uma visão de engenheiro:
Da natureza a função
É de usá-la por inteiro,
Domesticá-la
Em nosso benefício.
E condenar, por desperdício,
Querer fruí-la, contemplá-la.
Sem ver quanto a benesse
Material
Arrefece
Ante o gozo principal:
O portal
Do infinito
Que das coisas pressinto
Por trás do silente grito.
Colheria daqui o fruto:
Deviriam as coisas o meu plinto
Para o absoluto.
34 – Projecto
Viver para quê?
Para quê continuar?
Para manter de pé
O projecto vivo deste lugar:
Os mortos não podem amar,
Os mortos não podem odiar…
O gozo que dá
Ver os vivos em busca de sentido,
De cá para lá, de lá para cá,
Como se de vez o houveram perdido!
- Como se alguma vez o houveram vivido!
35 – Incapaz
Incapaz de amar a Deus
É apenas ser incapaz
Para amar as criaturas.
Pois Deus existe nos seus,
Nas pegadas do que faz,
Em infinitas figuras.
Não é conceito
A que presto preito.
É ser
Que não se esquiva,
Que, ao eu me viver,
Me viva.
36 – Inferno
Bem pouca coisa no mundo externo
E em nossa interioridade
Se esconde ao homem cuja vontade
Se aplique a desvendar o céu ou o inferno.
Mistério
É apenas falta de alma.
A chave quer a paciência
Calma
Deste critério:
O fio condutor da persistência.
37 – Ceitil
É um olhar de mulher,
Uma simpatia infantil
Que indicam, gratuitos, a quenquer
Que nele existe ao menos um ceitil,
Em qualquer lado
De algo digno de se amar
Ao menos um bocado,
Mesmo que tenha de se ver bem devagar.
38 – Labirinto
Juntos vagueamos
No labirinto do mal
E a cada passo tropeçamos
Das culpas no tremedal.
Enchemos nosso caminho
De pequeninas batotas.
Só o perdão, devagarinho,
Nos diminui as derrotas.
Temos esse privilégio
De súbditos contrafeitos:
Mudamos nossos defeitos,
Por perdão, em ganho régio.
39 – Distinções
Distinções claras
Entre o homem e Deus?
Se bem reparas,
O que é superior ao homem
É aquilo que tu e os teus
Um dia, por fim, somem.
Deus, que não tem nenhum lugar,
É aquilo em que um dia o Homem se há-de tornar.
40 – Amanhã
Ninguém sabe desde já
O que amanhã trará.
Quando chegar,
Podem as coisas mudar para melhor,
Que um raio de sol brilha no lar,
Súbito, por entre a chuva,
E traz o calor
Que um copo tem, no Verão,
De sumo de uva,
Mesmo se o Inverno gela o chão.
De repente,
Inesperado,
Tudo pode ser diferente,
Em todo o lado.
41 – Sós
Se podemos viver sós
Por quê tanto
Grito, pranto,
Sofrimentos, dós,
Pelo mundo em cada canto?
Aqueles que se lamentam,
Aqueles que choram
Procuram algo, procuram alguém:
Procuram os que inventam
Os caminhos que demoram,
- Procuram Além.
Procuram aquilo, aquele que traz,
De vez, paz.
Ingloriamente, porém:
É o eterno ausente…
- Mas que eternamente vem,
Eternamente!
A aflorar em cada dia
Como o sopro que me cria.
Ser de meu ser, de que sou mero ente
Inconsistente,
Vagamente,
À procura de mim
Sempre, sempre, até ao fim.
42 – Degrau
Tornar-me-ei um degrau
No lodo da vida.
Em breve outro sonhador cruza o vau,
Porá o pé no degrau que sou
E se tronará no degrau de seguida.
E assim é que por ele vou,
Na exacta medida
Em que firme aqui estou.
- Então é que sou!
43 – Obcecado
Um artista é um obcecado
Por recriar o mundo,
Para restaurar em todo o lado
A inocência do homem.
O momento jucundo
Em que as raízes se retomem
É o da reconquista da liberdade.
E a morte do autómato em nós
É a voz
Que de vez nos persuade.
44 – Génio
O homem de génio proclama
Pelo exemplo e pela obra
A verdade a que se dobra:
- Cada qual é sua própria lei.
E o caminho em cuja trama
Encontrar-me poderei
É o de que todos e cada qual
São únicos por igual.
O reconhecimento
De ser único é o caminho.
- Nele, porém, adivinho,
Meu tormento.
45 – Peça
As nossas leis e costumes
Regem a vida em comum.
Do que este mais lado algum
Usa de tantos perfumes,
Só porque é o lado menor
Da existência:
Por um nada o bom odor
Devém pestilência.
A vida a sério começa
Quando a sós,
Quando desenterramos a peça
Ignota que existe em nós.
Quando me encontro com os mais,
O meu fronteiro-mor
Que as raias me embandeira de sinais
É o meu solilóquio interior.
Os eventos cruciais,
Deveras decisivos
Dos roteiros através dos tremedais
São, inelutavelmente são
Os frutos vivos
Do silêncio e da solidão.
46 – Apaixonado
O apaixonado é o só,
O sozinho por inteiro.
Da tristeza mói-o a mó
Doce e amarga que primeiro
Lhe foi dado conhecer.
É a fome que não tem pão,
O isolamento esmoler
Que precede a iniciação.
É do silêncio desta ilha
Que a vida inteira é filha.
47 – Perdermos
Enquanto nos não perdermos
Como nos vamos encontrar?
Ao mundo por pertencermos
É que importa nele entrar
E fundo nele cavar,
Encobertos em seus termos.
É perdido nestes ermos,
Sem mais glória nem labéu,
Que o fio retomo eterno
Do caminho para o céu
Que cruza aqui pelo inferno.
Nas convulsões deste mar
Do segredo me avizinho:
- De pouco importa o caminho,
O que importa é caminhar.
48 – Descobrimos
Descobrimos meios de comunicação,
Mas comunicaremos?
Deslocamos os corpos em toda a direcção,
Mas será que nos movemos?
De facto, não há saída
Do ponto de partida.
Mental, moral, espiritualmente
Vivemos acorrentados:
- Dentro de nós quem pressente
Quantos mundos moram fechados?
49 – Face
Alterar da Terra a face
Até irreconhecível devir
Ao Criador que a trace,
Que sentido, que porvir
Inaugurará
Se não der voz
Ao que nos transforme desde já
A todos nós
Em todos nós?
50 – Morada
O mundo é a minha morada,
Tenho ainda de a ocupar.
Eis a mulher que amo, em minha entrada,
E não sei qual nosso lar.
O atalho em minhas pegadas
E eu sem reconhecer
Nas vertentes caminhadas
Meu rumo de vir a ser.
Afinal, quanto lugar
Haverá, ilimitado,
Por explorar
Em meu fado?
51 – Despertar
Do despertar completo e sem par
Nada obtive, nada.
Por isso é um despertar completo e sem par,
Por mais nada.
Contudo,
Como é que um nada é tudo?
Como é que, no meio,
De tão cheio
Fico mudo?
52 – Solidão
Na solidão
Os que se perdem vão
Ter à beira de água.
Um sonho de amor
Quem não tem a quem propor
Demora à beira de água.
Do amor na ausência
Quem morre na demência
Mergulha à beira de água.
De noite,
No estertor da agonia,
O aflito onde se acoite
Só no marulho das ondas encontraria.
Quando o espírito vazio
Pena,
Na cachoeira do rio
Serena.
Com as águas rolando,
Qualquer alma atormentada
Abre as asas um nada
E sai voando!
- Assim vou,
Assim sou
E, meu Deus, como assim ando!
53 – Factos
Os factos não são nada.
Por trás tem de estar o homem
E, por dentro dele, a estrada
Onde se encontra com Deus.
Nela os factos se consomem,
Dispersos nos vastos céus.
Então terei de falar
Do que é o inegável gozo,
Cá neste tempo e lugar,
De me andar a germinar
Como o Todo-Poderoso.
54 – Pistas
Nem evangelistas
Nem profetas
Superam as pistas
Que acometas,
Nem deles mais longínquo é o lugar
Que aquele em que te podes transmudar.
A suprema virtude
É de ti a tua imposição
Ao fado que não te ilude,
Por mais que mude:
- Abre de vez teu portão,
Que entrará por ele o grito
Do infinito!
55 – Artista
O artista retalha a bisturi
As formas mortas,
Para tornar a desobstruir em si
As mágicas portas
Do desvão:
- A eterna fonte da criação!
56 – Fuga
Começa a obra por ser fuga,
Refúgio do terror da realidade.
Depois, enquanto o artista subjuga,
Recondu-lo à terra da verdade.
Não o adapta ao que o rodeia,
Dá-lhe o poder de o recriar,
Já que o alteia
Por cima de todo o patamar.
Não era da vida que fugia
Mas dele próprio, o artista.
E o que de insuportável sentia
Era mera projecção da fantasia
Para além do que dentro dele exista.
É a vida nova de agora também
Projecção,
Mas doravante contém
O poder vivido da criação:
As fantasias
Não mais escorrem da dissociação,
Talham da personalidade as vias,
Operam-lhe a integração.
O passado inteiro
Reequilibra a balança
E o que de estável alcança
De antiga dor sofrida é sempre herdeiro.
Culmina o autor na dança
De ser do mundo parceiro
No sonho que jamais cansa.
57 – Gaiola
A girar interminável
No interior duma gaiola,
Cria o autor o fresco a que se imola
Por uma conclusão jamais fiável.
Mas a intérmina rotação,
Noite e dia, noite e dia,
Arranca o sofredor à obsessão
Com tal centrífuga força
Que o liberta para a alegria
Da vida: a tanto orça
A grande corrente
Universal
A que cada qual
É pertinente,
Para o bem e para o mal.
58 – Deveras
Usa o sonho seduzir-nos,
Fecundo.
A ponto de termos de prevenir-nos:
- Deveremos conduzir-nos
Como deveras do mundo!
59 – Mundo
Quem tenha assistido à criação dum mundo,
Quem um mundo tiver criado,
Vê que dele o bem mais fundo
É que tem um limite bem traçado.
Começo por me perder,
Antes de me descobrir
Num mundo que, para ser,
Se há-de, preciso, definir.
Então é que, de verdade,
Quando à firme plataforma
Meu pé se conforma,
Me permite a liberdade.
60 – Espírito
Quando o espírito habita um lugar
Identifica-se tanto com ele
Que o natural e o divino se fundem no ar
Como a carne e a pele.
Da terra que geram
Assim os espíritos humanos se apoderam.
61 – Escada
A paciência
Do filósofo é a escada
Para a sabedoria e a ciência.
A humildade é a portada
Escondida, discreta, no confim,
Que deita para o jardim.
Aqui ando buscando a pegada
De mim.
62 – Casamento
É feliz o casamento
Se ambos lavram no que querem
E mais quer envolvimento
Em comum no que preferem,
Malhas de interligação
Em teias de interacção.
Não basta deixar existir,
Algo terão de juntos ser.
Um caminho qualquer
Por onde ambos possam ir,
De mãos dadas, a correr.
63 – Torrente
Nossa vida não é nossa,
A nossa é a vida dos mais
E a torrente com que engrossa
Tem da ternura os sinais.
O resto
Que pise ou não pise na estrada,
Para o que presto
Não vale nada.
64 – Pardal
A mulher inunda o lar
Da ternura com que o pardal
Aquece o ninho.
Dela a vida é alumiar
De carinho
Os filhos do vendaval:
Com ela é que aprendemos a voar.
65 – Ilusão
Mais justiça e mais pão
Para todos,
É um dos modos
Da ilusão.
Sonhos meus:
- Um bocado mais de Deus
Para todos,
Já que nunca há Deus a rodos.
66 – Fora
Há muito mais gente fora
Que dentro de qualquer igreja:
O pastor dorme, demora,
Os cães bulham de mútua inveja…
As ovelhas,
Entregues à própria iniciativa,
Escapam das veredas velhas
À procura de água viva,
Onde haja sombras mais frescas
E pastagem mais viçosa.
Esta fé secular é que hoje goza
De milagrosas pescas
Cujo derradeiro Autor
Normalmente nem sequer ousa supor.
67 – Pus
Nunca digas que Buda Gautama
É um homem sábio e grande como Jesus,
Que logo em teu redor se derrama
O pus.
Deves acarinhar tal pensamento
Fertilizando o chão
No teu mais íntimo elemento:
No coração.
Em teu jardim secreto
Acolhe apenas quem à entrada te respeite o veto.
Quanto ao mais,
Com teus melhores modos
Avança com todos
- E aguarda os sinais.
68 – Larvas
Planos loucos,
Aspirações parvas,
Os deuses dão aos homens aos poucos
Tais larvas,
Até germinarem ideias divertidas:
E os grandes cometimentos
Enchem-nos as vidas
E enchem-nos de tormentos.
É o preço
Por que rasgamos avenidas,
Começo
De todas as idas.
69 – Porta
Quando um homem berra e barafusta
É a persuadir-se de que não é cobarde,
Quando faz de muito mau é que lhe custa
A bondade em que arde.
Por trás da máscara da aparência
O que importa
É descobrir-lhe a inocência
- E abrir a porta!
70 – Templo
O grande Buda não construiu nenhum templo,
Meditou à sombra da figueira
E vagabundeou sem terra nem lar.
Cristo seguiu-lhe o exemplo,
Sem eira nem beira,
Nem uma pedra tinha onde a cabeça repousar.
Ambos sabiam o que o templo faria
Às aspirações
Que o Homem deporia
Nas religiões.
Por isso Cristo diria
Que tempo viria
Em que nem nos vossos templos nem nos meus
Se prestará culto a Deus.
É que o único lugar
Para a função
De um espírito encontrar,
Não é a ara dum altar,
É o altar do coração:
E o coração talha o lar
De quenquer sem sagração,
A viver do próprio ar,
Não vai ocupar espaço
Nem do encontro deixar traço.
Tempo virá
Em que deveras
Deus se incarne desde já.
E acabarão das religiões as eras.
E acabarão as esperas.
E, um passo mais, a esperança
Então, enfim, nos alcança.
71 – Inverno
Que bom ouvir o Inverno
A uivar pelas esquinas,
O granizo a fustigar as janelas,
Quando a quem amar, terno,
Se tem alguém e divinas
São as horas em que as velas
Iluminam quem descansa
Na abrigada segurança!
72 – Cadeia
Deus morreu, o Homem morreu…
Não! O Homem ainda não existe!
Vamos tentar o que nunca existiu:
Não ser mais o elo da cadeia em que subsiste
De causas e efeitos ao infinito,
Mas o ser em nascimento
Que no primodial grito
Inaugura, momento a momento,
A medida
Jamais acontecida.
Sem tergiversação,
A rota traçada
Não tem outra opção:
A fé ou nada.
A única fé requerida
É ter esperança,
À partida:
É crer
No que o homem tem de fazer.
- Então o Homem alcança!
73 – Limiar
Se implantar
Um novo divino,
Redescobrir o limiar
Da transcendência,
Então atino:
Fico na iminência
Da ruptura com o passado e o presente,
Do abandono
Dum desenvolvimento assente
Num homem com dono
Donde o homem fica ausente.
Então a alternativa
É o que fará que eu viva.
74 – Revolução
Uma verdadeira revolução
Será para a Humanidade
O que numa conversão
Gera a nova individualidade:
A transformação
Dos fins e do sentido
Da História
E do que é nela vivido.
Raiz da nova memória
Que, no fundo,
Inaugura um novo mundo.
75 – Saber
Um pouco de saber,
O da ciência feita,
Ao dogmatismo conduz.
Um pouco mais de luz,
A da ciência em vias de se fazer,
Ao questionamento é atreita.
Um pouco mais ainda
E a científica invenção
Da poética criação
É tão parente
Que, advinda,
Conduz, eloquente,
À oração.
Ateu
Ou crente,
Quem o viveu
Viveu a universal comunhão:
A janela aberta para os céus
É o secular nome de Deus.
76 – Institucionalização
Do sonho
Na institucionalização
O que ponho
É sempre
Irremediavelmente
- Uma traição.
Ao instituir, limito.
Ora, no sonho,
O que ponho
- É o infinito.
77 – Contrário
O que a vida pretendia
É o contrário da entropia:
Criar uma esteira humana
A desafiar a sorte
Donde o que ao fim nos promana
É o cais vencer da morte.
Eis o começo
Da tragédia optimista
Da história da Humanidade.
E por aqui é que meço
Minha pista
De verdade.
78 – Vocação
A quantos o pensamento consomem,
A quantos bebem uma palavra qualquer,
A quantos na acção buscam o que é fecundo:
- A vocação de cada homem
É ser
Um salvador do mundo!
79 – Fiável
O homem é o responsável
Pelo Universo inteiro,
Com a fiável
Missão
De continuar, primeiro,
Da natureza a criação
E, depois, por sobre qualquer escória
Erigir, eminente, uma História.
80 – Trepa
Um deus meramente conhecido é um deus de treva,
Deus tem de ser amado.
O amor suplanta o conhecimento
E o agir a que leva,
Suplanta-o, por seu turno, em todo o lado.
Quem então trepar, elemento a elemento,
É o acúmen humano. E o maior
Nem mesmo o chega a supor.
Deus é assim:
Nem sei de mim!
E esta ausência de mim é que é o céu:
- Então sou eu!
81 – Dum
Deveras libertação
Dum apenas sem os mais,
Não!
Que não existe jamais,
Por maior que seja e bravo,
Um homem livre sozinho
No meio dum povo escravo.
Só com todos, pois, caminho.
O resto,
Quando isto ainda nem adivinho,
É mero apresto
Até que todos
Inventemos outros modos.
No fundo,
Meu lugar
É inventar
Deste aqui um novo mundo.
82 – Viagem
A sabedoria das sabedorias
É sempre um movimento do homem até Deus,
Apele-o deste nome ou doutras categorias,
Absoluto, incondicionado, infinito ou os céus.
As trilhas proféticas o rumo que tomem
É o movimento de Deus a interpelar o homem.
Não há medida comum nem passagem
Entre as rotas inversas desta viagem.
Apenas quando um homem se ensimesma
É que repara que a viagem é a mesma.
83 – Parábola
Não fala o Reino de Deus por conceitos,
Que só falam o que existe,
Por parábolas arroteia os estreitos
Sonhos do que jamais viste.
Não filósofo, mas poeta:
Não define mas designa,
Aponta a meta
Que destina.
O evento do dia-a-dia
Sugere, por analogia,
A realidade que o não é ainda.
A hora da análise não é vinda,
Que apenas analisa o que já é.
A parábola apela a pôr de pé,
Leva a acontecer:
- E o Reino começamo-lo a viver.
84 – Fora
Do homem o centro no homem não mora,
Mas fora.
Se teu irmão encontraste deveras
Encontraste teu Deus: por que esperas?
De amor esta relação,
Em universalização
Gradual,
É da História o sentido final.
Não temos outra glória:
Esta será nossa vitória.
85 – Cruz
A experiência de Deus morrer na cruz
Dos ídolos nos liberta
Da política, da riqueza, de quanto seduz
Em todas as alienações,
Do que nos aperta
Nas servidões:
- Se Deus pode morrer, que farão os papões!
A Cruz abriu a brecha,
Em primeira mão,
Onde o homem acende a mecha
Da libertação.
86 – Ressurreição
A fé na ressurreição
É a certeza indomável
Sobretudo
De que nenhuma derrota é irremediável.
Não poderei mais dizer: não,
Acabou tudo!
Se até a morte pode ser vencida,
Que bandeira não pode mais ser reerguida?
87 – Jornada
A História nunca fica terminada.
Doravante, porém, não é de causa a efeito
Que se opera a jornada,
Já que eu a tomo a peito.
Doravante é o lugar da passagem
Do possível ao real
E não acabo de empurrar nesta viagem
Do possível os limites, das fronteiras o fanal.
Meu possível não é apenas decorrente
Das tramóias do passado,
É muito mais o poder emergente
Do porvir que me chama em todo o lado.
88 – Horizonte
Do Reino o horizonte sem fim
Cada metamorfose emana
E combina.,
Tornando-nos, assim,
A vida dia a dia mais humana,
Quer dizer, divina.
89 – Profundeza
O conhecimento alegra o ser
Onde o ser se ganha a si,
Não num homem individual qualquer
Mas num universal que me erigi.
Pelo desapego do mundo e do Eu,
De todos os eus,
O sabor do divino atingiu,
É uma união com Deus.
Então, em toda a coisa,
Instaura e vive a profundeza onde repoisa.
90 – Diálogo
Diálogo de fés e de civilizações,
Não por eclectismo, não, por busca de plenitude.
Via real das mútuas fecundações,
Do enriquecimento comum da virtude:
Unir sem confundir, distinguir sem opor.
Que outra via de pé nos poderia
Algum dia
Repor?
91 – Lazer
Lazer da passividade,
Compensação
Vaga de vitalidade,
Evasão
De forças esmagadas pelo trabalho…
Tão pouco valho, tão pouco valho?!
Urgente é o lazer activo, criador
A celebrar a vida
Para além dum dia de labor.
Urgente é aquela cultura
Cujo consumo convida
A criar a alegria e a frescura,
A viver o poema,
A magia de gerar fotos e cinema,
A dança, o canto,
A pintura a eternizar o encanto…
- Um lazer
Que inaugura o acto de viver!
É urgente, é urgente,
Senão aquilo que valho apenas mente!
92 – Drama
Regressar à religião
É o disparate
De quem pela fé não
Combate.
Ressuscitar a fé,
Sim,
Que é o que em mim
Me pode eterno pôr de pé:
Tomar consciência
De que todo o drama
Provém de minha ausência,
Da lonjura de quem ama.
Da falta do acto criador
Por onde em tudo irrompe amor.
Se ali houvera estado
Como um homem inovador
O vácuo da miséria não fora engendrado,
Do ópio-deus dando a imagem de horror.
Se ali houvera estado
Como um homem inovador,
Jamais da sabedoria se houvera a ciência divorciado
Num cientismo corruptor.
Nem Deus se houvera tanto poluído
Num vago conceito, num mecânico inútil,
Que perdeu todo o sentido,
Feito um eterno devaneio fútil.
Quando, na rotina do Universo,
Eu preciso urgentemente
Da gargalhada irreverente
Dum verso!
93 – Invento
A presença do divino,
Quando a experimento,
Não é a dum ser ou conceito, mas dum hino
Donde irrompe quanto invento.
Deus não é um ser mas um acto,
Fonte a jorrar inesgotáveis possibilidades:
Deus é o manancial das liberdades
Que se vão concretizando facto a facto.
A liberdade precede o ser
Que não é mais do que o sulco dela a se fazer.
Do divino em nós revelador
É apenas o acto criador.
Tão fecundo
É o caudal deste rio
Que por ele é que eu crio
O mundo.
94 – Angular
A pedra angular da realidade
É um acto de criadora liberdade
Que chamamos Deus.
Ser revolucionário
É ser um criador visionário
Da terra destes céus,
Participar na sina
Da vida divina,
- Ir sendo, germinalmente, Deus.
95 – Transformar
Por um lado,
É preciso transformar o mundo;
Depois, transformar o mundo transformado.
…Sem
Que ninguém
Chegue jamais ao fundo!
96 – Colheitas
Comunidade deveras humana
Não é o dom da natureza ou história feitas,
Que o passado nos engana
Da segurança com as colheitas.
É vontade, decisão de viver em comum,
Não virada ao passado mas ao porvir,
Com o fito que engloba qualquer um:
O do bem comum a prosseguir.
97 – Olhar
O olhar humano é independente,
Preso ao rosto por uma guita
Tão comprida, frouxa e resistente
Que quebra a solidão do monge,
Não hesita
E vai passear sozinho ao longe.
Ao eremitério traz o mundo
De que, afinal, me fecundo.
98 – Alvorada
A presença da namorada
Dentro duma casa
Acende ali uma alvorada,
Enxerta-lhe uma asa
Que leva a que nas mais a alegria
Seja mero papel de fantasia.
A namorada implanta
Um aparelho sensitivo
Com uma tal rede nervosa
Que da casa a planta
Devém um ser vivo
Em que cada divisão
A cada outra se cosa,
Num pulsar de coração
Que ao namorado constante
Lhe alimente e lhe adiante,
Intérmina, a excitação.
Mesmo um palácio qualquer,
Com a casa enamorada
Comparado, nem sequer
Para o que ama vale nada.
99 – Saber
Saber não será impedir
Como não é promover.
Mas é já um começo de vir
A ser.
O que sei, tenho-o, senão
À mão,
Ao menos, a qualquer momento,
No pensamento.
Aí disponho dele à vontade:
A ilusão dum poder
Que um dia poderá vir a ser
Realidade.
100 – Ideia
Na ideia de amar
Não existe amor,
Mas nas pétalas de cravo que lhe dei ao luar,
Na carta que lhe mandei, escondida no toucador…
Na ideia, não
Bate nenhum coração.
Nas coisas, sim:
- Nem delas falam, mas de mim.
101 – Teia
A vida de cada ser
É de contrastes uma teia
Cheia
Das contradições que entretecer.
Imaginar a vida
Ignota
Como igual à conhecida
É de imaginação bota.
Imaginar o que me calavam
À medida do que diziam
É viver do que falavam,
- Não do que meus olhos veriam.
Um ser,
Na verdade,
É a intérmina opacidade
Do que jamais poderei conceber:
É o grito
Da distância do infinito.
102 – Sono
O sonho banha-nos de manso a vida,
Noite após noite,
Como à lebre fugida
Oferta lura familiar onde se acoite,
Como à ilhota breve, os longes a mirar,
Baloiça, imenso, o mar.
103 – Marionetas
Respondemos pelos outros facilmente
Quando lhes dispomos as pequenas figuras
Em nossa mente,
Manobrando as marionetas à vontade.
Deles, porém, as loucuras
Têm outra realidade.
Quando as tomo em conta
É sempre com as minhas leituras,
Onde apenas vejo a ponta
Do que se enraíza neles,
Nos outros que por fim são
Aqueles
Que só por si responderão.
É que, por mais que cave
Do outro jamais ninguém encontra a chave.
104 – Lembranças
Há lembranças que operam
Como amigos comuns:
Reconciliações geram,
Arestas alteram
Como outros nenhuns.
Entre mim e ti, as duas margens do rio
Quantas vezes a lembrança uniu,
Ponte
Que nos une nos extremos do horizonte!
105 – Guardiã
Guardiã da memória da idade de oiro,
Garante da promessa
De que a realidade é outra, não o que julgamos,
Tesoiro
Ostentado à peça
Das árvores nos ramos,
- Das amendoeiras a flor
Revela o esplendor da poesia,
Da inocência o fulgor,
Magia
Que merecer bem gostaremos:
Para além da vida que vivemos,
De flores tantos níveos arranjos,
Mostram-nos que, afinal, existem anjos.
106 – Sombras
Os nossos pais grandes sombras
Alargam pelas alfombras,
Do sol protegendo a vida.
Quando crescidos, cremos
Que caminhar poderemos
Ao sol na subida.
É demasiado tarde
Quando a escolha, sem alarde,
Se nos revela inviável:
Sempre à nossa frente,
Na pegada precedente,
Lá caminha a sombra amável.
Com eles dentro de nós
Viveremos, mesmo sós:
Na fisionomia,
No timbre da voz,
Na pele, cabelo, mão,
No bater do coração,
Nas fronteiras da empatia…
É como arrancar-me as peles
Se me tento livrar deles:
Quando mortos, invisíveis
É que reparo de vez
Como é inviável o entremez
- Somos mesmo indivisíveis.
Crescemos a desejar
Que o bom tempo que os pais são
Para sempre por cá fique.
Morrem e vamos deixar
De ser crianças: o papão
Que nos persegue ao serão
De saudade, faz que abdique
Cada qual da sombra em vão
Que a vida inteira duplique.
Então reparamos, de repente,
E com requinte,
Que deviemos a sombra complacente
Da geração seguinte.
107 – Cala
A planta comunica com o sol
E com a planta vizinha.
A abelha aumenta o rol
De flores a que se encaminha
E exprime, na dança que a impele,
Onde mora o néctar de que fabrica o mel.
O homem fala
E, para que convença,
Quantas vezes cala
E pensa!
108 – Folia
Quantas vezes é motivo de mofa
Aquele que, distraído, filosofa!
Não sei, porém, se mofaria
Quem do filósofo troça,
Se acordar um dia
E reparar que a filosofia
Por todo ele roça
E inteiro o destroça,
Como a um traje de fantasia
Depois do carnaval,
- Porque nada vale,
Acabada a folia.
Se vir que a filosofia
Que lhe não dá dinheiro,
É mais que teimosa porfia
Falhada, por derradeiro:
Se vir que a filosofia
- É ele inteiro!
109 – Chave
Um relógio é uma chave
Que do tempo a porta
Nos franqueia, soturno e grave
Como quem abre o que importa.
Quando comporta o Natal,
O tempo ao que exorta
É que a chave ao principal
Franqueie a comporta:
À ternura, à ternura
Em que o tempo rememorado perdura.
Sinal
De que quem for terno
Tem no relógio a chave segura
De ser eterno.