Escolha um número aleatório entre 435 e 518 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
435 – Em passos de amor pobre no deserto
Em passos de amor pobre no deserto
Tentando acertar nossas pegadas
A ver se a força aumenta de mãos dadas,
Se o longe então devém de vez mais perto,
Exaltantes irão ser as estradas
Por onde ao sol nascente, enfim desperto
E encontro o mundo inteiro sempre aberto
Aos sonhos de fecundas caminhadas.
Qualquer sonho de amor é o nosso pão
Por onde em cada dia nos irão
As fomes de infinito rasgar céus.
Um amor será mais do que um bordão
Que o caminheiro arrancará do chão,
O amor é a minha margem de ser Deus.
436 – Namorados
Para a minha namorada
Que se fez minha mulher
Não há prenda, não há nada
Que nos valha o bem-querer.
No bem-querer o que fala,
Quando tudo se perdera,
É que o bem-querer iguala
O mais que o mundo tivera.
Iguala, não, que bem mais
Que tudo o mais quem se quer
Partilha com os sinais
Discretos de se querer.
Assim, pois, na minha agenda
Isto de querer-te bem
É que foi a melhor prenda
Que, em dia de namorados,
Ao tirar-me de cuidados,
Descobri que o mundo tem.
437 – Invés
Ao invés do que é o amor
A amizade pode ser
Revivida ao infinito.
Terra fértil e calor
Germinam-na, se aprouver
Tê-la eterna em nosso fito:
Há-de ser estimulada,
Cuidada, que é planta rara,
Na berma comum da estrada
Haure o que a fertilizara.
De longo tempo precisa,
De rega para crescer…
Árvore é a final divisa:
Nada a abate nem quenquer.
438 – Loja
O casamento é uma loja,
Loja de conveniência,
Noite e dia nos aloja
Sem variar a existência:
O que houver é aquilo que há…
- Mais que, às três da madrugada,
Quando já não tenho estrada,
A porta aberta está lá.
439 – Contorno
Quem dera que toda a gente
Encontrara sempre alguém
À espera ao fim da viagem!
Que sempre houvera igualmente
À despedida com quem
Do voo abraçar a aragem.
Se morrer for, sem retorno,
Correr rumo ao final norte
Toma então feliz contorno:
Nem terei medo da morte.
440 – Vigente
Queremos dar um presente
Cujo valor ultrapasse
O tempo em que for vigente
A vida que ele durasse.
Nosso maior desafio
É um presente para um filho
Que à vida lhe empreste o fio
Que evite a trama e o sarilho.
Um presente jamais é
Só uma coisa material,
Pois o que ele põe de pé
É o carinho quanto vale.
De escolha particular,
De cada qual sinal mais,
É bem mais que estimular
Os filhos por mão dos pais.
O que ele nos põe à mão
Como dimensão primeira
É a velada dimensão
Em que a vida é verdadeira.
441 – Favor
Se uma mulher só beleza
Retiver em seu favor,
Breve perde a singeleza.
Esquece o amante o esplendor,
A uma mais nova põe mesa.
Quando, porém, seu valor
Do que tem dentro se preza,
Ninguém lhe rouba o penhor,
Mesmo morta se lhe reza!
442 – Amor
Prato de alma e coração,
O amor é cabeça e corpo
Em doses com medição,
É a paz colhida no horto.
E quem o conhece sabe
Que, depois de ele nascer,
Tudo, tudo nele cabe,
É uma criança a aprender.
Aprende a falar e rir,
A respeitar, escrever,
Vai à escola, aprende a ouvir,
A calar e a crescer,
Vai aprender a pedir
E, por vezes, a não ter,
A lutar sem conseguir,
A chorar sem ninguém ver,
Ou a ver mas sem ouvir,
E aprende a não desistir
De a maior riqueza ser
Que alguém poderá colher.
Aprende mesmo a fingir
Que é o melhor que se há-de ter:
Então, quando tem porvir,
Será o ser de quem tem ser.
443 – Figura
É o amor uma figura
Por meio da qual dizemos
O que não sinto na altura,
Mas sentindo que o calemos.
Pílula por dentro amarga,
Vem adoçada por fora
E assim perderá tal carga
Ao paladar que a devora.
Escamoteia a verdade,
Bom prestidigitador,
Salto mortal que nos há-de
Da acrobata dar valor.
Enfermidade comum
Mas que quer, em cada caso,
Não tratamento nenhum,
Mas antes que lhe dês azo.
Um manjar apetitoso
Mas fortemente indigesto,
Um dente bem doloroso
Sem, para arrancá-lo, apresto.
É a bota que só quem calça
É que sabe onde lhe aperta,
Corrida de pista falsa
A requerer carta aberta.
É uma eléctrica corrente
Por entre dois corações,
Drama ou tragédia que sente
Quanta comédia lhe opões.
O amor és tu, são os teus…
E no fim o amor é Deus.
444 – Amigos
Os amigos de primeira
São raros, p’ra toda a vida.
Criticam-nos em privado
A pequenez e a asneira,
Em público nos defendem
Da maledicência ouvida.
Vibram do êxito logrado;
Se os falhanços nos estendem,
Erguem-nos com mão segura.
São meigos, mas não piegas,
Confidentes sem secura,
Atentos sem vincar pregas.
Connnosco preocupados,
São quem por nós tem cuidados.
Poucos são amigos tais:
Quem tem poucos, muitos tem.
Quem tem muitos, tem demais,
Pois não tem nenhum também.
445 – Agenda
Como do pós-guerra os filhos,
Vivo a sobrecarregar
Família, carreira, amigos
Na agenda sempre a voar.
Ao passar com minha mãe
Algum tempo, aprendo então
Como é importante também
Neste meu ritmo ter mão.
- Aprendo a não fazer nada:
Este é o ponto de partida
Da vida que quis ser vida
E este é o ponto de chegada!
446 – Amigo
Juntos comer e beber,
Juntos rir e conversar,
Vida fruir devagar…
- Nem um amigo sequer
Desabrocha disto a par
Enquanto se não tiver
De juntos, juntos chorar!
447 – Beijo
- Posso-te, mãe, dar um beijo
Para bem melhor ficares?
- Teu beijo, com tal desejo,
Faz-me logo mudar de ares.
Às vezes a gente chora,
Não por ficar magoado,
Mas dum amor que em nós mora
Transbordar por todo o lado.
- Fazem, mãe, os corações
Essas lágrimas que citas?
- São, filho, nem tu supões,
De todas as mais benditas.
- Fico, mãe, muito contente
Que teus olhos de desditas
Façam lágrimas que sente
Um filho que são bonitas.
448 – Mora
Ainda não aprendeste
Que a beleza aonde mora
É nos olhos do que a veste
Duma visão sedutora.
Ao olhar observador
O que a beleza contém
É o que tem secreto o amor
Do que ele vê para além.
449 – Gémeos
Tanto o amor como a alegria
Juntos são gémeos nascidos
Ou um doutro, por magia,
Brotam como a luz do dia.
E são sonhos repartidos:
O peito é um pardal e pia
Pelos meus cinco sentidos.
450 – Êxtase
No momento em que tiveres
Em teu coração o amor,
Ao sentires-lhe os prazeres,
Profundidade e calor,
No êxtase descobrirás
Que para ti começou
Noutras guerras outra paz
- E o mundo se transformou!
451 – Vez
Apesar do desespero,
Da perda e da culpa, a vida,
Excitante, divertida,
Bela, astuta, cativante,
É o amor que dela gero:
Muitas vezes é um poema,
Uma aventura excitante,
Outras vezes é sublime,
Ao acaso alegre tema…
Seja o que for que lhe arrime
Durante, o que vem após
(Se é que não ficamos sós…)
- Ter esta vida outra vez
É o que nunca ninguém fez.
452 – Vera
A felicidade vera
De natureza é discreta,
Inimiga, por secreta,
Da pompa e tricas da feira.
Ela nascerá primeiro
Da satisfação consigo.
A seguir, por derradeiro,
Da amizade que consigo
E das conversas de alguns
Companheiros reduzidos
Que mais do que outros nehuns
De mim são os escolhidos.
453 – Pena
Viver, morrer vale a pena
P’ra tornar alguém feliz,
Não sofre nem se condena
Quem com os demais condiz.
Dar aos mais é um exercício
Que, por mais que se complique,
Ao fim não traz sacrifício,
Por muito que sacrifique.
454 – Avante
Joga o coração adiante
E, a apanhá-lo, corre avante!
455 – Melhor
O mundo melhor seria
Se umas para as outras menos
As pessoas, cada dia,
Olharam, se mais pequenos
Trocaram disto os sinais,
E uns pelos outros, serenos,
Em troca olharam bem mais.
456 – Parceiros
Os parceiros poderão
Recusar ouvir as queixas,
Ou dizem saber então
Do outro todas as deixas,
Ou vão vislumbrar no insulto
Um pedido de mudança…
- Um lar feliz tem o culto
De se ouvir, por isso alcança!
457 – Sol
Amarmos, sermos amados,
Sol bronzeando ambos os lados.
458 – Partida
Hoje, que volto a perder-te,
É que sinto que voltaste.
Que bom não ficar inerte:
Partindo, ao menos chegaste,
Ao menos agora é bom!
Deveria ser mais cedo…
Ouço da partida o som:
Tarde demais sinto medo!
459 – Revolta
A revolta que alguém sente
Ao descobrir-se impotente
Para conservar o que ama!
Que fizemos nós da vida?
Dará cada qual à dama
Com que em cada hora lida
O melhor a que ela exorta?
- Isto, afinal, é o que importa.
460 – Resposta
Ela amou-me ou fui apenas
De apoio o mero bordão
Para quanto apetecia?
Não há resposta e condenas.
Mas há mesmo precisão
De fazer luz algum dia?
Talvez não tenha importância.
- É que não há uma resposta,
Senão a que por tal ânsia
Por ti a ti for imposta.
461 – Enganar
Devemos desconfiar
De nosso primeiro impulso:
Quem não se vir enganar
À vida não toma o pulso.
Se me não der ao trabalho
De recompor a verdade
Como saberei se entalho
Delicado minha idade?
Uma verdade absoluta,
Para sempre e sem cambiantes
É um “amo-te!” sem mais luta,
Sem ter amanhã nem dantes.
Onde iríamos parar
Se a tal “amo-te!” convicto
Contrapuser, em lugar,
“Não te amo!” de vez invicto?
Era morrer ou matar,
Era viver numa arena:
E ninguém teria um lar
E ninguém teria pena…
462 – Propósito
Um amante, quando ele ama,
De propósito não faz.
Forçá-lo a voltar atrás
Do sentimento na gama,
É apontar para o nadir
Que não tem nenhum lugar,
É querer mesmo impedir
Toda a Terra de girar.
463 – Ciúme
Habituo-me a ter fome,
À dor de estômago e dentes,
A uma paixão que se some…
Muito embora com queixume,
Habituo-me, entrementes.
- Não, porém, não ao ciúme!
464 – Dor
De vez para ultrapassar
A total mediocridade,
A uma mulher persuade
A dor que infernize o lar,
A dor que chora, que grita,
Ou calada no tormento.
Resistência ao sofrimento
É, na mulher, infinita.
E logra assim, no final,
Píncaros de santidade,
Grandezas de heroicidade:
Chama tem de genial.
465 – Longa
Uma longa paciência,
Desgostos muito escondidos
Formam oculta a ciência,
Endureceram sentidos,
Afinaram a mulher
Que nos contam feita de aço.
Ninguém repara sequer
De quanta luta e cansaço
Se talha aquela dureza.
E a ternura que requer
Tamanha erguer a grandeza
Feita ao fim só de mulher.
466 – Desejo
O desejo quanto existe,
Semideus imperioso!
Fauno à solta sempre o viste,
Cabriola a cabriola,
À volta do amor gostoso
Quando a amor jamais se imola!
Obriga-me a recordar
Que estou só por todo o lado,
Por mais que em qualquer lugar
Inteiro ande acompanhado.
467 – Misericórdia
Deus do pecador diria
Já repeso do pecado:
“Jamais me procuraria
Se não me houver já encontrado.”
Mas nunca um amor, porém,
Tal misericórdia tem:
“Encontraste-me uma vez
E para sempre me perdes.”
Ao perdê-lo, o que tu crês
É ter sofrido o que houverdes
De sofrer do que perdestes.
Engano, não acabou:
Saboreias tua perda
Ressuscitando hoje nestes
O que além se te finou.
Exaures cada festim
De amor novo em tua vida
Com veneno até ao fim:
Neles ficará delida
A memória sem parceiro
Do que foi o amor primeiro.
Não é questão de valor:
- É que ele é o único amor.
468 – Casamento
No casamento, o pior
Não são a traição, as brigas
Que transmudam, por amor,
Pessoas em inimigas.
É a domesticidade,
É o que as esposas demuda
Em amas de toda a idade.
A mulher à lida gruda:
Receia que a costeleta
Do senhor fique passada,
Que água fresca vire preta
Da gola mal engomada,
Que o colarinho postiço,
De mole, ponha a ferver
A banheira que sem isso
Era o duche que ele quer…
Ser a barreira esgotante
Do mau humor do senhor,
O rol inventariante
Da avareza do senhor,
A colher da gula hiante
De quanto come o senhor,
O prazer do corpo, instante
Das preguiças do senhor…
O que mata o casamento
Não são hábitos de vida
Nem é uma banalidade:
- É tão banal o tormento
Devir na via seguida
Que nem se vê de verdade!
469 – Prendas
Diz amor, não casamento,
Só o amor alegre torna
A servidão do tormento,
Fácil o suor da jorna.
Agora que ele morreu
Vomitas tudo e renegas.
Porém, quando aconteceu,
A ti toda a dor agregas,
É sacramento do céu
E reverente a consagras.
Porque amar é obedecer,
Todas as prendas são magras
Para um deus a quem se quer.
470 – Enlaçadas
Duas damas enlaçadas
Serão par licencioso
Ou fraquezas de mãos dadas
Que se nem lembram do gozo?
Uma da outra nos braços
Refugiadas talvez
Para escaparem dos laços,
Dormir e fugir de vez…
Saborear, não prazer,
A felicidade amarga
De semelhantes se ver,
Ínfimas burras de carga.
O voluptruoso amante
Que só compreende o amor
Mora do amor tão distante
Que nunca viu esta dor.
471 – Voluptuosidade
A voluptuosidade,
No ilimitado deserto
Do amor, ocupa um lugar
Ardente em vivacidade,
Tão ofuscante e tão perto
Que a princípio o cintilar
Dela é o que apenas veremos.
Não sou, porém, inocente
De me cegar do fulgor:
Deste fogo nos extremos
Treme, inconstante, o presente,
O desconhecido, o horror,
Mora o perigo, o perigo…
- Meu amor, meu inimigo!
472 – Pés
Os pés de meus olhos
Seguem-na discretos
Pela rua abaixo.
Dentes dela, escolhos
No lago secretos
Da boca em que encaixo…
Os pés em redor
Do lago vermelho,
Dos olhos as mãos
A tocar de amor
Alheio a conselho
Da pele os desvãos.
As mãos e os pés
De meus pobres olhos:
Humildes refolhos
Do que sou e és…
- Dali, porém, eis
Que nascem vergéis!
473 – Durar
Se temer te fazes, faz-te logo amar:
Temor sem amor não aquece lugar.
474 – Outro
O outro jamais é um meio
De prazer ou de serviço,
Não é muro de receio.
É a abertura que cobiço,
Uma ponte de passagem
Do indivíduo à pessoa,
O princípio da viagem,
O rumo num mundo à toa.
É chegar à relação,
Saltar da insularidade
Da terra à fecundação
No espaço da liberdade.
Sair de si: qual o nome
Que ao voo poderei pôr?
O outro é quem me mata a fome
De lonjura: isto é o amor.
475 – Romancistas
Em geral os romancistas
Dão por finda uma aventura
Quando os dois protagonistas
Casam, dão progenitura.
Porém, contra a convenção,
Aí começa a verdade,
A mais dura provação
Que os personagens invade.
O choque dos corpos nus
Prova, no amor verdadeiro,
Contra as fábulas, tabus,
Que o sonho é bem traiçoeiro.
Gira por vezes em falso,
Motor em banco de ensaio.
Tem de embraiar-se descalço,
Só incarnando-o de mim saio.
- Só chego ao ponto final
Quando for homem total.
476 – Montanhas
As montanhas escabrosas
Nos elevam céu adentro
Desde as vertentes frondosas
Aos fojos onde nem entro.
Porém, só se uma paixão
Se intromete em nossa vida:
Sem ela a montanha não
É jamais quem nos convida.
A montanha desmedida,
Sem o amor presente perto
Já não é postal de vida,
Parece mesmo um deserto.
477 – Dedo
Se o marido não é a ponte
Mas a ilha solitária,
A mãe é o dedo que aponte,
Na rosa-dos-ventos vária,
Por onde o norte desponte.
É o pontão por onde corre
A trilha do continente,
Que os pés perdidos socorre
De quem ir ao mundo tente
E nas quedas sempre acorre.
A mãe traz procuração
Para falar com a vida:
Mesmo se o marido não
Acerta com a medida,
Pelos dois vive a função.
478 - Incandescência
O amor quando renascido,
Desperto da sonolência,
Quase morto, é revivido,
Fulgura de incandescência.
Enche-nos de tanto brilho,
Transborda em tal arrebol
Que enflora campos de milho,
Cria a luz nova do sol.
479 – Assassinos
Somos todos assassinos,
Os da eléctrica cadeira,
Os da igreja a cantar hinos,
Só mudamos na maneira.
O nosso modo de vida
É o do mútuo extermínio.
A segurança devida,
Tão ávida de domínio,
Para nós nos protegermos
Inventa a destruição
E esta, em variados termos,
Nos acaba tudo à mão.
Ninguém mostra acreditar
No poder que tem o amor,
Único com que contar,
Se confiar é o valor.
Ninguém nele próprio crê,
Ninguém crê no seu vizinho,
Em Deus já ninguém tem fé,
A suspeita é o pão e o vinho.
Quando o medo, quando a inveja
Prosperam por toda a parte,
Qual o rumo que se almeja,
De ser livre quem tem arte?
480 – Prendas
Impressionado por um filho teres,
Que lhe vais entregar de teus haveres?
Casa, alimentação, muitos brinquedos,
Abrigo, roupas, canto dos segredos…
Esqueceste o principal,
Além de seja o que for:
A prenda das prendas vale
O que valer teu amor.
481 – Alumia
Ele não fala, alumia,
Rasga de noite um clarão
Nos olhos de quem não via…
Enquanto isto acontecia
Terminou a solidão:
Pois cada qual, de estrangeiro
Que sempre era, de primeiro,
Se descobre, ao fim, irmão.
482 – Palhas
Um homem apaixonado,
Vencedor de mil batalhas,
Da mulher amada ao lado
É uma mancheia de palhas.
É mais fácil enfrentar
O inimigo no combate
Do que pedir um lugar
No coração por que bate.
Pedir-lhe que corresponda
Ao amor que lhe dedique
É do mar uma tal onda
Que nela se afunda a pique.
483 – Razão
Eras antes de à razão
A ciência se entregar
.
Entregou-se ao coração
Quem gerou quem a gerar.
Assim, pois, a humanidade,
Entre ambos a baloiçar,
Vai perdendo a identidade,
Que há uma só prioridade:
O coração a criar.
Assim foi antes de a mente
Devir sequer existente
Para o ser representar.
Bem antes de poder sê-lo
Tivera de haver lugar
Da existência ao longo apelo.
Milhares de milhões de anos a amar
Antes de que a razão tivesse um lar.
Quando esta prioridade
Se inverter, a mente invade
O lugar do coração.
É pior que a confusão:
Quando tudo for assim,
É sempre o início do fim.
484 – Egoísmo
O egoísmo de possuir
É que me impede o devir,
Pois só cresço em relação:
Não terei qualquer porvir
Se me finda a comunhão.
Por isso a propriedade
Não pode prevalecer
Contra os fins que houver de ter
A humana comunidade.
É que ter não é um direito
Absoluto e pessoal,
É missão que tomo a peito:
É operação social.
Do mesmo modo ninguém
Direito a pensar por todos,
De aos mais o impor, não retém,
Por mais que invista em engodos.
Nenhum dogmatismo ateu
Ou crente vai pretender
Que acabado constituiu
Um sistema para o ser.
Nem propor pode ou impor
Como um absoluto aquilo
Que o não é, cujo teor
Entesoirado é num silo.
Jamais é aquilo o real,
A verdade não é isso,
O absoluto, por igual…
Tudo não passa de esquisso
Onde aflora, pelo chão,
O apelo a darmos a mão.
Tudo quanto os homens dizem
Não o diz, pois, deus nenhum,
É cultura onde enraízem
Fronteiras de qualquer um.
Eis a razão porque os místicos
Serão sempre mal amados
Com os vergonhosos dísticos
Na cruz de crucificados.
Nas igrejas, nos partidos,
Revoluções instaladas,
Jerusalém tem ouvidos
Alerta pelas estradas.
E não há Jerusalém
De todas quantas cometas
Que não verta, terra além,
O sangue de seus profetas.
485 – Gerar
O valor do casamento,
Do adulto a gerar crianças,
Não vale o inverso elemento,
Sempre ali demais oculto:
De gerarem, quando avanças,
- As crianças o adulto.
486 – Necessário
Ao sentir-me necessário
Precisamente naquilo
Mais perto do coração,
Da vida salto o calvário:
Sorvo, sublime e tranquilo,
Ser do mundo inteiro irmão.
487 – Lugar
O meu lugar fica ao pé
Do homem, dentro da vida,
No mundo o meu lugar é
Da mão sempre oferecida,
Onde alguém sofre, alguém morre.
Meu lugar é o que cative,
Que do coração decorre
Que bate a meio do mundo:
É o lugar onde alguém vive.
- E só por isso é fecundo.
-
488 – Nós
A tarde, em redor de nós
Tecendo fios da vida,
Nos aperta lenta os nós
Com que um ao outro nos liga.
Teceu fios para unir.
Se avessas vão as candeias,
Uma vida sem porvir
Os laços muda em cadeias.
489 – Língua
A mesma língua falamos
E tantas tão diferentes
Afinal comunicamos
No que nos passa entre dentes!
Por exemplo, digo amor,
Tudo é paz e plenitude.
Outro o diz e lá vai pôr
O ódio com que me ilude.
Mais além é só ganância,
Bem calculada cobiça.
Cama e sexo é a maior ânsia
Deste que ao amor se enliça.
Naqueloutro é coração,
Auréola de santidade,
Ama a mortificação,
Vislumbra ao fim a verdade.
Tudo são meras palavras,
Todas só num mesmo termo.
Por isto é que saio às lavras
E o que encontro é um mundo enfermo.
Se num ombro a mão poisar
Do primeiro viandante,
Disser “Amo-te!”, em lugar
De ficar esfusiante,
Recuará um passo atrás
Prestes a se defender…
- Prontos ao que o ódio traz,
Quem o amor há-de acolher?
490 – Distância
Teu amor, mesmo o maior,
Dele ao fim qual a importãncia?
Só o apelo da distância…
Importante, só o Amor,
Nem meu, nem teu, de ninguém,
Só uma porta para além!
491 – Criança
A criança olha e sorri.
Nós sorrimos um adeus.
E tu, mulher, és aqui
A criança que sorri,
A criança que morri
Nos tempos que foram meus.
É que nasceste há tão pouco!
E por mais tempo que passe
O relógio fica louco,
Dos anos te perde o enlace,
És a criança que abrace
Os gestos de que me touco
Com a ternura que os trace.
Nasceste há tão poucos anos,
Por mais anos que hão passado,
Que de velho meus enganos
Ficam jovens a teu lado!
492 – Socorro
Eu sei, eu sei que não morro.
Mas sou aquele menino
Que viaja pelo espaço
Montando um planeta louco.
Socorro! Meu Deus, socorro!
Já basta de desatino
Não ver de sentido um traço!
E ver-me assim não é pouco!
Ai um regaço, um regaço,
Onde me encolher ao colo!
Nas fronteiras do destino
Não ser menino é ser tolo.
493 – Goste
Vamos lá, tenha juízo,
De si não se ocupe tanto,
Ponha a fé no meu aviso:
Se quer um pouco de encanto
Espalhado aqui, ali,
Dos outros enxugue o pranto,
Goste deles outro tanto,
- Todos gostarão de si!
494 – Esmo
Mais valera amar a esmo
Com a avidez de encontrar
O desconhecido olhar
Do caminho de mim mesmo,
Do paraíso perdido
Nalgum esconso lugar,
Do que ser morto fingido,
Que ser incapaz de amar.
Embora, tudo pesado,
Ainda aqui haja uma perca:
Um amor que seja amado
Marca a terra e põe-lhe cerca.
Ânsia de amor infinita,
Instinto religioso:
As duas pontas da fita
Na qual a vida desposo.
Ambas no extremo distintas
Mas num tecido comum,
São da liberdade as tintas
Sem peias no céu que pintas,
Se vislumbras céu algum.
É que todo o pensamento
É aprendizagem da morte,
Não por ser ela tormento
Mas por nos dar, num momento,
- Do infindo os frutos da sorte.
Isto porque, no limite,
O amor é um acto de fé
E a fé, mais do que um desquite,
É para o amor o convite
- E a vida então toma pé!
496 – Viver
O que é importante é viver
(Mesmo quando a gente morre)
Além da morte, em quenquer,
Noutrem onde a vida corre.
Importa é que eu seja todos
E lhes transmita tal ser
Nas várias formas e modos,
Como razão de viver.
A morte não é completa,
Um indivíduo ao morrer
Prolonga um sonho, uma meta,
O impulso de amar e ser.
De vez noutrem transfundido,
Se encontra, ao fim, plenitude:
É o mundo em si que, sendido,
Jamais doravante ilude.
Ínfima sou a partícula
Que ajuda a rolar o imenso
Universo a que, ridícula,
Humildemente pertenço.
497 – Medida
Submisso nunca sou vivo.
Com o todo e com o nada
Se me encontro, sobrevivo,
Eu que sou nada e sou tudo,
E, ao rasgar a minha estrada,
Meus pares então transmudo
Pela medida encontrada:
A cada coisa isolada
Com toda a cadeia acudo,
Juntos vamos para a entrada
Em que se acaba este entrudo,
Que a Festa, enfim, é chegada.
498 – Alicerces
Nos alicerces, o lar
É para a sociedade
A vera pedra angular
Até que a raiz a invade,
Se espalha de canto a canto,
A esboroa lentamente.
Então, como por encanto,
Se esbarronda, de repente,
Toda a civilização.
Não é uma guerra o pior:
- O punhal no coração
É quando apodrece o amor.
499 – Silêncio
Somos do silêncio filhos
De que nasce a madrugada,
Que a noite ata nos cadilhos
Que o sol prendem na jornada.
A chave, mãe, no-la deste
Neste dia em que nasceste.
Porque tu és a mulher
Que os males trocas em bens,
O que de nós diz qualquer,
Mãe, é apenas: “parabéns!”
Damos-te à vida perfume?
Tu, porém, tu dás-nos lume!
500 – Balão
É o amor-próprio um balão
Cheio de vento onde brotam
Tempestade e furacão
Se uma picada os que o notam
Porventura lhe darão.
E, no fim, toda a desgraça
Recai no balão que a traça.
501 – Mulher
A mulher é curiosa,
O abismo é o que mais a atrai:
Quem a mais bela desposa
É que a espertou e ela vai.
Depois, amará os extremos:
São os heróis ou os nulos
Atrás de quem nós a vemos
A fabricar os casulos.
Põe-te a querê-la a valer,
Coração e mente nua,
E não duvides sequer,
Não duvides, será tua!
502 – Sonho
Viver para o sonho,
Quando não se alcança,
Quando em barro o ponho
De que ri qualquer criança,
Vau onde não pesco,
É viver sandice,
É devir grotesco,
Ter mãos secas de velhice.
Viver é sonhar
Se a meio do lago,
Mais do que pescar,
Dum lar ergo o eterno afago.
503 – Lentamente
Tudo morre lentamente,
O que não morre é uma dor,
Tenho-a sempre aqui presente
Tão antiga como o amor.
Tão antiga como o Homem,
São a eterna companhia:
Amor e dor nos consomem,
Nos caminham cada dia.
Dor com que a vida nos calca
Com ânsia que nos devora,
Aspiração que desfalca,
Pólen que as asas decora
Aprontadas a voar
E que logo o sol crestou.
- Nunca a dor se há-de estancar
Nesta luz por onde vou.
Amor que gerou a luz,
Dor que a luz nos leva à morte,
Qual mais fundo nos traduz,
Mais nos demarca na sorte?
Amor e dor, qual será
Que um dia de vez se extingue?
Pois nem um nem outra, já
Que ambos fazem com que eu vingue.
504 – Pronto
Estar pronto para amar
É julgar que quem amamos
Participa, tem lugar
Na vida desconhecida.
Por entre corças e gamos,
Na planura hoje perdida
Do paraíso que herdámos,
O amor leva a penetrar
Na porta de vez cerrada:
Por isto fatal se prende
À chave que abrir a entrada
Que promete a caminhada.
E, enquanto isto é o que defende,
O resto desdenha, ignora.
E, mesmo que a toda a hora,
A farda a mulher conquiste,
Aquilo a que não resiste
É a sonhar que dentro dela
Um homem por fim não mora
Mas, de homem só disfarçado,
Afinal será o traslado
Duma cintilante estrela.
505 – Amar
Para amar uma mulher
Pode bastar que me fite
Com o desprezo que houver
Num olhar de que me agite.
Basta pensar que jamais
Meus serão dela os sinais.
Mas também basta, ao invés,
Que me olhe com tal bondade
Que eu lhe caia morto aos pés
Vivendo então de verdade.
É que ali pensarei já
Que ela me pertencerá.
Para amar, afinal, basta
Que se recuse, perversa,
Ou que se entregue, de casta…
- Tudo o amor, ao termo, versa.
506 – Cigarreira
Esqueceste a cigarreira
Em casa de tua amante.
Por que não prender-lhe à beira
Teu amor naquele instante?
Se a cigarreira te entrega,
Já te não entregaria
Teu coração sem refrega,
Que lhe trouxe a luz do dia.
507 – Indiferente
Entre os mais, habitualmente,
Tudo é tão indiferente
Que, quando dum deles vem
Dor ou alegria além
Da que é comum de cotio,
Então é que desconfio
Que ele é dum outro universo,
É poesia dum verso
Que me torna minha vida
Uma extensão comovida
Da dele. E assim, logo após,
Eu e ele somos Nós,
Não mais dois, apenas um
Como em mais lugar nenhum.
Um amor é uma ilusão
De que haja aqui outro chão,
Portanto ele principia
Sempre novo um novo dia.
508 – Fada
A fada se desvanece
Ante a pessoa real,
No próprio nome se esquece
Da poesia que tece
Dum outro mundo o sinal.
Quando o nome reflectir
A pessoa tal qual for,
De fada nunca há-de vir
Nada que possa sentir
Quem a vir sem tal fulgor.
Pode a fada renascer
Se me afastar da pessoa.
Se junto dela viver,
Definitiva morrer
Irei ver a fada boa.
Precisa de respirar
A Imaginação à solta.
À distância toma o ar
Que as asas lhe vai soltar
- E traz a fada de volta.
É tal a respiração
Que uma paixão ressuscita:
Esparso, o amor cai ao chão
Se de vez perder de mão
O além-sonho onde gravita.
509 – Marca
Como o artista, em vez do nome,
Coloca ao fundo da tela
Qualquer marca que for bela,
Borboleta ou flor, que tome
Por ele o voto de estrela,
Um rosto delicioso,
Um corpo de forma pura,
Mostram que a beleza augura
Na mulher que o mais gozoso
De ser bela é a assinatura.
Que lhe importa mais o nome
Se a beleza que a recobre
É a assinatura mais nobre
Por onde inteira se some
E de que inteira mais sobre?
510 – Deleite
Para quem amar,
Mais do que deleite,
Ela a passear,
Delicado enfeite,
Poema de elegância,
É a mais bela flor
Que marca a distância
No tempo do amor.
Na manhã germina
Luz que me enoitece,
Luz que me ilumina,
Conforme, divina,
Me vê ou me esquece.
511 – Ouvidos
Primeiro, ainda pensamos
Que é por meio de palavras
Que a verdade partilhamos.
Quando a conversa escalavras
Verás então que a verdade
Cresce às vezes noutras lavras.
Colhes com mais sanidade,
Sem palavras aguardar
Nem tomar à puridade,
A verdade no teu lar
Em mil sinais distraídos,
Em vivências devagar
Em que discernes sentidos.
Se a palavra te enganar
Ouves com outros ouvidos.
512 – Fora
Quando o amigo a outrem conta
A imagem que de mim tem,
Tal de fora a ver-me monta,
Como quem seu nome aponta
Numa revista onde vem
Ou ao espelho vê bem,
De si fora, a imagem pronta.
Só então deixo de ser verme
Pois que (enfim!) lograrei ver-me.
513 – Passa
Quando ela passa por mim,
Me faz uma saudação
Mais o que é um sorriso afim,
É como pintar assim
Um quadro de colecção
Para dedicar-mo, ao fim,
Com a assinatura em cima
Duma acabada obra-prima.
514 – Imaginação
A imaginação humana
Por trás dum palmo de cara
De mulher como que emana
Luz do alvor límpida e clara.
Ao invés, se trivial
For dela o conhecimento,
Nauseabundo pantanal
Pode então ser-lhe o elemento.
O que vale vinte escudos
Valerá mais dum milhão
Se aos olhos ponho os canudos
Que sonha a imaginação.
É de facto o mesmo rosto
Que dos dois lados veremos
Mas foi por caminho oposto
Que ao texto dele acedemos.
Jamais comunicarão
Da colina os dois pendores:
A luz não permutarão,
Contraste eterno de cores.
515 – Ídolo
A loucura de fazer
Ídolo da rapariga
Leva a que um favor qualquer,
Um beijo depois da briga,
Não tenha lugar sequer.
E a quem tanto valor liga
Dela àquilo que obtiver
Nem a pedi-lo se atriga,
Chega mesmo a se conter,
Não vá ocorrer que o consiga:
Um desmentido, quenquer
Que as garantias persiga
Do amor platónico, quer
Que jamais a vida o diga.
Da vida então se desliga
Sem o beijo da mulher
Que amou mais do que viver.
516 – Nem
Que penso do amor
E de seus reveses?
Faço-o tantas vezes
Que o que é de supor
Para que o revele
- É nem falar dele!
517 – Venenoso
Nas atitudes entroso,
Se negativas demais,
Um deserto de secura:
Um dito mais venenoso
Pode apagar mesmo mais
De vinte anos de ternura.
E quem envenena o prado
Pasta nele envenenado.
518 – Coração
Tens um coração de prata
Pendente sobre teu peito.
É um coração que me mata,
Que nunca achei bem o jeito
De ser o meu que aí bata.