Escolha um número aleatório entre 519 e 609 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
519 – Acertamos as vozes que sonhemos
Acertamos as vozes que sonhemos
No concerto de quanto nos maltrata,
Nos delimita os sonhos, no-los ata
Na amurada do barco já sem remos
Por onde a vida curta deslizemos
No rio interminável de oiro e prata
Que mais tarde ou mais cedo nos acata,
Sem desaguar jamais lá nos extremos.
Trepar no amor, cair na realidade,
Respiração que ao fim nos persuade
Que a vida mais não é que ilusão de ida.
Porém, nesta ilusão como num sonho,
No final, de alma e coração me ponho
Como quem no dormir encontra a vida.
Só que é dormir, porém, bem acordado,
Pronto a soltar revolto o eterno brado
De quem viu a promessa ao fim traída.
520 – Recuo
Quando há poder de recuo,
Sabemos que então podemos
Controlar do mundo o amuo.
Duma derrota os extremos
São tal qual a puberdade:
É confusa, incontrolável…
Mas é um bem inestimável,
- Traz-nos a maturidade.
521 – Tempo
O tempo demora ausente
Nas dimensões que inauguro
E perco por todo o lado:
Difícil vive o presente,
Ridículo, no futuro,
Impossível, no passado.
522 – Adolescência
É talvez a adolescência
A forma de a natureza
Preparar de vez a ausência:
Para os pais, com singeleza,
Colherem de bom feitio,
Depois, um ninho vazio.
523 – Preocupações
Há uma forma de nos vermos
Livres de preocupações:
É a suar, suar em termos.
É no físico labor
Que as mentes e os corações
Lubrificam o teor
Dos dilemas a enfrentar.
Então ficarão de vez,
Consumado o entremez,
Fáceis de manusear.
524 – Religioso
Alguém que é religioso
Tem a vida mais saudável,
Doutrem colhe apoio e gozo,
Mais lhe a fadiga é aceitável.
O optimismo e a esperança,
De imunidade o sistema,
O que de melhor alcança
É melhorar-lhes o lema.
Com o que a religião lida,
Neste cômputo final,
É com prolongar a vida,
Logo na vida mortal.
525 – Esquimós
Os esquimós projectaram
Nos iglus mais ancestrais
Abrigos que desarmaram
As nossas armas letais:
De bombas são mesmo à prova!
Sem alta tecnologia,
Sem computador se inova
Rumo a nova fantasia.
De morteiros e granadas
Protegem e camuflagem
São do sensor das guiadas
Voadoras na viagem.
Igualmente superiores
São em múltiplos aspectos
Aos abrigos protectores
Dos ataques contra os tectos.
E são lugar aprazível
Para passar uma noite,
Depositar combustível,
Mantenças de quem se acoite.
De helicópteros as bases
Ou de campo os hospitais
Como os quartéis-generais
Melhor que iglus não os fazes.
Assim é que o mais antigo
É melhor que o mais moderno:
As raízes são o abrigo
Do germe de nós superno.
526 – Influência
Se quiser ter influência,
Primeiro terei de ouvir,
Compreender noutrem a ausência,
E só depois influir.
O segredo mais banido
Doutrem é a necessidade
Que tem de ser entendido:
Se o ouvir, tenho a verdade!
Se entendê-lo conseguir,
Mesmo sem obrar mais nada
Já rasgarei uma estrada:
- Estarei fundo a influir!
527 – Mistura
“O professor vai dizer
Quando está certo ou errado.”
O garoto, ao tal só ver,
Confunde o significado
Com o facto a recolher,
Mistura teoria e dado.
Reunir a informação
Sobre como a natureza
Agirá, eis a questão.
É pouca toda a esperteza
Para uma interpretação,
Pois nunca sai da incerteza.
O garoto, mal formado,
Sem isto haver entendido,
Ficará de vez de lado
Do que faz aqui sentido:
Irá crer seguro e certo
Disto o que nunca está perto.
528 – Pergunta
Se um miúdo te pergunta
De noite porque escurece,
“Vamos ver!” – diz-lhe e ajunta:
“Que diferença acontece?”
Se onde moram as abelhas
Quer saber, põe-te a segui-las,
Delas leva-o pelas quelhas,
Que um sábio nele perfilas.
Um cientista vem a ser
Aquele que cultivares
Ao dizer-lhe: “Vamos ver”,
Que a ver é que há luminares.
529 – Juntos
Bem e mal provêm juntos
Dum único e igual pacote.
Acerca de alguém pergunto-os
E ninguém ilude o bote:
Todo honesto e todo vil
Não há como alguém ser tido,
Ser homem, dono servil,
É mistura de sentido.
Não é como num piano
De teclas pretas ou brancas.
Quando tocas, todo o ano,
Teu canto a todas arrancas.
530 – Impacto
De agir o maior impacto
Contra o envelhecimento
Não é combater o facto,
Mas servir-lhe o linimento.
Se envelhecer equivale
A perder capacidade,
Quem age então é que mal
Envelhece de verdade.
531 – Sintonia
Tratar os outros como gostaria
De ser tratado nem sempre resulta
No local de trabalho: a sintonia
Requer, atenta, a reversão oculta.
Quando se trata desta relação
Importa compreender ambos os lados:
Tratar os outros como gostarão
Igualmente eles de serem tratados.
532 – Erros
Se cem erros cometer alguém
Antes de uma coisa aprender,
Cento e uma aprendeu também.
Se, à primeira, aprender uma qualquer,
Aprendeu apenas uma:
- Não vale coisa nenhuma!
533 – Tempo
O tempo se torna garço,
O campo, ao sol, meigo e terno,
Canta um melro no balseiro:
A grande missão de Março
É a de esgotar um Inverno
Que não coube em Fevereiro.
534 – Gelado
Quando a vida te estiver
A deixar mesmo gelado,
Faz uma coisa qualquer
Que aumente o calor da luta.
Vale a pena este cuidado:
O êxito quer disputa.
535 – Receio
Quando não tenho receio
É que começo a viver,
Seja na dor ou no enleio,
Grato por quanto advier.
No pecado ou na virtude,
Vivo o instante a que me grude.
536 – Presente
A felicidade é raro
Servir como recompensa.
Mais frequente é, se reparo,
Presente em que ninguém pensa:
Por inteiro, em qualquer lado,
Cai do céu inesperado.
537 – Raio
Eu não cuido que tenhamos
De felicidade um raio
Uma vez e nunca mais.
Ela em nós assenta os tramos
E virá tal flor de Maio:
As estações são fatais!
538 – Menu
Ser feliz é o que resulta
Do esforço que nós fazemos
Quando o menu conhecemos
Por trás de que ele se oculta:
Gostos simples de alicerce,
Um certo grau de coragem,
Despojamento que verse
Do trabalho sobre a imagem,
Com a limpa consciência.
Ser feliz já não é sonho:
É a certeza da evidência
De estar eu onde me ponho.
539 – Adversidade
Conta com a adversidade
Inevitável da vida.
Olha-a com frontalidade:
“Não me levas de vencida,
Que, seja lá como for,
Não me tocará quenquer.
- Hei-de ser que tu maior,
Nunca me podes vencer!”
540 – Êxito
Quem êxito alcança grande
É quem pensa no futuro,
Cria a imagem que o comande,
Lança-se ao trabalho duro
Para o materializar:
Enche aqui, corta acolá,
Salta o canto, vê o algar,
Mas em tudo o que fará,
Persistindo em persistir,
Fará mas é construir
E construir, construir…
541 – Invade
Miséria e deselegãncia
Como evitar sendo pobre?
Reduzindo na ganância
Quem de riqueza se cobre.
Eis como a necessidade,
Se partilho, equitativo,
Um homem já não invade
E o mundo fica mais vivo.
542 – Borboleta
Que feliz é a borboleta
Que se escapa sempre à justa
Se a persigo na valeta!
Ser feliz, contudo, custa
Sentar fatigadamente
E deixar que pouse em nós
A borboleta inocente.
Dela quando corro após,
Fugir-me-á fatalmente:
- Sabedoria secreta
Que me ensina a borboleta.
543 – Pedra
A pedra filosofal
É só a do contentamento:
Transmuda em oiro, afinal,
O que toca no momento.
O contentamento é ter
Vara de condão que sobre:
Pobre é rico, se o tiver,
E o rico sem ele é pobre.
544 – Bênçãos
Aceita a dor, a alegria,
Apaga a mágoa, a saudade.
Então a melhor podia
Vir das bênçãos duma idade:
- Se tivera de viver
Outra vez a minha vida,
Toda a houvera de fazer
Por esta exacta medida.
545 – Remorsos
Há quem goste de remorsos
Porque às almas rigorosas
Nada requer mais esforços
Do que as faltas dolorosas
Que, por si reconhecidas,
Teimam em ver ressarcidas.
546 – Velocidade
A mais-valia da vida
Não é uma questão de idade.
É a vitória conseguida
De a mantermos comedida
Em branda velocidade.
547 – Verdades
Há sempre duas verdades
Dum homem: se ele se entrega
Ou se joga na estratégia.
No jogo das liberdades
Esta tem a paga régia.
Aquela, calcada, nega
Que algum dia algum auxílio
Nos liberte enfim do exílio.
548 – Medo
Medo do desconhecido,
Medo do que se conhece…
Perigoso, incerto, aquele
Pode, afinal, ser gerido.
Este, não: ninguém esquece
O que lhe rasgou a pele.
549 – Lisboa
Lisboa, pelo sol alto,
Fica ingénua, teatral,
Desce em degraus para o palco,
Seduz e encanta, animal.
Depois, de noite, é a princesa
Que, por terraços de luz,
Do rio desce à beleza
Com o adorno que traduz,
Num ritual elegante,
Que se entrega a seu amante.
550 – Sós
A sós, cada qual de nós
Quando decide, decide:
É um canto a uma só voz,
Sem ouvido que convide.
Doutrem a inútil presença
Nem de jogador é lance:
Nem calor traz à sentença
Nos abismos quando a alcance.
A marca da decisão
É fatal, desta maneira:
Ninguém mais terei à beira,
Decido na solidão.
551 – Cimeira
Há quem escolha morrer
Como uma aposta cimeira
Na mais profunda verdade:
- Não é vergonha sofrer
Quando é a única maneira
De alguém dar felicidade.
552 – Creme
À luz verde, os candeeiros,
Na minha rua, ao alvor,
São creme de nevoeiros
Dum alvacento palor,
Sobremesa derramada
Pelos cantos derretida,
Onde vago sobrenada
O pedrascal da avenida
Que já nasceu mal talhada.
E a minha própria morada,
Sozinha a meio da rua,
Tem ar de não ser verdade.
Porém, na neblina nua,
É o tecto da soledade
A abrigar, suficiente,
Quem é tão só que é somente.
553 – Rotineiros
Os sentidos rotineiros,
Tímidos, porém, felizes
Com os carinhos vezeiros
Em habituais carizes,
Receiam qualquer pesquisa,
Complicações libertinas.
Bem comportados, desliza
Por eles o que destinas.
Não usando de disfarce,
Calculam jamais ferir-se:
Lentos sendo ao inflamar-se,
Serão lentos a extinguir-se.
Cautela, porém, atento!
Todos quantos se aproximam
Suspeita de mau intento.
Vê depois que em ti se arrimam
Teus inimigos piores.
A fera que em ti habita
Adormentada em torpores
Vai ser a tua desdita.
Esqueceste que ela hiberna,
Fortifica-se, acredita,
E vai-te passar a perna:
- Vira-te, quando acordar,
É de pernas para o ar!
554 – Vagabundo
Vagabundo a andar à roda
Sem sair do mesmo sítio
Esta Humanidade é toda.
Seja destino, ou concite-o
A demanda duma boda
Prometida e nunca dada,
As partidas entristecem
Como inebriam por nada.
As paisagens que virão
São aquelas que enaltecem,
Doem-me no coração
As que deixo para trás.
Um pouco de mim se prende
Em tudo quanto atravesso,
Campos ressonando em paz,
Céus cujo azul mal atende,
Mar com neblinas do avesso…
Tão apaixonadamente
Me agarro que me parece
Que atrás de mim, aos milhares,
Fantasmas ficam de gente
Que sou eu e que me esquece
Ao dissipar-se nos ares.
E o derradeiro comigo
Fantasma mais semelhante,
Da lareira ao quente abrigo
É o que se senta diante,
Sonhador, mui atinado,
Sobre um livro debruçado
Que ignora no mesmo instante.
Vagabundo em todo o lado,
Sou da Humanidade um dado,
Para trás, para diante
Eternamente jogado.
555 – Crítica
Foi a crítica, do Ocidente
A mais fértil criação.
Negação por acidente
Ou até destruição,
O que é vero ponto assente
É ser a desobstrução
Da via que aos mais capazes,
Assente em sólidas bases,
Permite a reconstrução
Dos sonhos os mais audazes.
556 – Arte
Uma obra de arte é um rosto
Fisicamente acessível
Do sentido de que gosto,
Do sentido do invisível.
Todo o sentido é vivido
No invisível do sentido.
557 – Germe
Um herói traz nele
O futuro em germe.
A lei (que revele
De que ser é a derme
Que vai dar à vida
A nova unidade)
Nele ainda não lida,
Busca a identidade:
Vai lenta crescer
Dos húmus que houver.
558 – Lemos
Não lemos uma pintura,
Um poema, um monumento,
Como lemos um tratado
Em que uma gestão se apura,
Um matemático aumento…
É leitura doutro lado.
Compreender uma obra de arte,
Mais que obra de pensamento
Quer que nela tome parte
De homem o inteiro elemento:
Quer cabeça e coração,
Quer da acção o sangue vivo,
Quer o sonho e a maldição,
Eu todo em meu corpo activo.
Requer-me a totalidade
E abre-me a uma imensidade.
559 – Reino
Não chega ao Reino a conquista
Mas o desapossamento:
Do pequeno eu a lista
De bens e de rendimento
Esvaziá-la e dos desejos
Parciais, fora do todo.
Para alguns criar ensejos
Ao porvir em que já rodo,
Àquela presença em nós
De algo que nós nunca somos,
Que incessante quer dar voz
À maturação dos pomos
Do acto cultivador
Que cria incessantemente,
- Que sempre me torna actor
De mim, feito dele agente.
560 – Transcende
Transcendemos tudo o mais
Na natureza e na História
E vemos nisto os sinais
Dum ser que nos deu tal glória.
Mas quem nos transcende é um acto
Criador que testemunha
A presença em nós de facto
Do que ao fim ninguém dispunha.
Não se capta nos sentidos,
Também não pelo conceito…
- Mas fico só com ruídos
Quando seu canto rejeito.
561 – Sede
Deve a sede de justiça
Ser clamada e reclamada
Até que ela venha à liça
E a sede fique apagada.
É que um só grito na noite
Pode despertar quem dorme
Mas, se a outros não se afoite,
Volta o sono mais enorme.
Criar, por breves momentos,
Expectativa, incerteza,
Sem mais passos, argumentos,
De vez mata o que se preza.
562 – Mapas
Nos mapas se marcam terras,
Nos mapas se marcam povos,
Nos mapas se marcam guerras…
- Mas não se marcam as serras
Que alteiam ideais novos.
563 – Voz
Quando a voz pobre protesta
Goza de invisível força,
Amedronta tanto à testa
Que o que não faz se reforça
E provoca o que faria
Se ocorrera qualquer dia.
564 – Bate
Bate o nacionalismo remoçado
No internacionalismo mal nascente,
A raça novamente põe de lado
Da Humanidade a ideia agora ausente.
O clubismo, do estádio na bancada,
O apreço, o universal desportivismo
Na claque adversa mata, de assentada:
Renascente na rota camuflada,
Prolifera a escalada do fascismo.
565 – Azul
Quem é que pintou os céus
Com este azul transparente?
O pincel atirou Deus
Para as mãos de Fra Angélico
Que detém secretamente,
Para nosso olhar famélico,
A combinação da cor
Que, de fria, dá calor!
566 – Maquiavel
Defende Maquiavel
Que um súbdito se assassine
Se houver mister de tal pele.
Mas o príncipe previne
De que nas propriedades
Nada bula e que se incline
A ver as facilidades
Com que da mente o demónio
Nos apaga as crueldades,
Mesmo até dum pai a morte,
Mas nunca do património
A perda que tal importe.
Tão crus talhamos a sorte:
Dos bens pende em matrimónio,
Que é que ao divórcio a exorte?
567 – Escrínio
Tem o que for amoral
Uma marca de fascínio
Sobre um intelectual
Que a jóia perdeu do escrínio:
Este invejará demente
Os homens que os corpos usam
Sem escrúpulo nem mente,
Nada lhe negam e abusam.
É que um intelectual
Se engana às vezes de lado:
Tanto busca um ideal
Que acaba sendo castrado.
568 – Freio
Se não foram inventores,
Engenheiros, cientistas
E os mais empreendedores
Que era de nossas conquistas?
Diante duma aspereza,
O Homem ocidental,
No desconforto a braveza,
À fera da natureza
Pôs-lhe freio entre o varal.
Com o arreio na mão
Saltou da contemplação,
Vence passo a passo o luto
Não olhando ao absoluto,
Enfrentando o inimigo
Em lugar do próprio umbigo.
Doutro modo havia a peste
Como a morte prematura,
Não os cómodos que investe
Ao mundo dar com fartura.
Assim melhorou a vida
Como a prolongou também.
Fica a magia delida
Na prosa que a tal convém?
Nas jeiras por onde lavras
Há poesia em quanto poisas:
Há poesia nas palavras
Como nos factos e coisas.
Questão é que a compreendas,
Que a fruas gratuitamente
E não que a compres nem vendas
Como ages actualmente.
569 – Hora
É hora de decidir
Que será mais importante:
Levar tudo a progredir,
Empurrar para diante
Tanto povo a se esvair,
Ou continuar aumentando
A riqueza a qualquer preço,
Meus padrões de vida quando
Nem sequer sei já o que meço?
A minha felicidade
Assim solitariamente
É tão triste de verdade
Que é só feliz quando mente.
570 – Rótulo
Socialista, se quiser,
Utópico, porventura,
Humanista, tal quenquer
Que liberal se afigura…
O rótulo que me aplique
Que me importa, que interessa?
Preocupa-me é que fique
A justiça bem impressa
No tecido social.
Tudo o mais é diversão
Que só pode fazer mal
Se daquilo é distracção.
Portanto, ponto final!
571 – Brecha
A brecha da culpa humana,
Em nosso estado mortal
Rasga funda e longe emana,
De modo que cada qual
Jamais vai lograr tapá-la.
Bem guardada e vigiada
Pode ser. Dela na vala
O inimigo busca a entrada
De novo na cidadela
E pode ir mesmo, no assalto,
Outro rombo rasgar nela,
Erguendo o pendão bem alto,
Pois na muralha arruinada
A ferida permanece
E do inimigo à passada
O distraído falece.
572 – Corrente
Era o tempo esta corrente
Onde me sento a pescar.
Bebo as águas lentamente,
Correm águas devagar.
Descubro o leito de areia
Que é muito pouco profundo:
Água em turbilhões passeia
Por sobre um parado mundo.
Correm águas, sopra a brisa
Mas o estranho foi que vi:
A correnteza desliza,
O rio não sai dali!
573 – Camponês
Vantagem de camponês
É de ser obediente
Ao sol e à chuva do mês,
Nunca vai contra a corrente.
Por isso é que, sem arnês,
Nas ideias renitente,
Desarmado como o vês,
- É quem é mais resistente!
574 – Medo
Não há nada que por si
Seja mau ou seja errado.
É o medo de errar aqui
Que mais erra em todo o lado.
O medo leva a deixar
De semear os quintais
Por se pôr a ponderar
Que hão-de chegar os pardais.
575 – Pardais
Os pardais a cantar e a mesa posta
Enquanto lava a loiça e se penteia,
O acordar da manhã, o sol na encosta
A escorrer em mel morno da colmeia…
O rio a passear pelas barcaças,
Mastros e cascos a correr de leve…
- A corrente da vida, funda, às braças,
Fluindo dentro em im, eterna e breve.
576 – Paciência
Com o eco das vitórias celebradas
Entretêm do povo a paciência
A que restam só almas desnudadas
Que nada desvincula da evidência
De que os loiros a carne jamais dão
De que famintos se alimentarão.
O povo desde sempre então murmura
E a coroa jamais fica segura.
577 – Consolador
O que é mais consolador
É que eu, nós, o monte, o sol,
Somos do mesmo teor,
Do Todo enchemos o rol.
Da mesma lei governados,
Rolando no mesmo fim,
Jamais somos torturados
Por responsáveis, enfim.
Somos só conformações
Que uma força alheia impele:
Que descanso das questões
Que nos vão rasgando a pele!
578 – Queda
Não foi a queda de Adão
A origem de todo o mal,
Foi de erguer as mãos do chão,
Ter-se em pé como quem vale.
E é porque Eva recolheu
De árvore a fruta nos ramos,
Não na terra onde caiu,
Que hoje em pé tão mal nos damos.
Das quatro patas libertos
Sonhámos voar um dia.
- Não fôramos tão espertos,
Nem do mal alguém sabia!
579 – Não
O que é mais consolador
Do Universo na questão
É o facto de não se impor
A ninguém, seja quem for,
Que lhe encontre a solução.
580 – Via
Aquilo que concebemos
Determina o que faremos:
A ignorância combater,
Mais do que ter a verdade,
Questão de ser ou não ser
É da personalidade.
É, pois, a sabedoria
Que nos abre ou fecha a via.
581 – Divino
O divino realiza
Ordem e conservação
E mais além se divisa,
Move-se, é revolução.
Assim entalha o destino
As linhas de nossa mão:
Só nos contrários atino
Com o meu rumo de acção,
Dum só lado desafino
A minha equilibração.
582 – Além
O valor das obras de arte
Conserva-se para além
Da história de que são parte:
Transcende-a, como convém.
Jamais elas são reflexo,
Trepam um degrau acima,
Consumando o vago amplexo
Do porvir com o bom clima.
A nossa alienação
Nunca tão total nos trava
Que não possamos à mão
Cobrir o fosso que cava.
583 – Supremo
De Deus o supremo fim
É criar. Insatisfeito
Há-de ficar, deste jeito,
Enquanto não haja em mim,
Por inteiro e acabado,
Dele o Filho bem gerado.
584 – Alibi
Qualquer imagem que um homem
De Deus fizer para si,
Não é Deus, todas o tomem
Embora como alibi.
Uma questão se coloca:
O que esta celebração
Vai fazer sair da toca
Na vida como na acção,
Cada qual como esvazia
Seu eu pequeno, mesquinho,
Para o espaço encher do dia
Que é o Deus do pão e do vinho.
585 – Selecção
Crua e cega é a selecção:
Em passeio aleatório
Se encaminha a evolução,
Promontório a promontório,
Por entre necessidades,
Rumo a possibilidades.
Sem roteiro nem senhor
Ou com fio condutor?
Que maldição nem sequer
Suspeitar como saber!
586 – Maravilhas
Técnicas e científicas
Maravilhas ao dispor
Que jamais foram sonhadas
Pelas gerações passadas.
E que exigências terríficas,
Que problemas se vão pôr
Quando, delas oprimidos,
Já se perdem os sentidos!
587 – Caruncha
Caruncha a pedagogia:
Tornaste-te instituição,
Serves, serves dia a dia
Rotina e satisfação,
Seguras quem se confia…
Que é que nisto falharia?
- Já não dás inspiração!
588 – Contas
Julgar as vidas humanas
É prestar contas ao tempo
Da forma como as semanas
Gastei momento a momento.
O tempo é que se encarrega
De fazer justiça ao homem.
Sou mero peão de brega:
Às arenas os que as domem
Como é que farão a pega,
Se afinal este juiz
Sou mais eu que quanto fiz?
589 – Gaveta
Tudo acabou com a morte,
Tudo arrumado de vez
Na gaveta, cuja sorte
É nem haver um talvez.
Torná-la a abrir é impossível,
Que se deitou fora a chave.
- É por isto que é credível
Como viver é tão grave!
590 – Instante
Quem me dera que este instante
Nunca mais nos acabara!
Mas o instante dura o instante,
Logo no alçapão tombara
Do tempo que enfim o engole,
Tal qualquer fruto maduro.
Depois já nada ali bole:
- E em tal nada me penduro!
591 – Pena
Os infelizes dão pena
E os felizes ainda mais,
Não é que estas mais pequena
A pena de penas tais.
É que ter pena é tão triste
E tão infinitamente
Que, ao fim, a pena que existe
É a pena que pena sente.
592 – Palavras
Saem da boca as palavras
E não dizem nada, nada
Dos sentidos que tu lavras
Quando rasgas tua estrada.
Palavras saem da boca
E são soltos animais
Que ao acaso o instinto toca,
Não o rumo onde tu vais.
A palavra é traiçoeira:
Se a não digo, não é nada;
Se a disser, é a primeira
A espetar-me uma facada.
593- Herói
Um herói que for decente
A si nunca diviniza,
Nunca deixa a demais gente
Degradando-se, imprecisa,
A incensá-lo eternamente.
Deste outro ninguém precisa,
Não é herói, é um prepotente:
Não liberta, por divisa,
Corta-nos as asas rente.
594 – Tiro
Não dispararei um tiro,
Não estou em campo algum!
Dos homens sou, no retiro,
Com os homens, um a um,
Um amparo na miséria,
Entreajuda de aflitos,
Uma agonia sem féria,
Uma irmandade de gritos…
No meio dos estertores
Quem cuida em tirar partido?
Encarno todas as dores,
- Não sou campo, sou sentido!
595 – Insectos
Os homens, estes insectos
Uns aos outros se comendo,
Sobre o monte de dejectos
Da Terra que mal defendo…
A julgá-la grande, grande
E afinal tão pequenina,
Se a perspectiva comande
Do Universo na colina!
Ah, como somos tão nada,
Tão nada à berma da estrada!
596 – Herdou
Quem herdou um nobre estado
Bem pouco, ao fim, se lhe deve,
Que a fortuna que haja herdado
É por acaso que a teve.
Bem mais fizeram aqueles
Que, tendo a sorte contrária,
Com manha e rasgando as peles,
Domaram a sina vária.
Se chegaram a bom porto,
É que remaram com força.
A vida não é um aborto
A quem na vida se esforça.
597 – Custa
Quando alguém morre o que custa
Não é o corpo abandonar,
É o sonho que não se ajusta
A quanto sonhou sonhar.
A morte agarrada a mim…
Porque cravo unhas na vida
Quero o sonho até ao fim
E rejeito a despedida.
Ao que cada qual se prende
É a suas aspirações,
Não a um corpo que não rende
Matéria para ilusões.
Vede que a vida aborrece
Mas cada qual em seu imo
Aquilo que não esquece
É que acha nela um arrimo.
Quando a ilusão cai por terra
Fica sempre a aspiração
De sonhar que além da serra
Espreite outro vale chão.
598 – Quimicamente
Quimicamente produz
A substância da matéria
Vida, morte, amor ou luz,
Com a cegueira mais séria.
Da vida, pois, o destino
É sem destino viver,
Cumprindo seu fim mais fino
Sem mais do que apenas ser.
Ridículo nesta sorte
É que é viver para a morte.
Ora, o que à vida convém
Fica sempre mais além…
599 – Campas
As massas para as campas retiraram
Que pelas próprias mãos se já escavaram.
Perderam o contacto do real
Para além do sustento corporal.
Do espírito é evidente que deixou
Este corpo de ser templo do voo.
Deste modo é que o homem então morre
Para o mundo – e o Criador a quem acorre.
Na desintegração, o mal vivido
À vida faz perder todo o sentido.
O agir desenfreado o que efectiva
É cada vez mais pôr a chama viva
Que a actividade insólita transporta
Da breve Humanidade em breve morta.
600 – Coveiros
Hoje são povos inteiros
Os expulsos dos países,
Chacinados. E os coveiros
Torcem ao mundo os narizes,
Tocados nos sentimentos
Mas ineptos a intervir.
De milhões os sofrimentos
Não nos logram afligir
Mais do que um vulgar incêndio
Num qualquer jardim zoológico.
O medo tolhe o dispêndio,
Ter ânsia não é ser lógico.
O homem que planifica,
Autómato deificado,
Pelos tronos pontifica,
Cerca-nos por todo o lado.
O seu papel aparente
É de vez se destruir,
Levando, quando cair,
Atrás de si toda a gente.
601 – Morre
Morre, morre mil, mil vezes,
Mas conhece um homem vivo,
Não o mudes nas soezes
Questões que escondes no arquivo.
Nós não somos um problema,
Somos carne, somos osso,
Gritamos, mas o teu lema
É jamais olhar o fosso.
Não ganharás, porém, nada
No espírito, na matéria
Se tua alma geminada
Não vês em minha miséria.
A verdade mais gritante
É que acabarás exangue:
Andas já morto diante
De tua carne e teu sangue.
602 – Faltosos
Barreira negra do medo,
Tão alta, tão imponente,
Muitas vezes tela fina,
Rasga-se em menos dum credo,
Ou de tão alta se inclina
Que cai estrondosamente.
Por vezes, um toque a rompe.
Outras há que, em desespero,
Meto-lhe ombros do que quero
E a raiva aos portões irrompe.
O mais vulgar é o anseio
Fazê-la cair ao meio.
E nós sempre tão medrosos
A perder, dia após dia,
Da vida todos os gozos,
Sempre à chamada faltosos
Do que a vida prometia!
603 – Oportunidade
Por que há-de a oportunidade
Bater sempre antes de entrar,
Quando a tentação me invade
E entro sempre sem bater?
Ou errámos de lugar,
Ou então errei de ser!
604 – Curandeiro
Meus dedos de curandeiro
Curam-te a dor de cabeça
Que eu usei quando, primeiro,
Dela fiz, interesseiro,
De engrenagem mera peça
Que sem ti existiria
A doer de ti vazia.
Meus dedos de curandeiro
Não te vão servir de guia:
Nem pressentem o teu cheiro
Na dor do que te doía.
605 – Assustador
Cada qual faz o melhor
E não é possível mais.
É um bocado assustador
Que a vida por onde vais
Em tudo decorra assim.
Êxito como antever,
Que ao trabalho dês bom fim,
Ou que um estudo qualquer
Te abra a porta nem sequer
Revelada a um serafim?
Tentaste, tentei e é tudo.
A cada passo tropeço,
Sem armas combatemos nem escudo,
Bem parco é o final sucesso,
Os dias atropelam em excesso…
Não é mundo o mundo: é mudo!
606 – Decadente
Um país que foi tamanho,
Quanto mais for decadente,
Mais acredita ter ganho
Na vã grandeza que ostente.
E nesse passado morto
Onde a saudade viceja
Nem mais horto nem mais porto
Vai encontrar que se veja.
E por isso a novidade
Nele não encontra abrigo:
Grandeza que nasceu há-de
Ter a marca do inimigo.
E então seu novo tamanho
Será sempre a pequenez:
Nunca será de seu ganho
O mundo novo que fez.
607 – Fita
Uma vida morta a meio
É uma fita de cinema
Quebrada, de que receio
Que ninguém perceba o tema.
E depois desta avaria
Nem sequer há já retorno
Do bilhete que auferia
O dono deste suborno.
E nos perdidos e achados
Ninguém entregou os dias
Perdidos quando encontrados:
Vivê-los? Que fantasias!
608 – Partiria
Para Londres partiria,
Para o Rio de Janeiro,
Em Bruxelas principia
Ou no Havai, por derradeiro…
Sempre em busca duma terra
Mais livre e mais generosa,
Mais complacente, sem guerra.
A meta com que se cosa
Nunca a transpõe, vencedor:
Não foge só dum país,
Da pasmaceira ou bolor,
Dos egoísmos senis.
Dele mesmo anda a fugir,
Duma imagem enquistada
Que não logra corrigir,
Pedra em que deu a topada.
Não se podendo aceitar,
Não se lobriga na montra,
Perde-se em todo o lugar:
Procura e nunca se encontra.
609 – Todo
Muito os homens julgam mal
Quando tomam pelo todo
Dele o que é vago sinal
Que o não dá de nenhum modo!
Confundido com a parte
Já se o todo não reparte
E permanece escondido
O derradeiro sentido.