HORIZONTE

 

 

 

                                      PRIMEIRO  VERSO

 

 

            HORIZONTE  DE  AMOR  É  O  QUE  SEREMOS

 

 

 

   Escolha um número aleatório entre 1 e 109 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – Horizonte

 

Horizonte de amor é o que seremos

Quando o que somos pesquisarmos perto,

Horizonte em devir ao porvir certo,

Nós que nunca o atingimos nos extremos.

 

Em passos de amor pobre no deserto

Acertamos as vozes que sonhemos,

Em nome das lonjuras nós viemos

Doendo da pegada o calo experto.

 

Em verso incerto trocaremos lemas

Até o compasso se acertar de vez

E cada qual viver do todo os temas.

 

Então, ritmando unidos o entremez,

Transporemos sarcasmos e ironias

E riremos inteiras alegrias.

 

 


2 – Horizonte de amor é o que seremos

 

Horizonte de amor é o que seremos

Em poemas de compasso desgarrado

Até que no passo trocado

Nos encontremos.

 

No presente, a pegada, em todo o lado,

Revela sempre quanto desviemos

Ao canto dos demos

Que nos hajam encantado.

 

Porém a rota nos mantém a luz

Desta lareira a acalentar serões

Da eterna ceia que nos mais seduz,

 

Por onde ao colo exorcizei papões

E encontrei, no repouso convivido,

Minha cósmica fonte de sentido.

 

 

3 – Rumo

 

A alegria

Tem um rumo.

Perde o sumo

Se se perde em fantasia.

 

O trabalho

Mediria

Cada dia

O valor de quanto valho.

 

O sonho

Traça a rota do destino:

Só quando a caminho me ponho

É que com o sonho me combino.

 

 

4 – Sorte

 

Podes desistir e acusar

O mundo de te privar

Duma vida em condições,

Por ter-te cabido em sorte

Sorte que não têm milhões.

 

Bem melhor seria teu porte

Se tua incapacidade

A encarasses como um dom

Que, se tua vida invade,

Aos mais, normais, recusa o condão.

 

Erguer-se não vão poder

Por sobre o mal que em ti vige,

Não irão desenvolver

A força que tal te exige.

 

Poderás ser bem melhor

Que os normais a que vens te contrapor.

 

 

5 – Coragem

 

Os homens não seguem títulos,

Mas a coragem:

São dela os capítulos

Da viagem.

 

Esta é a verdade

Em primeira mão:

- Condu-los à liberdade,

Seguir-te-ão!

 

 

6 – Força

 

A cura do mal,

Da injustiça, do cuidado,

É a força vital

Que, divina, em todo o lado

Produz e renova a vida,

Dos desgostos e do crime

Nos redime.

 

Com que lida

É o amor a que convida.

 

 

7 – Cariz

 

Olha bem qual teu cariz,

Vê-o:

- Se queres ser feliz,

Não olhes ao que se diz,

Sê-o!

 

 

 

8 – Carência

 

Como se luxo e conforto

Foram requisito-mor

Da vida a que me transporto!

Quando a carência maior

Para um homem ser feliz

Não é nada que nos pasme:

- É um sonho que, de raiz,

Me entusiasme!

 

 

9 – Feliz

 

Há quem creia ser feliz

Por possuir e comprar,

Por dos outros ser servido.

Ser feliz de raiz

É dar

E ter outrem no sentido.

 

 

10 – Valor

 

Dá, sobretudo, valor,

Porque irá sobreviver

Ao amor

Que recebes de quenquer.

 

Muito depois de teu oiro,

De tua saúde haver

Ficado, resta o tesoiro:

O que te traz bom agoiro

É o que irá prevalecer.

 

 

 

11 – Segredo

 

A vida tem um segredo

Que convida

De vez a findar-lhe o medo

E a viver a vida às boas:

O segredo da vida

É fazer rir as pessoas.

 

 

12 – Olhar

 

Ante o olhar extasiado,

Assustadiça, pensou:

“Não sou

A tua Jerusalém,

Nem teu deus ressuscitado.

Teu olhar, porém,

É o olhar dos peregrinos

Quando ao longe os encanta

A visão da Cidade Santa:

- Dentro em ti repicam sinos!”

 

13 – Fim

 

É o fim

Quando a fornalha do pensamento,

Enfim,

Apague e arrefeça.

O fermento,

Embora ruir pareça,

Ainda é o alimento

De algumas dezenas de formigas

Que mordiscam a carcaça

Da aranha entre os escombros.

 

Destas nas frágeis ligas

Perpassa

Aos humildes ombros

Dum novo mundo toda a graça.

 

 

14 – Janela

 

A vida: janela

Fechada

E cá dentro só cuidado…

- Como é que a verdadeira estrada

Pode ser aquela

Que não vai dar a nenhum lado?

 

 

15 – Deus

 

Deus não é credível,

Não o vejo…

- É meu desejo inexprimível,

O inexprimível do desejo.

 

 

Ter fé em Deus,

No fim,

É, como nos ateus,

Ter fé em mim.

 

É isto:

Ou tenho fim

Ou é o meu fim.

Afinal, Cristo

É o facto de que existo.

 

Ter

Não é:

- É Ser!

 

 

16 – Faz

 

Que importa o que um homem diz

Da sua fé?

O que importa é

O que tal fé faz daquele homem.

Ou condiz

Com os sonhos que o consomem

Ou ele e ela se somem

De raiz.

 

 

17 – Um

 

No amor que se dá

Não há dois, mas um.

Pelo amor um homem devirá

Naquilo que ama:

Não há mais homem algum.

 

No coração acama,

Dele próprio em lugar,

Todos os amores que forem seus.

 

Quando o homem Deus amar

Torna-se Deus!

 

 

18 – Nunca

 

Deus fora de nós,

Não!

Nunca agirá Deus a sós,

Se não lhe emprestas a mão.

 

A palavra de Deus está

No Livro onde ele a coloca?

- Deus jamais nos falará

Se não lhe emprestas tua boca!

 

 

19 – Ateísmo

 

O não do ateísmo

É o dum antropocentrismo.

 

Tudo aquilo que eu disser

Da História, Deus, Natureza

É dum homem o dizer

E de seu ângulo presa.

 

Relativo, provisório,

Intrínseco inacabado,

Vive um homem o ilusório

Confundindo o sonho e o dado.

 

A pretensão

É o produto

De quem vive a confusão

De relativo e absoluto.

 

O ateísmo então impede,

Em seu gaguejar estrídulo,

Que um metro com o que mede,

Que um ícone com um ídolo,

Alguém confunda algum dia:

Sinal com realidade

Ninguém então trocaria,

Seja conceito, amuleto,

Ou cruciifixo o que invade

A crença de nosso tecto.

 

O ateísmo tem razão

Em rejeitar este deus

De imagens e de palavras:

Porque é sempre a tentação

De o retraçar com os meus

Terrenos ferros das lavras.

 

O deus das religiões

É um deus a ser recusado,

Primeiro passo bem dado

Da fé para quaisquer revelações.

 

De Deus sempre o que afirmámos

À imagem deste homem foi

E eis porque nos enganámos:

Tudo é de homem, só não dói.

 

Mas a pura transcendência

Sem ter nada de imanente,

Exterior, é mera ausência,

Não tem coração nem mente.

 

Ora, o ateísmo

Elimina o dualismo:

Não mais objecto e sujeito,

Corpo e alma, crença e peito,

O espírito e a matéria,

Ciência e fé nos sonhos meus,

Nenhum muro é coisa séria,

Nem entre o homem e Deus.

 

O risco

Que a prevenir eu me exorto,

Não me vá levar a palma,

É evitar isto:

- Que a uma alma sem corpo

Suceda um corpo sem alma.

 

 

20 – Ressuscitar

 

Ressuscitar é todos os dias:

É o despertar,

Tomar consciência da presença inefável dos possíveis.

 

Encarnar é todos os dias:

Deus devagar

A misturar-se na vida do homem, ambos indivisíveis.

 

 

21 – Acto

 

Deus não é um ser,

É um acto.

Acto cujo acontecer

Me revela grande demais

Para me poder contentar, pacato,

Com o que até agora fui, sem mais.

 

Deus é tentar ir, de quando em quando,

Em Deus me tornando.

 

 

22 – Degraus

 

Saber experimental

É descoberta de meios,

A sabedoria procura fins.

O ideal

De que caminhamos cheios

Tem de trepar aos altos patins,

Do fim subalterno

Ao intermédio,

Deste ao mais nédio,

Até ao superno.

 

Os degraus da escadaria

O saber os põe aos pés

Da sabedoria

Até um dia seres o que és!

 

 

23 – Sacrifício

 

Ser um e dois,

Como dum íman os pólos,

Uma estrela de dois sóis,

Sinfonia com dois solos…

 

O sacrifício é o que há

De mais humano no amor:

Ser prazer o que se dá

À custa da própria dor,

A alegria pura e nua

Doutrem preferir à sua,

Até mesmo a própria vida

De outrem ser a preferida.

 

Noutrem me perco e renovo:

Nele é que nasço de novo.

 

Por todo o lado

Começo a ser:

A ser um ressuscitado.

 

E a ressurreição pode-se ver!

 

 

24 – Xisto

 

“Penso, logo existo”,

Como se eu não existira

Antes de pensar!

Como se o bloco de xisto

Na montanha não cumprira

Eras fora o seu lugar!

 

Amamos, logo existimos:

Em ti eu existo

- Eis a lei dos cimos

Quando de humano me revisto.

 

Esta é a lei única e primeira

Da vida verdadeira.

 

 

25 – Morta

 

Permanece morta

A vida de quem não ama.

A primeira porta

Para sair do caixão

Vai-nos ser a que reclama

Que me entregue com paixão

Ao amor de quem amar.

Cria a reciprocidade,

Nova forma de permuta,

Não a deste lupanar

Da compra e venda que invade

Toda a vida prostituta.

 

Do dom e do sacrifício

A que o amor persuade

É que aflora o benefício,

Discreto por trás do pano,

De tornar o homem humano.

 

 

 

26 – Pueril

 

O pueril amor da aldeia natal,

Sincero e único, inconvencional,

Eterno, eterno chama…

 

É que, ao amá-la assim,

Cada qual a si próprio se ama:

- Amo-me nela a mim!

 

 

27 – Fome

 

Finda a colheita,

Torna o camponês à fome.

À fome atreita

A barriga que não come,

Enquanto o tutano não suga,

Ao homem dá mais energias

Do que a fuga

Dos banquetes e orgias:

Um fósforo risco

E logo ele é uma fogueira,

Lanço de semente um cisco,

Sai-me uma árvore altaneira…

- Foi sempre a fome

Que me obrigou a que nas mãos o mundo tome.

 

 

28 – Cheias

 

As côdeas repartidas

Por força das ideias,

Solidárias pobres vidas

Entre tantos divididas

Por mor dos sonhos, por fantasias…

 

- Que mãos vazias

Tão cheias!

 

 

29 – Fogo

 

A doença o que requer

É o que a depura:

Só o amor pode acender

O fogo que cura.

Não é só o remédio, não.

 

- Vale mais o coração:

Depende muito do que ele apure

Que a mezinha cure ou não cure.

 

 

30 – Rezo

 

Não rezo por um motivo,

Lembro só que não estou sozinho:

O ilimitado revivo

Que eu sou no fundo, adivinho.

 

A minha parte infinita

Pelo tempo e pelo espaço

É o que a oração concita

E após

O Universo inteiro abraço:

Não estamos sós,

Não sou eu, nem tu, nem eles - somos Nós!

 

 

31 – Importante

 

O importante

Não é S. Bento ou Belém,

Lisboa, Paris, Jerusalém,

Nem atrás quem vai ou adiante.

 

Importante é a laranjeira

Acolá, longe da estrada,

A dar sombra na ribeira,

A florir desenganada,

De perfume embriagada,

Toda coberta de abelhas

Na indiferença cimeira

De quem do condão é a fada

Que renova as lendas velhas.

 

 

32 – Corpo

 

Se Deus um corpo me deu

É de usá-lo, usá-lo bem.

Para quê poupar o meu

Se a terra o come no tempo que vem?

 

A inteligência de alguém

Não reside na cabeça

Mas no corpo que ele tem.

O corpo sabe o que quer,

Intui-o bem e depressa.

O que importa é aprender

Com atenção e coragem

Do corpo a secreta linguagem.

Depois é só abrir-se-lhe quenquer

E tratar de ser feliz

Neste corpo que Deus quis.

 

 

33 – Visão

 

Ter do mundo uma visão

Que é uma visão de engenheiro:

Da natureza a função

É de usá-la por inteiro,

Domesticá-la

Em nosso benefício.

E condenar, por desperdício,

Querer fruí-la, contemplá-la.

 

Sem ver quanto a benesse

Material

Arrefece

Ante o gozo principal:

O portal

Do infinito

Que das coisas pressinto

Por trás do silente grito.

 

Colheria daqui o fruto:

Deviriam as coisas o meu plinto

Para o absoluto.

 

 

34 – Projecto

 

Viver para quê?

Para quê continuar?

Para manter de pé

O projecto vivo deste lugar:

Os mortos não podem amar,

Os mortos não podem odiar…

 

O gozo que dá

Ver os vivos em busca de sentido,

De cá para lá, de lá para cá,

Como se de vez o houveram perdido!

 

- Como se alguma vez o houveram vivido!

 

 

35 – Incapaz

 

Incapaz de amar a Deus

É apenas ser incapaz

Para amar as criaturas.

Pois Deus existe nos seus,

Nas pegadas do que faz,

Em infinitas figuras.

 

Não é conceito

A que presto preito.

É ser

Que não se esquiva,

Que, ao eu me viver,

Me viva.

 

 

36 – Inferno

 

Bem pouca coisa no mundo externo

E em nossa interioridade

Se esconde ao homem cuja vontade

Se aplique a desvendar o céu ou o inferno.

 

Mistério

É apenas falta de alma.

A chave quer a paciência

Calma

Deste critério:

O fio condutor da persistência.

 

 

37 – Ceitil

 

É um olhar de mulher,

Uma simpatia infantil

Que indicam, gratuitos, a quenquer

Que nele existe ao menos um ceitil,

Em qualquer lado

De algo digno de se amar

Ao menos um bocado,

Mesmo que tenha de se ver bem devagar.

 

 

38 – Labirinto

 

Juntos vagueamos

No labirinto do mal

E a cada passo tropeçamos

Das culpas no tremedal.

 

Enchemos nosso caminho

De pequeninas batotas.

Só o perdão, devagarinho,

Nos diminui as derrotas.

Temos esse privilégio

De súbditos contrafeitos:

Mudamos nossos defeitos,

Por perdão, em ganho régio.

 

 

39 – Distinções

 

Distinções claras

Entre o homem e Deus?

Se bem reparas,

O que é superior ao homem

É aquilo que tu e os teus

Um dia, por fim, somem.

 

Deus, que não tem nenhum lugar,

É aquilo em que um dia o Homem se há-de tornar.

 

 

40 – Amanhã

 

Ninguém sabe desde já

O que amanhã trará.

Quando chegar,

Podem as coisas mudar para melhor,

Que um raio de sol brilha no lar,

Súbito, por entre a chuva,

E traz o calor

Que um copo tem, no Verão,

De sumo de uva,

Mesmo se o Inverno gela o chão.

 

De repente,

Inesperado,

Tudo pode ser diferente,

Em todo o lado.

 

 

41 – Sós

 

Se podemos viver sós

Por quê tanto

Grito, pranto,

Sofrimentos, dós,

Pelo mundo em cada canto?

 

Aqueles que se lamentam,

Aqueles que choram

Procuram algo, procuram alguém:

Procuram os que inventam

Os caminhos que demoram,

- Procuram Além.

 

Procuram aquilo, aquele que traz,

De vez, paz.

 

Ingloriamente, porém:

É o eterno ausente…

- Mas que eternamente vem,

Eternamente!

A aflorar em cada dia

Como o sopro que me cria.

Ser de meu ser, de que sou mero ente

Inconsistente,

Vagamente,

À procura de mim

Sempre, sempre, até ao fim.

 

 

42 – Degrau

 

Tornar-me-ei um degrau

No lodo da vida.

Em breve outro sonhador cruza o vau,

Porá o pé no degrau que sou

E se tronará no degrau de seguida.

E assim é que por ele vou,

Na exacta medida

Em que firme aqui estou.

 

- Então é que sou!

 

 

43 – Obcecado

 

Um artista é um obcecado

Por recriar o mundo,

Para restaurar em todo o lado

A inocência do homem.

O momento jucundo

Em que as raízes se retomem

É o da reconquista da liberdade.

E a morte do autómato em nós

É a voz

Que de vez nos persuade.

 

 

44 – Génio

 

O homem de génio proclama

Pelo exemplo e pela obra

A verdade a que se dobra:

- Cada qual é sua própria lei.

E o caminho em cuja trama

Encontrar-me poderei

É o de que todos e cada qual

São únicos por igual.

 

O reconhecimento

De ser único é o caminho.

- Nele, porém, adivinho,

Meu tormento.

 

 

45 – Peça

 

As nossas leis e costumes

Regem a vida em comum.

Do que este mais lado algum

Usa de tantos perfumes,

Só porque é o lado menor

Da existência:

Por um nada o bom odor

Devém pestilência.

 

A vida a sério começa

Quando a sós,

Quando desenterramos a peça

Ignota que existe em nós.

 

Quando me encontro com os mais,

O meu fronteiro-mor

Que as raias me embandeira de sinais

É o meu solilóquio interior.

 

Os eventos cruciais,

Deveras decisivos

Dos roteiros através dos tremedais

São, inelutavelmente são

Os frutos vivos

Do silêncio e da solidão.

 

 

46 – Apaixonado

 

O apaixonado é o só,

O sozinho por inteiro.

Da tristeza mói-o a mó

Doce e amarga que primeiro

Lhe foi dado conhecer.

É a fome que não tem pão,

O isolamento esmoler

Que precede a iniciação.

 

É do silêncio desta ilha

Que a vida inteira é filha.

 

 

47 – Perdermos

 

Enquanto nos não perdermos

Como nos vamos encontrar?

Ao mundo por pertencermos

É que importa nele entrar

E fundo nele cavar,

Encobertos em seus termos.

É perdido nestes ermos,

Sem mais glória nem labéu,

Que o fio retomo eterno

Do caminho para o céu

Que cruza aqui pelo inferno.

Nas convulsões deste mar

Do segredo me avizinho:

- De pouco importa o caminho,

O que importa é caminhar.

 

 

 

 

 

48 – Descobrimos

 

Descobrimos meios de comunicação,

Mas comunicaremos?

Deslocamos os corpos em toda a direcção,

Mas será que nos movemos?

 

De facto, não há saída

Do ponto de partida.

 

Mental, moral, espiritualmente

Vivemos acorrentados:

- Dentro de nós quem pressente

Quantos mundos moram fechados?

 

 

49 – Face

 

Alterar da Terra a face

Até irreconhecível devir

Ao Criador que a trace,

Que sentido, que porvir

Inaugurará

Se não der voz

Ao que nos transforme desde já

A todos nós

Em todos nós?

 

 

50 – Morada

 

O mundo é a minha morada,

Tenho ainda de a ocupar.

Eis a mulher que amo, em minha entrada,

E não sei qual nosso lar.

 

O atalho em minhas pegadas

E eu sem reconhecer

Nas vertentes caminhadas

Meu rumo de vir a ser.

 

Afinal, quanto lugar

Haverá, ilimitado,

Por explorar

Em meu fado?

 

 

51 – Despertar

 

Do despertar completo e sem par

Nada obtive, nada.

Por isso é um despertar completo e sem par,

Por mais nada.

Contudo,

Como é que um nada é tudo?

Como é que, no meio,

De tão cheio

Fico mudo?

 

 

52 – Solidão

 

Na solidão

Os que se perdem vão

Ter à beira de água.

 

Um sonho de amor

Quem não tem a quem propor

Demora à beira de água.

 

Do amor na ausência

Quem morre na demência

Mergulha à beira de água.

 

De noite,

No estertor da agonia,

O aflito onde se acoite

Só no marulho das ondas encontraria.

 

Quando o espírito vazio

Pena,

Na cachoeira do rio

Serena.

 

Com as águas rolando,

Qualquer alma atormentada

Abre as asas um nada

E sai voando!

 

- Assim vou,

Assim sou

E, meu Deus, como assim ando!

 

 

53 – Factos

 

Os factos não são nada.

Por trás tem de estar o homem

E, por dentro dele, a estrada

Onde se encontra com Deus.

Nela os factos se consomem,

Dispersos nos vastos céus.

Então terei de falar

Do que é o inegável gozo,

Cá neste tempo e lugar,

De me andar a germinar

Como o Todo-Poderoso.

 

 

54 – Pistas

 

Nem evangelistas

Nem profetas

Superam as pistas

Que acometas,

Nem deles mais longínquo é o lugar

Que aquele em que te podes transmudar.

 

A suprema virtude

É de ti a tua imposição

Ao fado que não te ilude,

Por mais que mude:

- Abre de vez teu portão,

Que entrará por ele o grito

Do infinito!

 

 

55 – Artista

 

O artista retalha a bisturi

As formas mortas,

Para tornar a desobstruir em si

As mágicas portas

Do desvão:

- A eterna fonte da criação!

 

 

56 – Fuga

 

Começa a obra por ser fuga,

Refúgio do terror da realidade.

Depois, enquanto o artista subjuga,

Recondu-lo à terra da verdade.

 

Não o adapta ao que o rodeia,

Dá-lhe o poder de o recriar,

Já que o alteia

Por cima de todo o patamar.

 

Não era da vida que fugia

Mas dele próprio, o artista.

E o que de insuportável sentia

Era mera projecção da fantasia

Para além do que dentro dele exista.

 

É a vida nova de agora também

Projecção,

Mas doravante contém

O poder vivido da criação:

As fantasias

Não mais escorrem da dissociação,

Talham da personalidade as vias,

Operam-lhe a integração.

 

O passado inteiro

Reequilibra a balança

E o que de estável alcança

De antiga dor sofrida é sempre herdeiro.

 

Culmina o autor na dança

De ser do mundo parceiro

No sonho que jamais cansa.

 

 

57 – Gaiola

 

A girar interminável

No interior duma gaiola,

Cria o autor o fresco a que se imola

Por uma conclusão jamais fiável.

Mas a intérmina rotação,

Noite e dia, noite e dia,

Arranca o sofredor à obsessão

Com tal centrífuga força

Que o liberta para a alegria

Da vida: a tanto orça

A grande corrente

Universal

A que cada qual

É pertinente,

Para o bem e para o mal.

 

 

58 – Deveras

 

Usa o sonho seduzir-nos,

Fecundo.

A ponto de termos de prevenir-nos:

- Deveremos conduzir-nos

Como deveras do mundo!

 

 

59 – Mundo

 

Quem tenha assistido à criação dum mundo,

Quem um mundo tiver criado,

Vê que dele o bem mais fundo

É que tem um limite bem traçado.

 

Começo por me perder,

Antes de me descobrir

Num mundo que, para ser,

Se há-de, preciso, definir.

 

Então é que, de verdade,

Quando à firme plataforma

Meu pé se conforma,

Me permite a liberdade.

 

 

 

60 – Espírito

 

Quando o espírito habita um lugar

Identifica-se tanto com ele

Que o natural e o divino se fundem no ar

Como a carne e a pele.

 

Da terra que geram

Assim os espíritos humanos se apoderam.

 

 

61 – Escada

 

A paciência

Do filósofo é a escada

Para a sabedoria e a ciência.

A humildade é a portada

Escondida, discreta, no confim,

Que deita para o jardim.

Aqui ando buscando a pegada

De mim.

 

 

62 – Casamento

 

É feliz o casamento

Se ambos lavram no que querem

E mais quer envolvimento

Em comum no que preferem,

Malhas de interligação

Em teias de interacção.

 

Não basta deixar existir,

Algo terão de juntos ser.

Um caminho qualquer

Por onde ambos possam ir,

De mãos dadas, a correr.

 

 

63 – Torrente

 

Nossa vida não é nossa,

A nossa é a vida dos mais

E a torrente com que engrossa

Tem da ternura os sinais.

 

O resto

Que pise ou não pise na estrada,

Para o que presto

Não vale nada.

 

 

64 – Pardal

 

A mulher inunda o lar

Da ternura com que o pardal

Aquece o ninho.

Dela a vida é alumiar

De carinho

Os filhos do vendaval:

Com ela é que aprendemos a voar.

 

 

65 – Ilusão

 

Mais justiça e mais pão

Para todos,

É um dos modos

Da ilusão.

 

Sonhos meus:

- Um bocado mais de Deus

Para todos,

Já que nunca há Deus a rodos.

 

 

 

 

 

66 – Fora

 

Há muito mais gente fora

Que dentro de qualquer igreja:

O pastor dorme, demora,

Os cães bulham de mútua inveja…

 

As ovelhas,

Entregues à própria iniciativa,

Escapam das veredas velhas

À procura de água viva,

Onde haja sombras mais frescas

E pastagem mais viçosa.

 

Esta fé secular é que hoje goza

De milagrosas pescas

Cujo derradeiro Autor

Normalmente nem sequer ousa supor.

 

 

67 – Pus

 

Nunca digas que Buda Gautama

É um homem sábio e grande como Jesus,

Que logo em teu redor se derrama

O pus.

 

Deves acarinhar tal pensamento

Fertilizando o chão

No teu mais íntimo elemento:

No coração.

 

Em teu jardim secreto

Acolhe apenas quem à entrada te respeite o veto.

 

Quanto ao mais,

Com teus melhores modos

Avança com todos

- E aguarda os sinais.

 

 

 

68 – Larvas

 

Planos loucos,

Aspirações parvas,

Os deuses dão aos homens aos poucos

Tais larvas,

Até germinarem ideias divertidas:

E os grandes cometimentos

Enchem-nos as vidas

E enchem-nos de tormentos.

É o preço

Por que rasgamos avenidas,

Começo

De todas as idas.

 

 

 

 

69 – Porta

 

Quando um homem berra e barafusta

É a persuadir-se de que não é cobarde,

Quando faz de muito mau é que lhe custa

A bondade em que arde.

 

Por trás da máscara da aparência

O que importa

É descobrir-lhe a inocência

- E abrir a porta!

 

 

70 – Templo

 

O grande Buda não construiu nenhum templo,

Meditou à sombra da figueira

E vagabundeou sem terra nem lar.

 

Cristo seguiu-lhe o exemplo,

Sem eira nem beira,

Nem uma pedra tinha onde a cabeça repousar.

 

Ambos sabiam o que o templo faria

Às aspirações

Que o Homem deporia

Nas religiões.

 

Por isso Cristo diria

Que tempo viria

Em que nem nos vossos templos nem nos meus

Se prestará culto a Deus.

 

É que o único lugar

Para a função

De um espírito encontrar,

Não é a ara dum altar,

É o altar do coração:

E o coração talha o lar

De quenquer sem sagração,

A viver do próprio ar,

Não vai ocupar espaço

Nem do encontro deixar traço.

 

Tempo virá

Em que deveras

Deus se incarne desde já.

 

E acabarão das religiões as eras.

E acabarão as esperas.

 

E, um passo mais, a esperança

Então, enfim, nos alcança.

 

 

71 – Inverno

 

Que bom ouvir o Inverno

A uivar pelas esquinas,

O granizo a fustigar as janelas,

Quando a quem amar, terno,

Se tem alguém e divinas

São as horas em que as velas

Iluminam quem descansa

Na abrigada segurança!

 

 

72 – Cadeia

 

Deus morreu, o Homem morreu…

Não! O Homem ainda não existe!

Vamos tentar o que nunca existiu:

Não ser mais o elo da cadeia em que subsiste

De causas e efeitos ao infinito,

Mas o ser em nascimento

Que no primodial grito

Inaugura, momento a momento,

A medida

Jamais acontecida.

 

Sem tergiversação,

A rota traçada

Não tem outra opção:

A fé ou nada.

 

A única fé requerida

É ter esperança,

À partida:

É crer

No que o homem tem de fazer.

 

- Então o Homem alcança!

 

 

73 – Limiar

 

Se implantar

Um novo divino,

Redescobrir o limiar

Da transcendência,

Então atino:

Fico na iminência

Da ruptura com o passado e o presente,

Do abandono

Dum desenvolvimento assente

Num homem com dono

Donde o homem fica ausente.

 

Então a alternativa

É o que fará que eu viva.

 

 

74 – Revolução

 

Uma verdadeira revolução

Será para a Humanidade

O que numa conversão

Gera a nova individualidade:

A transformação

Dos fins e do sentido

Da História

E do que é nela vivido.

Raiz da nova memória

Que, no fundo,

Inaugura um novo mundo.

 

 

75 – Saber

 

Um pouco de saber,

O da ciência feita,

Ao dogmatismo conduz.

Um pouco mais de luz,

A da ciência em vias de se fazer,

Ao questionamento é atreita.

 

Um pouco mais ainda

E a científica invenção

Da poética criação

É tão parente

Que, advinda,

Conduz, eloquente,

À oração.

 

Ateu

Ou crente,

Quem o viveu

Viveu a universal comunhão:

 

A janela aberta para os céus

É o secular nome de Deus.

 

 

76 – Institucionalização

 

Do sonho

Na institucionalização

O que ponho

É sempre

Irremediavelmente

- Uma traição.

 

Ao instituir, limito.

Ora, no sonho,

O que ponho

- É o infinito.

 

 

77 – Contrário

 

O que a vida pretendia

É o contrário da entropia:

Criar uma esteira humana

A desafiar a sorte

Donde o que ao fim nos promana

É o cais vencer da morte.

 

Eis o começo

Da tragédia optimista

Da história da Humanidade.

E por aqui é que meço

Minha pista

De verdade.

 

 

78 – Vocação

 

A quantos o pensamento consomem,

A quantos bebem uma palavra qualquer,

A quantos na acção buscam o que é fecundo:

- A vocação de cada homem

É ser

Um salvador do mundo!

 

 

79 – Fiável

 

O homem é o responsável

Pelo Universo inteiro,

Com a fiável

Missão

De continuar, primeiro,

Da natureza a criação

E, depois, por sobre qualquer escória

Erigir, eminente, uma História.

 

 

80 – Trepa

 

Um deus meramente conhecido é um deus de treva,

Deus tem de ser amado.

O amor suplanta o conhecimento

E o agir a que leva,

Suplanta-o, por seu turno, em todo o lado.

Quem então trepar, elemento a elemento,

É o acúmen humano. E o maior

Nem mesmo o chega a supor.

 

Deus é assim:

Nem sei de mim!

 

E esta ausência de mim é que é o céu:

- Então sou eu!

 

 

81 – Dum

 

Deveras libertação

Dum apenas sem os mais,

Não!

Que não existe jamais,

Por maior que seja e bravo,

Um homem livre sozinho

No meio dum povo escravo.

 

Só com todos, pois, caminho.

 

O resto,

Quando isto ainda nem adivinho,

É mero apresto

Até que todos

Inventemos outros modos.

 

No fundo,

Meu lugar

É inventar

Deste aqui um novo mundo.

 

 

82 – Viagem

 

A sabedoria das sabedorias

É sempre um movimento do homem até Deus,

Apele-o deste nome ou doutras categorias,

Absoluto, incondicionado, infinito ou os céus.

 

As trilhas proféticas o rumo que tomem

É o movimento de Deus a interpelar o homem.

 

Não há medida comum nem passagem

Entre as rotas inversas desta viagem.

 

Apenas quando um homem se ensimesma

É que repara que a viagem é a mesma.

 

 

83 – Parábola

 

Não fala o Reino de Deus por conceitos,

Que só falam o que existe,

Por parábolas arroteia os estreitos

Sonhos do que jamais viste.

 

Não filósofo, mas poeta:

Não define mas designa,

Aponta a meta

Que destina.

 

O evento do dia-a-dia

Sugere, por analogia,

A realidade que o não é ainda.

A hora da análise não é vinda,

Que apenas analisa o que já é.

 

A parábola apela a pôr de pé,

Leva a acontecer:

- E o Reino começamo-lo a viver.

 

 

84 – Fora

 

Do homem o centro no homem não mora,

Mas fora.

 

Se teu irmão encontraste deveras

Encontraste teu Deus: por que esperas?

 

De amor esta relação,

Em universalização

 

Gradual,

É da História o sentido final.

 

Não temos outra glória:

Esta será nossa vitória.

 

 

85 – Cruz

 

A experiência de Deus morrer na cruz

Dos ídolos nos liberta

Da política, da riqueza, de quanto seduz

Em todas as alienações,

Do que nos aperta

Nas servidões:

- Se Deus pode morrer, que farão os papões!

 

A Cruz abriu a brecha,

Em primeira mão,

Onde o homem acende a mecha

Da libertação.

 

 

86 – Ressurreição

 

A fé na ressurreição

É a certeza indomável

Sobretudo

De que nenhuma derrota é irremediável.

Não poderei mais dizer: não,

Acabou tudo!

 

Se até a morte pode ser vencida,

Que bandeira não pode mais ser reerguida?

 

 

87 – Jornada

 

A História nunca fica terminada.

Doravante, porém, não é de causa a efeito

Que se opera a jornada,

Já que eu a tomo a peito.

 

Doravante é o lugar da passagem

Do possível ao real

E não acabo de empurrar nesta viagem

Do possível os limites, das fronteiras o fanal.

 

Meu possível não é apenas decorrente

Das tramóias do passado,

É muito mais o poder emergente

Do porvir que me chama em todo o lado.

 

 

88 – Horizonte

 

Do Reino o horizonte sem fim

Cada metamorfose emana

E combina.,

Tornando-nos, assim,

A vida dia a dia mais humana,

Quer dizer, divina.

 

 

89 – Profundeza

 

O conhecimento alegra o ser

Onde o ser se ganha a si,

Não num homem individual qualquer

Mas num universal que me erigi.

 

Pelo desapego do mundo e do Eu,

De todos os eus,

O sabor do divino atingiu,

É uma união com Deus.

 

Então, em toda a coisa,

Instaura e vive a profundeza onde repoisa.

 

 

90 – Diálogo

 

Diálogo de fés e de civilizações,

Não por eclectismo, não, por busca de plenitude.

 

Via real das mútuas fecundações,

Do enriquecimento comum da virtude:

Unir sem confundir, distinguir sem opor.

 

Que outra via de pé nos poderia

Algum dia

Repor?

 

 

91 – Lazer

 

Lazer da passividade,

Compensação

Vaga de vitalidade,

Evasão

De forças esmagadas pelo trabalho…

 

Tão pouco valho, tão pouco valho?!

 

Urgente é o lazer activo, criador

A celebrar a vida

Para além dum dia de labor.

Urgente é aquela cultura

Cujo consumo convida

A criar a alegria e a frescura,

A viver o poema,

A magia de gerar fotos e cinema,

A dança, o canto,

A pintura a eternizar o encanto…

- Um lazer

Que inaugura o acto de viver!

 

É urgente, é urgente,

Senão aquilo que valho apenas mente!

 

92 – Drama

 

Regressar à religião

É o disparate

De quem pela fé não

Combate.

 

Ressuscitar a fé,

Sim,

Que é o que em mim

Me pode eterno pôr de pé:

Tomar consciência

De que todo o drama

Provém de minha ausência,

Da lonjura de quem ama.

 

Da falta do acto criador

Por onde em tudo irrompe amor.

Se ali houvera estado

Como um homem inovador

O vácuo da miséria não fora engendrado,

Do ópio-deus dando a imagem de horror.

 

Se ali houvera estado

Como um homem inovador,

Jamais da sabedoria se houvera a ciência divorciado

Num cientismo corruptor.

Nem Deus se houvera tanto poluído

Num vago conceito, num mecânico inútil,

Que perdeu todo o sentido,

Feito um eterno devaneio fútil.

 

Quando, na rotina do Universo,

Eu preciso urgentemente

Da gargalhada irreverente

Dum verso!

 

 

93 – Invento

 

A presença do divino,

Quando a experimento,

Não é a dum ser ou conceito, mas dum hino

Donde irrompe quanto invento.

 

Deus não é um ser mas um acto,

Fonte a jorrar inesgotáveis possibilidades:

Deus é o manancial das liberdades

Que se vão concretizando facto a facto.

A liberdade precede o ser

Que não é mais do que o sulco dela a se fazer.

 

Do divino em nós revelador

É apenas o acto criador.

 

Tão fecundo

É o caudal deste rio

Que por ele é que eu crio

O mundo.

 

94 – Angular

 

A pedra angular da realidade

É um acto de criadora liberdade

Que chamamos Deus.

 

Ser revolucionário

É ser um criador visionário

Da terra destes céus,

Participar na sina

Da vida divina,

- Ir sendo, germinalmente, Deus.

 

 

95 – Transformar

 

Por um lado,

É preciso transformar o mundo;

Depois, transformar o mundo transformado.

…Sem

Que ninguém

Chegue jamais ao fundo!

 

 

96 – Colheitas

 

Comunidade deveras humana

Não é o dom da natureza ou história feitas,

Que o passado nos engana

Da segurança com as colheitas.

 

É vontade, decisão de viver em comum,

Não virada ao passado mas ao porvir,

Com o fito que engloba qualquer um:

O do bem comum a prosseguir.

 

 

97 – Olhar

 

O olhar humano é independente,

Preso ao rosto por uma guita

Tão comprida, frouxa e resistente

Que quebra a solidão do monge,

Não hesita

E vai passear sozinho ao longe.

 

Ao eremitério traz o mundo

De que, afinal, me fecundo.

 

 

98 – Alvorada

 

A presença da namorada

Dentro duma casa

Acende ali uma alvorada,

Enxerta-lhe uma asa

Que leva a que nas mais a alegria

Seja mero papel de fantasia.

 

A namorada implanta

Um aparelho sensitivo

Com uma tal rede nervosa

Que da casa a planta

Devém um ser vivo

Em que cada divisão

A cada outra se cosa,

Num pulsar de coração

Que ao namorado constante

Lhe alimente e lhe adiante,

Intérmina, a excitação.

 

Mesmo um palácio qualquer,

Com a casa enamorada

Comparado, nem sequer

Para o que ama vale nada.

 

 

99 – Saber

 

Saber não será impedir

Como não é promover.

Mas é já um começo de vir

A ser.

 

O que sei, tenho-o, senão

À mão,

Ao menos, a qualquer momento,

No pensamento.

 

Aí disponho dele à vontade:

A ilusão dum poder

Que um dia poderá vir a ser

Realidade.

 

 

100 – Ideia

 

Na ideia de amar

Não existe amor,

Mas nas pétalas de cravo que lhe dei ao luar,

Na carta que lhe mandei, escondida no toucador…

 

Na ideia, não

Bate nenhum coração.

Nas coisas, sim:

- Nem delas falam, mas de mim.

 

 

 

 

101 – Teia

 

A vida de cada ser

É de contrastes uma teia

Cheia

Das contradições que entretecer.

 

Imaginar a vida

Ignota

Como igual à conhecida

É de imaginação bota.

 

Imaginar o que me calavam

À medida do que diziam

É viver do que falavam,

- Não do que meus olhos veriam.

 

Um ser,

Na verdade,

É a intérmina opacidade

Do que jamais poderei conceber:

É o grito

Da distância do infinito.

 

 

102 – Sono

 

O sonho banha-nos de manso a vida,

Noite após noite,

Como à lebre fugida

Oferta lura familiar onde se acoite,

Como à ilhota breve, os longes a mirar,

Baloiça, imenso, o mar.

 

 

103 – Marionetas

 

Respondemos pelos outros facilmente

Quando lhes dispomos as pequenas figuras

Em nossa mente,

Manobrando as marionetas à vontade.

Deles, porém, as loucuras

Têm outra realidade.

 

Quando as tomo em conta

É sempre com as minhas leituras,

Onde apenas vejo a ponta

Do que se enraíza neles,

Nos outros que por fim são

Aqueles

Que só por si responderão.

 

É que, por mais que cave

Do outro jamais ninguém encontra a chave.

 

 

104 – Lembranças

 

Há lembranças que operam

Como amigos comuns:

Reconciliações geram,

Arestas alteram

Como outros nenhuns.

 

Entre mim e ti, as duas margens do rio

Quantas vezes a lembrança uniu,

Ponte

Que nos une nos extremos do horizonte!

 

 

105 – Guardiã

 

Guardiã da memória da idade de oiro,

Garante da promessa

De que a realidade é outra, não o que julgamos,

Tesoiro

Ostentado à peça

Das árvores nos ramos,

- Das amendoeiras a flor

Revela o esplendor da poesia,

Da inocência o fulgor,

Magia

Que merecer bem gostaremos:

 

Para além da vida que vivemos,

De flores tantos níveos arranjos,

Mostram-nos que, afinal, existem anjos.

 

 

106 – Sombras

 

Os nossos pais grandes sombras

Alargam pelas alfombras,

Do sol protegendo a vida.

 

Quando crescidos, cremos

Que caminhar poderemos

Ao sol na subida.

 

É demasiado tarde

Quando a escolha, sem alarde,

Se nos revela inviável:

 

Sempre à nossa frente,

Na pegada precedente,

Lá caminha a sombra amável.

 

Com eles dentro de nós

Viveremos, mesmo sós:

Na fisionomia,

No timbre da voz,

Na pele, cabelo, mão,

No bater do coração,

Nas fronteiras da empatia…

 

É como arrancar-me as peles

Se me tento livrar deles:

Quando mortos, invisíveis

É que reparo de vez

Como é inviável o entremez

- Somos mesmo indivisíveis.

 

Crescemos a desejar

Que o bom tempo que os pais são

Para sempre por cá fique.

Morrem e vamos deixar

De ser crianças: o papão

Que nos persegue ao serão

De saudade, faz que abdique

Cada qual da sombra em vão

Que a vida inteira duplique.

 

Então reparamos, de repente,

E com requinte,

Que deviemos a sombra complacente

Da geração seguinte.

 

 

107 – Cala

 

A planta comunica com o sol

E com a planta vizinha.

A abelha aumenta o rol

De flores a que se encaminha

E exprime, na dança que a impele,

Onde mora o néctar de que fabrica o mel.

 

O homem fala

E, para que convença,

Quantas vezes cala

E pensa!

 

 

108 – Folia

 

Quantas vezes é motivo de mofa

Aquele que, distraído, filosofa!

 

Não sei, porém, se mofaria

Quem do filósofo troça,

Se acordar um dia

E reparar que a filosofia

Por todo ele roça

E inteiro o destroça,

Como a um traje de fantasia

Depois do carnaval,

- Porque nada vale,

Acabada a folia.

 

Se vir que a filosofia

Que lhe não dá dinheiro,

É mais que teimosa porfia

Falhada, por derradeiro:

Se vir que a filosofia

- É ele inteiro!

 

 

109 – Chave

 

Um relógio é uma chave

Que do tempo a porta

Nos franqueia, soturno e grave

Como quem abre o que importa.

 

Quando comporta o Natal,

O tempo ao que exorta

É que a chave ao principal

Franqueie a comporta:

À ternura, à ternura

Em que o tempo rememorado perdura.

Sinal

De que quem for terno

Tem no relógio a chave segura

De ser eterno.