Escolha um número aleatório entre
221 e 328 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
221 – Horizonte em devir ao porvir certo
Horizonte em devir ao porvir certo
Descubro, a cada passo, nas extremas
De meus campos de arroteio, quando os lemas
Procuro que me acabem o deserto.
Toco assim todos os temas
Que, longe e perto,
Afinal manterão sempre desperto
O olhar que da escória me peneira as gemas.
Enquanto este horizonte se não fecha
Sou a flecha
A visar a cumeeira aonde aponte.
E no voo
Sei bem que sou
Mero sonho selvagem que anda a monte.
222 – Esquema
Quando os cães saltam
Para a nossa cama
São pessoas que lhes faltam:
O cão ama.
Quando os gatos saltam
Para a nossa cama,
São cómodos que assaltam:
O gato trama.
Neste esquema tosco,
A nossa inteira gama:
- O cão adora estar connosco,
O gato adora a nossa cama!
223 – Portão
Um trabalho que lhe importa,
Tempo livre e rendimentos
Com que ele os custos suporta
São bastantes elementos
Para que a felicidade
Abra o portão
Que convém com mais verdade
A qualquer filho de Adão.
224 – Indispensável
A parte mais indispensável
Da felicidade
É não ser jamais viável
Na totalidade.
Jamais ter
Tudo quanto se quiser
É o pão e o vinho
De qualquer
Sonho a caminho!
225 – Fragilidade
A fragilidade
Marca quanto valho
De felicidade.
Frágil é o prazer,
Gotinha de orvalho:
- Só de rir, morrer!
226 – Grau
Que boa, a recordação desagradável!
Torna-me feliz
Só porque há um nada era o mais miserável,
Por motivos imbecis.
Tudo é questão de grau:
O bom e o mau
De vez e de raiz,
Quem de tal se apercebeu
Jamais desde então os quis
Nem sentiu.
Assim é que a felicidade
Mora à beira
Até da fatalidade
Duma urna de madeira.
227 – Jóias
Entre as jóias mais estimadas
Que alguém
Inefáveis retém
Vão as palavras jamais pronunciadas.
Ou porque, ditas,
Seriam malditas,
Ou porque ao imo, de fora,
Toda a palavra é traidora.
228 – Diferenciação
Entre a realidade
E qualquer ficção
Onde se pôr há-de
Diferenciação?
É que à ficção é exigido
Que tem de fazer sentido!
A luz é aquele presente
Em que em nós mora a parcela
De Deus.
Se agora ficar ausente
Do íntimo atrás da tela,
Dos céus
Aqueles bocados
Andam sendo assassinados.
E, se eu não vir uma estrela,
Morro com ela.
230 – Emigrantes
Dos emigrantes a primeira vaga
Atrai sempre a compaixão.
A segunda já quase que é uma praga
Para aquilo que lhe darão.
A seguir
Ninguém
Sequer já tem
Licença para existir!
231 – Altura
Nunca ninguém é feliz
Na própria altura.
Só mais,
Muito mais tarde é que o sentis.
- E então, que loucura,
É tarde demais…
232 – Vermes
O homem morre.
Fica a cama onde morreu,
A casa e os bens permanecem…
Ah, destruir tudo,
A vida que corre
Indiferente ao que ocorreu
E os mais que o esquecem
Sobretudo!
Morre o homem…
Ai os vermes do tempo que nos comem!
233 – Ela
Ela não ri
Porque me deseja.
Aquela ali,
Quenquer que seja
Na própria epiderme,
Não me quer bem: quer-me!
234 – Namorada
Pobre namorada,
Como fui tão mau com ela!
Decente, bem penteada,
Agradável…
- Ficou doravante e para sempre aquela
Menina assim tão amável
Só porque agora nem sequer
Eu jamais a poderei ver!
235 – Vê
Quando se trata de mim
Ninguém vê, ninguém vê nada.
Talento assim
De nada ver na jornada
É o que leva ao frenesim.
De mim olhas através,
Sorris por cima de mim,
Falas-me e nunca me vês,
Que tudo me passa ao lado…
Finjo não me dar cuidado:
Não me vês? Finjo não ver…
Sei lá bem se isto é maneira,
Se é sério, se é brincadeira…
- É o nosso modo de ser!
236 – Inferno
Teu inferno
É não ter o que desejas?
Para alguns é o cibo eterno
Da vida:
A corrida
Ao que almejas.
Ter o que amamos
É sentir a todo o instante
Nosso bem desagregar-se.
Pó de oiro que deslizamos
Entre os dedos que, adiante,
Nos foi puindo o disfarce
Até que o tecido esgarce.
A coragem de abrir mão,
De abandonar o tesoiro
Ninguém jamais tem de vez.
Em troca se apertarão
Mais os dedos e o desdoiro
Grita, suplica, soez.
Para conservar o quê?
Um vestígio precioso
No côncavo eco do gozo
Que prometeu e não é.
Mão vazia, a mão vazia
É o que resta ao fim do dia.
237 – Suspenso
Desejar-te-ei sucessivamente
Como fruto suspenso,
Água distante,
Casinha feliz e ausente
Que roço de leve quando penso,
De passagem, num descante.
Em cada um dos lugares
De meus desejos errantes
Abandono sombras aos milhares
Em tudo a mim semelhantes,
De mim desfolhadas
Na espiga quente e azul destas colinas,
No vale de sombra cheio de chapadas,
Nas aves e na vela finas
A voarem ventos e vagas.
Tu ficas com as sombras mais que afagas,
Puras, nuas, ondulantes e que acato
Destas ervas a agitar-se no regato.
O tempo, ao fim, diluirá tudo,
Depois de meus passos me deterem mudo.
238 – Crónica
Minha crónica interior,
De crueza e de amargura,
Ferocidade e traição,
De prepotência e de amor,
- Crónica tal não procura
Do papel lavrar o chão.
Seria preso,
Degolado, esquartejado.
Não ficava o escrito ileso,
Antes era requeimado,
Não fora o vezo
De alguém fazer-lhe traslado.
A verdadeira verdade
Proclamar-se jamais há-de.
Dos lábios as palavras nunca são
O que fita o coração.
239 – Perversão
A longa continuidade
Da dominação
Gera, com naturalidade,
A perversão.
Uma Igreja outrora
Um Deus, um rei…
Uma cultura agora,
Uma técnica, a mundial lei…
Fora da Igreja
Não há salvação,
Fora do ocidente não há civilização…
O invés por mais que veja
Nunca o tomo em consideração.
Fora de minha verdade,
O erro:
A autenticidade
Noutrem é defeito.
Ainda e sempre me aferro
Ao povo eleito:
Hebreu, cristão, ocidental…
É a fonte, em cascata,
Do mal
Que nos mata.
240 – Rosto
No Oriente como no Ocidente
Não pode deixar Deus de estar:
Ambos a Deus pertencem.
Os que disto se convencem,
Qualquer que seja a direcção do olhar,
Verão sempre em frente,
Crentes ou ateus,
O rosto de Deus.
241 – Teia
É a teologia
Que abafa Deus
Quando na teia o desvia
Dos conceitos que são os seus.
Como o mal
É o moralismo,
Que sempre dele afunda no abismo
A moral.
- Ambos do dedo confundem a ponta
Com o horizonte para onde ele aponta.
242 – Sigilo
Não é sigilo
Que às vezes cortamos o voo:
O cristianismo, por exemplo, é aquilo
Que Jesus condenou.
Houve apenas um cristão,
Morreu na cruz.
Viver hoje o que viveu então
Jesus,
A vida como a conduziu
O que na cruz morreu,
Só isto é o tema,
Só isto é o lema,
Só isto é cristão.
Nunca qualquer sistema:
Cristianismo, cristianismo
É a queda no abismo!
243 – Arena
Rejeitar a reflexão
Sobre os fins ou o sentido
Mutila-me a dimensão
Que transcende o que é vivido.
Não vai ser o mundo então
Mais do que a arena sangrenta
Onde se confrontarão
Aqueles que o poder tenta:
Quem quer crescer visa em vão.
Ou sou pássaro voador
Ou então
É o equilíbrio do terror.
244 – Veneno
Cristianismo e moralismo
Deram a beber veneno
Ao erotismo:
Não cai morto no terreno,
Adoece e degenera
Em vício.
É o suplício
Para quem não acolhera
O homem na totalidade.
Esta é a verdade:
Demónio o sexo devém
Só quando por deus se tem.
Com naturalidade
Se fora acolhido,
Era apenas um sentido
Entre os mais
Que do homem ao homem dão sinais.
245 – Sacrificar
Sacrificar só vale a pena a vida
Quando não há um outro modo.
A morte é preferida
Ao desprezo de quem amamos por todo
E qualquer nosso engodo.
Não que a vida se despreze,
Mas apenas que é preciso
Que a si próprio se respeite cada qual, se preze
E que a si venha a impor juízo.
Ora, é o amor, o amor de quem queremos
Que nos deu o ser que temos.
Perdido,
Que mais na vida faz sentido?
246 – Remorso
Por um tempo largo
Julguei a vida o bem supremo.
Enganei-me e pu-la a cargo
Das liberdades que quero e temo.
Em que sou mais livre, porém,
Se não posso recomeçar,
Voltar para junto de quem
Principia a ousar?
Tantas coisas me ensinaram!
Ninguém me ensinou que o remorso,
De quantas prisões me encarceraram,
É aquela que mais forço.
247 – Vexames
Nunca a esquerda considera
Vexames como fatais,
Logo à partida lidera
Protestos, motins, demais
Manifestações que tais.
Organiza todo o ano
Conluios contra o tirano.
A direita, pela ordem,
Quer que nada jamais mude
Na desordem existente.
Assim é que sempre mordem
As pernas de quem se ilude
Os cães, a ferrar o dente.
A virtude
Não vem duma ou doutra ideologia,
É apenas a da via
Que nos vá tornando gente.
Tudo o mais é indiferente.
248 – Dando
Haverá melhor maneira
De provar minha amizade
Do que dando ao meu amigo?
Do abismo tirando-o da beira
Com o dom que o persuade
A viver, que tem abrigo?
O rico que abandonar
Um amigo
Só para ficar seguro
De que não lhe entra no lar,
Da fortuna ao pascigo,
Não há justificação que valha
Ao que dele apuro:
- É um canalha!
249 – Verme
Todo o bicho, mesmo o verme,
Ama deveras a liberdade.
Dos vermes o mais inerme,
O Homem,
Ama-a com mais verdade,
Que dela tem consciência.
E quanto mais lhe domem
Dos movimentos
A independência,
Mais da liberdade a consciência
Lhe acresce no meio dos tormentos.
250 – Ultrajada
Quem amar a liberdade
E a vir partir ultrajada
Mantém a esperança de que há-de
Vê-la, tarde ou cedo, retornada.
Tão penoso lhe é viver
A ausência de ser.
251 – Desempregado
Se nem para me explorar
Me querem em parte alguma,
Desempregado,
Como me irei encarar?
Forçam-me a que me resuma
Em ter no mundo a mais andado.
Despedido, não,
Era andar em contramão.
Isto é uma despedida:
Não tenho nenhum direito à vida.
252 – Fatiga
Procurar trabalho, esperançoso e leveiro,
Sem o encontrar
Custa mais que trabalhar
Um dia inteiro.
O trabalho
Fatiga.
Porém, o que mais me afadiga
É quando já nem sei para que valho.
253 – Repórter
O repórter de qualidade
Noticia apenas factos.
Mas deles os pressupostos e os impactos
Quais serão, de verdade?
É que um facto é um icebergue
Cuja ponta descoberta
Esconde o que o fundo albergue:
Dez vezes mais neve encoberta.
É do facto o invisível,
Submerso no mar de interesses,
Que o torna mais credível:
Egoísmos e apetites,
Abscônditas benesses,
Mais mistérios e desquites
Em que a natureza humana
Mais funda que o mar emana.
O repórter verdadeiro
É quem busca o facto inteiro
E então este jamais é
Apenas quanto se vê.
254 – Lascívia
Há olhares de lascívia
Que deixam tão viscoso o ar
Que não há lixívia
Que o logre lavar.
Ferem-nos no centro
E então, em vez de modos ternos,
Começam a apodrecer-nos
Por dentro.
255 – Farda
Para alguns oficiais
Uma farda
É um adjectivo
Que qualifica aquele que guarda,
Sem mais.
- Quando é um mero substantivo
Comum
Que não tem valor nenhum.
256 – Maniqueísta
No pensamento, primário,
Nas escolhas, um sofista,
No imaginário, a ilusão,
-Um revolucionário
É um maniqueísta
Obcecado pela acção.
Ele, o bem; o resto, o mal:
- Eis, por junto, quanto vale!
Entretanto, mortos pelo chão,
Os milhões que já lá vão!
257 – Intelectual
Ao agir sente-se mal
E mal, se fica parado
Do povo ante a perdição:
- Um intelectual
É um condenado
Por definição.
258 – Óscares
Dos óscares a entrega:
Mil milhões de pares de olhos
A entrar na refrega
Dos loiros e dos abrolhos.
Todos vendo a fantasia
Doutra fantasia em volta,
Mentira que mentiria
A anterior mentira à solta.
Triunfo supremo
Do mundo de faz-de-conta:
Com a glória não atremo
Senão noutrem em que aponta.
Por trás, porém,
Do espectáculo de tolos,
Há a fábrica a que convém
O lucro que dão tais bolos.
E, se tudo é fantasia
Naquilo que vejo à frente,
Aqui, não, o lucro é o guia,
Só que o ninguém vê nem sente.
259 – Jardim
Em tua casa, um jardim.
Periódico, teu pai corta a grama,
Estende o jasmim,
Poda as árvores e acama
A rama
Podada, ao fim.
Que lindo o jardim, que lindo!
Fotografa-lo em cores,
Comendo, bebendo, rindo
Entre as árvores e as flores…
Com ele, porém, não comungas jamais,
Não és íntimo dele,
Não meditas na grama, nas frutas, nos pardais,
Não o metes na pele.
Só cuidas em comprar
Maior conforto,
Bancos, mesas a enfeitar,
Uma piscina a meio do horto,
Estatuetas, pedestais…
E o teu jardim incompreendido:
Um estranho perdido
Para nunca mais…
260 – Eclesiástico
Para salvar a igreja
No tempo histórico
Um eclesiástico que se veja
Arriscará, pletórico,
Perder a alma na eternidade:
É um mártir da obscenidade.
É por causa deste nojo
Que se inçaram de tojo
Os matagais da humanidade.
261 – Disforme
Disforme como nasci,
Como podia não iludir-me
Com a mente que em mim vi?
Por mais que de dons bem firme,
Velaria meu defeito
Como a fantasia o vela
No peito
Duma donzela.
Porém, quando a janela
Exterior
Se fechou
Como é que do pássaro interior
Alguém surpreende o voo?
Se é bom que me não conforme,
- Mau será que mal me informe,
Por mais triste
Que seja o que em mim existe.
262 – Falsa
A infelicidade
Duma vida falsa
É roubar substância à realidade
E de sentido acabar descalça.
A verdade é que nos cercaria
De alimento e de alegria.
A falsidade
Torna falso o Universo
E a quem ela persuade
Tudo entre os dedos lhe escoa disperso.
No fim, ele,
Revelado à falsa luz,
Na vaga sombra que induz
Abandona a própria pele.
263 – Tirania
O público, à tirania afeito,
Nega a justiça vulgar
Se exigida como um direito.
Da justiça em lugar,
Quando o apelo a ela é feito,
Como do déspota quer a vaidade,
Coloca o apelo à generosidade.
Assim é que o modo e não o conteúdo
Aqui decidem tudo.
264 – Apenas
Procuro apenas os feios,
Os miseráveis tolhidos pelos arreios,
Os mesquinhos
Sem pão, nem água, nem caminhos,
Os sofredores
De todas as dores.
Agora, porém,
Padres, bispos, cardeais e o papa também
São imponentes, orgulhosos,
Iguais a quaisquer outros poderosos.
Não são, não,
As pessoas que Ele amou.
O cristianismo é anti-cristão,
As igrejas tolheram-lhe o voo.
No meio deste vazio
Como retomar o fio?
265 – Ardente
Algures, no coração,
Mora o desejo ardente
De alguém ter por toda a vida,
Mesmo que seja um mero cão
Sujo e doente
Que acabe sendo a noiva prometida.
Alguém que nunca traia,
Nunca nos abandone,
Nunca da berma nos saia,
Mesmo credor, nos abone…
Tornou-se Ele o nosso cão
Por amor à Humanidade:
Já não caminhamos em vão.
Sempre ao lado, persuade,
De cada pegada guia,
- Que aqui Tudo principia.
266 – Suicídio
O suicídio moral
É muito mais fácil, muito mais:
Adaptar-se à vida real,
Como os demais…
- Em vez de obrigar o mundo, qualquer dia,
A ser como deveria.
As coisas são como são
Apenas porque eu sou em vão.
Estou aqui, de facto estou…
- O problema é que não sou!
267 – Herói
Um herói, antes de mais,
É quem vence o próprio medo.
Os sinais
Não são dum credo:
É que ele é um só com a vida
E consigo, uma unidade,
- Da vida encarna a corrida.
E é o cobarde que, em verdade,
Nos entrava a lida.
268 – Estação
Ninguém avança vida fora
Em linha recta,
Muitas vezes a demora
Não é na estação correcta.
Por vezes tropeçamos, senis,
E saltamos dos carris.
Quantas vezes nos perdemos,
Ou levantamos voo e desaparecemos
Em pó,
Confundindo solidão com ficar só.
As viagens mais incríveis,
Ocorrem, se calhar,
Pelas vias mais credíveis
De quem não sai do lugar.
Vivem alguns em minutos
O que o vulgo levaria
Uma vida, em seus produtos,
A viver dia por dia.
Um sem número alguns gastam
De vidas na decorrência
De estados em que se afastam
Da dependência.
A vida é mesmo insondável,
Em todos ou num apenas,
E mostra-se inesgotável
Até nas coisas pequenas.
269 – Versões
Cada qual a própria história
Das ocorrências do mundo
Vai registando em memória
Desde o fundo mais profundo.
Se comparar viável fora
As versões,
Descobríamos de hora a hora
Que o passado universal,
De cada qual aos milhões,
Sendo real,
Não tem realidade,
Sendo autêntico sem senões,
Não tem autenticidade.
Parecendo verde relva,
É uma impenetrável selva.
A biografia de alguém
É um labirinto tamanho
Que infinda é a conta que tem
De sentidos seu amanho.
Quem logra saltar do plinto
Ao centro do labirinto?
270 – Jovem
Repara no jovem,
É uma cobaia,
Os olhos se movem,
Estão de tocaia.
Só que na vida
Já não há saída.
Nasceram já condenados
A viverem aos bocados.
Triste
É ver que quanto melhor é a condição
Que existe,
Tanto pior deles vai sendo o quinhão.
271 – Imitador
Imitador
Em vez de guia,
Tal é a maldição-mor
Com que o homem principia.
Sem tentar viver a vida,
Os mestres a copiar
Servilmente de seguida,
Encontra o homem um lar.
Os poucos grandes exemplos,
Apesar de muito claros,
Morrem quando pelos templos
Se lhes buscam os preparos.
Nem o mais avançado
Imitador
Compreendeu por que lado
A noite colhe fulgor.
Ser seguidor
Em lugar de bandeirante,
Eis o horror
Que nos tolhe o passo adiante.
Não é só questão de andar:
- É de Eu já nem ter lugar!
272 – Rodeio
Quanto rodeio a tapar os ouvidos!
Não queremos ouvir verdades
Nem podemos sequer ouvi-las,
Pela razão de que agredidos
Por todas as necedades
Nos sentimos ao senti-las.
Não as ouvimos de nenhuma voz,
Que as contamos nós a nós.
Devém a dor objectiva:
Cada qual feito instrumento
De arranhar a carne viva,
É cada qual um tormento.
E o que é mesmo assustador
É que, momento a momento,
Nos devora o sofrimento.
Sugados por tal horror,
Desaparecemos, vento
Sumido num elemento
Mais do que todos maior.
Mais do que haver esquecimento, pior,
É sermos nós o esquecimento.
273 – Mundo
Não ver o quê? O mundo?
Claro que o vemos, imundo,
Violento, poluído, a se sumir.
É aquilo de que quenquer
Tenta fugir,
Aquilo que, sem conseguir,
Tenta não ver.
Vê-lo, pois, nós bem
O vemos.
Querê-lo-íamos, porém,
Bem outro do que o que temos.
274 – Afogar
Carpimos ao homem
Prestes a afogar:
- Tuas aflições como me consomem!
Se me houveras deixado ensinar-te a nadar…
Todo o mundo, adivinho,
Quer o mundo endireitar,
Mas ninguém quer ajudar
O vizinho.
Tudo errado
Na via que se apronta:
Queremos tornar-nos homens só dum lado,
Sem levar o corpo em conta.
275 – Absurdos
Que significa o modo
Como os mundos evoluem
Se provar que o Ser que é o Todo
São os absurdos que se intuem?
De cima abaixo
Se infiltra o veneno:
As dúvidas, em cacho,
Mergulham por todo o terreno,
Dos meios ao fim,
Não lhes escapa qualquer confim!
Tudo é Deus, Deus é tudo:
Para além de qualquer fé,
Ou nós somos Deus, ou, sobretudo,
Deus não é.
Que arrepio!
Não sentes? Como o mundo fica frio!
276 – Vemos
Vemos o que vira lá para diante,
Vemos o que ficou para trás,
Mas não o que de nós não é distante,
O que o presente nos traz.
Com a atenção
Na lonjura envolta,
Não nos resta visão
Para o mundo à nossa volta.
A cegueira do quotidiano
Perante da vida os eventos normais e anormais,
É o dano
Do visionário inquieto com os sinais.
Os olhos invulgares
Terão de ser treinados
Para os olhares
Que do vulgo nos trarão os fiéis dados.
Poucos vêem ao redor,
Poucos criam o modelo
Que aos eventos passageiros venha impor
Da ordem deles o selo.
Só que é requerida a morte
Para um olhar de marciano,
Selenita, neptunino,
Ter em nosso passaporte,
Dia a dia, todo o ano,
Ultrapassando o destino.
Porém, tal clarividência
Não é apenas a dos olhos.
Quantas vezes a evidência
Só encontra neles escolhos!
Há uma serenidade calma
Que vê mais fundo:
- Com os olhos vê o mundo,
Descobre-o, todavia, com a alma.
277 – Trevas
Quanto mais penetro nas trevas,
Na confusão do fundo,
Tanto mais intensa a luz com que me levas,
Mundo.
A personalidade inteira
É um olho devorador
Assestado à beira
Do Eu de mim senhor.
Até ao momento em que, constante
A olhar-me ao espelho,
Vejo, ofuscante,
Que se evola o aparelho
E ao corpo se une a imagem
Dele extraviada.
Aqui termina a viagem:
Recupero a visão normalizada
E aquele que morrera entre cativos
É devolvido, por fim, ao mundo dos vivos.
278 – Alçapões
Infinitos alçapões
E nunca mais há saídas.
Descemos e descemos, aos baldões,
E as pegadas são ilusões
Perdidas.
Descobrimos que o mundo,
Que o oceano de nossas descidas
Não tem fundo,
Não tem fundo,
Não tem fundo…
279 – Brida
Os livros, como o resto do Universo,
Do espírito do tempo fazem parte.
O pensamento com que converso
Quer exteriorizar-se,
Que só então me reparto e se reparte.
Se não encontra forma de vir à tona,
Qualquer que seja o disfarce,
Escava o solo, rasga vias subterrâneas.
De bom nada tal caverna abona,
Vacina as próprias fontes da vida
Em explosões momentâneas
- E mata ao fim quem lhe atou a brida.
280 – Paga
Fizeste uma coisa errada:
Trabalhaste muito e vingaste.
Em paga tens a vida desgraçada,
No deserto solitária e febril haste,
Sem cônjuge, sem filhos, sem amigos,
Seco e morto quanto baste.
Para ti não há mais abrigos,
Que só trabalhaste muito e vingaste.
281 – Favoritos
A sorte dos favoritos
É precária,
Eles são apenas mitos,
Ela é falsária.
Quando o valor
Não é o da qualidade
Mas do favor,
É postiça a validade:
Toda e qualquer
Personalidade
Não é de ser,
É de supor.
O favorito é a sombra fátua do senhor.
282 – Sofrimento
O sofrimento
Não melhora
Ninguém,
A ninguém traz nenhum aumento.
O sofrimento só piora
Quem o tem
Por alimento.
No fim, o efeito
É que todo fica ruim.
Ora, ninguém foi feito
Assim.
283 – Caminho
Do caminho que a vida tome
Depende a colheita do minério:
Se o sonho a consome
São tesoiros de mistério;
Se trilha caminhos de fome,
Vai direita ao cemitério.
Quantas vezes, porém, o pior da briga
É que o sonho à fome se liga!
284 – Hospital
Num hospital
Um homem não é um homem:
Enquanto as doenças o comem,
Deixa de ser um mortal.
Expositor de todas as crenças,
Lado a lado, por tempos imemoriais,
O hospital cristalizou angústias e ais,
É o museu das doenças.
Da vida à berma das estradas,
Tem, como os mais,
Visitas guiadas.
285 – Alto
Pode um homem alto se casar
Com mulher baixa.
Porém, uma alma invulgar
Como se pode ligar
A uma rasteira,
Se não encaixa
De nenhuma maneira?
286 – Limita
Quem serve todos os semelhantes
Serve a Deus.
Quem seus instantes
Apronta para os correligionários
Serve os seus:
Deus ficou-lhe trancado nos armários.
E mais ainda quando é
Em nome da fé:
Devém Deus o instrumento
Não da alegria,
Mas do tormento,
Coisa que jamais seria
Se Deus fora o que devia.
287 – Torre
Quando o povo a torre ergueu
Para atingir o céu,
Pejado de esperança,
Em comum dançou a dança.
Ao descobrir, porém,
Quão bela a torre se erguia
Mudou de ideias: já ninguém
Entendeu para que ela serviria.
Resolveu que tal portento
Seria a si próprio um monumento.
Quando renunciaram
A visitar de Deus o trono
Principiaram
A trabalhar para o próprio abono.
Desde então não se entenderam mais
No rumo, no ritmo, na estrada…
Daí o derradeiro dos sinais:
- A torre foi de vez abandonada.
288 – Fita
Um padre sincero
Exporia a vida, voluntário,
Caso fora necessário.
Mais que um obstáculo mero,
Intransponível por nenhum lado,
É ficar de vez desacreditado.
Nao perante Deus nem a fé,
No imo sempre fáceis de manter de pé.
Mas perante a organização,
Perante o templo,
Único exemplo
Que se lhe antolha de religião.
Para não ser desacreditado se convida
A perder de vez a vida.
E faz gala
De repetir que assim anda a conquistá-la,
A ver se acredita
Que não é, ao fim e ao cabo, o mau da fita.
289 – Peixe
Peixe aprisionado na rede
Que a fuga lhe vede
É o direito do homem pobre
Na lei que o recobre.
Qual ajuda!
Por mais que sobre a intenção,
Não há mão
Que lhe acuda!
Qualquer bem intencionado
Acaba tão prisioneiro
Que dele nem do recado
Me inteiro!
290 – Objecto
Objecto deveio o acto de conhecer
Duma filosofia sem objecto.
Torna indiferente quenquer
Quanto indiferente lhe é o mundo concreto:
Os problemas que coloca
Denodados
Só se colocam de boca,
Já que estão mal colocados.
A escola e a igreja,
Cada qual enclausurada em sua toca,
Não respondem àquilo por que alguém almeja,
Mas a problemas que ninguém coloca.
Eis porque estamos perto
De o templo e a academia se tornarem num deserto.
Depois,
Violência e decadência
São os dois
Produtos finais desta ausência:
Um modelo de crescimento
Em que o aumento
Aumenta em nós a impotência.
291 – Cientismo
Se a ciência é cientismo
Deveio superstição,
Cava maior o abismo
Da humana contradição:
Ciência e sabedoria
Desliga, os meios dos fins,
Saber não tem mais valia
De além romper meus confins.
Devém então um poder
Que apenas preza
Dominar à mão quenquer
E também à natureza.
Não temos mais abertura
Que nos livre da clausura.
292 – Fabricam
Teísmos fabricam deuses
À imagem das parciais
Comunidades de reveses
Em que apostais:
Se do conforto credores,
Deuses para conservadores;
Se no iníquo vos magoais,
Deuses para marginais.
Em todo o caso,
Nenhum deus a Deus deu azo:
Quem de deus se apropria
Vive sempre em heresia.
293 – Cadeia
Na interminável cadeia da eternidade,
Todo o encontro é o primeiro,
É para sempre toda a partida.
Do nascimento e da morte a última verdade
É que são mero caso corriqueiro
Entre os incontáveis desta lista desmedida.
294 – Agora
O agora em que o primeiro homem foi criado,
O agora em que o derradeiro morrer,
O agora em que escrevo este traslado
São em Deus o mesmo agora a ser.
Os milhões de anos passados,
Os milhões de anos por vir
Em Deus são o presente em que, gerados,
São o instante eterno de surgir.
295 – Divorciada
Ciência divorciada da sabedoria,
Um meio de costas para o fim,
É uma ciência do instante.
Quando em fins míopes nos vicia,
Os do gozo, do poder, termina no confim
Dum indivíduo, dum povo, não salta adiante.
Ciência que não cura
Da lonjura
É uma ciência ignorante.
296 – Recipientes
Mágoa, verdadeira mágoa
É que os livros mais não fazem que aprisionar
Em recipientes de água
A fonte dentro em nós sempre a manar.
De nós próprios que radical cegueira
Nunca, afinal, nos inteira?
297 – Divórcio
O divórcio da ciência e da sabedoria
Ameaça-nos de morte,
O domínio dos meios quando dos fins se divorcia
Vagueia à sorte.
O que aterra
É o que daqui se desprendeu:
A revolta do homem contra o céu
Poluiu a Terra.
298 – Identificação
Com a vontade de Deus a identificação,
Longe de levar ao fatalismo,
Estimulou séculos de acção,
Mudou estruturas sociais de servilismo,
Desenvolveu ciências,
Trabalhou criadores…
Como é que tantas excelências
Se transmudaram sempre em horrores
Quando as decadências
Deslizam pelos pendores?
299 – Não
Não sou cristão, nem judeu,
Nem budista ou muçulmano.
O Oriente não me viu,
Com o Ocidente não me engano.
O lugar de meu credo
É sem lugar,
Meu rasto concedo
Ao sem rasto que teimar.
Não há mais dualidade,
Quaisquer dois mundos são um.
Procuro a unidade:
Este é dos fins o Fim,
Não há mais nenhum.
Até em mim,
Interior-exterioridade,
Exterior-interioridade:
Tudo o mais
É mera confusão de meus sinais.
300 – Águas
Das águas a cor
É a cor do recipiente:
É válido todo o crente,
Deus toma a forma que for
A de qualquer fé
E por todas nos mantemos de pé.
Foi por esta universal validade
Que atingimos a idade
Que hoje temos.
- É porque o não reconhecemos
Que jamais chegamos à maioridade.
301 – Museu
Não é museu a cultura
De arte ou literatura.
É o conjunto das respostas
Da comunidade humana
Às questões que lhe são postas
Pela natureza ufana,
Pelos homens meio irmãos
E por suas próprias mãos.
Cultura não é museu,
De facto,
Por mais que a atulhe de sinais:
Sou eu
Em acto,
Interagindo com os mais.
302 – Erro
O erro que mais nos pesa,
Onde os sonhos se consomem,
É o de nem sequer
Aceitar ver
Que o homem pertence à natureza,
Não a natureza ao homem.
303 – Dialéctica
A dialéctica,
Abertura
Infinita para o infinito,
Encerrada, patética,
Na clausura
Dum sistema fechado,
Nem um som tem do que foi grito:
O conceito elaborado
Anuncia
O fim do dia.
- É vã
Toda a esperança de haver um amanhã.
304 – Mortal
É uma confusão
Mortal
A da fé com a religião.
A religião é uma fé tal
Como pôde traduzi-la
Certa cultura, certa instituição.
A fé se perfila
De cada época numa linguagem,
Numa estrutura.
Nunca, porém, tal configura
A fé, já que é dela mera imagem.
Por mais que da fogueira seja um chamiço,
Jamais o lume se reduz a isso.
Jamais o cristianismo é a cristandade,
Mera figura dele à moda do Império Romano.
Jamais o Islão é de Medina a comunidade,
Ou o modelo omíada, abássida ou otomano.
A forma fátua com o perene sentido
Confundir
É liquidar à partida o porvir
Que então jamais poderá ser vivido.
305 – Violência
Primeiro é a violência institucional,
A perpeturar dominações,
Opressões,
Explorações,
Que tudo em todas tornou legal.
A violência revolucionária é a segunda a vir
Que a primeira tem vontade de abolir.
A violência repressiva é a terceira
Que a segunda pretende sufocar,
Cúmplice e auxiliar
Da primeira.
Esta, se bem reparais,
É que gera todas as mais.
Não há pior hipocrisia
Do que chamar “violência”
Quando a segunda principia,
Fingindo ignorar, com inocência,
A primeira que a cria
E a terceira que a mata qualquer dia.
306 – Eleito
Um povo eleito (judeu, árabe ou qualquer),
Uma língua sagrada (hebreu, árabe, latim)…
- Não há local de eleição sequer
Da presença divina
Que não seja em mim
O coração.
Deus, ou o coração ilumina
Do homem, de todo o homem,
Ou todos os deuses se consomem
Na ilusão.
307 – Muda
Ninguém muda o mundo sem a si se mudar,
Ninguém se muda a si sem mudar o mundo.
Mudar a terra e o homem, em primeiro lugar,
É ligá-los do absoluto ao trilho fecundo:
Lembrarmo-nos do poder de ruptura,
Da transcendência perante a ordem implantada,
Do lucro e da dominação escapar à usura,
Do crescimento cego e da violência fugir à estrada.
O homem e o mundo são um jogo de espelhos,
Não se inova o mundo se continuarmos velhos.
308 – Determinismo
O histórico determinismo
Implica necessariamente
O conservadorismo
Omnipotente.
Se não há ruptura possível,
Transcendente,
Mas leis que regem a acção exequível
Como regem os objectos,
Nenhuma novidade verdadeira,
Nenhuns projectos
Germinam na leira:
Já contidos no passado
Estão os germes do presente
Como a árvore, por seu lado,
Na própria semente.
309 – Cedo
É sempre cedo na vida,
Já que andam restos da noite,
Eternos, a esfarrapar-se em redor.
Por mais que a madrugada, há muito erguida,
Pelos dias fora se afoite,
É cedo para a nossa cor:
- Seremos sempre cinzentos
No infinito inatingível dos intentos.
310 – Culpa
É sempre tua a culpa
De teus braços caídos,
De teus olhos a rastejar no chão.
Não tens desculpa
De a vida passar ali diante,
Bem longe de teus sentidos,
Embora à mão.
A vida
Nada garante
À gente dela esquecida
E segue avante.
311 – Rajadas
Do escritório as máquinas de escrever
Disparam rajadas de seguida:
Metralhadoras com que quenquer
Ou defende ou destrói vida.
Mas quem é que reparou,
Com os lucros pela frente,
Nas mossas que já causou
Ao porvir de toda a gente?
312 – Mortos
De repente estamos mortos:
Fotografia na estrada,
De vez com os lados tortos
Pendurada.
E o álbum, para diante,
Com as folhas todas em branco.
E as de trás fixas no instante
Em que a corda do tempo quebrou, num solavanco.
Estamos mortos de repente
E, ainda por cima,
Definitivamente, definitivamente!
- A que é que um homem se arrima!
313 – Palmo
A vida não me traiu,
Foi a morte e os que a semeiam.
Palmo a palmo, a vida me acedeu,
Conquistada às mortes que a rodeiam.
O mundo pertence a quem
Amar a vida,
Não da noite ao refém
Que traída
A mantém,
Entregue à sorte
Que, uma esquina volvida,
A atraiçoa com a morte.
314 – Acanhamento
Sempre este acanhamento
De revelar o melhor.
Morro e só no pensamento,
A palavra de toda a vida
A prometer calor
Nos lábios retida.
Morro e ficará de vez
Por dizer a palavra que nos fez.
315 – Exórdios
A guerra dos primórdios
Ainda nem vai a meio,
São apenas milenares exórdios
E jamais acabará, receio.
A mentira é o eterno alimento,
A mentira verdadeira,
Tão verdadeira que o tormento
É que é verdade inteira:
A mentira é a verdade dos que mentem
E o não sentem.
Tudo ao fim são verdades.
E o que aterra
É que para fugir à contradição das opacidades
Só vai restar a guerra.
316 – Heresias
Sempre surgem as grandes heresias
Dos que querem salvar a humanidade.
A ordem e a lei cortam-lhes os dias,
Sempre os reduziram à nulidade.
Porém, como seria
Se, ao invés,
A lei do outro lado principia
E a ordem, insegura ainda nos pés,
Se firmara no chão de nova via?
O que está, só porque está
Estará bem?
Só porque está por aqui, por acolá,
Em todo o lado,
Não fica provado
Que seja, afinal, o que convém.
É apenas aliança
Universal de nossos temores
Que nos torna conservadores
E, por fim, mata a esperança.
317 – Patife
A vitória
Da causa que não é justa
Deprime a história,
Da comunidade à custa.
A alegria do patife
Que triunfa é tão fugaz
Como a dum ébrio, cujo esquife
De vez lha remata em paz.
À pessoa sã
Nada a entristecerá mais
Que a paródia malsã
Em que criminosos imorais
Serão, afinal,
Uma glória nacional.
De que serve a consciência recta,
De esforços heróicos,
Se os que atingem a meta
Não são os estóicos
Mas antes aqueles
Que refinaram em tornar-se reles?
318 – Simpatia
A simpatia cristã
Pelo condenado às galés,
Enfiado pelos pés
Na corrente chã,
Fácil devém predilecção
Pelo horrível doentia:
Do belo incomum rejeição,
Em prol da feiura que escolhia.
Tal como o glutão
Perverte o apetite
Se joga o manjar ao chão
Em troca da podridão
De miasmas que não evite.
Ou tal quem troca o paladar divinal
Do vinho velho, bem assente,
Pelo ardor brutal
Da aguardente.
Ou tal o amante que abandona
A paixão normal, feliz,
Descarrilando pelas lamas à tona
Das prostitutas mais vis.
Em mórbido regozijo
A caridade indulgente
Transmuda, demente,
A abertura que lhe exijo:
Então o que é triste e feio
Pelo que é belo se troca
E o sol nunca mais encontra meio
De nos entrar na toca.
319 – Real
O homem material
Não existe, é convenção.
O sonho, o sonho é que é real,
O resto, não.
Tudo quanto de sensível der sinal
É uma ilusão.
320 – Afim
Verto lágrimas por ver
Outrem no fim,
Sou esmoler
Pela dor duma alma afim
E vai ser sempre assim
Que a desgraça alheia irei sofrer…
Nem a piedade é pelos outros sequer,
É por mim.
321 – Rei
Sou o rei bem-amado
Dos fantasmas que criei,
De que moro acompanhado.
Sou o rei.
A paisagem do sonho é, na verdade,
Mais bela
Que qualquer parcela
Da realidade.
A diferença ficou pequena
Demais para que a veja.
Pena, verdadeiramente pena
- É que o sonho não seja!
322 – Fé
Que farei aqui?
Não acredito a valer
E, sem fé, não sou capaz
De me imolar no frenesi
Duma ideia que tiver.
Tanto faz, tanto faz…
Vou aqui,
No vagalhão
Embrulhado dos dias,
Sem nos meus passos ter mão,
Ao sabor das ventanias.
323 – Apenas
Todo o sonho, toda a luta,
Lágrimas de vida e desespero,
Tantas cadeias de labuta
Ridículas e dolorosas…
Afinal que quero
Para além de todas as coisas?
Tão grande e tão pequeno é o ideal:
Apenas ser!
- Para, afinal,
Tudo, no fim, morrer…
324 – Ousadia
Autores há bem originais
Cuja ousadia revolta
Porque do público os gostos banais
Não principiaram por pôr à solta
Nem lhe serviram em bandeja de prata
O lugar-comum que embriaga e mata.
Porque ninguém lhes entende os trejeitos,
São suspeitos.
Um passo além, desmascarados,
Ei-los sem apelo condenados.
Depois de carrascos e de vítimas se esboroarem na tumba
É que destas a fama lenta enfim retumba:
- Pessoalmente, na liça
Já ninguém lhes poderá fazer justiça.
325 – Fieira
Ao enfraquecer o amor
O que vejo
É enfraquecer o desejo
De alimentar-lhe o fulgor.
Ninguém pode mudar,
Devir outra pessoa,
E os afectos manter no lugar
Do antigo de que hoje destoa.
Se alguém já não somos,
Pelo caminho, dele perdemos os pomos.
Não há jamais maneira
De ambos – o que fomos e o que somos –
Enfiarmos na mesma fieira.
326 – Tísico
O mundo físico
Difere bem do que vemos:
Dele é um corpo tísico
O que afinal recolhemos.
Não é apenas ele, porém,
Que assim difere:
Entre as pessoas ninguém
É igual ao que alguém dele confere.
Dissemelhante é a realidade
Do que julgo perceber,
Da ideia que dela me persuade
E que nem trio sequer.
Mas a ideia é que é activa.
As árvores, o sol e o céu
E quanto no íntimo qualquer homem viva
Encobre-os e desvela-os o véu
Dos olhos de meu olhar.
Se outro fora o ser que os vira
Não veria, se calhar,
Nada que meus olhos fira.
Mas poderia ser equivalente
A distância
Deste saber que nos mente
Ao ser de que mantemos a ignorância.
327 – Silêncio
O silêncio é uma força
Ao dispor terrível
De quem for amado.
E o custo orça,
Imbatível,
Ao que é dado.
Quem amar morre na espera,
De ansiedade:
Nada convida tanto a aproximar-me da quimera
Como o que dela me separe.
Que muro para a sonegada herdade
Mais intransponível que o silêncio
Com que depare?
Do apaixonado convence-o
A palavra, a presença, a jura?…
O silêncio é o suplício que à loucura
Coage nas prisões.
Pior, porém, na trama
Dos corações,
É sofrê-lo alguém por parte de quem ama.
328 – Mero
Crimes individuais se perdoarão
Com o justo correctivo,
Nunca a participação
Num crime colectivo.
Por mais que germinem medos,
Aqueles só ferem dedos;
Este, não,
Este mata o coração.