NÓS QUE NUNCA O ATINGIMOS NOS EXTREMOS
Escolha um número aleatório entre 329 e 434 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
329 – Nós que nunca o atingimos nos extremos
Nós que nunca o atingimos nos extremos,
Ao sonho que sonhámos ser um dia,
Desesperamos tanto da magia
Que nela muitas vezes nos não vemos.
Entrementes, bem queria
Que os gigantes Polifemos
Aos infernos caíssem com os demos
Que me tolhem o passo e a fantasia.
Entretanto,
Terei de pagar o meu tributo
De esforço e de pranto.
E no luto
Chorarei a morte das promessas
Enquanto não puder à morte pedir meças.
330 – Imortalidade
Não quero a imortalidade
Através do meu trabalho.
Não sendo nada, não sendo,
Importa-me lá o que valho!
- Quero atingi-la em verdade,
Não morrendo!
331 – Ninguém
Ninguém sabe quão íngreme é o caminho,
O terreno, acidentado,
Quantas vezes se irá cair do ninho
Ou ficar estropiado.
Porém, sempre por trás isto se escuta:
- Já ninguém pode abandonar a luta!
Nasceste,
Teu destino é este.
332 – Imagens
Duas imagens:
A que nos quis o destino,
A que a vida fez de nós.
As miragens
Vêm de quanto declino,
Se à primeira perco a voz:
- Quando em ambas não me arrimo
Já nunca mais trepo ao cimo.
333 – Pressente
Um agredido pressente
Muito antes dum agressor
A ameaça, normalmente,
Que este vai querer lhe opor.
É a vantagem
De quem vê fugir a viagem.
334 – Graúdos
Não te amam
Porque prezas justiça e verdade?
Os graúdos acamam
Iniquidade sobre iniquidade,
Se àquelas as não têm por amigas.
Tu só, com poucos mais, porém,
Valerás mais que as intrigas.
Se vingar junto a ti uma ervilhaca
Aqui ou além,
Será sempre pouca a fraca.
Deles o partido
É que muitas contará,
Que do lado de lá
É que o mal tomaram por valido.
Porém, não tarda
Que ao vento suão
A sementeira lhes arda
Em fogueira no chão.
335 – Maléfico
Renunciar a agir, não.
Agir é superior a não agir.
Maléfico, na acção, não é a acção
Mas os motivos de a conduzir.
É destruidor agir pelo poder,
Por egoísta interesse, pela riqueza,
Pelo gozo dos frutos que der,
Por ser eu o autor que o mundo preza…
Quando renuncio, não à acção,
Mas a tais frutos,
Abro-me ao sabor que tem
Ir Além.
Já não é minha a actuação:
É Deus que por mim cultiva seus produtos.
336 – Imagem
O divino encarna sempre no mundo
Quando a justiça vacila.
Desce Deus entre os homens, fecundo,
Para elevá-los a uma vida mais alta,
Mostrando no homem que liberto se perfila
A imagem do infinito que lhes falta.
337 – Mora
Mora Deus em tudo,
Mais manifesto na vida que no mundo inanimado,
Mais na consciência que na vida
E, sobretudo,
Na beleza surpreendida em todo o lado.
O topo é o sacrifício a que convida:
Do dom da própria vida o heroísmo,
Do amor a entrega,
Da beleza as criações de abismo…
Geração
Da luz na cidade cega,
O sacrifício é Deus em revelação.
338 – Liberto
Liberto da ilusão
De que as coisas são por si,
De que separadas do princípio vivem e morrerão,
A panorâmica do mundo atingi:
Do múltiplo no uno
Que a cada coisa dá sentido.
Cada uma é o espelho onde as mais reúno
E todas espelham o princípio escondido:
Piscar do divino de além delas
Onde ele espreita à fresta,
São as entreabertas janelas
Para o largo da festa.
339 – Organismo
É o mundo um organismo vivo
Pelo absoluto unificado,
Enfia as raízes pelo crivo
Do céu,
Retira a seiva dos actos donde é nado
E que fecundam a terra.
O homem em que tal ponte aconteceu
E que a ela se aferra
Lúcido, com tino,
É manifestação germinal
Do divino:
Nele principia, clandestino,
Um deus pessoal.
340 – Pendor
A sabedoria
Tudo vê na unidade do todo:
A arrancar-me do lodo
Me inclina
E me reenvia
A construir a cidade divina.
Um saber que não vê mais
Que múltiplos com fins limitados
São paixões animais,
Não talham montes e valados.
Um saber que se empenha a cada instante
No gozo apenas dos efeitos,
No poder e nos eleitos,
É ignorante.
Cada homem é do divino um pendor
E a lei de seu destino
É na vida própria repor
Todo o possível divino.
341 – Profeta
Profeta é quem julga a instituição
E o acto
Do fim deles em função
E assim lhes dá o sentido
Para todo e qualquer pacto:
O profeta inaugura um tempo renascido.
Professa
O tempo da promessa,
Alcança
Por um tempo de esperança,
Fura o tecto
Com que me delimito:
Cria o tempo do projecto,
- É uma fresta para o infinito.
342 – Transcendência
Se um homem como homem só se cria
Com outrem na partilha e comunhão,
Para o inteiramente outro aponta a via,
Aponta a eminência
Da consumação:
Sou, no fundo de mim,
Transcendência
Até ao fim.
343 – Par
Não o indivíduo mas o par do amor
É o átomo de mim:
No princípio, não um eu mas um nós
Terei de pôr,
Assim.
Da comunidade os primeiros nós
Não se atam lá fora,
Dentro de todos cada qual mora,
- Aí sou eu, enfim.
344 – Florescimento
O Reino está por chegar
E anda já por aí:
É semente a germinar,
Presente no que já vi
Mas sempre em busca do lar
Onde nunca existi.
O pleno florescimento
Quer a participação
Do homem a cada momento,
É sacrifício e paixão,
Força de cometimento.
O Reino sou eu em acção:
- É o impacto
De mim em acto.
345 – Homem
Que é realmente um Homem,
No fundo do Homem que é que há?
Problemas que me consomem,
Que são meus,
Do lado de cá.
E eu que para lhes responder
Teria de ser
Deus!
346 – Isolado
Um indivíduo isolado
Morre inelutavelmente.
Se fizer um com o todo,
Do porvir mudará o fado
Mudando o presente
Modo.
Facho eterno vivo
E criador,
Permanece activo,
A dar calor,
Apesar do apagamento
Da centelha passageira,
Quando da noite do aniquilamento
Chegar à beira.
347 – Futuríveis
O futuro e o passado
Onde é que eles estarão?
Eles só são
Como presentes nalgum lado.
Só existe o instante
Na sua eternidade:
Vivo, impante
De verdade.
O presente é o que é levado
Pelo impulso do passado,
A fervilhar de possíveis,
Por nossas aspirações chamado
Dos futuros futuríveis.
348 – Pergunta
Uma pergunta de homem
Só pode ser respondida
De experiências à partida
Que dos homens se retomem.
Até
A questão da fé.
349 – Símbolos
A fé,
Com os símbolos, as lendas,
A linguagem depurada
Das capelinhas à Sé,
Trilha sendas
Talqualmente as da jornada
Da hipótese científica
Do encontro da natureza:
Tenta o método, magnífica,
De agir sobre a humana presa
Como anda sobre as coisas a tentar
A ciência para delas pôr-se a par.
350 – Fronteiras
A fé jamais contradiz,
Nem sequer força a razão,
Impede antes de raiz
Que ela em si se feche em vão.
Contradiz a suficiência
Obrigando à transcendência.
O crente não é
Quem do irracional anda às cavaleiras:
A fé
É uma razão sem fronteiras.
351 – Transcendência
A transcendência primeira
É ultrapassagem
De minha própria fronteira.
A segunda é viagem
Do que é novo a emergir
No que tem de radical:
Não o posso reduzir
Ao somatório legal
Nem à multiplicação
Das partes que o comporão.
É o fecundo ovo
Donde emerge um mundo novo.
352 – Terra
Diz a terra: estou aqui
Para produzir de tudo,
Plantas, frutos que intuí
Que vão além do que aludo.
Foi de mim
Que o homem foi feito,
Tive-o ao peito,
Assim…
- Como é que ao fim
Perdeu meu jeito?
Foi o homem posto aí
Para que de mim tratara…
E o mais que ao fim consegui
É que uns aos outros em ara
Se matam a tanto deus
Que estes nem cabem nos céus!
353 – Armas
Não é máquina, armamento
Pelo homem manipulado,
Nem de tortura o instrumento,
Nem um mediático evento
Que matam o convidado.
Quando se quebra a certeza
Na cabeça ou coração,
Não é precisa uma reza:
- As armas caem da mão!
E é, por fim, uma beleza,
O chão!
354 – Heroísmo
O heroísmo é teimosia.
Ser fiel a um ideal e aos demais
Custa mais que a fantasia.
Fiel apesar de tudo e contra tudo,
A qualquer preço, são custos reais
E acresce o medo que jamais
Iludo.
Não se trata
De heroísmo, não.
O que nos ata e desata,
O que nos vive e nos mata
É de carácter questão.
Depois disto, o heroísmo,
Nos dias de agora,
É para fora
Um mero catecismo.
355 – Ausente
Ausente
Não é quem se foi embora.
Há quem esteja presente
Mas não está naquela hora
Nunca lá completamente.
Há quem viva sempre ausente
Daqui,
Mesmo quando fisicamente
Está ali
Assente,
À minha frente.
- O pior é que é no lado ausente
Que me sinto, afinal, de vez presente.
356 – Retorno
Retorno da Primavera,
Como enche de regozijo!
Que festa!
E como terrificar pudera
Quando exijo
À testa
O fim de sua monotonia:
Círculo infernal a que o azar
Me condenou e de onde perderia
Qualquer esperança de escapar.
Eis como o mais esplendoroso dia
O mudo em noite sem luar.
357 – Acesos
Uma vez acesos
Os mais fundos sonhos humanos,
Já não podem ser mais presos
Duma pátria na fronteira dos enganos.
Ao invés, jamais um estrangeiro
A pátria alheia tanto detraiu
Como os próprios nacionais, no corriqueiro
Dia a dia que, sentem, os traiu.
Assim, a Terra, quanto mais cheia,
Mais se transmuda nas tricas duma aldeia.
358 – Nostalgia
A distância sublima
A aldeia,
Os defeitos lhe lima,
As virtudes lhe alteia.
A nostalgia
Tem pó de magia.
359 – Escravo
Todo o escravo é um explorado
Por não se entender consigo.
As ideias dum forçado
Maior força de seu lado
Têm que qualquer perigo.
Não é pelos interesses
Que combates:
Pela tua teoria é que te empeces
E te abates.
Cada qual a melhor teoria
Detém,
A dos mais é fantasia:
Que desdém!
E vice-versa…
Assim, pois, qualquer mudança
Se esboroa na conversa,
Nada alcança.
360 – Discussões
Discussões religiosas,
Políticas, sociais,
Entre dois homens, morosas,
Inúteis são, tenebrosas,
De homens não, são de animais.
Em lugar de examinar
Os temas em divergência,
Cada qual quer é vergar
O adversário sem clemência.
Cada argumento não vale
Mais que pedrada num rio:
Água ferida equivale
A um inútil desafio.
Abre-se uma saraivada
De gotas e a pedra afunda,
As águas fecham e nada
Muda as margens que ela inunda.
361 – Sorte
Pessoas que têm sorte
São as que controlam tudo,
Têm norte
Muito agudo.
As que não têm sorte,
Desvairadas,
São por tudo controladas.
362 – Alcoólicos
Pais alcoólicos são imprevisíveis:
Ora amigáveis, ora violentos.
Para os filhos, três leis imarcescíveis:
Não fales, não sintas, não confies. E atentos,
Sempre atentos!
Amedrontadas, inseguras,
Jamais calmas nem pacatas,
São crianças candidatas
Do álcool às falsas curas.
Álcool, o instrumento
À mão de semear…
E leva-as o vento:
São ar, um vago ar,
A qualquer momento.
363 – Átomo
Átomo desintegrado
É semântica partida,
A ética esmigalhada.
Num termo conceituado
Que sentido nos convida
Entre os múltiplos da estrada?
Verdade,
Quantas existem no mundo
Com a mesma identidade?
O mais jucundo
- É que iguais e diferentes
Todas valerão, no fundo,
Com vários ingredientes,
O mesmo. E são uma só:
É a verdade feita em pó!
Do átomo a bomba é mais que a bomba,
É a Humanidade que tomba.
364 – Fumaça
O fumador dialoga
A baforadas de fumaça,
Até que no fumo se afoga
E como fumo passa.
Se qualquer lume me incendeia,
Fugaz arderei, cruento.
Esta é bem pior cadeia:
Aqui morro a fogo lento.
365 – Castidade
Muita castidade
É um abismo
De falsidade:
Puro comodismo.
Ou o gorgulho
Nela rói com fúria:
Orgulho
De não se entregar à luxúria.
A solidão
Dela
Torna-se então
Cidadela.
Não é um acto
O celibato,
É uma negaça
Dum desacato:
É uma couraça.
366 – Satélites
De sábios, santos ou heróis
De palha
Satélites em órbita sois.
O vosso, como os demais sóis,
É um sol canalha.
Para tal sol devir humano
Dum solo fatal demais se talha
Lavrado com tanto engano
Que nenhum sonho valha.
E assim,
Em vós e em mim,
É apenas a ilusão que nos trabalha.
367 – Reuniões
As reuniões sociais,
Gente a gente amontoada,
A acotovelar-se demais,
A beber e a gritar numa gralhada…
Ninguém sequer sabe o que bebe
Nem o que uns aos outros dizem,
Pardais encalhados na sebe
Com que mútuos se infernizem.
Olho de todos os lados
A ver se algo me desperte:
Remexem-se, atordoados,
- No fim ninguém se diverte!
368 – Floresta
Caminhar devagarinho
Por entre a poeirenta multidão:
Sem mapa nem bússola caminho
Das árvores em meio à confusão
Destas florestas de gente tropical,
Apenas pouco virgem, por sinal…
Dispersos por todos os lados,
Despreocupados,
Os passos em vão,
Alucinados
Se perderão.
369 – Vera
A vera Igreja de Cristo,
A do bom samaritano,
A do mártir, a do santo…
Fora disto
É tudo engano,
Do poder o falso encanto.
Isto, porém, é que é história,
Aquilo é mero caminho,
Dele fica na memória
Apenas o que adivinho.
Para ao tempo resistir
Há cabeça e coração.
Se é cabeça a presidir,
O amor vai perder a mão.
Assim é que o temporal
É máscara permanente
A murchar o espiritual
Que já ninguém vê nem sente.
370 – Traição
Toda a vida é uma traição,
Logo dos vivos aos mortos
Só porque vivos estão,
E aos mais, que de nossos hortos
Cuidamos, de olho egoísta,
Sem os dos mais ter em vista.
Desde que se levanta até que se deita
Todo o homem é uma desfeita.
371 – Metade
Quem o mal físico revela
Muitas vezes dá a saber
Metade do mal a curar:
A pior doença é sequela
Do que houver
Da mente no lugar.
A doença tem um sintoma,
Mas o sintoma pior
É uma doença que nela soma
Outra que lhe mora no interior.
372 – Conforma
Quem muito especula com a mente
Muitas vezes se conforma,
Com a tranquilidade mais incoerente,
Da comunidade às regras e à forma.
Basta-lhes o pensamento,
De vesti-lo não precisarão
De carne e sangue, do tormento
Da acção.
Apodam-nos de intelectuais?
Jamais
O serão!
Na estrada são meros sinais
De alienação.
373 – Tranquilidade
Busca o mundo a tranquilidade
E afugenta-a ao atirar-se a ela
Com a sofreguidão com que a invade,
Tal se fora unir ao casco da vida a vela.
Só da tranquilidade quando em lugar
Montou um turbulento arraial
É que logra vislumbrar
O que requer
Tão esquiva mulher,
E então já de nada vale!
374 – Quem
Quem
Chora
Procura alguém
Que chore com ele nesta demora.
Quem sofre
Deseja alguém
Que oiça o lamento e o não meta no cofre.
Mude o mundo no que mude,
Quem sofre, quem se lamenta
Busca o que não ilude
No meio da tormenta.
A eles é que Ele ama
Na vida terrena,
- Até que de vez acabe toda a gama
De pena.
375 – Inextirpável
O desejo instintivo
É um soberano inextirpável,
Mesmo quando fora viável
Convertê-lo, definitivo,
Em seu contrário.
Para alguém, libertário,
Se esquivar do desejo,
Só mediante um atropelo
Tem de tal o ensejo:
- É o desejo de fazê-lo.
E então o que vejo
É que se não liberta nunca do desejo:
Definitivo e sem apelo.
376 – Distância
Os homens olham à distância
Em busca de algo mais importante
Que o que têm à mão.
Ora, o amor, na infância,
Nos bastidores por que se implante,
Só tem raiz aqui no chão.
O casal que ama
É fecundo
Porque daqui.
No homem o drama
Desenrola-se no mundo:
Se deste se perde, perde-se de si.
Não são reveses
Que perdem o lar:
O mais das vezes
É a noção do lugar.
377 – Cega
A vida continua
Cega e firme na avançada,
Quer tombem cobardes na rua,
Quer heróis se ergam na estrada.
Impõe a vida a disciplina
De a acolhermos tal qual é.
Tudo a que fecho a retina,
De que fujo à false fé,
Tudo aquilo que negamos,
Denegrimos, desprezamos,
Acaba em todo o lugar
Por nos vir a derrotar.
A vida
Não é complicada:
Empurra com a força devida
O entulho da estrada.
378 – Momentos
Todos os momentos
São momentos de oiro
Para quem lhes descubra nos elementos
O tesoiro.
A vida é agora.
Mesmo num mundo cheio de morte,
A morte apenas demora
Enquanto da vida é a mais fiel consorte.
A morte é, na fogueira, o chamiço
Da vida ao serviço.
379 – Poeta
Para o poeta, o senão
É que o êxtase final conduz,
Não de Deus ao fulgor da luz,
Mas ao negro revérbero da paixão.
E então tudo se reduz
À escuridão.
380 – Drama
Acima dos dramas nacionais,
Raciais,
Locais,
- O drama do mundo.
E todos os vivos implicados:
Depois duma guerra, outra guerra,
Até se atingir o fundo,
Com os rostos desfigurados
Da terra.
Até que o edifício
De vez fique demolido.
Até que o sacrifício
Leve todos e quenquer
A deixar de ser:
- Um dia teremos sido!
Em tais terrenos
Não seremos jamais,
Ou seremos mais,
- Seremos plenos?
381 – Rio
Meu espírito é um rio
Em demanda do mar:
Represá-lo é um desafio,
Vai-lhe aumentando a força devagar.
Se atingir incomportáveis proporções,
Culmina em devastadoras explosões.
Não é do Homem, não, a desgraça ocorrida,
- É da força da vida!
382 – Guarida
Nunca nenhum sonho da vida
Foi alguma vez tão deslumbrante
Que no real não encontrara guarida,
Mais atrás ou mais adiante.
Quem receia é um condenado
E quem duvida, um perdido.
O paraíso do passado
É a utopia de sentido
Do porvir que é procurado
E amanhã será atingido.
No presente interminável
As coisas são como são.
Ai, esta fome insaciável
De viver o que serão,
Enfim,
Quando chegarmos ao fim!
Ou ao início:
Que este agora,
Na demora,
É dele um mero resquício.
383 – Sentado
Tu contigo próprio para aí tão bem sentado,
Aos ombros a encolher o desalento…
Todo o Cristo é errado,
É mentira o pensamento
Se o verbo não reconheces
No cerne dos eventos em que o esqueces.
Serão sórdidos, doentes,
Se servem, impenitentes,
Para deles retirares
Suave consolação
Com que percas a visão
Deste homem com falta de ares
Que à tua frente apodrece
Na esterqueira mais refece.
Corre aos livros, lá te enterra,
Retoma a tua cabala!
De ti não precisa a Terra,
Demais sofre quanto a abala.
Precisamos de esperança,
Coragem, mesmo iludida,
Ou dum vislumbre de dança,
Dum qualquer sopro de vida.
Contra a atitude canalha
Que se esconde quando há dano
Só requeiro esta migalha
De calor humano.
384 – Rudimento
Aqui mora a esperança
Rudimento de fé.
Ao reino a fé só nas alturas alcança
E a esperança realiza em germe aquilo que é.
Não gosto dos frutos da terra,
Que tenho o dom da visão:
Quem os ferra
Não mais solta os pés do chão.
Longe do céu, sou um exilado;
Um monstro sou, longe da terra:
Não tenho lugar em nenhum lado.
Estou sozinho.
Estou resignado:
- Posso esperar, posso esperar o que adivinho!
385 – Grito
O que aterra
É que só há fé por trás do grito
A que o coração se aferra:
- Apagar-me-ei na terra
Mas voltarei a acender-me no infinito!
386 – Encontro
Faz-me o encontro entender
Que me emancipei:
Com espanto e consternação,
Constato que nem sequer
Tenho qualquer precisão
Do que tanto procurei.
O que me ultrapassava,
Que me dominou, me torturou,
Me possuía, já me não trava,
Pelo caminho se finou.
Liberto da possessão
Sofrida,
Poderei por fim viver o meu chão
Da vida.
387 – Distingo
Distingo a perda de alguém
Que é da minha intimidade
Da dum estranho que a ninguém
Deixa saudade.
Mais distingo, porém,
Dum íntimo a perca
Da que a um grande ente convém,
Cuja perca nem parece que se dele acerca.
Cristo, Buda ou Maomé,
Deles falamos com naturalidade
Como se não fora verdade,
Se não morreram até.
Connosco vivem tanto ainda,
Tão do mundo se apoderaram
Que nem a morte os pôde, advinda,
Desalojar do que impregnaram.
Neles o mundo se arrima
Até à aventura mais pequena,
Deles o espírito o anima
De sentido em toda e qualquer vida terrena.
O mais estranho é que tais figuras
Ao mundo começaram por renunciar
E foi à custa de tais agruras
Que definitivamente lhe talharam o lugar.
388 – Semente
Homem,
Terra própria a semente reclama
Para germinar, crescer, frutificar.
Cuidado se te somem
Os gravetos e a caruma para a chama,
Que estiola tempo além o teu lugar!
389 – Cadilhos
Mãe,
Deverás descobrir que os filhos
Jamais
Serão propriedade dos pais.
Nem
São teus cadilhos,
Que os atilhos
Ataste-os tu sem
Mais ninguém.
Fica-te a criança muito agradecida,
Mãe,
Por quanto de teu leite a desseca.
Não pode ser toda a vida,
Porém,
A eterna boneca
Sem Vontade,
Jogada, ao acaso, nos desvãos
Por tuas mãos
De eternidade.
390 – Mãos
As mãos que entre as nossas apertamos
Dão-nos por inteiro
Um parceiro.
Quando, pela morte, delas nos separamos,
O que nos deram perdura:
A ternura.
391 – Deserto
Quem passeia num jardim
De si cuida e não de mim.
Quem mora no deserto,
Quando quiser o sublime
De si mais perto
Tem de olhar o firmamento:
Para que no além se arrime
Ver-me-á nesse momento.
Eis porque é preciso o ermo:
Ali não serei esquecido,
Para o manter defendido
Da perversão, no termo,
Guardo o Homem isolado
E o que é bom é preservado.
No deserto a caridade
É vida
A tomar todas as formas:
Amizade,
Altruísmo à chegada e à partida,
Alegria, hospitalidade
Gerando os usos e as normas.
A alma do mundo é a verdade.
Quem mora no desconforto
Não teme perder um horto
Que não tem.
Não perverterá também
A crença que haja elevado
Seu olhar mais para além.
Vai ser ele o incorruptível
Tão mais credível
Quanto nunca pode ser comprado.
392 – Chumbo
O tempo, a quem sofre e desespera,
De chumbo tem os pés,
Demora o escasso dia longa era
A escorrer de cada vez,
Pisa, impiedoso e sem jeito,
Esmagando-nos o peito.
Apenas a faísca da esperança
Dos pés lhe queima a dança.
393 – Padres
Os padres
Têm de cobrar fundos para o templo.
Daí o exemplo
Perverso das tricas de comadres:
Têm de dar a impressão
De que a única verdadeira
É a própria religião
E a dos mais é trapaceira.
E nada de aperfeiçoar a deles
Para que às mais se sobreponha:
Mais cómodo é apoucá-las de reles,
Sem remorso nem vergonha,
Até que por contraste a deles sobressaia
Enquanto qualquer outra lentamente
Desmaia.
Quem descobre, contente,
O tamanho universal da religião,
Por trás da divisão
Mais evidente,
É apenas quem não sente
Qualquer preocupação
Dos templos com a conservação.
Apenas este consente
Que Deus tenha a medida
Devida:
Sem medição,
Muito menos pelo metro de qualquer religião!
394 – Peito
Os padres, os pastores merecem respeito
E piedade:
Em geral tomam-se a peito,
Honestos, com sinceridade.
Apenas vivem prisioneiros
Do templo na maquinaria.
Das velhas tradições vezeiros,
Não logram mais sair disto:
- Quem os expurgaria
Do quisto?
395 – História
História
São mais que perfis,
É a memória
Da raiz.
O que nos diz
De desgraça ou de glória
É também a raiz
Da memória.
O que fiz e o que não fiz
De qualidade ou de escória
Reveste sempre o cariz
De História.
Atento aos arrebóis,
É pela história que vou:
-História, pois,
É o que sou!
396 – Malefício
Malefício da ciência
Não é da ciência ofício,
Mas antes a excrescência
Dum vício:
O duma filosofia
Que a torna religião
E que jamais se atreveria
A tal reconhecer em confissão.
Eis o cientismo, a crença
De que o não cientificável
Do real não é pertença
Por não ser percepcionável.
No meu íntimo, o vivido,
Só por não poder ser medido,
Não existe: e ninguém pasma
De assim, levianamente,
O tornarem tão fantasma
Que, ao que parece, nem sente!
397-Impossível
Falar de Deus sem falar do homem
Nem por ele agir,
Impossível: só por ludíbrio ou engano.
Quando nas mãos se tomem
As fronteiras do porvir
Apenas a simetria não traz dano.
Falar do homem sem falar de Deus
Nem agir por ele,
Impossível: só por engano ou ludíbrio.
O que difere entre crentes e ateus
É o ponto de partida que a cada qual impele.
E juntos é que operam o equilíbrio.
398 – Sulco
O ser
É apenas limitação:
Da liberdade ei-lo a nascer,
Coagulação
Por todo o lado.
Dela não é senão
O intérmino sulco coalhado
Que decora
A rota do mundo pelos tempos fora.
E o sopro inesgotável continua,
Lavoira do Cosmos inteiro se espalhando pela rua.
399 – Fonte
O amor, o sacrifício, a criação…
Que fonte em mim de mim não vem
Donde possíveis sempre novos jorrarão
No ignoto me empurrando mais além?
Que realidade derradeira
Do fundo de mim me peneira?
No interior de mim operando
Como no imo doutro qualquer,
Como de todo o vivente quando
Calha de o escolher,
Como nas profundas do Universo,
- Quem nos faz ser?
Quem me escreveu este verso?
Quem, que não eu,
A mim me escreveu?
400 – Riqueza
Acção que vise a riqueza,
Por mais que a preveja doce,
Torna-me afinal uma presa
Indefesa,
Quando me conduz à posse.
Ao tomar sentido,
Já não recuo:
- Sou possuído
Por aquilo que possuo.
401 – Confiança
O porvir dum povo advém
Da confinça que ele tem
Nos valores que criou.
Dela também, que ele proceda
Ao voo
Ou à queda.
Ante os valores, a atitude
A que um povo se arrime
É que o leva à virtude
Ou ao crime,
Pois quem confia,
Porfia
E quem tomba na desconfiança,
Não alcança.
Não são os valores o fundamental:
Perante eles tudo principia,
Afinal,
Ao sinal
Que nos guia.
402 – Caminho
O caminho do homem para Deus é a fé,
O caminho de Deus para o homem é o amor.
Por isso este amor não é
Dependente dos méritos do amado:
É incondicionado
E, portanto, criador.
Não tem a medida de amores meus:
Este amor é Deus.
403 – Risco
Todo o amor é risco, é incerteza:
Então a fé toma sentido.
É a eterna tragédia que nos reza
A trindade do amado, do amante
E do amor, o intérmino ferido.
E a trindade é Deus-mais-adiante,
Um Deus outro, um Deus maior:
É Deus o amor finalmente Amor.
404 – Um
É assim:
Deus e eu somos um.
Pelos conhecimentos meus
Acolho Deus em mim;
Pelo amor penetro em Deus:
Então tudo é comum!
405 – Esfera
Quando o carpinteiro pára,
Não ergo a casa do alicerce.
Quando o machado não exerce,
Com o vir-a-ser ninguém depara.
De Deus na esfera
Sou como qualquer:
- Deus opera
E então eu venho a ser!
406 – Real
É o real distinto do irreal
Por fora a ser concebido
Da relação com Deus radical:
Só o infinito é origem de sentido.
O mais é desatino:
Para que existo, afinal?
-Nada existe de real
Que não seja divino.
407 – Teofania
O relativo manifesta o absoluto
Do símbolo na forma:
A natureza inteira é um produto,
É uma teofania, é uma aparição.
A derradeira norma
É ser de Deus uma revelação.
408 – Pedaços
É hindu, budista, judeu,
Cristão ou muçulmano alguém,
Não por aquilo em que creu
Mas pelo que faz.
A medida que a fé tem
É a do contributo que traz
À humanização do homem.
Os pedaços de destino
Que em mãos se tomem
No que o homem tem de divino:
O gesto criador
Que renova o amor.
409 – Germe
O fim mora em germe nos meios,
Os meios são o fim em vias de nascer.
Da mútua permeabilidade nos entremeios
Nunca o fim sobre os meios poderá prevalecer.
Um meio não serve um fim,
Cria-o, é prefiguração
Do que quererei ter lá no confim.
Na violência, então,
Quando o mundo assenta,
Jamais criará uma era não-violenta.
Quando o poder é delegado
A um eleito ou dirigente,
Jamais nele pode ser fundado
Um reino que empenhe toda a gente.
Com uma tecnologia desmedida,
Além do controlo à escala humana,
Não pode ser erigida
A Humanidade que irmana.
O fim e os meios
Implicam-se mutuamente
Em todos os veios
Em que a vida nos assente.
A mútua contradição
Jogar-nos-á qualquer sonho ao chão.
410 – Armas
As armas, sejam embora poderosas,
São os homens quem as usa:
A força maior é a da fé que as recusa
Ou as agarra feitas pedras preciosas.
A arma em si é inofensiva,
Tudo pende da fé que o dono viva.
411 – Criança
Olha a criança à tua frente,
Pensa que os olhos dela são os teus,
Que está a ver-te, consciente,
Como se foras tu com outra cara.
Assim é Deus:
Em tudo a tua almenara.
412 – Escolha
Na vida quotidiana
Nunca teremos escolha
Entre violência e não violência:
Na teia toda a pragana
Que o vendaval recolha
Finda presa para o resto da existência.
Violenta é a realidade,
Não é de minha vontade.
Se condeno como violenta
A luta do escravo pela liberdade,
Ou se me calo, como o sistema tenta,
Sobre dele a escravidão,
Sou cúmplice, por passividade
Ou pela hipócrita indignação,
Do dono que, em todo o lado,
O mantém acorrentado.
Não tenho alternativa:
A vida impõe que na violência viva.
413 – Despedida
Muito os homens se consomem
A andar sempre à despedida
Do destino!
A razão de ser dum homem
É tornar a própria vida
O lugar da aparição do divino.
Qualquer outro fim
É um ídolo para mim.
414 – Paz
A paz
Ausência de guerra não será,
Mas da injustiça que sempre há
E da escravidão pertinaz.
A paz é a mútua pertença
Que nos advém da comum presença
No Mundo e na História.
Não é uma questão de vitória:
A paz não é nenhuma
Enquanto a humanidade não for una.
415 – Central
Há um ponto central em nossa vida
Em que arte, fé, política e amor
Têm medida
Comum:
- No radical estupor
Não formam senão um.
416 – Cativo
Não te olhes, infecundo,
Como um régio
Cativo!
Que vais oferecer ao Mundo
Pelo raro privilégio
De estares vivo?
417 – Velho
Sinto-me tão sonolento,
Com as horas a passar
Como gado pachorrento
Na paisagem a pastar!
Olho-me ao espelho
E reajo,
Que isto é apenas o meu trajo
De velho.
E mais:
É minha virtude
Tecer da vida os sinais
Da saúde,
Até que os jovens destemidos
Os descubram em todos os sentidos.
418 – Importante
Professor é importante:
Influir em quem crescer
E que depois, adiante,
Vai fazer o mundo ser.
Professor é importante,
Embora pareça
Que nada adiante:
É aquela peça
Que tem o condão
De tornar gigante
O mundo anão.
Só que não é de repente,
É lentamente, lentamente…
É por não entender isto que, ingrata,
Toda a gente
O maltrata.
Como se a raiz do mundo
Não bebesse do professor
Seu teor
Mais fecundo:
Aquele mais,
Mais profundo,
Mais jucundo,
De que ninguém vê sinais
Senão já tarde demais,
Dos alunos quando o encanto
É deles com tal demora
Que há muito, discreto, ao canto,
O mestre se foi embora.
419 – Passo
As revoluções são impossíveis?!
Como se a vida por que passo
Não vivera passo a passo!…
São apenas invisíveis
As revoluções que vencem.
E se hoje não somos cativos
É que a elas pertencem
Todos os homens vivos.
Passo a passo,
Amanheço as noites pretas
E ultrapasso,
Neste invisível compasso,
Todas e quaisquer grilhetas.
420 – Nasce
É o mundo que nasce.
E, se nasce o mundo um dia,
Para os homens faz-se,
Que o Homem ali já principia.
Pois quando quero
Não há mal nenhum
Que me tolha, por mais fero:
Já não serei mais um zero,
Doravante sou um um.
421 – Futuro
Futuro nunca existiu,
Único certo é o da morte:
Ora, quando aconteceu,
Não mais é nem tem mais sorte.
Futuro, porém, é vida
Que por outrem continua
Quando em mim já for perdida
Do apelo vago da lua.
Em frente, sempre em frente,
Mesmo quando eu for ausente,
Que a vida
Demora assente
Eternamente presente
Mesmo após a despedida.
E só quem isto entendeu
É que para sempre viveu.
Que a morte
Não é mais que um passaporte
Deste outro lado do céu.
422 – Ponto
Há um ponto
Onde o amor e a morte se confundem:
Quando te olho já não conto,
Só germino quando teus olhos me inundem.
Esvazio-me de mim
Quando te olho apaixonado.
E apenas com teu sim
É que a vida me retorna de teu lado.
423 – Chiadeira
Carro de bois, chiadeira
Velhinha de tempos velhos,
Com motores emparceira,
Já doente dos artelhos,
Avó num adeus aos netos
Debaixo de antigos tectos
Em que vivia
A toda a hora
A eterna poesia
De outrora.
Aquela
Frescura louçã
Que me acendia a estrela
Da manhã,
Quando, sonolento,
Descosia,
Lento e lento,
A aurora dum novo dia.
424 – Paixões
As paixões, como são funestas!
Vento a inflar as velas do navio,
Às vezes o afundam.
Porém, sem estas,
Da vela como retesar o fio?
- As paixões redundam
No poder de navegar.
Sem o vento da paixão,
Como atear o lume do pavio
Na escuridão
De qualquer lugar?
No mundo brumoso
Meu destino é vário:
Tudo é perigoso
E tudo é necessário.
425 – Duvido
Duvido de tudo
E minha sensibilidade,
Atreita ao gozo sobretudo,
Na dor se evade.
Então já com nada me iludo,
Sou a guitarra afinada
Em demasia
Em que, a cada nota dedilhada,
A corda estalaria,
Quando, no fim,
Era tão simples a vida
Se a vivera por medida!
Mas enfim…
426 – Pessimista
Ser pessimista
É crer na vida
Como o blasfemo que resista
Ao Deus que deste modo revalida.
Aqueles a quem magoaram as ilusões,
A quem a vida brutaliza
É que gritam contra os aleijões,
Maldizem quanto os realiza.
A vida, gritam contra ela
Porque lhe querem rasgar uma janela.
427 – Função
Antigamente,
O sonho era conquistar o coração
Da mulher por que estava enamorado.
De repente
A função
Troca de lado:
Mais tarde,
Basta sentir que um coração
Por mim arde
Para se me atear a paixão.
E quando a beleza da mulher
Deveria motivar o amor,
Eis que o amor pode nascer
Sem previamente sequer
Nada o levar a supor.
Este amor já não caminha
Como láparo na vinha,
Imprevisível, ignoto,
Pelo meu coração boto
De inexperto, de admirado:
Enquanto pisa o valado
Falseio-o na memória
Do que foi a minha história.
Então, quando ele começa,
Já lhe saberei o fim.
Por isso é que então tropeça:
Nem me sequer amo a mim.
428 – Vau
O derradeiro degrau
Do espírito e até do encanto,
O do ser
Mais desprezível,
É o de quem não salta o vau,
Incapaz, neste entretanto,
De renunciar ao imediato prazer:
Já não é mais perfectível.
Água sempre a escorrer informe
Na vertente que ali dorme,
Peixe desmemoriado
No vidro a bater cem vezes,
Crendo sempre que é do lado,
Que são das águas tais reveses…
Sempre, sempre fracassado
- E a vida a correr no prado!
429 – Rosto
Um rosto que se ilumina:
Campo de nuvens cinzento
Na ravina
Que no momento
Do sol-pôr repentino se descobre
Na amplidão.
É a transfiguração:
Do imo mais pobre
Brota, transfigurado,
O fulgor do profeta iluminado.
430 – Treme
Quem treme, treme por si
Quando treme por quem ama.
Quando nossa felicidade
Já não se acama
Aí,
Com que à-vontade,
De que ousadia
Gozamos ante quem dantes nos prendia!
Nem sequer precisamos de alibi,
Já não há nenhuma trama…
Quem treme, treme por si
Quando treme por quem ama.
431 – Candeeiro
Não duvido
Da luz deste candeeiro
Que me retira os objectos do olvido
Acendendo o mundo verdadeiro.
Então se escapa,
Dissolvida pelos recantos do chão,
Do luzeiro sob a capa,
A memória da escuridão.
Deste perigoso deslize
É que importa que me avise.
432 – Jamais
A gente jamais conhece
A própria felicidade:
Nunca se é tão infeliz, na verdade,
Como parece.
A gente jamais conhece
A própria desgraça:
Jamais é tão feliz o que alguém passa
Como parece.
Assim é que um homem
Ou esquece
As forças que o domem
Ou enlouquece.
E aqueles que em mãos as tomem
- Herói, mártir, génio ou santo –
A quantas forças houvera ali
Sempre as perderam para si.
Nós, porém, deles herdámos o suor e o pranto
Do encanto:
Nós, tão pequenos,
Que nada fizemos
É que lhes ficámos com os terrenos
Desbravados até os limites mais extremos.
433 – Quadro
A palavra acerca das coisas evoca a imagem
Pequena, clara e usual
Do quadro escolar com a paisagem,
Pendurado à parede trivial,
Na função exemplar
De tudo ter de se identificar
Como àquilo igual.
O nome da pessoa, da cidade
Tem alguma cor individual
Que uniforme os invade,
Mas que afinal nos negaceia, nos mente
Como um sinal,
Ao fim e ao cabo, dum ausente.
Assim, a palavra,
Realmente,
É a eterna ilusão.
- Mas tudo nos lavra
Em nosso chão.
434 – Mania
Doutrem não tendo a mania,
Exulto.
- Estulto,
Que não via
Uma outra que em lugar dela crescia:
Outra mania, condição primeira
De não ter aquela em mim terra nem jeira.