TERCEIRO  VERSO

 

 

HORIZONTE  EM  DEVIR  AO  PORVIR  CERTO

 

 

Escolha um número aleatório entre 221 e 328 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

221 – Horizonte em devir ao porvir certo

 

Horizonte em devir ao porvir certo

Descubro, a cada passo, nas extremas

De meus campos de arroteio, quando os lemas

Procuro que me acabem o deserto.

 

Toco assim todos os temas

Que, longe e perto,

Afinal manterão sempre desperto

O olhar que da escória me peneira as gemas.

 

Enquanto este horizonte se não fecha

Sou a flecha

A visar a cumeeira aonde aponte.

 

E no voo

Sei bem que sou

Mero sonho selvagem que anda a monte.

 

 

222 – Esquema

 

Quando os cães saltam

Para a nossa cama

São pessoas que lhes faltam:

O cão ama.

 

Quando os gatos saltam

Para a nossa cama,

São cómodos que assaltam:

O gato trama.

 

Neste esquema tosco,

A nossa inteira gama:

- O cão adora estar connosco,

O gato adora a nossa cama!

 

 

223 – Portão

 

Um trabalho que lhe importa,

Tempo livre e rendimentos

Com que ele os custos suporta

São bastantes elementos

Para que a felicidade

Abra o portão

Que convém com mais verdade

A qualquer filho de Adão.

 

 

224 – Indispensável

 

A parte mais indispensável

Da felicidade

É não ser jamais viável

Na totalidade.

 

Jamais ter

Tudo quanto se quiser

É o pão e o vinho

De qualquer

Sonho a caminho!

 

 

225 – Fragilidade

 

A fragilidade

Marca quanto valho

De felicidade.

 

Frágil é o prazer,

Gotinha de orvalho:

- Só de rir, morrer!

 

 

226 – Grau

 

Que boa, a recordação desagradável!

Torna-me feliz

Só porque há um nada era o mais miserável,

Por motivos imbecis.

 

Tudo é questão de grau:

O bom e o mau

De vez e de raiz,

Quem de tal se apercebeu

Jamais desde então os quis

Nem sentiu.

 

Assim é que a felicidade

Mora à beira

Até da fatalidade

Duma urna de madeira.

 

 

227 – Jóias

 

Entre as jóias mais estimadas

Que alguém

Inefáveis retém

Vão as palavras jamais pronunciadas.

 

Ou porque, ditas,

Seriam malditas,

Ou porque ao imo, de fora,

Toda a palavra é traidora.

 

 

228 – Diferenciação

 

Entre a realidade

E qualquer ficção

Onde se pôr há-de

Diferenciação?

 

É que à ficção é exigido

Que tem de fazer sentido!

 

 

229 Luz

 

A luz é aquele presente

Em que em nós mora a parcela

De Deus.

Se agora ficar ausente

Do íntimo atrás da tela,

Dos céus

Aqueles bocados

Andam sendo assassinados.

 

E, se eu não vir uma estrela,

Morro com ela.

 

 

230 – Emigrantes

 

Dos emigrantes a primeira vaga

Atrai sempre a compaixão.

A segunda já quase que é uma praga

Para aquilo que lhe darão.

 

A seguir

Ninguém

Sequer já tem

Licença para existir!

 

 

231 – Altura

 

Nunca ninguém é feliz

Na própria altura.

Só mais,

Muito mais tarde é que o sentis.

- E então, que loucura,

É tarde demais…

 

 

232 – Vermes

 

O homem morre.

Fica a cama onde morreu,

A casa e os bens permanecem…

Ah, destruir tudo,

A vida que corre

Indiferente ao que ocorreu

E os mais que o esquecem

Sobretudo!

 

Morre o homem…

Ai os vermes do tempo que nos comem!

 

 

233 – Ela

 

Ela não ri

Porque me deseja.

Aquela ali,

Quenquer que seja

 

Na própria epiderme,

Não me quer bem: quer-me!

 

 

234 – Namorada

 

Pobre namorada,

Como fui tão mau com ela!

Decente, bem penteada,

Agradável…

 

- Ficou doravante e para sempre aquela

Menina assim tão amável

Só porque agora nem sequer

Eu jamais a poderei ver!

 

 

235 – Vê

 

Quando se trata de mim

Ninguém vê, ninguém vê nada.

Talento assim

De nada ver na jornada

É o que leva ao frenesim.

 

De mim olhas através,

Sorris por cima de mim,

Falas-me e nunca me vês,

Que tudo me passa ao lado…

Finjo não me dar cuidado:

Não me vês? Finjo não ver…

 

Sei lá bem se isto é maneira,

Se é sério, se é brincadeira…

- É o nosso modo de ser!

 

 

236 – Inferno

 

Teu inferno

É não ter o que desejas?

Para alguns é o cibo eterno

Da vida:

A corrida

Ao que almejas.

Ter o que amamos

É sentir a todo o instante

Nosso bem desagregar-se.

Pó de oiro que deslizamos

Entre os dedos que, adiante,

Nos foi puindo o disfarce

Até que o tecido esgarce.

 

A coragem de abrir mão,

De abandonar o tesoiro

Ninguém jamais tem de vez.

Em troca se apertarão

Mais os dedos e o desdoiro

Grita, suplica, soez.

 

Para conservar o quê?

Um vestígio precioso

No côncavo eco do gozo

Que prometeu e não é.

 

Mão vazia, a mão vazia

É o que resta ao fim do dia.

 

 

237 – Suspenso

 

Desejar-te-ei sucessivamente

Como fruto suspenso,

Água distante,

Casinha feliz e ausente

Que roço de leve quando penso,

De passagem, num descante.

 

Em cada um dos lugares

De meus desejos errantes

Abandono sombras aos milhares

Em tudo a mim semelhantes,

De mim desfolhadas

Na espiga quente e azul destas colinas,

No vale de sombra cheio de chapadas,

Nas aves e na vela finas

A voarem ventos e vagas.

 

Tu ficas com as sombras mais que afagas,

Puras, nuas, ondulantes e que acato

Destas ervas a agitar-se no regato.

 

O tempo, ao fim, diluirá tudo,

Depois de meus passos me deterem mudo.

 

 

238 – Crónica

 

Minha crónica interior,

De crueza e de amargura,

Ferocidade e traição,

De prepotência e de amor,

- Crónica tal não procura

Do papel lavrar o chão.

 

Seria preso,

Degolado, esquartejado.

Não ficava o escrito ileso,

Antes era requeimado,

Não fora o vezo

De alguém fazer-lhe traslado.

A verdadeira verdade

Proclamar-se jamais há-de.

 

Dos lábios as palavras nunca são

O que fita o coração.

 

 

 

 

239 – Perversão

 

A longa continuidade

Da dominação

Gera, com naturalidade,

A perversão.

 

Uma Igreja outrora

Um Deus, um rei…

Uma cultura agora,

Uma técnica, a mundial lei…

 

Fora da Igreja

Não há salvação,

Fora do ocidente não há civilização…

O invés por mais que veja

Nunca o tomo em consideração.

 

Fora de minha verdade,

O erro:

A autenticidade

Noutrem é defeito.

 

Ainda e sempre me aferro

Ao povo eleito:

Hebreu, cristão, ocidental…

 

É a fonte, em cascata,

Do mal

Que nos mata.

 

 

240 – Rosto

 

No Oriente como no Ocidente

Não pode deixar Deus de estar:

Ambos a Deus pertencem.

Os que disto se convencem,

Qualquer que seja a direcção do olhar,

Verão sempre em frente,

Crentes ou ateus,

O rosto de Deus.

 

 

241 – Teia

 

É a teologia

Que abafa Deus

Quando na teia o desvia

Dos conceitos que são os seus.

 

Como o mal

É o moralismo,

Que sempre dele afunda no abismo

A moral.

 

- Ambos do dedo confundem a ponta

Com o horizonte para onde ele aponta.

 

 

242 – Sigilo

 

Não é sigilo

Que às vezes cortamos o voo:

O cristianismo, por exemplo, é aquilo

Que Jesus condenou.

 

Houve apenas um cristão,

Morreu na cruz.

Viver hoje o que viveu então

Jesus,

A vida como a conduziu

O que na cruz morreu,

Só isto é o tema,

Só isto é o lema,

Só isto é cristão.

 

Nunca qualquer sistema:

Cristianismo, cristianismo

É a queda no abismo!

 

 

243 – Arena

 

Rejeitar a reflexão

Sobre os fins ou o sentido

Mutila-me a dimensão

Que transcende o que é vivido.

 

Não vai ser o mundo então

Mais do que a arena sangrenta

Onde se confrontarão

Aqueles que o poder tenta:

Quem quer crescer visa em vão.

 

Ou sou pássaro voador

Ou então

É o equilíbrio do terror.

 

 

244 – Veneno

 

Cristianismo e moralismo

Deram a beber veneno

Ao erotismo:

Não cai morto no terreno,

Adoece e degenera

Em vício.

É o suplício

Para quem não acolhera

O homem na totalidade.

Esta é a verdade:

Demónio o sexo devém

Só quando por deus se tem.

 

Com naturalidade

Se fora acolhido,

Era apenas um sentido

Entre os mais

Que do homem ao homem dão sinais.

245 – Sacrificar

 

Sacrificar só vale a pena a vida

Quando não há um outro modo.

A morte é preferida

Ao desprezo de quem amamos por todo

E qualquer nosso engodo.

Não que a vida se despreze,

Mas apenas que é preciso

Que a si próprio se respeite cada qual, se preze

E que a si venha a impor juízo.

Ora, é o amor, o amor de quem queremos

Que nos deu o ser que temos.

Perdido,

Que mais na vida faz sentido?

 

 

246 – Remorso

 

Por um tempo largo

Julguei a vida o bem supremo.

Enganei-me e pu-la a cargo

Das liberdades que quero e temo.

 

Em que sou mais livre, porém,

Se não posso recomeçar,

Voltar para junto de quem

Principia a ousar?

 

Tantas coisas me ensinaram!

Ninguém me ensinou que o remorso,

De quantas prisões me encarceraram,

É aquela que mais forço.

 

 

247 – Vexames

 

Nunca a esquerda considera

Vexames como fatais,

Logo à partida lidera

Protestos, motins, demais

Manifestações que tais.

 

Organiza todo o ano

Conluios contra o tirano.

 

A direita, pela ordem,

Quer que nada jamais mude

Na desordem existente.

Assim é que sempre mordem

As pernas de quem se ilude

Os cães, a ferrar o dente.

 

A virtude

Não vem duma ou doutra ideologia,

É apenas a da via

Que nos vá tornando gente.

 

Tudo o mais é indiferente.

 

248 – Dando

 

Haverá melhor maneira

De provar minha amizade

Do que dando ao meu amigo?

Do abismo tirando-o da beira

Com o dom que o persuade

A viver, que tem abrigo?

 

O rico que abandonar

Um amigo

Só para ficar seguro

De que não lhe entra no lar,

Da fortuna ao pascigo,

Não há justificação que valha

Ao que dele apuro:

- É um canalha!

 

 

249 – Verme

 

Todo o bicho, mesmo o verme,

Ama deveras a liberdade.

Dos vermes o mais inerme,

O Homem,

Ama-a com mais verdade,

Que dela tem consciência.

E quanto mais lhe domem

Dos movimentos

A independência,

Mais da liberdade a consciência

Lhe acresce no meio dos tormentos.

 

 

250 – Ultrajada

 

Quem amar a liberdade

E a vir partir ultrajada

Mantém a esperança de que há-de

Vê-la, tarde ou cedo, retornada.

 

Tão penoso lhe é viver

A ausência de ser.

 

 

251 – Desempregado

 

Se nem para me explorar

Me querem em parte alguma,

Desempregado,

Como me irei encarar?

Forçam-me a que me resuma

Em ter no mundo a mais andado.

 

Despedido, não,

Era andar em contramão.

Isto é uma despedida:

Não tenho nenhum direito à vida.

 

 

252 – Fatiga

 

Procurar trabalho, esperançoso e leveiro,

Sem o encontrar

Custa mais que trabalhar

Um dia inteiro.

 

O trabalho

Fatiga.

Porém, o que mais me afadiga

É quando já nem sei para que valho.

 

 

253 – Repórter

 

O repórter de qualidade

Noticia apenas factos.

Mas deles os pressupostos e os impactos

Quais serão, de verdade?

 

É que um facto é um icebergue

Cuja ponta descoberta

Esconde o que o fundo albergue:

Dez vezes mais neve encoberta.

 

É do facto o invisível,

Submerso no mar de interesses,

Que o torna mais credível:

Egoísmos e apetites,

Abscônditas benesses,

Mais mistérios e desquites

Em que a natureza humana

Mais funda que o mar emana.

 

O repórter verdadeiro

É quem busca o facto inteiro

E então este jamais é

Apenas quanto se vê.

 

 

254 – Lascívia

 

Há olhares de lascívia

Que deixam tão viscoso o ar

Que não há lixívia

Que o logre lavar.

 

Ferem-nos no centro

E então, em vez de modos ternos,

Começam a apodrecer-nos

Por dentro.

 

 

255 – Farda

 

Para alguns oficiais

Uma farda

É um adjectivo

Que qualifica aquele que guarda,

Sem mais.

- Quando é um mero substantivo

Comum

Que não tem valor nenhum.

 

 

256 – Maniqueísta

 

No pensamento, primário,

Nas escolhas, um sofista,

No imaginário, a ilusão,

-Um revolucionário

É um maniqueísta

Obcecado pela acção.

 

Ele, o bem; o resto, o mal:

- Eis, por junto, quanto vale!

 

Entretanto, mortos pelo chão,

Os milhões que já lá vão!

 

 

257 – Intelectual

 

Ao agir sente-se mal

E mal, se fica parado

Do povo ante a perdição:

- Um intelectual

É um condenado

Por definição.

 

 

258 – Óscares

 

Dos óscares a entrega:

Mil milhões de pares de olhos

A entrar na refrega

Dos loiros e dos abrolhos.

 

Todos vendo a fantasia

Doutra fantasia em volta,

Mentira que mentiria

A anterior mentira à solta.

 

Triunfo supremo

Do mundo de faz-de-conta:

Com a glória não atremo

Senão noutrem em que aponta.

 

Por trás, porém,

Do espectáculo de tolos,

Há a fábrica a que convém

O lucro que dão tais bolos.

 

E, se tudo é fantasia

Naquilo que vejo à frente,

Aqui, não, o lucro é o guia,

Só que o ninguém vê nem sente.

 

 

 

259 – Jardim

 

Em tua casa, um jardim.

Periódico, teu pai corta a grama,

Estende o jasmim,

Poda as árvores e acama

A rama

Podada, ao fim.

 

Que lindo o jardim, que lindo!

Fotografa-lo em cores,

Comendo, bebendo, rindo

Entre as árvores e as flores…

 

Com ele, porém, não comungas jamais,

Não és íntimo dele,

Não meditas na grama, nas frutas, nos pardais,

Não o metes na pele.

 

Só cuidas em comprar

Maior conforto,

Bancos, mesas a enfeitar,

Uma piscina a meio do horto,

Estatuetas, pedestais…

 

E o teu jardim incompreendido:

Um estranho perdido

Para nunca mais…

 

 

260 – Eclesiástico

 

Para salvar a igreja

No tempo histórico

Um eclesiástico que se veja

Arriscará, pletórico,

Perder a alma na eternidade:

É um mártir da obscenidade.

É por causa deste nojo

Que se inçaram de tojo

Os matagais da humanidade.

 

 

261 – Disforme

 

Disforme como nasci,

Como podia não iludir-me

Com a mente que em mim vi?

Por mais que de dons bem firme,

Velaria meu defeito

Como a fantasia o vela

No peito

Duma donzela.

Porém, quando a janela

Exterior

Se fechou

Como é que do pássaro interior

Alguém surpreende o voo?

 

Se é bom que me não conforme,

- Mau será que mal me informe,

Por mais triste

Que seja o que em mim existe.

 

 

262 – Falsa

 

A infelicidade

Duma vida falsa

É roubar substância à realidade

E de sentido acabar descalça.

 

A verdade é que nos cercaria

De alimento e de alegria.

 

A falsidade

Torna falso o Universo

E a quem ela persuade

Tudo entre os dedos lhe escoa disperso.

 

No fim, ele,

Revelado à falsa luz,

Na vaga sombra que induz

Abandona a própria pele.

 

 

263 – Tirania

 

O público, à tirania afeito,

Nega a justiça vulgar

Se exigida como um direito.

 

Da justiça em lugar,

Quando o apelo a ela é feito,

Como do déspota quer a vaidade,

Coloca o apelo à generosidade.

 

Assim é que o modo e não o conteúdo

Aqui decidem tudo.

 

 

264 – Apenas

 

Procuro apenas os feios,

Os miseráveis tolhidos pelos arreios,

Os mesquinhos

Sem pão, nem água, nem caminhos,

Os sofredores

De todas as dores.

 

Agora, porém,

Padres, bispos, cardeais e o papa também

São imponentes, orgulhosos,

Iguais a quaisquer outros poderosos.

 

Não são, não,

As pessoas que Ele amou.

O cristianismo é anti-cristão,

As igrejas tolheram-lhe o voo.

 

No meio deste vazio

Como retomar o fio?

 

 

265 – Ardente

 

Algures, no coração,

Mora o desejo ardente

De alguém ter por toda a vida,

Mesmo que seja um mero cão

Sujo e doente

Que acabe sendo a noiva prometida.

 

Alguém que nunca traia,

Nunca nos abandone,

Nunca da berma nos saia,

Mesmo credor, nos abone…

 

Tornou-se Ele o nosso cão

Por amor à Humanidade:

Já não caminhamos em vão.

Sempre ao lado, persuade,

De cada pegada guia,

- Que aqui Tudo principia.

 

 

266 – Suicídio

 

O suicídio moral

É muito mais fácil, muito mais:

Adaptar-se à vida real,

Como os demais…

- Em vez de obrigar o mundo, qualquer dia,

A ser como deveria.

 

As coisas são como são

Apenas porque eu sou em vão.

 

Estou aqui, de facto estou…

- O problema é que não sou!

 

 

267 – Herói

 

Um herói, antes de mais,

É quem vence o próprio medo.

Os sinais

Não são dum credo:

É que ele é um só com a vida

E consigo, uma unidade,

- Da vida encarna a corrida.

E é o cobarde que, em verdade,

Nos entrava a lida.

 

 

 

 

 

 

 

268 – Estação

 

Ninguém avança vida fora

Em linha recta,

Muitas vezes a demora

Não é na estação correcta.

 

Por vezes tropeçamos, senis,

E saltamos dos carris.

 

Quantas vezes nos perdemos,

Ou levantamos voo e desaparecemos

Em pó,

Confundindo solidão com ficar só.

 

As viagens mais incríveis,

Ocorrem, se calhar,

Pelas vias mais credíveis

De quem não sai do lugar.

 

Vivem alguns em minutos

O que o vulgo levaria

Uma vida, em seus produtos,

A viver dia por dia.

 

Um sem número alguns gastam

De vidas na decorrência

De estados em que se afastam

Da dependência.

 

A vida é mesmo insondável,

Em todos ou num apenas,

E mostra-se inesgotável

Até nas coisas pequenas.

 

 

269 – Versões

 

Cada qual a própria história

Das ocorrências do mundo

Vai registando em memória

Desde o fundo mais profundo.

 

Se comparar viável fora

As versões,

Descobríamos de hora a hora

Que o passado universal,

De cada qual aos milhões,

Sendo real,

Não tem realidade,

Sendo autêntico sem senões,

Não tem autenticidade.

 

Parecendo verde relva,

É uma impenetrável selva.

 

A biografia de alguém

É um labirinto tamanho

Que infinda é a conta que tem

De sentidos seu amanho.

 

Quem logra saltar do plinto

Ao centro do labirinto?

 

 

270 – Jovem

 

Repara no jovem,

É uma cobaia,

Os olhos se movem,

Estão de tocaia.

 

Só que na vida

Já não há saída.

 

Nasceram já condenados

A viverem aos bocados.

 

Triste

É ver que quanto melhor é a condição

Que existe,

Tanto pior deles vai sendo o quinhão.

 

 

271 – Imitador

 

Imitador

Em vez de guia,

Tal é a maldição-mor

Com que o homem principia.

 

Sem tentar viver a vida,

Os mestres a copiar

Servilmente de seguida,

Encontra o homem um lar.

 

Os poucos grandes exemplos,

Apesar de muito claros,

Morrem quando pelos templos

Se lhes buscam os preparos.

 

Nem o mais avançado

Imitador

Compreendeu por que lado

A noite colhe fulgor.

 

Ser seguidor

Em lugar de bandeirante,

Eis o horror

Que nos tolhe o passo adiante.

 

Não é só questão de andar:

- É de Eu já nem ter lugar!

 

 

272 – Rodeio

 

Quanto rodeio a tapar os ouvidos!

Não queremos ouvir verdades

Nem podemos sequer ouvi-las,

Pela razão de que agredidos

Por todas as necedades

Nos sentimos ao senti-las.

 

Não as ouvimos de nenhuma voz,

Que as contamos nós a nós.

 

Devém a dor objectiva:

Cada qual feito instrumento

De arranhar a carne viva,

É cada qual um tormento.

 

E o que é mesmo assustador

É que, momento a momento,

Nos devora o sofrimento.

Sugados por tal horror,

Desaparecemos, vento

Sumido num elemento

Mais do que todos maior.

 

Mais do que haver esquecimento, pior,

É sermos nós o esquecimento.

 

 

273 – Mundo

 

Não ver o quê? O mundo?

Claro que o vemos, imundo,

Violento, poluído, a se sumir.

É aquilo de que quenquer

Tenta fugir,

Aquilo que, sem conseguir,

Tenta não ver.

 

Vê-lo, pois, nós bem

O vemos.

Querê-lo-íamos, porém,

Bem outro do que o que temos.

 

 

274 – Afogar

 

Carpimos ao homem

Prestes a afogar:

- Tuas aflições como me consomem!

Se me houveras deixado ensinar-te a nadar…

 

Todo o mundo, adivinho,

Quer o mundo endireitar,

Mas ninguém quer ajudar

O vizinho.

 

Tudo errado

Na via que se apronta:

Queremos tornar-nos homens só dum lado,

Sem levar o corpo em conta.

 

 

 

 

275 – Absurdos

 

Que significa o modo

Como os mundos evoluem

Se provar que o Ser que é o Todo

São os absurdos que se intuem?

 

De cima abaixo

Se infiltra o veneno:

As dúvidas, em cacho,

Mergulham por todo o terreno,

Dos meios ao fim,

Não lhes escapa qualquer confim!

 

Tudo é Deus, Deus é tudo:

Para além de qualquer fé,

Ou nós somos Deus, ou, sobretudo,

Deus não é.

 

Que arrepio!

Não sentes? Como o mundo fica frio!

 

 

276 – Vemos

 

Vemos o que vira lá para diante,

Vemos o que ficou para trás,

Mas não o que de nós não é distante,

O que o presente nos traz.

 

Com a atenção

Na lonjura envolta,

Não nos resta visão

Para o mundo à nossa volta.

 

A cegueira do quotidiano

Perante da vida os eventos normais e anormais,

É o dano

Do visionário inquieto com os sinais.

 

Os olhos invulgares

Terão de ser treinados

Para os olhares

Que do vulgo nos trarão os fiéis dados.

 

Poucos vêem ao redor,

Poucos criam o modelo

Que aos eventos passageiros venha impor

Da ordem deles o selo.

 

Só que é requerida a morte

Para um olhar de marciano,

Selenita, neptunino,

Ter em nosso passaporte,

Dia a dia, todo o ano,

Ultrapassando o destino.

 

Porém, tal clarividência

Não é apenas a dos olhos.

Quantas vezes a evidência

Só encontra neles escolhos!

 

Há uma serenidade calma

Que vê mais fundo:

- Com os olhos vê o mundo,

Descobre-o, todavia, com a alma.

 

 

277 – Trevas

 

Quanto mais penetro nas trevas,

Na confusão do fundo,

Tanto mais intensa a luz com que me levas,

Mundo.

 

A personalidade inteira

É um olho devorador

Assestado à beira

Do Eu de mim senhor.

 

Até ao momento em que, constante

A olhar-me ao espelho,

Vejo, ofuscante,

Que se evola o aparelho

E ao corpo se une a imagem

Dele extraviada.

 

Aqui termina a viagem:

Recupero a visão normalizada

E aquele que morrera entre cativos

É devolvido, por fim, ao mundo dos vivos.

 

 

278 – Alçapões

 

Infinitos alçapões

E nunca mais há saídas.

Descemos e descemos, aos baldões,

E as pegadas são ilusões

Perdidas.

 

Descobrimos que o mundo,

Que o oceano de nossas descidas

Não tem fundo,

Não tem fundo,

Não tem fundo…

 

 

279 – Brida

 

Os livros, como o resto do Universo,

Do espírito do tempo fazem parte.

O pensamento com que converso

Quer exteriorizar-se,

Que só então me reparto e se reparte.

Se não encontra forma de vir à tona,

Qualquer que seja o disfarce,

Escava o solo, rasga vias subterrâneas.

De bom nada tal caverna abona,

Vacina as próprias fontes da vida

Em explosões momentâneas

 

- E mata ao fim quem lhe atou a brida.

 

 

280 – Paga

 

Fizeste uma coisa errada:

Trabalhaste muito e vingaste.

Em paga tens a vida desgraçada,

No deserto solitária e febril haste,

Sem cônjuge, sem filhos, sem amigos,

Seco e morto quanto baste.

 

Para ti não há mais abrigos,

Que só trabalhaste muito e vingaste.

 

 

281 – Favoritos

 

A sorte dos favoritos

É precária,

Eles são apenas mitos,

Ela é falsária.

 

Quando o valor

Não é o da qualidade

Mas do favor,

É postiça a validade:

 

Toda e qualquer

Personalidade

Não é de ser,

É de supor.

 

O favorito é a sombra fátua do senhor.

 

 

282 – Sofrimento

 

O sofrimento

Não melhora

Ninguém,

A ninguém traz nenhum aumento.

O sofrimento só piora

Quem o tem

Por alimento.

 

No fim, o efeito

É que todo fica ruim.

Ora, ninguém foi feito

Assim.

 

 

283 – Caminho

 

Do caminho que a vida tome

Depende a colheita do minério:

Se o sonho a consome

São tesoiros de mistério;

Se trilha caminhos de fome,

Vai direita ao cemitério.

 

Quantas vezes, porém, o pior da briga

É que o sonho à fome se liga!

 

 

 

284 – Hospital

 

Num hospital

Um homem não é um homem:

Enquanto as doenças o comem,

Deixa de ser um mortal.

 

Expositor de todas as crenças,

Lado a lado, por tempos imemoriais,

O hospital cristalizou angústias e ais,

É o museu das doenças.

 

Da vida à berma das estradas,

Tem, como os mais,

Visitas guiadas.

 

 

285 – Alto

 

Pode um homem alto se casar

Com mulher baixa.

Porém, uma alma invulgar

Como se pode ligar

A uma rasteira,

Se não encaixa

De nenhuma maneira?

 

 

286 – Limita

 

Quem serve todos os semelhantes

Serve a Deus.

Quem seus instantes

Apronta para os correligionários

Serve os seus:

 

Deus ficou-lhe trancado nos armários.

 

E mais ainda quando é

Em nome da fé:

Devém Deus o instrumento

Não da alegria,

Mas do tormento,

Coisa que jamais seria

Se Deus fora o que devia.

 

 

 

 

 

 

 

287 – Torre

 

Quando o povo a torre ergueu

Para atingir o céu,

Pejado de esperança,

Em comum dançou a dança.

 

Ao descobrir, porém,

Quão bela a torre se erguia

Mudou de ideias: já ninguém

Entendeu para que ela serviria.

 

Resolveu que tal portento

Seria a si próprio um monumento.

 

Quando renunciaram

A visitar de Deus o trono

Principiaram

A trabalhar para o próprio abono.

 

Desde então não se entenderam mais

No rumo, no ritmo, na estrada…

Daí o derradeiro dos sinais:

- A torre foi de vez abandonada.

 

 

288 – Fita

 

Um padre sincero

Exporia a vida, voluntário,

Caso fora necessário.

 

Mais que um obstáculo mero,

Intransponível por nenhum lado,

É ficar de vez desacreditado.

 

Nao perante Deus nem a fé,

No imo sempre fáceis de manter de pé.

 

Mas perante a organização,

Perante o templo,

Único exemplo

Que se lhe antolha de religião.

 

Para não ser desacreditado se convida

A perder de vez a vida.

 

E faz gala

De repetir que assim anda a conquistá-la,

A ver se acredita

Que não é, ao fim e ao cabo, o mau da fita.

 

 

289 – Peixe

 

Peixe aprisionado na rede

Que a fuga lhe vede

É o direito do homem pobre

Na lei que o recobre.

 

Qual ajuda!

Por mais que sobre a intenção,

Não há mão

Que lhe acuda!

 

Qualquer bem intencionado

Acaba tão prisioneiro

Que dele nem do recado

Me inteiro!

 

 

290 – Objecto

 

Objecto deveio o acto de conhecer

Duma filosofia sem objecto.

Torna indiferente quenquer

Quanto indiferente lhe é o mundo concreto:

Os problemas que coloca

Denodados

Só se colocam de boca,

Já que estão mal colocados.

 

A escola e a igreja,

Cada qual enclausurada em sua toca,

Não respondem àquilo por que alguém almeja,

Mas a problemas que ninguém coloca.

Eis porque estamos perto

De o templo e a academia se tornarem num deserto.

 

Depois,

Violência e decadência

São os dois

Produtos finais desta ausência:

Um modelo de crescimento

Em que o aumento

Aumenta em nós a impotência.

 

 

291 – Cientismo

 

Se a ciência é cientismo

Deveio superstição,

Cava maior o abismo

Da humana contradição:

 

Ciência e sabedoria

Desliga, os meios dos fins,

Saber não tem mais valia

De além romper meus confins.

 

Devém então um poder

Que apenas preza

Dominar à mão quenquer

E também à natureza.

 

Não temos mais abertura

Que nos livre da clausura.

 

 

 

292 – Fabricam

 

Teísmos fabricam deuses

À imagem das parciais

Comunidades de reveses

Em que apostais:

 

Se do conforto credores,

Deuses para conservadores;

Se no iníquo vos magoais,

Deuses para marginais.

 

Em todo o caso,

Nenhum deus a Deus deu azo:

Quem de deus se apropria

Vive sempre em heresia.

 

 

293 – Cadeia

 

Na interminável cadeia da eternidade,

Todo o encontro é o primeiro,

É para sempre toda a partida.

Do nascimento e da morte a última verdade

É que são mero caso corriqueiro

Entre os incontáveis desta lista desmedida.

 

 

294 – Agora

 

O agora em que o primeiro homem foi criado,

O agora em que o derradeiro morrer,

O agora em que escrevo este traslado

São em Deus o mesmo agora a ser.

 

Os milhões de anos passados,

Os milhões de anos por vir

Em Deus são o presente em que, gerados,

São o instante eterno de surgir.

 

 

295 – Divorciada

 

Ciência divorciada da sabedoria,

Um meio de costas para o fim,

É uma ciência do instante.

Quando em fins míopes nos vicia,

Os do gozo, do poder, termina no confim

Dum indivíduo, dum povo, não salta adiante.

 

Ciência que não cura

Da lonjura

É uma ciência ignorante.

 

 

 

 

 

 

 

296 – Recipientes

 

Mágoa, verdadeira mágoa

É que os livros mais não fazem que aprisionar

Em recipientes de água

A fonte dentro em nós sempre a manar.

 

De nós próprios que radical cegueira

Nunca, afinal, nos inteira?

 

 

297 – Divórcio

 

O divórcio da ciência e da sabedoria

Ameaça-nos de morte,

O domínio dos meios quando dos fins se divorcia

Vagueia à sorte.

 

 

O que aterra

É o que daqui se desprendeu:

A revolta do homem contra o céu

Poluiu a Terra.

 

 

298 – Identificação

 

Com a vontade de Deus a identificação,

Longe de levar ao fatalismo,

Estimulou séculos de acção,

Mudou estruturas sociais de servilismo,

Desenvolveu ciências,

Trabalhou criadores…

 

Como é que tantas excelências

Se transmudaram sempre em horrores

Quando as decadências

Deslizam pelos pendores?

 

 

299 – Não

 

Não sou cristão, nem judeu,

Nem budista ou muçulmano.

O Oriente não me viu,

Com o Ocidente não me engano.

 

O lugar de meu credo

É sem lugar,

Meu rasto concedo

Ao sem rasto que teimar.

 

Não há mais dualidade,

Quaisquer dois mundos são um.

Procuro a unidade:

Este é dos fins o Fim,

Não há mais nenhum.

 

Até em mim,

Interior-exterioridade,

Exterior-interioridade:

Tudo o mais

É mera confusão de meus sinais.

 

 

300 – Águas

 

Das águas a cor

É a cor do recipiente:

É válido todo o crente,

Deus toma a forma que for

A de qualquer fé

E por todas nos mantemos de pé.

 

Foi por esta universal validade

Que atingimos a idade

Que hoje temos.

 

- É porque o não reconhecemos

Que jamais chegamos à maioridade.

 

 

301 – Museu

 

Não é museu a cultura

De arte ou literatura.

É o conjunto das respostas

Da comunidade humana

Às questões que lhe são postas

Pela natureza ufana,

Pelos homens meio irmãos

E por suas próprias mãos.

 

Cultura não é museu,

De facto,

Por mais que a atulhe de sinais:

Sou eu

Em acto,

Interagindo com os mais.

 

 

302 – Erro

 

O erro que mais nos pesa,

Onde os sonhos se consomem,

É o de nem sequer

Aceitar ver

Que o homem pertence à natureza,

Não a natureza ao homem.

 

 

303 – Dialéctica

 

A dialéctica,

Abertura

Infinita para o infinito,

Encerrada, patética,

Na clausura

Dum sistema fechado,

Nem um som tem do que foi grito:

O conceito elaborado

Anuncia

O fim do dia.

- É vã

Toda a esperança de haver um amanhã.

 

 

304 – Mortal

 

É uma confusão

Mortal

A da fé com a religião.

A religião é uma fé tal

Como pôde traduzi-la

Certa cultura, certa instituição.

A fé se perfila

De cada época numa linguagem,

Numa estrutura.

Nunca, porém, tal configura

A fé, já que é dela mera imagem.

Por mais que da fogueira seja um chamiço,

Jamais o lume se reduz a isso.

Jamais o cristianismo é a cristandade,

Mera figura dele à moda do Império Romano.

Jamais o Islão é de Medina a comunidade,

Ou o modelo omíada, abássida ou otomano.

 

A forma fátua com o perene sentido

Confundir

É liquidar à partida o porvir

Que então jamais poderá ser vivido.

 

 

305 – Violência

 

Primeiro é a violência institucional,

A perpeturar dominações,

Opressões,

Explorações,

Que tudo em todas tornou legal.

 

A violência revolucionária é a segunda a vir

Que a primeira tem vontade de abolir.

 

A violência repressiva é a terceira

Que a segunda pretende sufocar,

Cúmplice e auxiliar

Da primeira.

 

Esta, se bem reparais,

É que gera todas as mais.

 

Não há pior hipocrisia

Do que chamar “violência”

Quando a segunda principia,

Fingindo ignorar, com inocência,

A primeira que a cria

E a terceira que a mata qualquer dia.

 

 

306 – Eleito

 

Um povo eleito (judeu, árabe ou qualquer),

Uma língua sagrada (hebreu, árabe, latim)…

- Não há local de eleição sequer

Da presença divina

Que não seja em mim

O coração.

 

Deus, ou o coração ilumina

Do homem, de todo o homem,

Ou todos os deuses se consomem

Na ilusão.

 

 

307 – Muda

 

Ninguém muda o mundo sem a si se mudar,

Ninguém se muda a si sem mudar o mundo.

Mudar a terra e o homem, em primeiro lugar,

É ligá-los do absoluto ao trilho fecundo:

Lembrarmo-nos do poder de ruptura,

Da transcendência perante a ordem implantada,

Do lucro e da dominação escapar à usura,

Do crescimento cego e da violência fugir à estrada.

 

O homem e o mundo são um jogo de espelhos,

Não se inova o mundo se continuarmos velhos.

 

 

308 – Determinismo

 

O histórico determinismo

Implica necessariamente

O conservadorismo

Omnipotente.

 

Se não há ruptura possível,

Transcendente,

Mas leis que regem a acção exequível

Como regem os objectos,

Nenhuma novidade verdadeira,

Nenhuns projectos

Germinam na leira:

Já contidos no passado

Estão os germes do presente

Como a árvore, por seu lado,

Na própria semente.

 

 

309 – Cedo

 

É sempre cedo na vida,

Já que andam restos da noite,

Eternos, a esfarrapar-se em redor.

Por mais que a madrugada, há muito erguida,

Pelos dias fora se afoite,

É cedo para a nossa cor:

- Seremos sempre cinzentos

No infinito inatingível dos intentos.

310 – Culpa

 

É sempre tua a culpa

De teus braços caídos,

De teus olhos a rastejar no chão.

Não tens desculpa

De a vida passar ali diante,

Bem longe de teus sentidos,

Embora à mão.

A vida

Nada garante

À gente dela esquecida

E segue avante.

 

 

311 – Rajadas

 

Do escritório as máquinas de escrever

Disparam rajadas de seguida:

Metralhadoras com que quenquer

Ou defende ou destrói vida.

 

Mas quem é que reparou,

Com os lucros pela frente,

Nas mossas que já causou

Ao porvir de toda a gente?

 

 

312 – Mortos

 

De repente estamos mortos:

Fotografia na estrada,

De vez com os lados tortos

Pendurada.

 

E o álbum, para diante,

Com as folhas todas em branco.

E as de trás fixas no instante

Em que a corda do tempo quebrou, num solavanco.

 

Estamos mortos de repente

E, ainda por cima,

Definitivamente, definitivamente!

 

- A que é que um homem se arrima!

 

 

313 – Palmo

 

A vida não me traiu,

Foi a morte e os que a semeiam.

Palmo a palmo, a vida me acedeu,

Conquistada às mortes que a rodeiam.

 

O mundo pertence a quem

Amar a vida,

Não da noite ao refém

Que traída

A mantém,

Entregue à sorte

Que, uma esquina volvida,

A atraiçoa com a morte.

 

 

314 – Acanhamento

 

Sempre este acanhamento

De revelar o melhor.

Morro e só no pensamento,

A palavra de toda a vida

A prometer calor

Nos lábios retida.

Morro e ficará de vez

Por dizer a palavra que nos fez.

 

 

315 – Exórdios

 

A guerra dos primórdios

Ainda nem vai a meio,

São apenas milenares exórdios

E jamais acabará, receio.

 

A mentira é o eterno alimento,

A mentira verdadeira,

Tão verdadeira que o tormento

É que é verdade inteira:

A mentira é a verdade dos que mentem

E o não sentem.

 

Tudo ao fim são verdades.

E o que aterra

É que para fugir à contradição das opacidades

Só vai restar a guerra.

 

 

316 – Heresias

 

Sempre surgem as grandes heresias

Dos que querem salvar a humanidade.

A ordem e a lei cortam-lhes os dias,

Sempre os reduziram à nulidade.

 

Porém, como seria

Se, ao invés,

A lei do outro lado principia

E a ordem, insegura ainda nos pés,

Se firmara no chão de nova via?

 

O que está, só porque está

Estará bem?

Só porque está por aqui, por acolá,

Em todo o lado,

Não fica provado

Que seja, afinal, o que convém.

 

É apenas aliança

Universal de nossos temores

Que nos torna conservadores

E, por fim, mata a esperança.

317 – Patife

 

A vitória

Da causa que não é justa

Deprime a história,

Da comunidade à custa.

 

A alegria do patife

Que triunfa é tão fugaz

Como a dum ébrio, cujo esquife

De vez lha remata em paz.

 

À pessoa sã

Nada a entristecerá mais

Que a paródia malsã

Em que criminosos imorais

Serão, afinal,

Uma glória nacional.

 

De que serve a consciência recta,

De esforços heróicos,

Se os que atingem a meta

Não são os estóicos

Mas antes aqueles

Que refinaram em tornar-se reles?

 

 

318 – Simpatia

 

A simpatia cristã

Pelo condenado às galés,

Enfiado pelos pés

Na corrente chã,

 

Fácil devém predilecção

Pelo horrível doentia:

Do belo incomum rejeição,

Em prol da feiura que escolhia.

 

Tal como o glutão

Perverte o apetite

Se joga o manjar ao chão

Em troca da podridão

De miasmas que não evite.

 

Ou tal quem troca o paladar divinal

Do vinho velho, bem assente,

Pelo ardor brutal

Da aguardente.

 

Ou tal o amante que abandona

A paixão normal, feliz,

Descarrilando pelas lamas à tona

Das prostitutas mais vis.

 

Em mórbido regozijo

A caridade indulgente

Transmuda, demente,

A abertura que lhe exijo:

 

Então o que é triste e feio

Pelo que é belo se troca

E o sol nunca mais encontra meio

De nos entrar na toca.

 

 

319 – Real

 

O homem material

Não existe, é convenção.

O sonho, o sonho é que é real,

O resto, não.

 

Tudo quanto de sensível der sinal

É uma ilusão.

 

 

320 – Afim

 

Verto lágrimas por ver

Outrem no fim,

Sou esmoler

Pela dor duma alma afim

E vai ser sempre assim

Que a desgraça alheia irei sofrer…

 

Nem a piedade é pelos outros sequer,

É por mim.

 

 

321 – Rei

 

Sou o rei bem-amado

Dos fantasmas que criei,

De que moro acompanhado.

Sou o rei.

 

A paisagem do sonho é, na verdade,

Mais bela

Que qualquer parcela

Da realidade.

 

A diferença ficou pequena

Demais para que a veja.

Pena, verdadeiramente pena

- É que o sonho não seja!

 

 

 

322 – Fé

 

Que farei aqui?

Não acredito a valer

E, sem fé, não sou capaz

De me imolar no frenesi

Duma ideia que tiver.

Tanto faz, tanto faz…

 

Vou aqui,

No vagalhão

Embrulhado dos dias,

Sem nos meus passos ter mão,

Ao sabor das ventanias.

 

 

323 – Apenas

 

Todo o sonho, toda a luta,

Lágrimas de vida e desespero,

Tantas cadeias de labuta

Ridículas e dolorosas…

Afinal que quero

Para além de todas as coisas?

 

Tão grande e tão pequeno é o ideal:

Apenas ser!

 

- Para, afinal,

Tudo, no fim, morrer…

 

 

324 – Ousadia

 

Autores há bem originais

Cuja ousadia revolta

Porque do público os gostos banais

Não principiaram por pôr à solta

Nem lhe serviram em bandeja de prata

O lugar-comum que embriaga e mata.

 

Porque ninguém lhes entende os trejeitos,

São suspeitos.

Um passo além, desmascarados,

Ei-los sem apelo condenados.

 

Depois de carrascos e de vítimas se esboroarem na tumba

É que destas a fama lenta enfim retumba:

- Pessoalmente, na liça

Já ninguém lhes poderá fazer justiça.

 

 

325 – Fieira

 

Ao enfraquecer o amor

O que vejo

É enfraquecer o desejo

De alimentar-lhe o fulgor.

 

Ninguém pode mudar,

Devir outra pessoa,

E os afectos manter no lugar

Do antigo de que hoje destoa.

 

Se alguém já não somos,

Pelo caminho, dele perdemos os pomos.

 

Não há jamais maneira

De ambos – o que fomos e o que somos –

Enfiarmos na mesma fieira.

 

326 – Tísico

 

O mundo físico

Difere bem do que vemos:

Dele é um corpo tísico

O que afinal recolhemos.

 

Não é apenas ele, porém,

Que assim difere:

Entre as pessoas ninguém

É igual ao que alguém dele confere.

 

Dissemelhante é a realidade

Do que julgo perceber,

Da ideia que dela me persuade

E que nem trio sequer.

 

Mas a ideia é que é activa.

As árvores, o sol e o céu

E quanto no íntimo qualquer homem viva

Encobre-os e desvela-os o véu

 

Dos olhos de meu olhar.

Se outro fora o ser que os vira

Não veria, se calhar,

Nada que meus olhos fira.

 

Mas poderia ser equivalente

A distância

Deste saber que nos mente

Ao ser de que mantemos a ignorância.

 

 

327 – Silêncio

 

O silêncio é uma força

Ao dispor terrível

De quem for amado.

E o custo orça,

Imbatível,

Ao que é dado.

 

Quem amar morre na espera,

De ansiedade:

Nada convida tanto a aproximar-me da quimera

Como o que dela me separe.

Que muro para a sonegada herdade

Mais intransponível que o silêncio

Com que depare?

Do apaixonado convence-o

A palavra, a presença, a jura?…

 

O silêncio é o suplício que à loucura

Coage nas prisões.

Pior, porém, na trama

Dos corações,

É sofrê-lo alguém por parte de quem ama.

 

 

 

328 – Mero

 

Crimes individuais se perdoarão

Com o justo correctivo,

Nunca a participação

Num crime colectivo.

 

Por mais que germinem medos,

Aqueles só ferem dedos;

Este, não,

Este mata o coração.