SEGUNDO  VERSO

 

 

QUANDO  O  QUE  SOMOS  PESQUISARMOS  PERTO

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 110 e 220 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

110 – Quando o que somos pesquisarmos perto

 

Quando o que somos pesquisarmos perto,

O trato

Exacto

É que tudo em nós é tão incerto,

 

Com marca de nervoso ou de pacato,

De estúpido ou de esperto,

Que o mais a que me alerto

São os limites onde me acato.

 

E assim,

Vendo ao longe o fim

Que nunca é meu,

 

Afinal em minha quinta descanso

No remanso

De quem alguns terá nacos de céu.

 

 

111 – Inteligente

 

A maioria das crianças sente

Que a ciência

É apenas para quem é inteligente,

Paciência…

 

Contudo, os cientistas naturais,

Por instinto, são elas,

Do mundo e tudo o mais

Às janelas.

 

Seria muito fácil ajudar

As crianças:

Bastaria as perguntas partilhar

De que te cansas.

 

 

112 – Partilho

 

A curiosidade do filho

Se partilho,

Dou-lhe valiosa lição:

A ciência fica à mão.

 

Aprende que vale a pena

Persistir, experimentar,

Que as muralhas apequena

Do que houver a conquistar.

 

Aprender não é enfadonho,

Nem é tortura de escola,

É um desafio medonho:

E o coelho sai da cartola!

 

Aprender então é um acto

A gozarmos cada dia

- E a vida inteira desato

A mudar em romaria!

113 – Aula

 

A vida é como aula

Sobre um tema

De matemática:

Escapamos à jaula

Resolvendo um problema?

Logo o mestre muda de temática!

 

 

114 – Encorajador

 

A criança vi melhor

Com o acto que reconhece

Como acto encorajador.

 

E fenece

Como planta mal regada

Ao castigo e à palavra degradada.

 

Não é de somenos

O que cada qual faz:

O encorajamento torna-a mais capaz,

O desencorajamento, menos.

 

 

115 – Empatizantes

 

Simpatizantes

São meros espectadores.

Os empatizantes

Calçam os ténis das dores,

Põem a pegada devida

Na corrida.

 

 

116 – Guilhotina

 

Quem pode erguer a guilhotina

Aos mortos?

Sombra e luz não se degolam:

Connosco ela não atina

Se Além nos ficam os portos

E as faces que nos arrolam.

 

Já não pode mais ferir

Mas tenta insistentemente

Quebrar-nos os braços?

Abraça-me, que o devir

Germinará da semente

Que da ternura há nos traços.

 

Na hora derradeira

Talvez algo fique de nós

A iluminar a voz herdeira

De nossa voz.

 

 

 

 

117 – Tremor

 

Abro de noite a janela

A ver o frio.

O tremor daquela estrela

Surpreendi-o,

Vai extinguir-se de repente

Naquele lugar:

Apanharam-na numa corrente

De ar!

 

 

118 – Poesia

 

A mais vasta,

A mais universal

Poesia é a que se engasta

Nas leivas de Portugal,

Recorte de minha casta

Na paisagem universal.

 

 

119 – Dançar

 

É-me indiferente ser

Ou não

Tudo o que de mim você disser.

Em vão

Acredita na ilusão.

Minha vontade de dançar

Vem do mero facto a par

De você o saber,

Não é dele imitação.

 

A par,

Pode crer:

- É que é de mim cuidar.

Dançar para mim é ser, dia a dia mais ser

Um raio de luar.

 

 

120 – Mimado

 

Menino mimado,

Como poderia ter aprendido

Que o dinheiro bem suado

É comedido

E pesado?

 

Manejamo-lo com solicitude,

Falamo-lo gravemente:

Porque se sente

Que é virtude.

 

 

121 – Sonhos

 

Os sonhos são linguagem

Doutras medidas

Que com as deste mundo interagem:

As das vidas já vividas,

As dos que ainda não são vidas.

Aviso,

Premonição,

Recado de Deus, se de siso,

Do demo, se danação.

 

Terrível segredo

Sagrado,

No ar invisível paira, tredo,

Inviolado,

Cercando-me por todo o lado.

 

Dizem que após morrermos

Saberemos tudo:

- Viver é falar em termos

De quem é mudo!

 

 

122 – Livro

 

Cada livro é uma janela

Do Universo:

Cada qual, uma parcela;

Tudo junto, que diverso!

 

Mais aprendo ao vivo nos costumes

Sobre os homens, porém,

Do que a ler quaisquer volumes

Que o mundo inteiro contém.

 

 

123 – Saber

 

Há um momento na vida daqueles

Que nascem mais tarde

Em que há mais saber neles

Do que o que nos mais se guarde.

 

Sei após seu tempo aquilo

Que os antigos me contaram.

Do presente o saber fi-lo

Com o que os meus gestos aram.

 

É o porvir da antiga grei

Aquilo que afinal sei:

 

Para ela o que inauguro

No mais de que me inteirei

É, pois, que eu sei o futuro

Vedado aos dela por lei.

 

 

124 – Espero

 

Espero

Porque desejo e pressinto

Que sou esperado por alguém.

Pinto-o

Como o quero:

- Como quem

Me espera com amor.

 

Vida não é vida

Nem valor, valor,

Se alguém lá do fim me não convida.

 

Esperar, porém,

É confiar num futuro

Que me não poderei dar.

Quem manda em quem?

Nada é seguro

Neste lugar.

 

É nas mãos deste porvir

De que não posso dispor

Que me vou pôr,

Que estou a ir…

 

 

125 – Funcional

 

A educação

Meramente funcional

Ignora que qualquer profissão

É inelutavelmente dual:

Ou mercantil

Ou sacerdotal.

Aquela, se o ter e o poder

For seu carril.

Esta, se o primeiro dever

For a comunidade universal

E lhe assumir, a todo o momento,

O humano desabrochamento.

 

 

126 – Apelo

 

Não, Deus, Deus, não sei o que é.

Se o soubesse, não seria,

Era a minha fantasia.

Mas, então, fica o problema de pé.

 

Porém, sei o que não é:

Sei que será sempre um não

Ao ser que os mais seres são.

 

É aquela presença activa

Além da vista ou sentidos

Que a palavra não cativa,

Onde os termos são mentidos.

 

Presença, mas não dum ser,

Antes para ser o apelo,

Para criar o que houver

De ser de modo singelo.

 

 

 

 

Deus é aquela liberdade

De ser alegre e sem prova

Além de qualquer verdade:

A força, a força que inova.

 

Oceano que me contém

A centelha provisória,

Ultrapassa-me de além

E assim me convoca à História.

 

 

127 – Múltiplas

 

A mesma fé,

Cruzando múltiplas culturas,

Gera múltiplas religiões.

O mesmo pé

Alimenta a rama de todas as verduras

De que, afinal, dispões.

 

Urge perder a ilusão

De que a única verdadeira

É a nossa religião,

Pois ignoramos então

O comum tronco das mais,

Até à derradeira.

 

Todas nem sequer serão demais

Para nos renovarem os sinais

A vida inteira.

 

 

128 – Perspectiva

 

A realidade nunca pode ser cativa

Duma só perspectiva:

 

Captá-la plena implica a exigência

De viver até ao fim

Dos outros a experiência

Dentro de mim.

 

 

129 – Missão

 

Combate toda a religião

O dualismo. Superar a exterioridade

É dela a primeira missão:

Um deus só de majestade,

Do homem segregado,

E não vivo e chagado

Em acto de perene criação,

Tal deus, não!

 

É a nossa chaga do lado,

Mata-nos no coração.

 

 

 

 

130 – Traslado

 

Hipótese e postulado

E o sentido aonde apontam

São meu íntimo traslado:

Quem sou eu é quanto contam.

 

Verificar, passiva,

A verdade positiva

Mui auto-suficiente,

Fora de nós, é, sem nós,

Buscar água da nascente.

Quando assim ficamos sós,

Morremos enquanto gente,

Morre a crença logo após.

 

Deus vai morrendo

Quando para a morte

O Homem for correndo:

Ambos têm unida a sorte.

 

Viver é amar, criar além

Da vida que se tem.

 

 

131 – Negação

 

A negação

De quenquer

Como é que se negaria?

- A teologia da revolução

Requer

A revolução da teologia.

 

 

132 – Postulado

 

Um postulado,

Apesar de indemonstrável,

Não tem nada de arbitrário:

Uma acção torna viável.

O valor é comprovado

Por um critério primário:

Verifico o efeito

Que dali me vem direito.

 

Se à vida quero um sentido,

Postulo que o tem de facto:

Então o efeito vivido

Pende inteiro de meu acto.

 

 

133 – Condição

 

Pára a minha liberdade

Onde a doutrem principia,

Tal como a propriedade

Na dos mais se estremaria.

 

Mas a liberdade não

É o limite

Que a minha trave e credite,

É a sua condição.

Minha liberdade que seria

Dos mais se fora vazia?

 

 

134 – Matriz

 

Trabalho é matriz de laços

Com a natureza.

Sacrifício é matriz de laços

Com o vizinho.

 

O amor, quando de humano se preza,

É do mundo inteiro o primeiro cadinho:

Enlaça de múltiplos modos

A Terra, o Universo e os homens todos.

 

 

135 – Amputação

 

Doutrem ter a precisão

É de mim não me bastar:

Já não sou para mim

Meu próprio fim.

Sofro duma amputação

Que só se há-de completar

Na complementaridade

Com outrem a que agrade:

Quer

Dum homem para uma mulher,

Quer, pois importa que se somem,

Duma mulher para um homem.

 

 

136 – Pedinte

 

O que leva a não morrer

É o amor

Entre o homem e a mulher.

Primeiro por ir transpor

Para a geração seguinte

A vida que vem detrás.

Depois porque, à solidão

Que quem nasce e morre traz,

Arranca o pobre pedinte

Que todos somos no chão.

 

É a participação

Naquilo que me ultrapassa

E não morre:

A próxima geração

E o sacrifício que enlaça

O sonho que por nós corre.

 

 

137 – Escravo

 

Metamorfoses e revoluções,

Eis como caminha a vida.

Quem de escravo viver as condições

Como escravo pensa e lida.

Se liberto, pensará

Como um homem livre pensa.

A grandeza da vida sempre está

Em que o escravo um dia se convença

De que a si próprio se liberta:

Como homem livre se cria,

Porta aberta

Tão inexplicável como a que num dia

Transforma, discreta,

Uma lagarta em borboleta.

 

 

138 – Revolucionário

 

Revolucionário não é alguém

Que como tal se designa,

A sério para que o tomem.

- Revolucionário é quem

Se não resigna

À desgraça do homem.

 

 

139 – Acúmen

 

A vida humana

É o acúmen do mundo.

Sob ódio, porém, nada emana,

Perde o valor mais fecundo.

 

Sob o homem habitual

Um outro se acobertou

Que de homem não dá sinal,

Sente e não pensa quem sou.

 

O ódio acorda o animal:

Se de vez não me anulou,

Quem sou eu, quem, afinal?

 

O que aqui me deu à luz

Ou o outro que mais seduz?

 

Ou nunca serei sequer

Aquele que devo ser?

 

Em mim que é que me traduz:

O que sou sem o querer,

O que não consigo ser,

Ou quanto, lento, em mim pus?

 

 

140 – Isolamento

 

Tanto de convívio me alimento

Que a mais partilhada ferramenta

Do mundo é o isolamento

Para dum preso extorquir, no final,

Do que intenta

A confissão total.

141 – Monumentos

 

Os monumentos

Mais admiráveis da cidade

Não se elevam dos cimentos

Nem de bronze entalham connosco a afinidade.

 

O melhor são as árvores e os parques,

Os jardins de pássaros e animais,

Os lagos que de peixes encharques…

 

- Só aqui de teus amores

Verás sinais,

Só aqui os encontras no que fores.

O mais,

Matéria morta,

A que vida te exorta?

 

 

142 – Lonjura

 

Num estrangeiro lugar

A saudade nos convida

A pesar quanto a lonjura não é leveira:

- Que bom encontrar

Uma cara conhecida

Quando alguém anda perdido em terra estrangeira!

 

 

143 – Ostra

 

Das verdades a verdade

Nunca nela a mão tu poisas:

Quem as invade

Nunca mais descobre as coisas.

 

Sai a pérola da ostra

Mas não pela descrição,

À voz duma explicação.

O que deveras nos mostra

No fundo o que as coisas são

Não requer prova ou amostra,

É pura contemplação.

 

Se lá chega o coração,

A mente não é precisa:

Ali mente é mente em vão

E nunca mais ajuíza.

 

 

144 – Aliena

 

O benefício material

Retirado à natureza

Pelo mundo ocidental

Alheia-nos da beleza

E aliena cada qual

Dos mais e de si também.

E o efeito mais concreto

É que o muro se mantém

Entre o sujeito e o objecto.

 

Esta via

Nunca leva ao que anuncia.

 

A inversa,

Aquém

Com o lado de lá conversa

E o fio dele retém

Como rumo a prosseguir

Se quisermos ter porvir.

 

 

145 – Tubos

 

Tubos em feixes de tubos,

Os homens não são esferas

Nem cubos,

São poliedros de eras e eras,

Tão complexos no final

Ante uma análise fina,

Que são sempre algo transcendental

Ao que alguém lá imagina.

 

 

146 – Derradeira

 

Dirá Deus a palavra derradeira

Sobre os príncipes da igreja?

- Se Deus não existir, é brincadeira,

Permitido será o que quer que seja.

 

E a verdade é que Deus jamais existe

Sob qualquer forma

Que a mente alguma vez tiver em riste,

Será o que for fora da norma.

 

Então,

Sem sentido definido,

Tudo será sempre em vão,

Já que tudo é permitido.

 

O que importa é que se veja

A conclusão primeira:

- Deus já disse nisto a palavra derradeira

Sobre os príncipes de qualquer igreja.

 

 

147 – Muralha

 

A muralha de concreto

Erguida entre tua igreja

E o negócio a que dás tecto

Bem queres que ninguém veja!

 

Como os contos fariseus,

Com uma das mãos afagas

O cordeiro de Deus.

Para engordar o tesoiro,

Com a outra, esconso, pagas

Ao bezerro de oiro.

 

 

148 – Antítese

 

Democracia-comunismo: antítese

Deveras emntirosa.

As verdadeiras antíteses darão a síntese

Que em tais simplismos não se entrosa.

 

A democracia à ditadura

Se opõe como figura.

 

Comunismo é socialismo extremista,

Nazi-fascismo é capitalismo extremista.

 

Como os extremos se tocam,

São tirânicos os dois,

Ditaduras desembocam

Do que são, logo depois.

 

Capitalismo tal qual socialismo

Podem ser dialécticos modelos

Que, se moderados, crismo

Como os que gritam apelos

Das insondáveis distâncias

Por que apelam nossas ânsias.

 

Ambos, pois, em termos práticos,

Por igual poderão ser democráticos.

 

Quando em sã competição

É que as mãos dão ao poder,

Os povos só lucrarão

Da emulação que isto der:

Este agora, após aquele

E o mundo em frente se impele.

 

 

149 – Enfermo

 

O meio termo

Não leva a parte alguma:

Prova a História que o enfermo

Não vive nem morre, em suma.

 

Partejar grandes mudanças,

Só quando com a violência

A colectividade alcanças

Na vastidão da existência.

 

Porém, a ideologia,

Quando transgride os limites

Da ética, brusca enuncia

Os mais desumanos palpites:

Quem é que a distinguiria

Do que ela, afinal, cortaria?

 

Dum meio,

Transmuda-la logo em fim:

No seio

Já não guarda mais lugar

Nem para mim,

Nem para o Homem caminhar.

 

 

150 – Corpo

 

 

Nada nem ninguém

Mais perto dum homem mora

Do que o corpo que ele tem:

Do nascimento à morte lhe demora.

 

Por quê, então,

Tratá-lo como um ladrão?

 

 

151 – Esconder

 

Maior que outro insulto qualquer

À nossa comum natureza,

É impedir a culpa de esconder

A cara por vergonha.

Porque demais a despreza,

Nem é um castigo sequer:

É alguém não ter onde se ponha.

Sendo que, ao invés, dele todo o não-ser

A todo o mundo permanente o exponha.

 

 

152 – Jovem

 

O jovem,

Não tendo ainda afundado raízes na terra,

Fáceis os ventos o movem

E, no pino da serra,

Quando a lonjura o convida,

Leve abandona a vida.

 

Como o santo,

Olha uma estrela

E, ao ver-se tão longe dela,

Morre por falta de encanto.

E a sequela

É mais de risco que de pranto.

É que na morte também

Busca um além:

Não é um desvio,

É a quebra final do fastio.

 

 

153 – Parco

 

Parco é o segredo

Que escapa ao investigador

Com ocasião, liberdade e credo

Para com arte se propor

Levantar a ponta do véu

Que encobre a cor

Do céu…

 

 

154 – Culpa

 

Quase tudo consigo

Excepto quando a culpa me invade:

A culpa traz consigo

A marca da fatalidade.

 

O que for, será:

E mais não há!

 

Só o arrependimento

E o perdão

Podem restituir-me nalgum momento

O chão.

 

 

155 – Jovem

 

As coisas se movem

Tanto a mando de tom velho

Como de novo tom.

Apenas o jovem,

Da vida sem o conselho,

Crê que o novo é sempre bom,

Seria aquele

Fogo que o mundo impele.

Nisto é que a idade

Será mestra da verdade.

 

 

156 – Credes

 

Credes que foi isto que Ele quis?

Que se encontra em doiradas catedrais,

Nos palácios onde residis?

Ele nunca vive em ambientes tais:

Mora no lar insuportável

Em que cair

Todo e qualquer miserável.

 

- E nunca de lá vai sair!

 

 

157 – Cadáver

 

Todo o cadáver é o mundo real,

Miserável, cheio de lama,

Manchado de sujidade.

Quem o ama

É que dum outro lado lá viu um sinal:

Atrás da máscara, a fugidia verdade.

 

 

158 – Impéro

 

Meu lar

É o império

Do ser,

Mas, enquanto não aceitar

Que a vida assenta no mistério,

Nada hei-de aprender.

 

 

159 – História

 

O homem que conta a própria história

Não é já quem a viveu

Quando a gravou na memória.

Distorções, deformações,

- Que sei eu? –

Eis o preço inevitável

De reviver os baldões

Da vida no que é evocável.

 

O mais estranho é que o fito

Desta desfiguração

É aprender neste conflito

O que a sério as coisas são.

 

 

160 – Íntegro

 

À medida que alguém

Íntegro e unificado devém

O sexo encontra a dimensão:

Os órgãos genitais são

Um serviço do ser completo.

Procriam do chão ao tecto

Por todas as esferas.

O que inaugura as novas eras

É o ente que o é por inteiro,

O amor carnal é pioneiro

Do espírito no desejo

Do amor e da harmonia:

Gerar no ventre é o ensejo

De me inaugurar qualquer dia.

 

 

161 – Isolado

 

Viver por inteiro isolado

E esquecer?

- Em nenhum lado

É viável nem sequer

Por um bocado.

 

Quem o tentou, falhou.

 

Tanto somos de fios o entrançado

Cordame prolongado,

Que ninguém jamais corta, como ameia,

O cordão que o liga à teia!

 

 

 

 

 

162 – Fim

 

Não ir até o fim

É o erro fatal do homem.

Assim

Todos se somem

Para nada.

A vida atraiçoada

É vogar na onda.

Empregamos a justificá-la,

Para que a vergonha se esconda,

O tempo e o engenho

Requeridos se houvera empenho

De quebrar a tala

E saltar fora da escala

A que me atenho.

 

Obedecer ao mundo tal como é,

Que falta de fé!

 

 

163 – Atento

 

O acto importante

Não é barulhento.

Quando tudo se desmorona e cai diante,

O acto mais atento

E com sentido

É ficar sentado,

Calado,

Tal como antes do ocorrido.

 

Quem for capaz

De dar corpo à verdade que traz,

Algo opera mais decisivo e sério

Que a derrocada dum império.

 

Gritar a verdade? Não é preciso.

Mesmo que o mundo se desmorone,

Resta na verdade um juízo

Que a abone.

E, quando o mais esquece,

A verdade permanece.

 

No princípio era o Verbo,

O Homem é que em acto o vem pôr:

Dos eventos no inextricável acervo,

É o homem o acto, não o actor.

 

 

164 – Já

 

Superficial,

A ciência entristece o homem;

Total,

O amor arrebata o anjo.

Juntos, ambos consomem

As melodias que tanjo.

 

Infinda,

A ciência procura ainda;

Repousando do voo,

O amor ja encontrou.

Um novo pressentimento

Dum amor de verdade

-E um homem é um invento

De eternidade!

 

 

165 – Gratuito

 

Desejas-me, logo não amas.

O meu amor é gratuito,

Perfeito desinteresse.

 

Eleva-te às alturas donde chamas,

Donde os homens se vêem no fortuito

Areal que os aquece.

 

Grãos de areia na praia

Minúsculos e apinhados,

Repara neles e desmaia

Na vertigem de que somos estes dados.

 

Confuso, treme, treme e te reduz,

Até te afundares no vórtice da luz.

 

 

166 – Uno

 

Do mais vasto até dos mundos ao menor,

Da galáxia ao ínfimo átomo da criação,

Cada coisa é um ser único, de valor,

Sem repetição.

Porém, quando a todas reuno,

Reparo que tudo é uno.

 

Debaixo dos céus,

É o lado de cá de Deus.

 

 

167 – Diário

 

Um diário é uma viagem

Sem paragem,

De seguida:

…À imagem

Da vida!

 

 

168 – Curativo

 

O papel curativo da arte,

No autor, no fruidor,

É que o elemento pessoal, narcísico, se reparte

Dissolvido no universal.

A confissão do narrador

Mergulha-o, insensível e lenta,

Na actividade humana total.

Quando inventa,

Donde parte

É da compreensão difusa

De que a vida que recusa

Ela própria é também arte.

 

Então, gradualmente,

Com tudo e todos se cruza,

Definitivo presente!

 

 

169 – Recanto

 

A religião

De mim vai talhar um santo

Ou só um bom cidadão.

 

Quem entreabre um humano recanto

E até ao âmago o invade

É apenas a liberdade.

 

É terrível para aqueles que viveram

A vida aos bocados

E perderam e perderam,

Mentalmente algemados.

 

É a única porta, a liberdade,

Para algum dia não ter idade.

 

 

170 – Amordaçado

 

É muito engraçado

Que as palavras de menor uso

Jamais caiam em desuso:

O menos escrito e mais amordaçado

É o mais bem sabido em clandestino abuso.

Universalmente conhecidas,

Nenhuma idade, nenhuma condição

As ignora, mais ou menos travestidas,

- Como ninguém ignora o pão.

 

 

171 – Olímpica

 

A olímpica chama

Que o grande atleta busca

Arde já dentro e o chama

Bem antes da prova à justa

Em que o mundo inteiro o aclama.

 

Leva-o a ser o melhor

Como o seu melhor a dar

Sempre, seja qual for

O mais alto patamar.

 

- O desporto como a vida

Quer aquela chama erguida.

 

 

 

172 – Sorte

 

A sorte não atropeles,

Defende bem frente e lados,

Na vida não faças sala.

A sorte bafeja aqueles

Que se encontram preparados

Para aproveitá-la.

 

 

173 – Aparência

 

Do livro quando a ambição é ser impresso,

Quando por ele a ciência

Estudei na Faculdade,

Aprendi o processo

De tomar a aparência

Pela realidade.

 

Tornei-me um excesso

De falsidade.

 

Um outro livro me convida

Ao regresso

À verdade:

- A vida!

 

 

174 – Seca

 

Vamos à biblioteca,

Vamos à Universidade?

Quando pode, porém, árvore seca

Insuflar vitalidade?

 

Não é tudo, não.

Mas que enormes desertos ali vão!

 

 

175 – Quinhão

 

É o homem tanto melhor

Quanto maior o quinhão for

De sonho que lhe convém

 

E de dor

Ultrapassada

Em cada topada

Também.

 

 

176 – Laço

 

Contigo um ano passo

E é mais um laço

Que nos prende,

Que nos rende.

Contigo me purifico,

Fazes parte de meu ser,

Já não sou mais eu sequer

Com que dentro de mim fico.

 

A mais estranha evidência

A que chego, por fim,

É que és minha consciência,

Mais tu que eu dentro de mim.

 

 

177 – Brasa

 

Ninguém te vê, mulher,

E sinto-te em toda a casa.

Aquece-la para quenquer,

Uma inextinguível brasa

Presente em toda a parte

E sempre, sempre a meu lado.

Do ar que respiro ou tens arte

Ou és Deus que aqui anda disfarçado.

 

 

178 – Acção

 

Conheço a planta pela flor,

A vinha, pelo cacho

E o homem, pelo que for

A atitude que nele acho.

 

Quando nada fizer,

Deixa-o a si próprio entregue:

Mal adregue

Estará, mesmo sem querer,

A acontecer.

 

 

179 – Primordial

 

Há uma só doutrina,

Primordial,

De origem divina,

Tão simples, tão banal,

Que todos a entendem.

 

Por isso não satisfaz

Os que contendem

Na humanidade:

É que ela traria a paz.

 

Então, a vaidade

De cada qual construiu

O que distingue o teu do meu,

De modo a semear a terra

De guerra.

 

Dogmas e teologias,

Cismas e teses vazias

De sentido

E com tanta excomunhão

Que de todos hão fugido

A qualquer compreensão.

 

O fio condutor

Não é eleger um qualquer nicho:

É despejar o lixo

De vez no contentor.

A verdade

É o que resta

Depois de varrer a vacuidade:

- Tudo e todos para quem o homem não presta.

 

 

180 – Mestre

 

O mestre disse:

“Crê no que Jesus ensinou,

Não de Buda na aldrabice.”

 

O mestre retrucou:

“Crê no Buda, que é tontice

De Maomé crer nalgum voo.”

 

E o mestre insistiu:

“Acredita em Maomé,

Não nos que Jesus iludiu.”

 

Mas nem Jesus, nem Maomé, nem Buda

Disto alguma vez deram fé.

Quem neles tanto se escuda

Nunca reparou como cada qual foi cavalheiro.

 

Será que hoje em dia ninguém

É um mestre verdadeiro?

Onde encontrar o pioneiro?

O de braços abertos para além, sempre mais além,

Tornando cada palavra num verso

Do mistério a desvelar-se do Universo?

 

 

181 – Vale

 

Este mundo é um vale

Em que as lágrimas cavam um regato:

Este mundo não é o meu.

 

Trabalharemos até vermos o sinal:

Com meu acto

Cada trilho ato e desato

Até conquistarmos um portal do céu.

Dos atilhos

Com que em comum atarmos os trilhos

É que talvez logremos

Que um dia de vez não choraremos.

 

 

182 – Alma

 

Um dia, nem no laboratório

A ciência encontra o que procura:

Um dia ainda descobre o incensório

E que tem uma alma pura.

 

Na ocasião,

Quem descobre, coerente,

No meio da tremenda confusão,

Que isto é mesmo um passo em frente?

 

 

183 – Traslado

 

Deus não requer paredes, máquinas nem casa.

Para a humanidade, um templo

Que contemplo

Das obras de arte com o golpe de asa,

Pode ser meditativamente

Conveniente.

 

Deus, porém, não fica limitado

Dos templos ao traslado.

Os homens encontram-no em toda a parte

Onde quer que a beleza

Se reparte,

Na natureza,

Numa reza,

No amor do que chega e do que parte.

 

Deus é espírito puro:

Respiro-o, não o procuro.

 

O problema

É apenas devir meu lema.

 

Buda, Jesus, Maomé

Encontraram Deus em campo aberto,

Sob uma árvore, à berma da estrada,

Duma queda de água ao pé,

Numa montanha, numa flor sem sítio certo…

É simples e desperta a caminhada

Que qualquer pagão acolherá:

Deus aí está

À vista.

 

Daqui por diante

Também o cientista

Achará o laboratório sufocante.

 

Quer gostemos, quer não,

O instrumento de investigação

Mora ali.

O deus dele não é sentimental,

Não participa da emoção:

Só factos nele descobri,

Só o facto vale.

 

Talvez, porém, as emoções

Sejam um facto tão difícil, tão facto,

Que o deus-ciência requeira um pacto

Para repartirmos os quinhões:

- Um pouco de atenção

E deus a Deus, afinal, dará razão.

 

 

184 – Chefia

 

A chegada da mulher

À chefia

Implica a inversão de qualquer

Valor por que se vivia.

 

A longo prazo é a passagem

Do individualismo

À vida comunitária,

Tecelagem

(Em troca do abismo

Da força precária)

De feixes relacionais

De mútuo reconhecimento

E de participação

No comum florescimento.

 

Antes de mais,

A mulher é, sobretudo,

Amorização

A todos os níveis e em tudo.

 

 

185 – Empresa

 

As ciências da natureza

Requerem que o sujeito se apague

Perante o objecto.

Nas do homem tal empresa

Implica que eu o afague,

Carinhoso, em concreto.

 

Arte, misticismo, profecia,

Sonho revolucionário em acto,

Poesia,

O amor e dele o impacto,

Quem os queira compreender,

Só identificado ao que os viver.

 

Um objecto é compreendido

Pelo conceito;

Um sujeito

Só pelo amor será atingido.

 

As causas e os efeitos descobrir

Da embriaguês

Não é uma embriaguês sentir,

Nem sequer por uma vez.

 

Escrever

Um tratado das paixões

Não é do amor sequer

Viver uma das ilusões.

 

Duma revolução a teoria

É doutra escala

Que a euforia

De realizá-la.

 

Ser historiador

Tem uma glória;

Outra terá quem for

Alterar o devir da História.

 

Quando o Homem inteiro

Tivermos,

Então, em equilíbrio estes dois termos,

Um do outro será parceiro.

 

Apenas então de vez sairei do arquivo,

- Serei um homem vivo!

 

 

186 – Consumir

 

Consumir felicidade

Sem a produzir

É tanta perversidade,

Tão sem porvir,

Como a fama que despreza

Quem consumir a riqueza

Sem com um dedo bulir.

 

 

187 – Imediato

 

Por que não nos agarramos

Ao prazer logo de imediato?

A felicidade matamos

Enquanto nos preparamos

Para o acto.

 

Momentos volvidos,

Foi destruída

A vida

Durante os preparativos!

 

 

188 – Preso

 

Como o mundo é belo

No momento em que sou preso,

No instante em que o perdemos!

Quem dera podê-lo

Sentir assim, com este peso,

Cada dia que temos!

 

Talvez o tempo seja pouco…

Ou, pior,

Falta-me, num mundo louco,

A paz interior.

 

Não, no cotio não me apouco:

- Perco o sabor!

 

 

 

 

 

189 – Perigo

 

Na iminência do perigo,

Uma nova forma de visão

Consigo,

Pelos olhos, não,

Pelo corpo inteiro, pela pele, pelo umbigo…

De noite, então,

Devêm visíveis os ruídos

Como se eu vira com os ouvidos.

Entreabrimos os lábios, a boca:

A ver e a ouvir igualmente desemboca.

 

O perigo

Ante os monstros que nos comem

Tornou-se-nos o maior amigo:

- Foi ele que fez o Homem!

 

 

190 – Cidade

 

A mais bela

Cidade do País,

Do mundo,

É aquela

Em que me sinto, no fundo,

Mais feliz.

 

 

 

191 – Solidão

 

A solidão procura

Um companheiro.

De quem for, nem sequer cura.

Nunca a viveu por inteiro

Quem o não compreendeu.

A solidão mete dó.

Quem o não viu, não a sofreu,

Apenas esteve só.

 

 

 

192 – Infeliz

 

Às vezes, ser infeliz…

“Falta-me infelicidade!”

- Alguém algum dia o diz,

Di-lo em nome da verdade?

 

De infelicidade a ausência

Como entristece!

Uma pesada pungência,

Alimentada, refece,

Hora a hora renovada,

Inferno sem madrugada,

Mas turbulento, animado,

Cada vez mais variado,

- Eis aquilo que mantém

Em forma alguém,

Sempre em forma…

 

E é por norma

Esta forma colorida

Que dá colorido à vida.

 

 

193 – Cadilho

 

A licensiosidade

Mais desbragada

Pode ser conversada

À vontade.

De amor, não,

Ninguém gosta de falar,

Breve esgota a discussão,

Turva e perturba sem par.

 

Se houvera perdido um filho

Bem amado,

Dele o nome era um cadilho

Amarrado

Do coração em troca do lugar:

Quem então o lograria

Algum dia

Pronunciar?

 

 

194 – Ou

 

É respeito a que me exorto

Ou o constrangimento cala?

- Perante um morto

Ou falam baixo ou ninguém fala.

É tal como se ele ouvira

Tudo quanto ali bulira.

 

 

195 – Gente

 

Toda a gente

O saberia

Claramente,

De noite, que não de dia.

De cães uma alcateia,

Que sempre as há

Ocupando a vida alheia,

De noite sempre dará

Sinal ao bulir vivalma.

 

Ladra em grita

Ou rosna calma,

Conforme a estrita

Posição de quem acoima, impune.

 

Ao amor clandestino

Eis o fado que o desune,

Não é o destino.

 

 

196 – Criação

 

Toda a vida,

Com sacrifício ou sem ele,

Com oferenda ou sem ela,

É uma criação indefinida.

 

Apele a tal ou não apele,

Não me livro do esplendor

Da sequela:

- Viver é ser criador.

 

 

197 – Tarefa

 

Cumpre a tarefa de teu dia,

Que agir é mais que não agir.

O cego age pelo fruto que auferia,

O sábio, pela integridade do porvir.

 

Medita e escolhe bem.

Cada qual terá na liça

A final justiça

Conforme a cada escolha o que convém.

 

 

198 – Consciência

 

Consciência pessoal

Não é conhecimento de si

Mas o amor primordial.

Consciência de que aquilo

Que me constitui aqui,

No fundo de meu sigilo,

É com outrem minha relação:

- Sou, de raiz, comunhão.

 

 

199 – Signo

 

Ou opero a conversão

Do “eu penso, logo existo”

Para a verdadeira asserção

“Amo, logo existo”

Que me formula em comunhão,

Ou então

Não resisto:

Sou um quisto

Maligno

E a História fará minha extirpação.

 

Esta é a alternativa de meu signo.

 

 

200 – Areia

 

Crença não é fé.

Crença é adesão a uma ideia,

Fé, a decisão de tomar pé:

Arranca da areia

Para a rocha que pressentir

Todo o modo de existir.

 

 

201 – Revelação

 

Jesus de Nazaré

Não é a revelação dum ser,

Duma realidade que é

Fora de nós e sem nós como qualquer.

 

É uma exigência e um apelo:

Deus é o poder de transmudar o mundo,

Deste poder somos o elo,

O responsável primeiro e mais profundo.

 

Dele virá o fim,

Virá,

- Mas sempre e só por mim

O fim será.

 

 

202 – Espelhos

 

Cada indivíduo contém os mais

Por inteiro e até ao fim.

Uns para os outros sinais,

Assim,

Somos espelhos colocados frente a frente

Em que cada um reflecte plenamente

O outro, todos os outros, até ao infinito.

 

Uns, porém,

O infinito contêm

Estrangulado em potência, apenas um grito.

Só os mais perfeitos o contêm, de facto,

Cada vez mais em acto.

 

 

203 – Universal

 

Universal é aquele

Que é capaz de ascender ao divino

E de regressar ao múltiplo desatino

Em que o concreto se revele.

E que nunca se demora:

Investe na acção transformadora.

 

Dele todos os actos são sagrados,

Já que inteiros os destina,

Situados

Em linha com a fonte divina.

 

Da ruptura não resta sinal

Entre mundo terrestre e mundo espiritual.

Um acto é profano

Se caiu no engano

De romper a unidade.

Pelo contrário, é sagrado

Quando a refere e, nela inspirado,

Progride até ao termo da saudade.

 

 

204 – Trindade

 

A trindade é uma pessoa

Numa relação de amor:

Eu mais Tu igual a Nós.

Em cada qual a relação ressoa

E voa

Das fronteiras para além do rigor,

Em cada filho reatando os nós

Da transcendência, em ruptura criadora.

Agora

Um mais um é igual a três

Ou muitos mais talvez,

E três são sempre igual a um

Quando o amor tudo e todos

Tomou em vida comum

Até do ser nos modos.

 

A trindade

Sou eu: é a minha versão de divindade.

 

 

205 – Raiz

 

Todas as religiões

Têm uma única raiz

Na matriz,

De que são múltiplas modificações.

 

Quando a uma religião adere alguém

Foge do fundamental:

É o princípio comum que lhe convém,

O resto tanto vale.

 

O resto é o intervalo

Por onde o Princípio virá procurá-lo.

 

 

206 – Deveras

 

Educar deveras,

Dogma, não, é profecia:

Criador de novas eras

É quem metemos na via.

 

Não funda a esperança

Na natureza ou na história,

Alcança

Outra glória:

A de tornar a Humanidade consciente

De que podemos viver de modo diferente.

 

Fará emergir a transcendência

Dos vazios humanos de toda a ausência.

 

Em todo o ninho velho chocará um ovo

Donde nascerá um mundo novo.

207 – Chama

 

Repetir os rituais,

Da língua sagrada a trama,

Os sacros paramentos sem devir…

Do fogo dos ancestrais

As cinzas não andes a transmitir,

Propaga a chama!

 

Não mudas de lugar,

Da fé colado a uma versão do horizonte,

Quando é caminhando para o mar

Que um rio é fiel à fonte!

 

 

208 – Lutamos

 

Não lutamos

Para salvar velhos, armas, navios,

Nem os novos, os prados, os rios,

Nem os servos nem os amos…

 

Lutamos por uma civilização,

Por coisas amorosas para as mulheres, as crianças

E o cão…

- Lutamos pelo que tens e nunca alcanças.

 

 

209 – Perfumes

 

Acabaram-se os perfumes,

Devém cansaço a canseira.

Os lumes

Apagam na fogueira.

 

Sob as cinzas, porém,

Discretas,

Fulgem as brasas de quem,

Com estima subida,

Retém

As dietas

Secretas

Que dão a vida.

 

É a comida

Da ternura

Repartida,

É o tempo que dura

A palavra da refeição

Na mesa comum,

São os passos paralelos pelo chão

Do passeio através dos anos,

Desvendando notícias e arcanos,

Até não restar segredo algum.

 

Então o fogo se ateia,

É mais que vida, é amor

O que o lar nos incendeia.

Tal fulgor

É que é minha candeia:

És tu quem me alumia,

És meu dia.

 

Se por ti clamo,

É que desta chama

Se alimenta quem ama

E eu te amo.

 

 

210 – Amar

 

Amar uma mulher,

Amar uma ideia,

Amar o que valer,

Seja o que for

Que permeia

A vida ao amor,

É o bordão a que me apego,

Que me ajuda a caminhar

Pelo tempo o meu lugar.

 

E a velho inteiro assim chego.

 

 

211 – Aquela

 

Aquela rapariga

Com o sabor fundo da terra,

A que comigo briga,

A que me obriga

A quanta paz hoje há na guerra,

Aquela

Cujo prazer

É a particular janela

Para aquele que eu alguma vez tiver,

Ela,

Ela só

É o dedo de Deus que me faz erguer do pó.

 

Não é qualquer

Permutável mulher

Dum sempre idêntico prazer.

 

Nem sequer

É um objectivo

Quando dela me aproximo

Com o prévio temor e tremor vivo

De quem está prestes do cimo.

 

Não é o prazer

Que irei ter,

É dela, é dela este inefável encanto

Que me inaugura entretanto:

Não penso em meu prazer neste porvir

Mas em de vez de mim sair.

 

O paroxismo final,

Imanente, oculto, mal

Esperado,

Culmina o prazer dos doces olhares,

Do beijo roubado,

É o transporte da gratidão

Entre pares,

Pela predilecção

Que ela demonstrar por mim.

Predilecção que meço

Quando tropeço

Em meu confim,

Ao verificar que fui eleito

Para o céu que me enche o peito.

 

Eu, tão nada

Que sou,

Como é que voo

Sobre cumeeira tão elevada?

 

 

212 – Pequeno

 

Creio no ser que percorria

Enquanto, pequeno, o conhecia.

 

Hoje, é sob o seu império

Que o vivo como o que é sério.

 

Quanto mais o semeei de fantasia

Mais aqui dele recolho a alegria.

 

Porque a fé se me esgotou

E real de memória apenas sou,

 

A flor que hoje alguém me apresentar

Não é verdadeira, é daquela um avatar

 

Cujas pétalas, em miúdo, cheirei

E que hoje é de mim o que sou e sei.

 

 

213 – Cativas

 

Talvez a verdade não seja nada

E todo o sonho, inexistente.

Mas da música a brecha rasgada,

Do poema a fresta que pressente,

Da pintura a pincelada

A entreabrir uma janela,

Ausente e presente,

Para além do muro da viela…

- Tudo o que aqui adivinho

É aquele sonho a caminho.

 

Será nada,

Como ele,

Mas também o irresistível que impele

À estrada.

 

Pereceremos…

Como refém,

Temos,

Porém,

Aquela cativa marca divina

Que nos seguirá na sina.

 

Com ela, a morte

Mais devém que menos amarga:

Minha sorte

Perde a imponderável

Carga,

- Talvez a morte devenha assim menos provável.

 

 

214 – Diferença

 

A diferença

Entre uma pessoa bela

E uma ideia da beleza

É igual à presença

Dela

Quando nos preza:

Entre o calor

Que me faz sentir

E a ideia de amor

Que metro alcança medir

A infinita distância,

- A ignorância?

 

 

215 – Ruídos

 

Por amor, como quem contra os ruídos,

Em vez de reclamar que acabem,

Tapa os ouvidos,

Por amor são nossos gestos que sabem

Do amor,

Não os de quem é amado,

A que eventualmente nem cabem.

Por amor, a quem de alguém é senhor

É o mundo sacrificado.

Nunca, na defensiva,

Se põe a exigir a quem lhe for

Exterior

Que por ele viva.

 

Por mais que seja o sonho maior

Que acalente na retentiva.

 

 

216 – Ramos

 

Infiltramos nos sentimentos

De quem amamos

Inúmeros movimentos

Adormecidos que nos desperta

E lhe são alheios,

Como os ramos

Misturados duma copa aberta

Com a vizinha permutam frutos cheios.

 

Depois, o sentimento particular

Mergulha na verdade radical

Do sentir fundamental,

Da Humanidade avatar,

Pelo qual os outros e as mágoas

Que nos dão

São a doirada ocasião

De eu partilhar, em minha pequena caravela,

As imensas águas

Onde navego minha diminuta parcela

Deste oceano descomunal

Do amor universal.

 

 

217 – Ilusão

 

Não é na mulher,

Nela mesma pouca coisa,

É no poder

De imaginar a ilusão em que repoisa

A dor do amor

- Que a grandeza

Toma cor,

Tem o valor

Que o homem toda a vida afinal preza.

 

 

218 – Cometa

 

De meu comportamento o que recordo

Permanece ignorado

De meu vizinho mais chegado.

 

O equilíbrio, porém, no desacordo

Provém de que aquilo que esqueci,

Que nem terei dito nem feito,

Vai ser dissecado a bisturi

E tomado tão a peito

Nos confins do mundo,

Noutro planeta,

Que, de repente, me afundo

Na interminável cauda do cometa.

 

A imagem que de mim formam

E a que de mim próprio formei

Tão pouco se conformam,

Tão mutuamente pouco se informam

Que em reinos independentes criam lei.

 

Tal como para um desenho

Um decalque tão falhado

Que onde um traço negro tenho

É a brancura no outro lado.

 

Pode acontecer, porém,

Que neste traço falhado

À superfície o que vem

Seja meu fundo ignorado:

Tenho uma radiografia

Do esqueleto que nem sei

Alguma vez se o teria.

 

Nem sequer precisarei

De trocar de mim a imagem:

Do fundo a que não cheguei

Recolho aqui a mensagem.

E às duas a minha lei

Presta então a vassalagem,

Sem o meu rosto mudar

Na caveira em seu lugar.

 

 

219 – Atrapalho

 

É um erro crer que o trabalho

Corre mal

Quando corre mal a vida.

Longe de ser atrapalho,

Se me entrego em força à lida,

Centro uma energia tal

No que opero e opero bem

Que acabo por ir além:

Deveras fujo à prisão

Da vida,

Marco a pegada no chão,

Liberto-me de seguida.

 

 

220 – Horas

 

O Natal são as sendas

Que demoras

A colorir de prendas

Minhas horas.

 

E são horas coloridas

Que, nas sendas clandestinas

Das prendas hauridas,

Ao fim me destinas:

É teu brinde principal

De nosso perene Natal.