QUARTO  VERSO

 

 

 

NÓS  QUE  NUNCA  O  ATINGIMOS  NOS  EXTREMOS

 

 

Escolha um número aleatório entre 329 e 434 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

329 – Nós que nunca o atingimos nos extremos

 

Nós que nunca o atingimos nos extremos,

Ao sonho que sonhámos ser um dia,

Desesperamos tanto da magia

Que nela muitas vezes nos não vemos.

 

Entrementes, bem queria

Que os gigantes Polifemos

Aos infernos caíssem com os demos

Que me tolhem o passo e a fantasia.

 

Entretanto,

Terei de pagar o meu tributo

De esforço e de pranto.

 

E no luto

Chorarei a morte das promessas

Enquanto não puder à morte pedir meças.

 

 

330 – Imortalidade

 

Não quero a imortalidade

Através do meu trabalho.

Não sendo nada, não sendo,

Importa-me lá o que valho!

- Quero atingi-la em verdade,

Não morrendo!

 

 

331 – Ninguém

 

Ninguém sabe quão íngreme é o caminho,

O terreno, acidentado,

Quantas vezes se irá cair do ninho

Ou ficar estropiado.

 

Porém, sempre por trás isto se escuta:

- Já ninguém pode abandonar a luta!

Nasceste,

Teu destino é este.

 

 

332 – Imagens

 

Duas imagens:

A que nos quis o destino,

A que a vida fez de nós.

 

As miragens

Vêm de quanto declino,

Se à primeira perco a voz:

 

- Quando em ambas não me arrimo

Já nunca mais trepo ao cimo.

 

 

 

 

333 – Pressente

 

Um agredido pressente

Muito antes dum agressor

A ameaça, normalmente,

Que este vai querer lhe opor.

 

É a vantagem

De quem vê fugir a viagem.

 

 

334 – Graúdos

 

Não te amam

Porque prezas justiça e verdade?

Os graúdos acamam

Iniquidade sobre iniquidade,

Se àquelas as não têm por amigas.

 

Tu só, com poucos mais, porém,

Valerás mais que as intrigas.

 

Se vingar junto a ti uma ervilhaca

Aqui ou além,

Será sempre pouca a fraca.

 

Deles o partido

É que muitas contará,

Que do lado de lá

É que o mal tomaram por valido.

 

Porém, não tarda

Que ao vento suão

A sementeira lhes arda

Em fogueira no chão.

 

 

335 – Maléfico

 

Renunciar a agir, não.

Agir é superior a não agir.

Maléfico, na acção, não é a acção

Mas os motivos de a conduzir.

 

É destruidor agir pelo poder,

Por egoísta interesse, pela riqueza,

Pelo gozo dos frutos que der,

Por ser eu o autor que o mundo preza…

 

Quando renuncio, não à acção,

Mas a tais frutos,

Abro-me ao sabor que tem

Ir Além.

Já não é minha a actuação:

É Deus que por mim cultiva seus produtos.

 

 

 

 

 

336 – Imagem

 

O divino encarna sempre no mundo

Quando a justiça vacila.

Desce Deus entre os homens, fecundo,

Para elevá-los a uma vida mais alta,

Mostrando no homem que liberto se perfila

A imagem do infinito que lhes falta.

 

 

337 – Mora

 

Mora Deus em tudo,

Mais manifesto na vida que no mundo inanimado,

Mais na consciência que na vida

E, sobretudo,

Na beleza surpreendida em todo o lado.

O topo é o sacrifício a que convida:

Do dom da própria vida o heroísmo,

Do amor a entrega,

Da beleza as criações de abismo…

 

Geração

Da luz na cidade cega,

O sacrifício é Deus em revelação.

 

 

338 – Liberto

 

Liberto da ilusão

De que as coisas são por si,

De que separadas do princípio vivem e morrerão,

A panorâmica do mundo atingi:

Do múltiplo no uno

Que a cada coisa dá sentido.

Cada uma é o espelho onde as mais reúno

E todas espelham o princípio escondido:

Piscar do divino de além delas

Onde ele espreita à fresta,

São as entreabertas janelas

Para o largo da festa.

 

 

339 – Organismo

 

É o mundo um organismo vivo

Pelo absoluto unificado,

Enfia as raízes pelo crivo

Do céu,

Retira a seiva dos actos donde é nado

E que fecundam a terra.

O homem em que tal ponte aconteceu

E que a ela se aferra

Lúcido, com tino,

É manifestação germinal

Do divino:

Nele principia, clandestino,

Um deus pessoal.

 

 

340 – Pendor

 

A sabedoria

Tudo vê na unidade do todo:

A arrancar-me do lodo

Me inclina

E me reenvia

A construir a cidade divina.

 

Um saber que não vê mais

Que múltiplos com fins limitados

São paixões animais,

Não talham montes e valados.

 

Um saber que se empenha a cada instante

No gozo apenas dos efeitos,

No poder e nos eleitos,

É ignorante.

 

Cada homem é do divino um pendor

E a lei de seu destino

É na vida própria repor

Todo o possível divino.

 

 

341 – Profeta

 

Profeta é quem julga a instituição

E o acto

Do fim deles em função

E assim lhes dá o sentido

Para todo e qualquer pacto:

 

O profeta inaugura um tempo renascido.

 

Professa

O tempo da promessa,

Alcança

Por um tempo de esperança,

Fura o tecto

Com que me delimito:

Cria o tempo do projecto,

 

- É uma fresta para o infinito.

 

 

342 – Transcendência

 

Se um homem como homem só se cria

Com outrem na partilha e comunhão,

Para o inteiramente outro aponta a via,

Aponta a eminência

Da consumação:

Sou, no fundo de mim,

Transcendência

Até ao fim.

 

 

 

 

343 – Par

 

Não o indivíduo mas o par do amor

É o átomo de mim:

No princípio, não um eu mas um nós

Terei de pôr,

Assim.

 

Da comunidade os primeiros nós

Não se atam lá fora,

Dentro de todos cada qual mora,

- Aí sou eu, enfim.

 

 

344 – Florescimento

 

O Reino está por chegar

E anda já por aí:

É semente a germinar,

Presente no que já vi

Mas sempre em busca do lar

Onde nunca existi.

 

O pleno florescimento

Quer a participação

Do homem a cada momento,

É sacrifício e paixão,

Força de cometimento.

 

O Reino sou eu em acção:

- É o impacto

De mim em acto.

 

 

345 – Homem

 

Que é realmente um Homem,

No fundo do Homem que é que há?

Problemas que me consomem,

Que são meus,

Do lado de cá.

 

E eu que para lhes responder

Teria de ser

Deus!

 

 

346 – Isolado

 

Um indivíduo isolado

Morre inelutavelmente.

Se fizer um com o todo,

Do porvir mudará o fado

Mudando o presente

Modo.

 

Facho eterno vivo

E criador,

Permanece activo,

A dar calor,

Apesar do apagamento

Da centelha passageira,

Quando da noite do aniquilamento

Chegar à beira.

 

 

347 – Futuríveis

 

O futuro e o passado

Onde é que eles estarão?

Eles só são

Como presentes nalgum lado.

 

Só existe o instante

Na sua eternidade:

Vivo, impante

De verdade.

 

O presente é o que é levado

Pelo impulso do passado,

A fervilhar de possíveis,

Por nossas aspirações chamado

Dos futuros futuríveis.

 

 

348 – Pergunta

 

Uma pergunta de homem

Só pode ser respondida

De experiências à partida

Que dos homens se retomem.

Até

A questão da fé.

 

 

349 – Símbolos

 

A fé,

Com os símbolos, as lendas,

A linguagem depurada

Das capelinhas à Sé,

Trilha sendas

Talqualmente as da jornada

Da hipótese científica

Do encontro da natureza:

Tenta o método, magnífica,

De agir sobre a humana presa

Como anda sobre as coisas a tentar

A ciência para delas pôr-se a par.

 

 

350 – Fronteiras

 

A fé jamais contradiz,

Nem sequer força a razão,

Impede antes de raiz

Que ela em si se feche em vão.

 

Contradiz a suficiência

Obrigando à transcendência.

O crente não é

Quem do irracional anda às cavaleiras:

A fé

É uma razão sem fronteiras.

 

 

351 – Transcendência

 

A transcendência primeira

É ultrapassagem

De minha própria fronteira.

A segunda é viagem

 

Do que é novo a emergir

No que tem de radical:

Não o posso reduzir

Ao somatório legal

 

Nem à multiplicação

Das partes que o comporão.

 

É o fecundo ovo

Donde emerge um mundo novo.

 

 

352 – Terra

 

Diz a terra: estou aqui

Para produzir de tudo,

Plantas, frutos que intuí

Que vão além do que aludo.

 

Foi de mim

Que o homem foi feito,

Tive-o ao peito,

Assim…

- Como é que ao fim

Perdeu meu jeito?

 

Foi o homem posto aí

Para que de mim tratara…

E o mais que ao fim consegui

É que uns aos outros em ara

Se matam a tanto deus

Que estes nem cabem nos céus!

 

 

353 – Armas

 

Não é máquina, armamento

Pelo homem manipulado,

Nem de tortura o instrumento,

Nem um mediático evento

Que matam o convidado.

 

Quando se quebra a certeza

Na cabeça ou coração,

Não é precisa uma reza:

- As armas caem da mão!

 

E é, por fim, uma beleza,

O chão!

 

 

354 – Heroísmo

 

O heroísmo é teimosia.

Ser fiel a um ideal e aos demais

Custa mais que a fantasia.

Fiel apesar de tudo e contra tudo,

A qualquer preço, são custos reais

E acresce o medo que jamais

Iludo.

 

Não se trata

De heroísmo, não.

O que nos ata e desata,

O que nos vive e nos mata

É de carácter questão.

 

Depois disto, o heroísmo,

Nos dias de agora,

É para fora

Um mero catecismo.

 

 

355 – Ausente

 

Ausente

Não é quem se foi embora.

Há quem esteja presente

Mas não está naquela hora

Nunca lá completamente.

 

Há quem viva sempre ausente

Daqui,

Mesmo quando fisicamente

Está ali

Assente,

À minha frente.

 

- O pior é que é no lado ausente

Que me sinto, afinal, de vez presente.

 

 

356 – Retorno

 

Retorno da Primavera,

Como enche de regozijo!

Que festa!

 

E como terrificar pudera

Quando exijo

À testa

O fim de sua monotonia:

Círculo infernal a que o azar

Me condenou e de onde perderia

Qualquer esperança de escapar.

 

Eis como o mais esplendoroso dia

O mudo em noite sem luar.

 

 

357 – Acesos

 

Uma vez acesos

Os mais fundos sonhos humanos,

Já não podem ser mais presos

Duma pátria na fronteira dos enganos.

 

Ao invés, jamais um estrangeiro

A pátria alheia tanto detraiu

Como os próprios nacionais, no corriqueiro

Dia a dia que, sentem, os traiu.

 

Assim, a Terra, quanto mais cheia,

Mais se transmuda nas tricas duma aldeia.

 

 

358 – Nostalgia

 

A distância sublima

A aldeia,

Os defeitos lhe lima,

As virtudes lhe alteia.

 

A nostalgia

Tem pó de magia.

 

 

359 – Escravo

 

Todo o escravo é um explorado

Por não se entender consigo.

As ideias dum forçado

Maior força de seu lado

Têm que qualquer perigo.

 

Não é pelos interesses

Que combates:

Pela tua teoria é que te empeces

E te abates.

 

Cada qual a melhor teoria

Detém,

A dos mais é fantasia:

Que desdém!

 

E vice-versa…

 

Assim, pois, qualquer mudança

Se esboroa na conversa,

Nada alcança.

 

 

360 – Discussões

 

Discussões religiosas,

Políticas, sociais,

Entre dois homens, morosas,

Inúteis são, tenebrosas,

De homens não, são de animais.

 

Em lugar de examinar

Os temas em divergência,

Cada qual quer é vergar

O adversário sem clemência.

 

Cada argumento não vale

Mais que pedrada num rio:

Água ferida equivale

A um inútil desafio.

 

Abre-se uma saraivada

De gotas e a pedra afunda,

As águas fecham e nada

Muda as margens que ela inunda.

 

 

361 – Sorte

 

Pessoas que têm sorte

São as que controlam tudo,

Têm norte

Muito agudo.

 

As que não têm sorte,

Desvairadas,

São por tudo controladas.

 

 

362 – Alcoólicos

 

Pais alcoólicos são imprevisíveis:

Ora amigáveis, ora violentos.

Para os filhos, três leis imarcescíveis:

Não fales, não sintas, não confies. E atentos,

Sempre atentos!

Amedrontadas, inseguras,

Jamais calmas nem pacatas,

São crianças candidatas

Do álcool às falsas curas.

Álcool, o instrumento

À mão de semear…

 

E leva-as o vento:

São ar, um vago ar,

A qualquer momento.

 

 

363 – Átomo

 

Átomo desintegrado

É semântica partida,

A ética esmigalhada.

Num termo conceituado

Que sentido nos convida

Entre os múltiplos da estrada?

 

Verdade,

Quantas existem no mundo

Com a mesma identidade?

O mais jucundo

- É que iguais e diferentes

Todas valerão, no fundo,

Com vários ingredientes,

O mesmo. E são uma só:

É a verdade feita em pó!

 

Do átomo a bomba é mais que a bomba,

É a Humanidade que tomba.

 

 

364 – Fumaça

 

O fumador dialoga

A baforadas de fumaça,

Até que no fumo se afoga

E como fumo passa.

 

Se qualquer lume me incendeia,

Fugaz arderei, cruento.

Esta é bem pior cadeia:

Aqui morro a fogo lento.

 

 

365 – Castidade

 

Muita castidade

É um abismo

De falsidade:

Puro comodismo.

 

Ou o gorgulho

Nela rói com fúria:

Orgulho

De não se entregar à luxúria.

 

A solidão

Dela

Torna-se então

Cidadela.

Não é um acto

O celibato,

É uma negaça

Dum desacato:

É uma couraça.

 

 

366 – Satélites

 

De sábios, santos ou heróis

De palha

Satélites em órbita sois.

O vosso, como os demais sóis,

É um sol canalha.

 

Para tal sol devir humano

Dum solo fatal demais se talha

Lavrado com tanto engano

Que nenhum sonho valha.

E assim,

Em vós e em mim,

É apenas a ilusão que nos trabalha.

 

 

367 – Reuniões

 

As reuniões sociais,

Gente a gente amontoada,

A acotovelar-se demais,

A beber e a gritar numa gralhada…

Ninguém sequer sabe o que bebe

Nem o que uns aos outros dizem,

Pardais encalhados na sebe

Com que mútuos se infernizem.

 

Olho de todos os lados

A ver se algo me desperte:

Remexem-se, atordoados,

 

- No fim ninguém se diverte!

 

 

368 – Floresta

 

Caminhar devagarinho

Por entre a poeirenta multidão:

Sem mapa nem bússola caminho

Das árvores em meio à confusão

Destas florestas de gente tropical,

Apenas pouco virgem, por sinal…

 

Dispersos por todos os lados,

Despreocupados,

Os passos em vão,

Alucinados

Se perderão.

 

 

369 – Vera

 

A vera Igreja de Cristo,

A do bom samaritano,

A do mártir, a do santo…

Fora disto

É tudo engano,

Do poder o falso encanto.

 

Isto, porém, é que é história,

Aquilo é mero caminho,

Dele fica na memória

Apenas o que adivinho.

 

Para ao tempo resistir

Há cabeça e coração.

Se é cabeça a presidir,

O amor vai perder a mão.

 

 

Assim é que o temporal

É máscara permanente

A murchar o espiritual

Que já ninguém vê nem sente.

 

 

370 – Traição

 

Toda a vida é uma traição,

Logo dos vivos aos mortos

Só porque vivos estão,

E aos mais, que de nossos hortos

Cuidamos, de olho egoísta,

Sem os dos mais ter em vista.

 

Desde que se levanta até que se deita

Todo o homem é uma desfeita.

 

 

371 – Metade

 

Quem o mal físico revela

Muitas vezes dá a saber

Metade do mal a curar:

A pior doença é sequela

Do que houver

Da mente no lugar.

 

A doença tem um sintoma,

Mas o sintoma pior

É uma doença que nela soma

Outra que lhe mora no interior.

 

 

372 – Conforma

 

Quem muito especula com a mente

Muitas vezes se conforma,

Com a tranquilidade mais incoerente,

Da comunidade às regras e à forma.

 

Basta-lhes o pensamento,

De vesti-lo não precisarão

De carne e sangue, do tormento

Da acção.

 

Apodam-nos de intelectuais?

Jamais

O serão!

Na estrada são meros sinais

De alienação.

 

 

373 – Tranquilidade

 

Busca o mundo a tranquilidade

E afugenta-a ao atirar-se a ela

Com a sofreguidão com que a invade,

Tal se fora unir ao casco da vida a vela.

 

Só da tranquilidade quando em lugar

Montou um turbulento arraial

É que logra vislumbrar

O que requer

Tão esquiva mulher,

E então já de nada vale!

 

 

374 – Quem

 

Quem

Chora

Procura alguém

Que chore com ele nesta demora.

 

Quem sofre

Deseja alguém

Que oiça o lamento e o não meta no cofre.

 

Mude o mundo no que mude,

Quem sofre, quem se lamenta

Busca o que não ilude

No meio da tormenta.

 

A eles é que Ele ama

Na vida terrena,

- Até que de vez acabe toda a gama

De pena.

 

 

375 – Inextirpável

 

O desejo instintivo

É um soberano inextirpável,

Mesmo quando fora viável

Convertê-lo, definitivo,

Em seu contrário.

Para alguém, libertário,

Se esquivar do desejo,

Só mediante um atropelo

Tem de tal o ensejo:

- É o desejo de fazê-lo.

 

E então o que vejo

É que se não liberta nunca do desejo:

Definitivo e sem apelo.

 

 

376 – Distância

 

Os homens olham à distância

Em busca de algo mais importante

Que o que têm à mão.

Ora, o amor, na infância,

Nos bastidores por que se implante,

Só tem raiz aqui no chão.

O casal que ama

É fecundo

Porque daqui.

 

No homem o drama

Desenrola-se no mundo:

Se deste se perde, perde-se de si.

 

Não são reveses

Que perdem o lar:

O mais das vezes

É a noção do lugar.

 

 

377 – Cega

 

A vida continua

Cega e firme na avançada,

Quer tombem cobardes na rua,

Quer heróis se ergam na estrada.

 

Impõe a vida a disciplina

De a acolhermos tal qual é.

Tudo a que fecho a retina,

De que fujo à false fé,

Tudo aquilo que negamos,

Denegrimos, desprezamos,

Acaba em todo o lugar

Por nos vir a derrotar.

 

A vida

Não é complicada:

Empurra com a força devida

O entulho da estrada.

 

 

378 – Momentos

 

Todos os momentos

São momentos de oiro

Para quem lhes descubra nos elementos

O tesoiro.

 

A vida é agora.

Mesmo num mundo cheio de morte,

A morte apenas demora

Enquanto da vida é a mais fiel consorte.

 

A morte é, na fogueira, o chamiço

Da vida ao serviço.

 

 

379 – Poeta

 

Para o poeta, o senão

É que o êxtase final conduz,

Não de Deus ao fulgor da luz,

Mas ao negro revérbero da paixão.

 

E então tudo se reduz

À escuridão.

 

 

 

380 – Drama

 

Acima dos dramas nacionais,

Raciais,

Locais,

- O drama do mundo.

 

E todos os vivos implicados:

Depois duma guerra, outra guerra,

Até se atingir o fundo,

Com os rostos desfigurados

Da terra.

 

Até que o edifício

De vez fique demolido.

Até que o sacrifício

Leve todos e quenquer

A deixar de ser:

 

- Um dia teremos sido!

 

Em tais terrenos

Não seremos jamais,

Ou seremos mais,

- Seremos plenos?

 

 

381 – Rio

 

Meu espírito é um rio

Em demanda do mar:

Represá-lo é um desafio,

Vai-lhe aumentando a força devagar.

Se atingir incomportáveis proporções,

Culmina em devastadoras explosões.

 

Não é do Homem, não, a desgraça ocorrida,

- É da força da vida!

 

 

382 – Guarida

 

Nunca nenhum sonho da vida

Foi alguma vez tão deslumbrante

Que no real não encontrara guarida,

Mais atrás ou mais adiante.

 

Quem receia é um condenado

E quem duvida, um perdido.

O paraíso do passado

É a utopia de sentido

Do porvir que é procurado

E amanhã será atingido.

 

No presente interminável

As coisas são como são.

Ai, esta fome insaciável

De viver o que serão,

Enfim,

Quando chegarmos ao fim!

Ou ao início:

Que este agora,

Na demora,

É dele um mero resquício.

 

 

383 – Sentado

 

Tu contigo próprio para aí tão bem sentado,

Aos ombros a encolher o desalento…

Todo o Cristo é errado,

É mentira o pensamento

Se o verbo não reconheces

No cerne dos eventos em que o esqueces.

 

Serão sórdidos, doentes,

Se servem, impenitentes,

Para deles retirares

Suave consolação

Com que percas a visão

Deste homem com falta de ares

Que à tua frente apodrece

Na esterqueira mais refece.

 

Corre aos livros, lá te enterra,

Retoma a tua cabala!

De ti não precisa a Terra,

Demais sofre quanto a abala.

 

Precisamos de esperança,

Coragem, mesmo iludida,

Ou dum vislumbre de dança,

Dum qualquer sopro de vida.

 

Contra a atitude canalha

Que se esconde quando há dano

Só requeiro esta migalha

De calor humano.

 

 

384 – Rudimento

 

Aqui mora a esperança

Rudimento de fé.

Ao reino a fé só nas alturas alcança

E a esperança realiza em germe aquilo que é.

 

Não gosto dos frutos da terra,

Que tenho o dom da visão:

Quem os ferra

Não mais solta os pés do chão.

 

Longe do céu, sou um exilado;

Um monstro sou, longe da terra:

Não tenho lugar em nenhum lado.

 

Estou sozinho.

Estou resignado:

- Posso esperar, posso esperar o que adivinho!

 

385 – Grito

 

O que aterra

É que só há fé por trás do grito

A que o coração se aferra:

- Apagar-me-ei na terra

Mas voltarei a acender-me no infinito!

 

 

386 – Encontro

 

Faz-me o encontro entender

Que me emancipei:

Com espanto e consternação,

Constato que nem sequer

Tenho qualquer precisão

Do que tanto procurei.

 

O que me ultrapassava,

Que me dominou, me torturou,

Me possuía, já me não trava,

Pelo caminho se finou.

 

Liberto da possessão

Sofrida,

Poderei por fim viver o meu chão

Da vida.

 

 

387 – Distingo

 

Distingo a perda de alguém

Que é da minha intimidade

Da dum estranho que a ninguém

Deixa saudade.

 

Mais distingo, porém,

Dum íntimo a perca

Da que a um grande ente convém,

Cuja perca nem parece que se dele acerca.

 

Cristo, Buda ou Maomé,

Deles falamos com naturalidade

Como se não fora verdade,

Se não morreram até.

 

Connosco vivem tanto ainda,

Tão do mundo se apoderaram

Que nem a morte os pôde, advinda,

Desalojar do que impregnaram.

 

Neles o mundo se arrima

Até à aventura mais pequena,

Deles o espírito o anima

De sentido em toda e qualquer vida terrena.

 

O mais estranho é que tais figuras

Ao mundo começaram por renunciar

E foi à custa de tais agruras

Que definitivamente lhe talharam o lugar.

388 – Semente

 

Homem,

Terra própria a semente reclama

Para germinar, crescer, frutificar.

Cuidado se te somem

Os gravetos e a caruma para a chama,

Que estiola tempo além o teu lugar!

 

 

389 – Cadilhos

 

Mãe,

Deverás descobrir que os filhos

Jamais

Serão propriedade dos pais.

Nem

São teus cadilhos,

Que os atilhos

Ataste-os tu sem

Mais ninguém.

 

Fica-te a criança muito agradecida,

Mãe,

Por quanto de teu leite a desseca.

Não pode ser toda a vida,

Porém,

A eterna boneca

Sem Vontade,

Jogada, ao acaso, nos desvãos

Por tuas mãos

De eternidade.

 

 

390 – Mãos

 

As mãos que entre as nossas apertamos

Dão-nos por inteiro

Um parceiro.

Quando, pela morte, delas nos separamos,

O que nos deram perdura:

A ternura.

 

 

391 – Deserto

 

Quem passeia num jardim

De si cuida e não de mim.

Quem mora no deserto,

Quando quiser o sublime

De si mais perto

Tem de olhar o firmamento:

Para que no além se arrime

Ver-me-á nesse momento.

 

Eis porque é preciso o ermo:

Ali não serei esquecido,

Para o manter defendido

Da perversão, no termo,

Guardo o Homem isolado

E o que é bom é preservado.

 

No deserto a caridade

É vida

A tomar todas as formas:

Amizade,

Altruísmo à chegada e à partida,

Alegria, hospitalidade

Gerando os usos e as normas.

 

A alma do mundo é a verdade.

Quem mora no desconforto

Não teme perder um horto

Que não tem.

Não perverterá também

A crença que haja elevado

Seu olhar mais para além.

 

Vai ser ele o incorruptível

Tão mais credível

Quanto nunca pode ser comprado.

 

 

392 – Chumbo

 

O tempo, a quem sofre e desespera,

De chumbo tem os pés,

Demora o escasso dia longa era

A escorrer de cada vez,

Pisa, impiedoso e sem jeito,

Esmagando-nos o peito.

 

Apenas a faísca da esperança

Dos pés lhe queima a dança.

 

 

393 – Padres

 

 

Os padres

Têm de cobrar fundos para o templo.

Daí o exemplo

Perverso das tricas de comadres:

Têm de dar a impressão

De que a única verdadeira

É a própria religião

E a dos mais é trapaceira.

 

E nada de aperfeiçoar a deles

Para que às mais se sobreponha:

Mais cómodo é apoucá-las de reles,

Sem remorso nem vergonha,

Até que por contraste a deles sobressaia

Enquanto qualquer outra lentamente

Desmaia.

 

Quem descobre, contente,

O tamanho universal da religião,

Por trás da divisão

Mais evidente,

É apenas quem não sente

Qualquer preocupação

Dos templos com a conservação.

 

Apenas este consente

Que Deus tenha a medida

Devida:

Sem medição,

Muito menos pelo metro de qualquer religião!

 

 

394 – Peito

 

Os padres, os pastores merecem respeito

E piedade:

Em geral tomam-se a peito,

Honestos, com sinceridade.

 

Apenas vivem prisioneiros

Do templo na maquinaria.

Das velhas tradições vezeiros,

Não logram mais sair disto:

- Quem os expurgaria

Do quisto?

 

 

395 – História

 

História

São mais que perfis,

É a memória

Da raiz.

 

O que nos diz

De desgraça ou de glória

É também a raiz

Da memória.

 

O que fiz e o que não fiz

De qualidade ou de escória

Reveste sempre o cariz

De História.

 

Atento aos arrebóis,

É pela história que vou:

-História, pois,

É o que sou!

 

 

396 – Malefício

 

Malefício da ciência

Não é da ciência ofício,

Mas antes a excrescência

Dum vício:

O duma filosofia

Que a torna religião

E que jamais se atreveria

A tal reconhecer em confissão.

 

Eis o cientismo, a crença

De que o não cientificável

Do real não é pertença

Por não ser percepcionável.

 

No meu íntimo, o vivido,

Só por não poder ser medido,

Não existe: e ninguém pasma

De assim, levianamente,

O tornarem tão fantasma

Que, ao que parece, nem sente!

 

 

397-Impossível

 

Falar de Deus sem falar do homem

Nem por ele agir,

Impossível: só por ludíbrio ou engano.

Quando nas mãos se tomem

As fronteiras do porvir

Apenas a simetria não traz dano.

 

Falar do homem sem falar de Deus

Nem agir por ele,

Impossível: só por engano ou ludíbrio.

O que difere entre crentes e ateus

É o ponto de partida que a cada qual impele.

E juntos é que operam o equilíbrio.

 

 

398 – Sulco

 

O ser

É apenas limitação:

Da liberdade ei-lo a nascer,

Coagulação

Por todo o lado.

Dela não é senão

O intérmino sulco coalhado

Que decora

A rota do mundo pelos tempos fora.

 

E o sopro inesgotável continua,

Lavoira do Cosmos inteiro se espalhando pela rua.

 

 

399 – Fonte

 

O amor, o sacrifício, a criação…

Que fonte em mim de mim não vem

Donde possíveis sempre novos jorrarão

No ignoto me empurrando mais além?

 

Que realidade derradeira

Do fundo de mim me peneira?

 

No interior de mim operando

Como no imo doutro qualquer,

Como de todo o vivente quando

Calha de o escolher,

Como nas profundas do Universo,

- Quem nos faz ser?

Quem me escreveu este verso?

Quem, que não eu,

A mim me escreveu?

 

 

400 – Riqueza

 

Acção que vise a riqueza,

Por mais que a preveja doce,

Torna-me afinal uma presa

Indefesa,

Quando me conduz à posse.

 

Ao tomar sentido,

Já não recuo:

- Sou possuído

Por aquilo que possuo.

 

 

401 – Confiança

 

O porvir dum povo advém

Da confinça que ele tem

Nos valores que criou.

 

Dela também, que ele proceda

Ao voo

Ou à queda.

 

Ante os valores, a atitude

A que um povo se arrime

É que o leva à virtude

Ou ao crime,

Pois quem confia,

Porfia

E quem tomba na desconfiança,

Não alcança.

 

Não são os valores o fundamental:

Perante eles tudo principia,

Afinal,

Ao sinal

Que nos guia.

 

 

402 – Caminho

 

O caminho do homem para Deus é a fé,

O caminho de Deus para o homem é o amor.

 

Por isso este amor não é

Dependente dos méritos do amado:

É incondicionado

E, portanto, criador.

 

Não tem a medida de amores meus:

Este amor é Deus.

 

403 – Risco

 

Todo o amor é risco, é incerteza:

Então a fé toma sentido.

É a eterna tragédia que nos reza

A trindade do amado, do amante

E do amor, o intérmino ferido.

E a trindade é Deus-mais-adiante,

Um Deus outro, um Deus maior:

É Deus o amor finalmente Amor.

 

 

404 – Um

 

É assim:

Deus e eu somos um.

Pelos conhecimentos meus

Acolho Deus em mim;

Pelo amor penetro em Deus:

Então tudo é comum!

 

 

405 – Esfera

 

Quando o carpinteiro pára,

Não ergo a casa do alicerce.

Quando o machado não exerce,

Com o vir-a-ser ninguém depara.

 

De Deus na esfera

Sou como qualquer:

- Deus opera

E então eu venho a ser!

 

 

406 – Real

 

É o real distinto do irreal

Por fora a ser concebido

Da relação com Deus radical:

Só o infinito é origem de sentido.

 

O mais é desatino:

Para que existo, afinal?

 

-Nada existe de real

Que não seja divino.

 

 

407 – Teofania

 

O relativo manifesta o absoluto

Do símbolo na forma:

A natureza inteira é um produto,

É uma teofania, é uma aparição.

 

A derradeira norma

É ser de Deus uma revelação.

 

 

408 – Pedaços

 

É hindu, budista, judeu,

Cristão ou muçulmano alguém,

Não por aquilo em que creu

Mas pelo que faz.

A medida que a fé tem

É a do contributo que traz

À humanização do homem.

Os pedaços de destino

Que em mãos se tomem

No que o homem tem de divino:

O gesto criador

Que renova o amor.

 

 

409 – Germe

 

O fim mora em germe nos meios,

Os meios são o fim em vias de nascer.

Da mútua permeabilidade nos entremeios

Nunca o fim sobre os meios poderá prevalecer.

 

Um meio não serve um fim,

Cria-o, é prefiguração

Do que quererei ter lá no confim.

 

Na violência, então,

Quando o mundo assenta,

Jamais criará uma era não-violenta.

Quando o poder é delegado

A um eleito ou dirigente,

Jamais nele pode ser fundado

Um reino que empenhe toda a gente.

Com uma tecnologia desmedida,

Além do controlo à escala humana,

Não pode ser erigida

A Humanidade que irmana.

 

O fim e os meios

Implicam-se mutuamente

Em todos os veios

Em que a vida nos assente.

 

A mútua contradição

Jogar-nos-á qualquer sonho ao chão.

 

 

410 – Armas

 

As armas, sejam embora poderosas,

São os homens quem as usa:

A força maior é a da fé que as recusa

Ou as agarra feitas pedras preciosas.

 

A arma em si é inofensiva,

Tudo pende da fé que o dono viva.

 

 

 

411 – Criança

 

Olha a criança à tua frente,

Pensa que os olhos dela são os teus,

Que está a ver-te, consciente,

Como se foras tu com outra cara.

 

Assim é Deus:

Em tudo a tua almenara.

 

 

412 – Escolha

 

Na vida quotidiana

Nunca teremos escolha

Entre violência e não violência:

Na teia toda a pragana

Que o vendaval recolha

Finda presa para o resto da existência.

 

Violenta é a realidade,

Não é de minha vontade.

 

Se condeno como violenta

A luta do escravo pela liberdade,

Ou se me calo, como o sistema tenta,

Sobre dele a escravidão,

Sou cúmplice, por passividade

Ou pela hipócrita indignação,

Do dono que, em todo o lado,

O mantém acorrentado.

 

Não tenho alternativa:

A vida impõe que na violência viva.

 

 

413 – Despedida

 

Muito os homens se consomem

A andar sempre à despedida

Do destino!

A razão de ser dum homem

É tornar a própria vida

O lugar da aparição do divino.

 

Qualquer outro fim

É um ídolo para mim.

 

 

414 – Paz

 

A paz

Ausência de guerra não será,

Mas da injustiça que sempre há

E da escravidão pertinaz.

 

A paz é a mútua pertença

Que nos advém da comum presença

No Mundo e na História.

Não é uma questão de vitória:

A paz não é nenhuma

Enquanto a humanidade não for una.

 

 

415 – Central

 

Há um ponto central em nossa vida

Em que arte, fé, política e amor

Têm medida

Comum:

- No radical estupor

Não formam senão um.

 

 

416 – Cativo

 

Não te olhes, infecundo,

Como um régio

Cativo!

Que vais oferecer ao Mundo

Pelo raro privilégio

De estares vivo?

 

 

417 – Velho

 

Sinto-me tão sonolento,

Com as horas a passar

Como gado pachorrento

Na paisagem a pastar!

 

Olho-me ao espelho

E reajo,

Que isto é apenas o meu trajo

De velho.

 

E mais:

É minha virtude

Tecer da vida os sinais

Da saúde,

 

Até que os jovens destemidos

Os descubram em todos os sentidos.

 

 

418 – Importante

 

Professor é importante:

Influir em quem crescer

E que depois, adiante,

Vai fazer o mundo ser.

 

Professor é importante,

Embora pareça

Que nada adiante:

É aquela peça

Que tem o condão

De tornar gigante

O mundo anão.

 

Só que não é de repente,

É lentamente, lentamente…

 

É por não entender isto que, ingrata,

Toda a gente

O maltrata.

 

Como se a raiz do mundo

Não bebesse do professor

Seu teor

Mais fecundo:

 

Aquele mais,

Mais profundo,

Mais jucundo,

De que ninguém vê sinais

Senão já tarde demais,

Dos alunos quando o encanto

É deles com tal demora

Que há muito, discreto, ao canto,

O mestre se foi embora.

 

 

419 – Passo

 

As revoluções são impossíveis?!

Como se a vida por que passo

Não vivera passo a passo!…

São apenas invisíveis

As revoluções que vencem.

E se hoje não somos cativos

É que a elas pertencem

Todos os homens vivos.

Passo a passo,

Amanheço as noites pretas

E ultrapasso,

Neste invisível compasso,

Todas e quaisquer grilhetas.

 

 

420 – Nasce

 

É o mundo que nasce.

E, se nasce o mundo um dia,

Para os homens faz-se,

Que o Homem ali já principia.

 

Pois quando quero

Não há mal nenhum

Que me tolha, por mais fero:

Já não serei mais um zero,

Doravante sou um um.

 

 

421 – Futuro

 

Futuro nunca existiu,

Único certo é o da morte:

Ora, quando aconteceu,

Não mais é nem tem mais sorte.

Futuro, porém, é vida

Que por outrem continua

Quando em mim já for perdida

Do apelo vago da lua.

 

Em frente, sempre em frente,

Mesmo quando eu for ausente,

Que a vida

Demora assente

Eternamente presente

Mesmo após a despedida.

 

E só quem isto entendeu

É que para sempre viveu.

 

Que a morte

Não é mais que um passaporte

Deste outro lado do céu.

 

 

422 – Ponto

 

Há um ponto

Onde o amor e a morte se confundem:

Quando te olho já não conto,

Só germino quando teus olhos me inundem.

 

Esvazio-me de mim

Quando te olho apaixonado.

E apenas com teu sim

É que a vida me retorna de teu lado.

 

 

423 – Chiadeira

 

Carro de bois, chiadeira

Velhinha de tempos velhos,

Com motores emparceira,

Já doente dos artelhos,

Avó num adeus aos netos

Debaixo de antigos tectos

Em que vivia

A toda a hora

A eterna poesia

De outrora.

 

Aquela

Frescura louçã

Que me acendia a estrela

Da manhã,

 

Quando, sonolento,

Descosia,

Lento e lento,

A aurora dum novo dia.

 

 

424 – Paixões

 

As paixões, como são funestas!

Vento a inflar as velas do navio,

Às vezes o afundam.

Porém, sem estas,

Da vela como retesar o fio?

 

- As paixões redundam

No poder de navegar.

Sem o vento da paixão,

Como atear o lume do pavio

Na escuridão

De qualquer lugar?

 

No mundo brumoso

Meu destino é vário:

Tudo é perigoso

E tudo é necessário.

 

 

425 – Duvido

 

Duvido de tudo

E minha sensibilidade,

Atreita ao gozo sobretudo,

Na dor se evade.

 

Então já com nada me iludo,

Sou a guitarra afinada

Em demasia

Em que, a cada nota dedilhada,

A corda estalaria,

Quando, no fim,

Era tão simples a vida

Se a vivera por medida!

Mas enfim…

 

 

426 – Pessimista

 

Ser pessimista

É crer na vida

Como o blasfemo que resista

Ao Deus que deste modo revalida.

 

Aqueles a quem magoaram as ilusões,

A quem a  vida brutaliza

É que gritam contra os aleijões,

Maldizem quanto os realiza.

 

A vida, gritam contra ela

Porque lhe querem rasgar uma janela.

 

 

427 – Função

 

Antigamente,

O sonho era conquistar o coração

Da mulher por que estava enamorado.

De repente

A função

Troca de lado:

Mais tarde,

Basta sentir que um coração

Por mim arde

Para se me atear a paixão.

 

E quando a beleza da mulher

Deveria motivar o amor,

Eis que o amor pode nascer

Sem previamente sequer

Nada o levar a supor.

 

Este amor já não caminha

Como láparo na vinha,

Imprevisível, ignoto,

Pelo meu coração boto

De inexperto, de admirado:

Enquanto pisa o valado

Falseio-o na memória

Do que foi a minha história.

 

Então, quando ele começa,

Já lhe saberei o fim.

Por isso é que então tropeça:

Nem me sequer amo a mim.

 

 

428 – Vau

 

O derradeiro degrau

Do espírito e até do encanto,

O do ser

Mais desprezível,

É o de quem não salta o vau,

Incapaz, neste entretanto,

De renunciar ao imediato prazer:

Já não é mais perfectível.

 

Água sempre a escorrer informe

Na vertente que ali dorme,

Peixe desmemoriado

No vidro a bater cem vezes,

Crendo sempre que é do lado,

Que são das águas tais reveses…

 

Sempre, sempre fracassado

- E a vida a correr no prado!

 

 

429 – Rosto

 

Um rosto que se ilumina:

Campo de nuvens cinzento

Na ravina

Que no momento

Do sol-pôr repentino se descobre

Na amplidão.

É a transfiguração:

Do imo mais pobre

Brota, transfigurado,

O fulgor do profeta iluminado.

430 – Treme

 

Quem treme, treme por si

Quando treme por quem ama.

Quando nossa felicidade

Já não se acama

Aí,

Com que à-vontade,

De que ousadia

Gozamos ante quem dantes nos prendia!

Nem sequer precisamos de alibi,

Já não há nenhuma trama…

Quem treme, treme por si

Quando treme por quem ama.

 

 

431 – Candeeiro

 

Não duvido

Da luz deste candeeiro

Que me retira os objectos do olvido

Acendendo o mundo verdadeiro.

 

Então se escapa,

Dissolvida pelos recantos do chão,

Do luzeiro sob a capa,

A memória da escuridão.

 

Deste perigoso deslize

É que importa que me avise.

 

 

432 – Jamais

 

A gente jamais conhece

A própria felicidade:

Nunca se é tão infeliz, na verdade,

Como parece.

 

A gente jamais conhece

A própria desgraça:

Jamais é tão feliz o que alguém passa

Como parece.

 

Assim é que um homem

Ou esquece

As forças que o domem

Ou enlouquece.

 

E aqueles que em mãos as tomem

- Herói, mártir, génio ou santo –

A quantas forças houvera ali

Sempre as perderam para si.

 

Nós, porém, deles herdámos o suor e o pranto

Do encanto:

Nós, tão pequenos,

Que nada fizemos

É que lhes ficámos com os terrenos

Desbravados até os limites mais extremos.

433 – Quadro

 

A palavra acerca das coisas evoca a imagem

Pequena, clara e usual

Do quadro escolar com a paisagem,

Pendurado à parede trivial,

Na função exemplar

De tudo ter de se identificar

Como àquilo igual.

 

O nome da pessoa, da cidade

Tem alguma cor individual

Que uniforme os invade,

Mas que afinal nos negaceia, nos mente

Como um sinal,

Ao fim e ao cabo, dum ausente.

 

Assim, a palavra,

Realmente,

É a eterna ilusão.

- Mas tudo nos lavra

Em nosso chão.

 

 

434 – Mania

 

Doutrem não tendo a mania,

Exulto.

- Estulto,

Que não via

Uma outra que em lugar dela crescia:

Outra mania, condição primeira

De não ter aquela em mim terra nem jeira.