SEGUNDO VERSO
Escolha um número aleatório entre 110 e 220 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
110 – Quando o que somos pesquisarmos perto
Quando o que somos pesquisarmos perto,
O trato
Exacto
É que tudo em nós é tão incerto,
Com marca de nervoso ou de pacato,
De estúpido ou de esperto,
Que o mais a que me alerto
São os limites onde me acato.
E assim,
Vendo ao longe o fim
Que nunca é meu,
Afinal em minha quinta descanso
No remanso
De quem alguns terá nacos de céu.
111 – Inteligente
A maioria das crianças sente
Que a ciência
É apenas para quem é inteligente,
Paciência…
Contudo, os cientistas naturais,
Por instinto, são elas,
Do mundo e tudo o mais
Às janelas.
Seria muito fácil ajudar
As crianças:
Bastaria as perguntas partilhar
De que te cansas.
112 – Partilho
A curiosidade do filho
Se partilho,
Dou-lhe valiosa lição:
A ciência fica à mão.
Aprende que vale a pena
Persistir, experimentar,
Que as muralhas apequena
Do que houver a conquistar.
Aprender não é enfadonho,
Nem é tortura de escola,
É um desafio medonho:
E o coelho sai da cartola!
Aprender então é um acto
A gozarmos cada dia
- E a vida inteira desato
A mudar em romaria!
113 – Aula
A vida é como aula
Sobre um tema
De matemática:
Escapamos à jaula
Resolvendo um problema?
Logo o mestre muda de temática!
114 – Encorajador
A criança vi melhor
Com o acto que reconhece
Como acto encorajador.
E fenece
Como planta mal regada
Ao castigo e à palavra degradada.
Não é de somenos
O que cada qual faz:
O encorajamento torna-a mais capaz,
O desencorajamento, menos.
115 – Empatizantes
Simpatizantes
São meros espectadores.
Os empatizantes
Calçam os ténis das dores,
Põem a pegada devida
Na corrida.
116 – Guilhotina
Quem pode erguer a guilhotina
Aos mortos?
Sombra e luz não se degolam:
Connosco ela não atina
Se Além nos ficam os portos
E as faces que nos arrolam.
Já não pode mais ferir
Mas tenta insistentemente
Quebrar-nos os braços?
Abraça-me, que o devir
Germinará da semente
Que da ternura há nos traços.
Na hora derradeira
Talvez algo fique de nós
A iluminar a voz herdeira
De nossa voz.
117 – Tremor
Abro de noite a janela
A ver o frio.
O tremor daquela estrela
Surpreendi-o,
Vai extinguir-se de repente
Naquele lugar:
Apanharam-na numa corrente
De ar!
118 – Poesia
A mais vasta,
A mais universal
Poesia é a que se engasta
Nas leivas de Portugal,
Recorte de minha casta
Na paisagem universal.
119 – Dançar
É-me indiferente ser
Ou não
Tudo o que de mim você disser.
Em vão
Acredita na ilusão.
Minha vontade de dançar
Vem do mero facto a par
De você o saber,
Não é dele imitação.
A par,
Pode crer:
- É que é de mim cuidar.
Dançar para mim é ser, dia a dia mais ser
Um raio de luar.
120 – Mimado
Menino mimado,
Como poderia ter aprendido
Que o dinheiro bem suado
É comedido
E pesado?
Manejamo-lo com solicitude,
Falamo-lo gravemente:
Porque se sente
Que é virtude.
121 – Sonhos
Os sonhos são linguagem
Doutras medidas
Que com as deste mundo interagem:
As das vidas já vividas,
As dos que ainda não são vidas.
Aviso,
Premonição,
Recado de Deus, se de siso,
Do demo, se danação.
Terrível segredo
Sagrado,
No ar invisível paira, tredo,
Inviolado,
Cercando-me por todo o lado.
Dizem que após morrermos
Saberemos tudo:
- Viver é falar em termos
De quem é mudo!
122 – Livro
Cada livro é uma janela
Do Universo:
Cada qual, uma parcela;
Tudo junto, que diverso!
Mais aprendo ao vivo nos costumes
Sobre os homens, porém,
Do que a ler quaisquer volumes
Que o mundo inteiro contém.
123 – Saber
Há um momento na vida daqueles
Que nascem mais tarde
Em que há mais saber neles
Do que o que nos mais se guarde.
Sei após seu tempo aquilo
Que os antigos me contaram.
Do presente o saber fi-lo
Com o que os meus gestos aram.
É o porvir da antiga grei
Aquilo que afinal sei:
Para ela o que inauguro
No mais de que me inteirei
É, pois, que eu sei o futuro
Vedado aos dela por lei.
124 – Espero
Espero
Porque desejo e pressinto
Que sou esperado por alguém.
Pinto-o
Como o quero:
- Como quem
Me espera com amor.
Vida não é vida
Nem valor, valor,
Se alguém lá do fim me não convida.
Esperar, porém,
É confiar num futuro
Que me não poderei dar.
Quem manda em quem?
Nada é seguro
Neste lugar.
É nas mãos deste porvir
De que não posso dispor
Que me vou pôr,
Que estou a ir…
125 – Funcional
A educação
Meramente funcional
Ignora que qualquer profissão
É inelutavelmente dual:
Ou mercantil
Ou sacerdotal.
Aquela, se o ter e o poder
For seu carril.
Esta, se o primeiro dever
For a comunidade universal
E lhe assumir, a todo o momento,
O humano desabrochamento.
126 – Apelo
Não, Deus, Deus, não sei o que é.
Se o soubesse, não seria,
Era a minha fantasia.
Mas, então, fica o problema de pé.
Porém, sei o que não é:
Sei que será sempre um não
Ao ser que os mais seres são.
É aquela presença activa
Além da vista ou sentidos
Que a palavra não cativa,
Onde os termos são mentidos.
Presença, mas não dum ser,
Antes para ser o apelo,
Para criar o que houver
De ser de modo singelo.
Deus é aquela liberdade
De ser alegre e sem prova
Além de qualquer verdade:
A força, a força que inova.
Oceano que me contém
A centelha provisória,
Ultrapassa-me de além
E assim me convoca à História.
127 – Múltiplas
A mesma fé,
Cruzando múltiplas culturas,
Gera múltiplas religiões.
O mesmo pé
Alimenta a rama de todas as verduras
De que, afinal, dispões.
Urge perder a ilusão
De que a única verdadeira
É a nossa religião,
Pois ignoramos então
O comum tronco das mais,
Até à derradeira.
Todas nem sequer serão demais
Para nos renovarem os sinais
A vida inteira.
128 – Perspectiva
A realidade nunca pode ser cativa
Duma só perspectiva:
Captá-la plena implica a exigência
De viver até ao fim
Dos outros a experiência
Dentro de mim.
129 – Missão
Combate toda a religião
O dualismo. Superar a exterioridade
É dela a primeira missão:
Um deus só de majestade,
Do homem segregado,
E não vivo e chagado
Em acto de perene criação,
Tal deus, não!
É a nossa chaga do lado,
Mata-nos no coração.
130 – Traslado
Hipótese e postulado
E o sentido aonde apontam
São meu íntimo traslado:
Quem sou eu é quanto contam.
Verificar, passiva,
A verdade positiva
Mui auto-suficiente,
Fora de nós, é, sem nós,
Buscar água da nascente.
Quando assim ficamos sós,
Morremos enquanto gente,
Morre a crença logo após.
Deus vai morrendo
Quando para a morte
O Homem for correndo:
Ambos têm unida a sorte.
Viver é amar, criar além
Da vida que se tem.
131 – Negação
A negação
De quenquer
Como é que se negaria?
- A teologia da revolução
Requer
A revolução da teologia.
132 – Postulado
Um postulado,
Apesar de indemonstrável,
Não tem nada de arbitrário:
Uma acção torna viável.
O valor é comprovado
Por um critério primário:
Verifico o efeito
Que dali me vem direito.
Se à vida quero um sentido,
Postulo que o tem de facto:
Então o efeito vivido
Pende inteiro de meu acto.
133 – Condição
Pára a minha liberdade
Onde a doutrem principia,
Tal como a propriedade
Na dos mais se estremaria.
Mas a liberdade não
É o limite
Que a minha trave e credite,
É a sua condição.
Minha liberdade que seria
Dos mais se fora vazia?
134 – Matriz
Trabalho é matriz de laços
Com a natureza.
Sacrifício é matriz de laços
Com o vizinho.
O amor, quando de humano se preza,
É do mundo inteiro o primeiro cadinho:
Enlaça de múltiplos modos
A Terra, o Universo e os homens todos.
135 – Amputação
Doutrem ter a precisão
É de mim não me bastar:
Já não sou para mim
Meu próprio fim.
Sofro duma amputação
Que só se há-de completar
Na complementaridade
Com outrem a que agrade:
Quer
Dum homem para uma mulher,
Quer, pois importa que se somem,
Duma mulher para um homem.
136 – Pedinte
O que leva a não morrer
É o amor
Entre o homem e a mulher.
Primeiro por ir transpor
Para a geração seguinte
A vida que vem detrás.
Depois porque, à solidão
Que quem nasce e morre traz,
Arranca o pobre pedinte
Que todos somos no chão.
É a participação
Naquilo que me ultrapassa
E não morre:
A próxima geração
E o sacrifício que enlaça
O sonho que por nós corre.
137 – Escravo
Metamorfoses e revoluções,
Eis como caminha a vida.
Quem de escravo viver as condições
Como escravo pensa e lida.
Se liberto, pensará
Como um homem livre pensa.
A grandeza da vida sempre está
Em que o escravo um dia se convença
De que a si próprio se liberta:
Como homem livre se cria,
Porta aberta
Tão inexplicável como a que num dia
Transforma, discreta,
Uma lagarta em borboleta.
138 – Revolucionário
Revolucionário não é alguém
Que como tal se designa,
A sério para que o tomem.
- Revolucionário é quem
Se não resigna
À desgraça do homem.
139 – Acúmen
A vida humana
É o acúmen do mundo.
Sob ódio, porém, nada emana,
Perde o valor mais fecundo.
Sob o homem habitual
Um outro se acobertou
Que de homem não dá sinal,
Sente e não pensa quem sou.
O ódio acorda o animal:
Se de vez não me anulou,
Quem sou eu, quem, afinal?
O que aqui me deu à luz
Ou o outro que mais seduz?
Ou nunca serei sequer
Aquele que devo ser?
Em mim que é que me traduz:
O que sou sem o querer,
O que não consigo ser,
Ou quanto, lento, em mim pus?
140 – Isolamento
Tanto de convívio me alimento
Que a mais partilhada ferramenta
Do mundo é o isolamento
Para dum preso extorquir, no final,
Do que intenta
A confissão total.
141 – Monumentos
Os monumentos
Mais admiráveis da cidade
Não se elevam dos cimentos
Nem de bronze entalham connosco a afinidade.
O melhor são as árvores e os parques,
Os jardins de pássaros e animais,
Os lagos que de peixes encharques…
- Só aqui de teus amores
Verás sinais,
Só aqui os encontras no que fores.
O mais,
Matéria morta,
A que vida te exorta?
142 – Lonjura
Num estrangeiro lugar
A saudade nos convida
A pesar quanto a lonjura não é leveira:
- Que bom encontrar
Uma cara conhecida
Quando alguém anda perdido em terra estrangeira!
143 – Ostra
Das verdades a verdade
Nunca nela a mão tu poisas:
Quem as invade
Nunca mais descobre as coisas.
Sai a pérola da ostra
Mas não pela descrição,
À voz duma explicação.
O que deveras nos mostra
No fundo o que as coisas são
Não requer prova ou amostra,
É pura contemplação.
Se lá chega o coração,
A mente não é precisa:
Ali mente é mente em vão
E nunca mais ajuíza.
144 – Aliena
O benefício material
Retirado à natureza
Pelo mundo ocidental
Alheia-nos da beleza
E aliena cada qual
Dos mais e de si também.
E o efeito mais concreto
É que o muro se mantém
Entre o sujeito e o objecto.
Esta via
Nunca leva ao que anuncia.
A inversa,
Aquém
Com o lado de lá conversa
E o fio dele retém
Como rumo a prosseguir
Se quisermos ter porvir.
145 – Tubos
Tubos em feixes de tubos,
Os homens não são esferas
Nem cubos,
São poliedros de eras e eras,
Tão complexos no final
Ante uma análise fina,
Que são sempre algo transcendental
Ao que alguém lá imagina.
146 – Derradeira
Dirá Deus a palavra derradeira
Sobre os príncipes da igreja?
- Se Deus não existir, é brincadeira,
Permitido será o que quer que seja.
E a verdade é que Deus jamais existe
Sob qualquer forma
Que a mente alguma vez tiver em riste,
Será o que for fora da norma.
Então,
Sem sentido definido,
Tudo será sempre em vão,
Já que tudo é permitido.
O que importa é que se veja
A conclusão primeira:
- Deus já disse nisto a palavra derradeira
Sobre os príncipes de qualquer igreja.
147 – Muralha
A muralha de concreto
Erguida entre tua igreja
E o negócio a que dás tecto
Bem queres que ninguém veja!
Como os contos fariseus,
Com uma das mãos afagas
O cordeiro de Deus.
Para engordar o tesoiro,
Com a outra, esconso, pagas
Ao bezerro de oiro.
148 – Antítese
Democracia-comunismo: antítese
Deveras emntirosa.
As verdadeiras antíteses darão a síntese
Que em tais simplismos não se entrosa.
A democracia à ditadura
Se opõe como figura.
Comunismo é socialismo extremista,
Nazi-fascismo é capitalismo extremista.
Como os extremos se tocam,
São tirânicos os dois,
Ditaduras desembocam
Do que são, logo depois.
Capitalismo tal qual socialismo
Podem ser dialécticos modelos
Que, se moderados, crismo
Como os que gritam apelos
Das insondáveis distâncias
Por que apelam nossas ânsias.
Ambos, pois, em termos práticos,
Por igual poderão ser democráticos.
Quando em sã competição
É que as mãos dão ao poder,
Os povos só lucrarão
Da emulação que isto der:
Este agora, após aquele
E o mundo em frente se impele.
149 – Enfermo
O meio termo
Não leva a parte alguma:
Prova a História que o enfermo
Não vive nem morre, em suma.
Partejar grandes mudanças,
Só quando com a violência
A colectividade alcanças
Na vastidão da existência.
Porém, a ideologia,
Quando transgride os limites
Da ética, brusca enuncia
Os mais desumanos palpites:
Quem é que a distinguiria
Do que ela, afinal, cortaria?
Dum meio,
Transmuda-la logo em fim:
No seio
Já não guarda mais lugar
Nem para mim,
Nem para o Homem caminhar.
150 – Corpo
Nada nem ninguém
Mais perto dum homem mora
Do que o corpo que ele tem:
Do nascimento à morte lhe demora.
Por quê, então,
Tratá-lo como um ladrão?
151 – Esconder
Maior que outro insulto qualquer
À nossa comum natureza,
É impedir a culpa de esconder
A cara por vergonha.
Porque demais a despreza,
Nem é um castigo sequer:
É alguém não ter onde se ponha.
Sendo que, ao invés, dele todo o não-ser
A todo o mundo permanente o exponha.
152 – Jovem
O jovem,
Não tendo ainda afundado raízes na terra,
Fáceis os ventos o movem
E, no pino da serra,
Quando a lonjura o convida,
Leve abandona a vida.
Como o santo,
Olha uma estrela
E, ao ver-se tão longe dela,
Morre por falta de encanto.
E a sequela
É mais de risco que de pranto.
É que na morte também
Busca um além:
Não é um desvio,
É a quebra final do fastio.
153 – Parco
Parco é o segredo
Que escapa ao investigador
Com ocasião, liberdade e credo
Para com arte se propor
Levantar a ponta do véu
Que encobre a cor
Do céu…
154 – Culpa
Quase tudo consigo
Excepto quando a culpa me invade:
A culpa traz consigo
A marca da fatalidade.
O que for, será:
E mais não há!
Só o arrependimento
E o perdão
Podem restituir-me nalgum momento
O chão.
155 – Jovem
As coisas se movem
Tanto a mando de tom velho
Como de novo tom.
Apenas o jovem,
Da vida sem o conselho,
Crê que o novo é sempre bom,
Seria aquele
Fogo que o mundo impele.
Nisto é que a idade
Será mestra da verdade.
156 – Credes
Credes que foi isto que Ele quis?
Que se encontra em doiradas catedrais,
Nos palácios onde residis?
Ele nunca vive em ambientes tais:
Mora no lar insuportável
Em que cair
Todo e qualquer miserável.
- E nunca de lá vai sair!
157 – Cadáver
Todo o cadáver é o mundo real,
Miserável, cheio de lama,
Manchado de sujidade.
Quem o ama
É que dum outro lado lá viu um sinal:
Atrás da máscara, a fugidia verdade.
158 – Impéro
Meu lar
É o império
Do ser,
Mas, enquanto não aceitar
Que a vida assenta no mistério,
Nada hei-de aprender.
159 – História
O homem que conta a própria história
Não é já quem a viveu
Quando a gravou na memória.
Distorções, deformações,
- Que sei eu? –
Eis o preço inevitável
De reviver os baldões
Da vida no que é evocável.
O mais estranho é que o fito
Desta desfiguração
É aprender neste conflito
O que a sério as coisas são.
160 – Íntegro
À medida que alguém
Íntegro e unificado devém
O sexo encontra a dimensão:
Os órgãos genitais são
Um serviço do ser completo.
Procriam do chão ao tecto
Por todas as esferas.
O que inaugura as novas eras
É o ente que o é por inteiro,
O amor carnal é pioneiro
Do espírito no desejo
Do amor e da harmonia:
Gerar no ventre é o ensejo
De me inaugurar qualquer dia.
161 – Isolado
Viver por inteiro isolado
E esquecer?
- Em nenhum lado
É viável nem sequer
Por um bocado.
Quem o tentou, falhou.
Tanto somos de fios o entrançado
Cordame prolongado,
Que ninguém jamais corta, como ameia,
O cordão que o liga à teia!
162 – Fim
Não ir até o fim
É o erro fatal do homem.
Assim
Todos se somem
Para nada.
A vida atraiçoada
É vogar na onda.
Empregamos a justificá-la,
Para que a vergonha se esconda,
O tempo e o engenho
Requeridos se houvera empenho
De quebrar a tala
E saltar fora da escala
A que me atenho.
Obedecer ao mundo tal como é,
Que falta de fé!
163 – Atento
O acto importante
Não é barulhento.
Quando tudo se desmorona e cai diante,
O acto mais atento
E com sentido
É ficar sentado,
Calado,
Tal como antes do ocorrido.
Quem for capaz
De dar corpo à verdade que traz,
Algo opera mais decisivo e sério
Que a derrocada dum império.
Gritar a verdade? Não é preciso.
Mesmo que o mundo se desmorone,
Resta na verdade um juízo
Que a abone.
E, quando o mais esquece,
A verdade permanece.
No princípio era o Verbo,
O Homem é que em acto o vem pôr:
Dos eventos no inextricável acervo,
É o homem o acto, não o actor.
164 – Já
Superficial,
A ciência entristece o homem;
Total,
O amor arrebata o anjo.
Juntos, ambos consomem
As melodias que tanjo.
Infinda,
A ciência procura ainda;
Repousando do voo,
O amor ja encontrou.
Um novo pressentimento
Dum amor de verdade
-E um homem é um invento
De eternidade!
165 – Gratuito
Desejas-me, logo não amas.
O meu amor é gratuito,
Perfeito desinteresse.
Eleva-te às alturas donde chamas,
Donde os homens se vêem no fortuito
Areal que os aquece.
Grãos de areia na praia
Minúsculos e apinhados,
Repara neles e desmaia
Na vertigem de que somos estes dados.
Confuso, treme, treme e te reduz,
Até te afundares no vórtice da luz.
166 – Uno
Do mais vasto até dos mundos ao menor,
Da galáxia ao ínfimo átomo da criação,
Cada coisa é um ser único, de valor,
Sem repetição.
Porém, quando a todas reuno,
Reparo que tudo é uno.
Debaixo dos céus,
É o lado de cá de Deus.
167 – Diário
Um diário é uma viagem
Sem paragem,
De seguida:
…À imagem
Da vida!
168 – Curativo
O papel curativo da arte,
No autor, no fruidor,
É que o elemento pessoal, narcísico, se reparte
Dissolvido no universal.
A confissão do narrador
Mergulha-o, insensível e lenta,
Na actividade humana total.
Quando inventa,
Donde parte
É da compreensão difusa
De que a vida que recusa
Ela própria é também arte.
Então, gradualmente,
Com tudo e todos se cruza,
Definitivo presente!
169 – Recanto
A religião
De mim vai talhar um santo
Ou só um bom cidadão.
Quem entreabre um humano recanto
E até ao âmago o invade
É apenas a liberdade.
É terrível para aqueles que viveram
A vida aos bocados
E perderam e perderam,
Mentalmente algemados.
É a única porta, a liberdade,
Para algum dia não ter idade.
170 – Amordaçado
É muito engraçado
Que as palavras de menor uso
Jamais caiam em desuso:
O menos escrito e mais amordaçado
É o mais bem sabido em clandestino abuso.
Universalmente conhecidas,
Nenhuma idade, nenhuma condição
As ignora, mais ou menos travestidas,
- Como ninguém ignora o pão.
171 – Olímpica
A olímpica chama
Que o grande atleta busca
Arde já dentro e o chama
Bem antes da prova à justa
Em que o mundo inteiro o aclama.
Leva-o a ser o melhor
Como o seu melhor a dar
Sempre, seja qual for
O mais alto patamar.
- O desporto como a vida
Quer aquela chama erguida.
172 – Sorte
A sorte não atropeles,
Defende bem frente e lados,
Na vida não faças sala.
A sorte bafeja aqueles
Que se encontram preparados
Para aproveitá-la.
173 – Aparência
Do livro quando a ambição é ser impresso,
Quando por ele a ciência
Estudei na Faculdade,
Aprendi o processo
De tomar a aparência
Pela realidade.
Tornei-me um excesso
De falsidade.
Um outro livro me convida
Ao regresso
À verdade:
- A vida!
174 – Seca
Vamos à biblioteca,
Vamos à Universidade?
Quando pode, porém, árvore seca
Insuflar vitalidade?
Não é tudo, não.
Mas que enormes desertos ali vão!
175 – Quinhão
É o homem tanto melhor
Quanto maior o quinhão for
De sonho que lhe convém
E de dor
Ultrapassada
Em cada topada
Também.
176 – Laço
Contigo um ano passo
E é mais um laço
Que nos prende,
Que nos rende.
Contigo me purifico,
Fazes parte de meu ser,
Já não sou mais eu sequer
Com que dentro de mim fico.
A mais estranha evidência
A que chego, por fim,
É que és minha consciência,
Mais tu que eu dentro de mim.
177 – Brasa
Ninguém te vê, mulher,
E sinto-te em toda a casa.
Aquece-la para quenquer,
Uma inextinguível brasa
Presente em toda a parte
E sempre, sempre a meu lado.
Do ar que respiro ou tens arte
Ou és Deus que aqui anda disfarçado.
178 – Acção
Conheço a planta pela flor,
A vinha, pelo cacho
E o homem, pelo que for
A atitude que nele acho.
Quando nada fizer,
Deixa-o a si próprio entregue:
Mal adregue
Estará, mesmo sem querer,
A acontecer.
179 – Primordial
Há uma só doutrina,
Primordial,
De origem divina,
Tão simples, tão banal,
Que todos a entendem.
Por isso não satisfaz
Os que contendem
Na humanidade:
É que ela traria a paz.
Então, a vaidade
De cada qual construiu
O que distingue o teu do meu,
De modo a semear a terra
De guerra.
Dogmas e teologias,
Cismas e teses vazias
De sentido
E com tanta excomunhão
Que de todos hão fugido
A qualquer compreensão.
O fio condutor
Não é eleger um qualquer nicho:
É despejar o lixo
De vez no contentor.
A verdade
É o que resta
Depois de varrer a vacuidade:
- Tudo e todos para quem o homem não presta.
180 – Mestre
O mestre disse:
“Crê no que Jesus ensinou,
Não de Buda na aldrabice.”
O mestre retrucou:
“Crê no Buda, que é tontice
De Maomé crer nalgum voo.”
E o mestre insistiu:
“Acredita em Maomé,
Não nos que Jesus iludiu.”
Mas nem Jesus, nem Maomé, nem Buda
Disto alguma vez deram fé.
Quem neles tanto se escuda
Nunca reparou como cada qual foi cavalheiro.
Será que hoje em dia ninguém
É um mestre verdadeiro?
Onde encontrar o pioneiro?
O de braços abertos para além, sempre mais além,
Tornando cada palavra num verso
Do mistério a desvelar-se do Universo?
181 – Vale
Este mundo é um vale
Em que as lágrimas cavam um regato:
Este mundo não é o meu.
Trabalharemos até vermos o sinal:
Com meu acto
Cada trilho ato e desato
Até conquistarmos um portal do céu.
Dos atilhos
Com que em comum atarmos os trilhos
É que talvez logremos
Que um dia de vez não choraremos.
182 – Alma
Um dia, nem no laboratório
A ciência encontra o que procura:
Um dia ainda descobre o incensório
E que tem uma alma pura.
Na ocasião,
Quem descobre, coerente,
No meio da tremenda confusão,
Que isto é mesmo um passo em frente?
183 – Traslado
Deus não requer paredes, máquinas nem casa.
Para a humanidade, um templo
Que contemplo
Das obras de arte com o golpe de asa,
Pode ser meditativamente
Conveniente.
Deus, porém, não fica limitado
Dos templos ao traslado.
Os homens encontram-no em toda a parte
Onde quer que a beleza
Se reparte,
Na natureza,
Numa reza,
No amor do que chega e do que parte.
Deus é espírito puro:
Respiro-o, não o procuro.
O problema
É apenas devir meu lema.
Buda, Jesus, Maomé
Encontraram Deus em campo aberto,
Sob uma árvore, à berma da estrada,
Duma queda de água ao pé,
Numa montanha, numa flor sem sítio certo…
É simples e desperta a caminhada
Que qualquer pagão acolherá:
Deus aí está
À vista.
Daqui por diante
Também o cientista
Achará o laboratório sufocante.
Quer gostemos, quer não,
O instrumento de investigação
Mora ali.
O deus dele não é sentimental,
Não participa da emoção:
Só factos nele descobri,
Só o facto vale.
Talvez, porém, as emoções
Sejam um facto tão difícil, tão facto,
Que o deus-ciência requeira um pacto
Para repartirmos os quinhões:
- Um pouco de atenção
E deus a Deus, afinal, dará razão.
184 – Chefia
A chegada da mulher
À chefia
Implica a inversão de qualquer
Valor por que se vivia.
A longo prazo é a passagem
Do individualismo
À vida comunitária,
Tecelagem
(Em troca do abismo
Da força precária)
De feixes relacionais
De mútuo reconhecimento
E de participação
No comum florescimento.
Antes de mais,
A mulher é, sobretudo,
Amorização
A todos os níveis e em tudo.
185 – Empresa
As ciências da natureza
Requerem que o sujeito se apague
Perante o objecto.
Nas do homem tal empresa
Implica que eu o afague,
Carinhoso, em concreto.
Arte, misticismo, profecia,
Sonho revolucionário em acto,
Poesia,
O amor e dele o impacto,
Quem os queira compreender,
Só identificado ao que os viver.
Um objecto é compreendido
Pelo conceito;
Um sujeito
Só pelo amor será atingido.
As causas e os efeitos descobrir
Da embriaguês
Não é uma embriaguês sentir,
Nem sequer por uma vez.
Escrever
Um tratado das paixões
Não é do amor sequer
Viver uma das ilusões.
Duma revolução a teoria
É doutra escala
Que a euforia
De realizá-la.
Ser historiador
Tem uma glória;
Outra terá quem for
Alterar o devir da História.
Quando o Homem inteiro
Tivermos,
Então, em equilíbrio estes dois termos,
Um do outro será parceiro.
Apenas então de vez sairei do arquivo,
- Serei um homem vivo!
186 – Consumir
Consumir felicidade
Sem a produzir
É tanta perversidade,
Tão sem porvir,
Como a fama que despreza
Quem consumir a riqueza
Sem com um dedo bulir.
187 – Imediato
Por que não nos agarramos
Ao prazer logo de imediato?
A felicidade matamos
Enquanto nos preparamos
Para o acto.
Momentos volvidos,
Foi destruída
A vida
Durante os preparativos!
188 – Preso
Como o mundo é belo
No momento em que sou preso,
No instante em que o perdemos!
Quem dera podê-lo
Sentir assim, com este peso,
Cada dia que temos!
Talvez o tempo seja pouco…
Ou, pior,
Falta-me, num mundo louco,
A paz interior.
Não, no cotio não me apouco:
- Perco o sabor!
189 – Perigo
Na iminência do perigo,
Uma nova forma de visão
Consigo,
Pelos olhos, não,
Pelo corpo inteiro, pela pele, pelo umbigo…
De noite, então,
Devêm visíveis os ruídos
Como se eu vira com os ouvidos.
Entreabrimos os lábios, a boca:
A ver e a ouvir igualmente desemboca.
O perigo
Ante os monstros que nos comem
Tornou-se-nos o maior amigo:
- Foi ele que fez o Homem!
190 – Cidade
A mais bela
Cidade do País,
Do mundo,
É aquela
Em que me sinto, no fundo,
Mais feliz.
191 – Solidão
A solidão procura
Um companheiro.
De quem for, nem sequer cura.
Nunca a viveu por inteiro
Quem o não compreendeu.
A solidão mete dó.
Quem o não viu, não a sofreu,
Apenas esteve só.
192 – Infeliz
Às vezes, ser infeliz…
“Falta-me infelicidade!”
- Alguém algum dia o diz,
Di-lo em nome da verdade?
De infelicidade a ausência
Como entristece!
Uma pesada pungência,
Alimentada, refece,
Hora a hora renovada,
Inferno sem madrugada,
Mas turbulento, animado,
Cada vez mais variado,
- Eis aquilo que mantém
Em forma alguém,
Sempre em forma…
E é por norma
Esta forma colorida
Que dá colorido à vida.
193 – Cadilho
A licensiosidade
Mais desbragada
Pode ser conversada
À vontade.
De amor, não,
Ninguém gosta de falar,
Breve esgota a discussão,
Turva e perturba sem par.
Se houvera perdido um filho
Bem amado,
Dele o nome era um cadilho
Amarrado
Do coração em troca do lugar:
Quem então o lograria
Algum dia
Pronunciar?
194 – Ou
É respeito a que me exorto
Ou o constrangimento cala?
- Perante um morto
Ou falam baixo ou ninguém fala.
É tal como se ele ouvira
Tudo quanto ali bulira.
195 – Gente
Toda a gente
O saberia
Claramente,
De noite, que não de dia.
De cães uma alcateia,
Que sempre as há
Ocupando a vida alheia,
De noite sempre dará
Sinal ao bulir vivalma.
Ladra em grita
Ou rosna calma,
Conforme a estrita
Posição de quem acoima, impune.
Ao amor clandestino
Eis o fado que o desune,
Não é o destino.
196 – Criação
Toda a vida,
Com sacrifício ou sem ele,
Com oferenda ou sem ela,
É uma criação indefinida.
Apele a tal ou não apele,
Não me livro do esplendor
Da sequela:
- Viver é ser criador.
197 – Tarefa
Cumpre a tarefa de teu dia,
Que agir é mais que não agir.
O cego age pelo fruto que auferia,
O sábio, pela integridade do porvir.
Medita e escolhe bem.
Cada qual terá na liça
A final justiça
Conforme a cada escolha o que convém.
198 – Consciência
Consciência pessoal
Não é conhecimento de si
Mas o amor primordial.
Consciência de que aquilo
Que me constitui aqui,
No fundo de meu sigilo,
É com outrem minha relação:
- Sou, de raiz, comunhão.
199 – Signo
Ou opero a conversão
Do “eu penso, logo existo”
Para a verdadeira asserção
“Amo, logo existo”
Que me formula em comunhão,
Ou então
Não resisto:
Sou um quisto
Maligno
E a História fará minha extirpação.
Esta é a alternativa de meu signo.
200 – Areia
Crença não é fé.
Crença é adesão a uma ideia,
Fé, a decisão de tomar pé:
Arranca da areia
Para a rocha que pressentir
Todo o modo de existir.
201 – Revelação
Jesus de Nazaré
Não é a revelação dum ser,
Duma realidade que é
Fora de nós e sem nós como qualquer.
É uma exigência e um apelo:
Deus é o poder de transmudar o mundo,
Deste poder somos o elo,
O responsável primeiro e mais profundo.
Dele virá o fim,
Virá,
- Mas sempre e só por mim
O fim será.
202 – Espelhos
Cada indivíduo contém os mais
Por inteiro e até ao fim.
Uns para os outros sinais,
Assim,
Somos espelhos colocados frente a frente
Em que cada um reflecte plenamente
O outro, todos os outros, até ao infinito.
Uns, porém,
O infinito contêm
Estrangulado em potência, apenas um grito.
Só os mais perfeitos o contêm, de facto,
Cada vez mais em acto.
203 – Universal
Universal é aquele
Que é capaz de ascender ao divino
E de regressar ao múltiplo desatino
Em que o concreto se revele.
E que nunca se demora:
Investe na acção transformadora.
Dele todos os actos são sagrados,
Já que inteiros os destina,
Situados
Em linha com a fonte divina.
Da ruptura não resta sinal
Entre mundo terrestre e mundo espiritual.
Um acto é profano
Se caiu no engano
De romper a unidade.
Pelo contrário, é sagrado
Quando a refere e, nela inspirado,
Progride até ao termo da saudade.
204 – Trindade
A trindade é uma pessoa
Numa relação de amor:
Eu mais Tu igual a Nós.
Em cada qual a relação ressoa
E voa
Das fronteiras para além do rigor,
Em cada filho reatando os nós
Da transcendência, em ruptura criadora.
Agora
Um mais um é igual a três
Ou muitos mais talvez,
E três são sempre igual a um
Quando o amor tudo e todos
Tomou em vida comum
Até do ser nos modos.
A trindade
Sou eu: é a minha versão de divindade.
205 – Raiz
Todas as religiões
Têm uma única raiz
Na matriz,
De que são múltiplas modificações.
Quando a uma religião adere alguém
Foge do fundamental:
É o princípio comum que lhe convém,
O resto tanto vale.
O resto é o intervalo
Por onde o Princípio virá procurá-lo.
206 – Deveras
Educar deveras,
Dogma, não, é profecia:
Criador de novas eras
É quem metemos na via.
Não funda a esperança
Na natureza ou na história,
Alcança
Outra glória:
A de tornar a Humanidade consciente
De que podemos viver de modo diferente.
Fará emergir a transcendência
Dos vazios humanos de toda a ausência.
Em todo o ninho velho chocará um ovo
Donde nascerá um mundo novo.
207 – Chama
Repetir os rituais,
Da língua sagrada a trama,
Os sacros paramentos sem devir…
Do fogo dos ancestrais
As cinzas não andes a transmitir,
Propaga a chama!
Não mudas de lugar,
Da fé colado a uma versão do horizonte,
Quando é caminhando para o mar
Que um rio é fiel à fonte!
208 – Lutamos
Não lutamos
Para salvar velhos, armas, navios,
Nem os novos, os prados, os rios,
Nem os servos nem os amos…
Lutamos por uma civilização,
Por coisas amorosas para as mulheres, as crianças
E o cão…
- Lutamos pelo que tens e nunca alcanças.
209 – Perfumes
Acabaram-se os perfumes,
Devém cansaço a canseira.
Os lumes
Apagam na fogueira.
Sob as cinzas, porém,
Discretas,
Fulgem as brasas de quem,
Com estima subida,
Retém
As dietas
Secretas
Que dão a vida.
É a comida
Da ternura
Repartida,
É o tempo que dura
A palavra da refeição
Na mesa comum,
São os passos paralelos pelo chão
Do passeio através dos anos,
Desvendando notícias e arcanos,
Até não restar segredo algum.
Então o fogo se ateia,
É mais que vida, é amor
O que o lar nos incendeia.
Tal fulgor
É que é minha candeia:
És tu quem me alumia,
És meu dia.
Se por ti clamo,
É que desta chama
Se alimenta quem ama
E eu te amo.
210 – Amar
Amar uma mulher,
Amar uma ideia,
Amar o que valer,
Seja o que for
Que permeia
A vida ao amor,
É o bordão a que me apego,
Que me ajuda a caminhar
Pelo tempo o meu lugar.
E a velho inteiro assim chego.
211 – Aquela
Aquela rapariga
Com o sabor fundo da terra,
A que comigo briga,
A que me obriga
A quanta paz hoje há na guerra,
Aquela
Cujo prazer
É a particular janela
Para aquele que eu alguma vez tiver,
Ela,
Ela só
É o dedo de Deus que me faz erguer do pó.
Não é qualquer
Permutável mulher
Dum sempre idêntico prazer.
Nem sequer
É um objectivo
Quando dela me aproximo
Com o prévio temor e tremor vivo
De quem está prestes do cimo.
Não é o prazer
Que irei ter,
É dela, é dela este inefável encanto
Que me inaugura entretanto:
Não penso em meu prazer neste porvir
Mas em de vez de mim sair.
O paroxismo final,
Imanente, oculto, mal
Esperado,
Culmina o prazer dos doces olhares,
Do beijo roubado,
É o transporte da gratidão
Entre pares,
Pela predilecção
Que ela demonstrar por mim.
Predilecção que meço
Quando tropeço
Em meu confim,
Ao verificar que fui eleito
Para o céu que me enche o peito.
Eu, tão nada
Que sou,
Como é que voo
Sobre cumeeira tão elevada?
212 – Pequeno
Creio no ser que percorria
Enquanto, pequeno, o conhecia.
Hoje, é sob o seu império
Que o vivo como o que é sério.
Quanto mais o semeei de fantasia
Mais aqui dele recolho a alegria.
Porque a fé se me esgotou
E real de memória apenas sou,
A flor que hoje alguém me apresentar
Não é verdadeira, é daquela um avatar
Cujas pétalas, em miúdo, cheirei
E que hoje é de mim o que sou e sei.
213 – Cativas
Talvez a verdade não seja nada
E todo o sonho, inexistente.
Mas da música a brecha rasgada,
Do poema a fresta que pressente,
Da pintura a pincelada
A entreabrir uma janela,
Ausente e presente,
Para além do muro da viela…
- Tudo o que aqui adivinho
É aquele sonho a caminho.
Será nada,
Como ele,
Mas também o irresistível que impele
À estrada.
Pereceremos…
Como refém,
Temos,
Porém,
Aquela cativa marca divina
Que nos seguirá na sina.
Com ela, a morte
Mais devém que menos amarga:
Minha sorte
Perde a imponderável
Carga,
- Talvez a morte devenha assim menos provável.
214 – Diferença
A diferença
Entre uma pessoa bela
E uma ideia da beleza
É igual à presença
Dela
Quando nos preza:
Entre o calor
Que me faz sentir
E a ideia de amor
Que metro alcança medir
A infinita distância,
- A ignorância?
215 – Ruídos
Por amor, como quem contra os ruídos,
Em vez de reclamar que acabem,
Tapa os ouvidos,
Por amor são nossos gestos que sabem
Do amor,
Não os de quem é amado,
A que eventualmente nem cabem.
Por amor, a quem de alguém é senhor
É o mundo sacrificado.
Nunca, na defensiva,
Se põe a exigir a quem lhe for
Exterior
Que por ele viva.
Por mais que seja o sonho maior
Que acalente na retentiva.
216 – Ramos
Infiltramos nos sentimentos
De quem amamos
Inúmeros movimentos
Adormecidos que nos desperta
E lhe são alheios,
Como os ramos
Misturados duma copa aberta
Com a vizinha permutam frutos cheios.
Depois, o sentimento particular
Mergulha na verdade radical
Do sentir fundamental,
Da Humanidade avatar,
Pelo qual os outros e as mágoas
Que nos dão
São a doirada ocasião
De eu partilhar, em minha pequena caravela,
As imensas águas
Onde navego minha diminuta parcela
Deste oceano descomunal
Do amor universal.
217 – Ilusão
Não é na mulher,
Nela mesma pouca coisa,
É no poder
De imaginar a ilusão em que repoisa
A dor do amor
- Que a grandeza
Toma cor,
Tem o valor
Que o homem toda a vida afinal preza.
218 – Cometa
De meu comportamento o que recordo
Permanece ignorado
De meu vizinho mais chegado.
O equilíbrio, porém, no desacordo
Provém de que aquilo que esqueci,
Que nem terei dito nem feito,
Vai ser dissecado a bisturi
E tomado tão a peito
Nos confins do mundo,
Noutro planeta,
Que, de repente, me afundo
Na interminável cauda do cometa.
A imagem que de mim formam
E a que de mim próprio formei
Tão pouco se conformam,
Tão mutuamente pouco se informam
Que em reinos independentes criam lei.
Tal como para um desenho
Um decalque tão falhado
Que onde um traço negro tenho
É a brancura no outro lado.
Pode acontecer, porém,
Que neste traço falhado
À superfície o que vem
Seja meu fundo ignorado:
Tenho uma radiografia
Do esqueleto que nem sei
Alguma vez se o teria.
Nem sequer precisarei
De trocar de mim a imagem:
Do fundo a que não cheguei
Recolho aqui a mensagem.
E às duas a minha lei
Presta então a vassalagem,
Sem o meu rosto mudar
Na caveira em seu lugar.
219 – Atrapalho
É um erro crer que o trabalho
Corre mal
Quando corre mal a vida.
Longe de ser atrapalho,
Se me entrego em força à lida,
Centro uma energia tal
No que opero e opero bem
Que acabo por ir além:
Deveras fujo à prisão
Da vida,
Marco a pegada no chão,
Liberto-me de seguida.
220 – Horas
O Natal são as sendas
Que demoras
A colorir de prendas
Minhas horas.
E são horas coloridas
Que, nas sendas clandestinas
Das prendas hauridas,
Ao fim me destinas:
É teu brinde principal
De nosso perene Natal.