SEXTO  VERSO

 

 

ACERTAMOS  AS  VOZES  QUE  SONHEMOS

 

 

Escolha um número aleatório entre 519 e 609 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

519 – Acertamos as vozes que sonhemos

 

Acertamos as vozes que sonhemos

No concerto de quanto nos maltrata,

Nos delimita os sonhos, no-los ata

Na amurada do barco já sem remos

 

Por onde a vida curta deslizemos

No rio interminável de oiro e prata

Que mais tarde ou mais cedo nos acata,

Sem desaguar jamais lá nos extremos.

 

Trepar no amor, cair na realidade,

Respiração que ao fim nos persuade

Que a vida mais não é que ilusão de ida.

 

Porém, nesta ilusão como num sonho,

No final, de alma e coração me ponho

Como quem no dormir encontra a vida.

 

Só que é dormir, porém, bem acordado,

Pronto a soltar revolto o eterno brado

De quem viu a promessa ao fim traída.

 

 

520 – Recuo

 

Quando há poder de recuo,

Sabemos que então podemos

Controlar do mundo o amuo.

Duma derrota os extremos

São tal qual a puberdade:

É confusa, incontrolável…

Mas é um bem inestimável,

- Traz-nos a maturidade.

 

 

521 – Tempo

 

O tempo demora ausente

Nas dimensões que inauguro

E perco por todo o lado:

Difícil vive o presente,

Ridículo, no futuro,

Impossível, no passado.

 

 

522 – Adolescência

 

É talvez a adolescência

A forma de a natureza

Preparar de vez a ausência:

Para os pais, com singeleza,

Colherem de bom feitio,

Depois, um ninho vazio.

 

 

523 – Preocupações

 

Há uma forma de nos vermos

Livres de preocupações:

É a suar, suar em termos.

É no físico labor

Que as mentes e os corações

Lubrificam o teor

Dos dilemas a enfrentar.

Então ficarão de vez,

Consumado o entremez,

Fáceis de manusear.

 

 

524 – Religioso

 

Alguém que é religioso

Tem a vida mais saudável,

Doutrem colhe apoio e gozo,

Mais lhe a fadiga é aceitável.

 

O optimismo e a esperança,

De imunidade o sistema,

O que de melhor alcança

É melhorar-lhes o lema.

 

Com o que a religião lida,

Neste cômputo final,

É com prolongar a vida,

Logo na vida mortal.

 

 

525 – Esquimós

 

Os esquimós projectaram

Nos iglus mais ancestrais

Abrigos que desarmaram

As nossas armas letais:

 

De bombas são mesmo à prova!

Sem alta tecnologia,

Sem computador se inova

Rumo a nova fantasia.

 

De morteiros e granadas

Protegem e camuflagem

São do sensor das guiadas

Voadoras na viagem.

 

Igualmente superiores

São em múltiplos aspectos

Aos abrigos protectores

Dos ataques contra os tectos.

 

E são lugar aprazível

Para passar uma noite,

Depositar combustível,

Mantenças de quem se acoite.

 

De helicópteros as bases

Ou de campo os hospitais

Como os quartéis-generais

Melhor que iglus não os fazes.

Assim é que o mais antigo

É melhor que o mais moderno:

As raízes são o abrigo

Do germe de nós superno.

 

 

526 – Influência

 

Se quiser ter influência,

Primeiro terei de ouvir,

Compreender noutrem a ausência,

E só depois influir.

 

O segredo mais banido

Doutrem é a necessidade

Que tem de ser entendido:

Se o ouvir, tenho a verdade!

 

Se entendê-lo conseguir,

Mesmo sem obrar mais nada

Já rasgarei uma estrada:

- Estarei fundo a influir!

 

 

527 – Mistura

 

“O professor vai dizer

Quando está certo ou errado.”

O garoto, ao tal só ver,

Confunde o significado

Com o facto a recolher,

Mistura teoria e dado.

 

Reunir a informação

Sobre como a natureza

Agirá, eis a questão.

É pouca toda a esperteza

Para uma interpretação,

Pois nunca sai da incerteza.

 

O garoto, mal formado,

Sem isto haver entendido,

Ficará de vez de lado

Do que faz aqui sentido:

Irá crer seguro e certo

Disto o que nunca está perto.

 

 

528 – Pergunta

 

Se um miúdo te pergunta

De noite porque escurece,

“Vamos ver!” – diz-lhe e ajunta:

“Que diferença acontece?”

 

Se onde moram as abelhas

Quer saber, põe-te a segui-las,

Delas leva-o pelas quelhas,

Que um sábio nele perfilas.

 

Um cientista vem a ser

Aquele que cultivares

Ao dizer-lhe: “Vamos ver”,

Que a ver é que há luminares.

 

 

529 – Juntos

 

Bem e mal provêm juntos

Dum único e igual pacote.

Acerca de alguém pergunto-os

E ninguém ilude o bote:

 

Todo honesto e todo vil

Não há como alguém ser tido,

Ser homem, dono servil,

É mistura de sentido.

 

Não é como num piano

De teclas pretas ou brancas.

Quando tocas, todo o ano,

Teu canto a todas arrancas.

 

 

530 – Impacto

 

De agir o maior impacto

Contra o envelhecimento

Não é combater o facto,

Mas servir-lhe o linimento.

 

Se envelhecer equivale

A perder capacidade,

Quem age então é que mal

Envelhece de verdade.

 

 

531 – Sintonia

 

Tratar os outros como gostaria

De ser tratado nem sempre resulta

No local de trabalho: a sintonia

Requer, atenta, a reversão oculta.

 

Quando se trata desta relação

Importa compreender ambos os lados:

Tratar os outros como gostarão

Igualmente eles de serem tratados.

 

 

532 – Erros

 

Se cem erros cometer alguém

Antes de uma coisa aprender,

Cento e uma aprendeu também.

Se, à primeira, aprender uma qualquer,

Aprendeu apenas uma:

- Não vale coisa nenhuma!

 

 

533 – Tempo

 

O tempo se torna garço,

O campo, ao sol, meigo e terno,

Canta um melro no balseiro:

A grande missão de Março

É a de esgotar um Inverno

Que não coube em Fevereiro.

 

 

534 – Gelado

 

Quando a vida te estiver

A deixar mesmo gelado,

Faz uma coisa qualquer

Que aumente o calor da luta.

Vale a pena este cuidado:

O êxito quer disputa.

 

 

535 – Receio

 

Quando não tenho receio

É que começo a viver,

Seja na dor ou no enleio,

Grato por quanto advier.

 

No pecado ou na virtude,

Vivo o instante a que me grude.

 

 

536 – Presente

 

A felicidade é raro

Servir como recompensa.

Mais frequente é, se reparo,

Presente em que ninguém pensa:

Por inteiro, em qualquer lado,

Cai do céu inesperado.

 

 

537 – Raio

 

Eu não cuido que tenhamos

De felicidade um raio

Uma vez e nunca mais.

Ela em nós assenta os tramos

E virá tal flor de Maio:

As estações são fatais!

 

 

538 – Menu

 

Ser feliz é o que resulta

Do esforço que nós fazemos

Quando o menu conhecemos

Por trás de que ele se oculta:

 

 

 

Gostos simples de alicerce,

Um certo grau de coragem,

Despojamento que verse

Do trabalho sobre a imagem,

 

Com a limpa consciência.

Ser feliz já não é sonho:

É a certeza da evidência

De estar eu onde me ponho.

 

 

539 – Adversidade

 

Conta com a adversidade

Inevitável da vida.

Olha-a com frontalidade:

“Não me levas de vencida,

Que, seja lá como for,

Não me tocará quenquer.

- Hei-de ser que tu maior,

Nunca me podes vencer!”

 

 

540 – Êxito

 

Quem êxito alcança grande

É quem pensa no futuro,

Cria a imagem que o comande,

Lança-se ao trabalho duro

Para o materializar:

Enche aqui, corta acolá,

Salta o canto, vê o algar,

Mas em tudo o que fará,

Persistindo em persistir,

Fará mas é construir

E construir, construir…

 

 

541 – Invade

 

Miséria e deselegãncia

Como evitar sendo pobre?

Reduzindo na ganância

Quem de riqueza se cobre.

 

Eis como a necessidade,

Se partilho, equitativo,

Um homem já não invade

E o mundo fica mais vivo.

 

 

542 – Borboleta

 

Que feliz é a borboleta

Que se escapa sempre à justa

Se a persigo na valeta!

Ser feliz, contudo, custa

Sentar fatigadamente

E deixar que pouse em nós

A borboleta inocente.

Dela quando corro após,

Fugir-me-á fatalmente:

 

- Sabedoria secreta

Que me ensina a borboleta.

 

 

543 – Pedra

 

A pedra filosofal

É só a do contentamento:

Transmuda em oiro, afinal,

O que toca no momento.

 

O contentamento é ter

Vara de condão que sobre:

Pobre é rico, se o tiver,

E o rico sem ele é pobre.

 

 

544 – Bênçãos

 

Aceita a dor, a alegria,

Apaga a mágoa, a saudade.

Então a melhor podia

Vir das bênçãos duma idade:

 

- Se tivera de viver

Outra vez a minha vida,

Toda a houvera de fazer

Por esta exacta medida.

 

 

545 – Remorsos

 

Há quem goste de remorsos

Porque às almas rigorosas

Nada requer mais esforços

Do que as faltas dolorosas

Que, por si reconhecidas,

Teimam em ver ressarcidas.

 

 

546 – Velocidade

 

A mais-valia da vida

Não é uma questão de idade.

É a vitória conseguida

De a mantermos comedida

Em branda velocidade.

 

 

547 – Verdades

 

Há sempre duas verdades

Dum homem: se ele se entrega

Ou se joga na estratégia.

No jogo das liberdades

Esta tem a paga régia.

Aquela, calcada, nega

Que algum dia algum auxílio

Nos liberte enfim do exílio.

 

 

548 – Medo

 

Medo do desconhecido,

Medo do que se conhece…

Perigoso, incerto, aquele

Pode, afinal, ser gerido.

Este, não: ninguém esquece

O que lhe rasgou a pele.

 

 

549 – Lisboa

 

Lisboa, pelo sol alto,

Fica ingénua, teatral,

Desce em degraus para o palco,

Seduz e encanta, animal.

 

Depois, de noite, é a princesa

Que, por terraços de luz,

Do rio desce à beleza

Com o adorno que traduz,

Num ritual elegante,

Que se entrega a seu amante.

 

 

550 – Sós

 

A sós, cada qual de nós

Quando decide, decide:

É um canto a uma só voz,

Sem ouvido que convide.

 

Doutrem a inútil presença

Nem de jogador é lance:

Nem calor traz à sentença

Nos abismos quando a alcance.

 

A marca da decisão

É fatal, desta maneira:

Ninguém mais terei à beira,

Decido na solidão.

 

 

551 – Cimeira

 

Há quem escolha morrer

Como uma aposta cimeira

Na mais profunda verdade:

- Não é vergonha sofrer

Quando é a única maneira

De alguém dar felicidade.

 

 

552 – Creme

 

À luz verde, os candeeiros,

Na minha rua, ao alvor,

São creme de nevoeiros

Dum alvacento palor,

Sobremesa derramada

Pelos cantos derretida,

Onde vago sobrenada

O pedrascal da avenida

Que já nasceu mal talhada.

E a minha própria morada,

Sozinha a meio da rua,

Tem ar de não ser verdade.

Porém, na neblina nua,

É o tecto da soledade

A abrigar, suficiente,

Quem é tão só que é somente.

 

 

553 – Rotineiros

 

Os sentidos rotineiros,

Tímidos, porém, felizes

Com os carinhos vezeiros

Em habituais carizes,

Receiam qualquer pesquisa,

Complicações libertinas.

Bem comportados, desliza

Por eles o que destinas.

Não usando de disfarce,

Calculam jamais ferir-se:

Lentos sendo ao inflamar-se,

Serão lentos a extinguir-se.

 

Cautela, porém, atento!

Todos quantos se aproximam

Suspeita de mau intento.

Vê depois que em ti se arrimam

Teus inimigos piores.

A fera que em ti habita

Adormentada em torpores

Vai ser a tua desdita.

Esqueceste que ela hiberna,

Fortifica-se, acredita,

E vai-te passar a perna:

- Vira-te, quando acordar,

É de pernas para o ar!

 

 

554 – Vagabundo

 

Vagabundo a andar à roda

Sem sair do mesmo sítio

Esta Humanidade é toda.

Seja destino, ou concite-o

A demanda duma boda

Prometida e nunca dada,

As partidas entristecem

Como inebriam por nada.

As paisagens que virão

São aquelas que enaltecem,

Doem-me no coração

As que deixo para trás.

Um pouco de mim se prende

Em tudo quanto atravesso,

Campos ressonando em paz,

Céus cujo azul mal atende,

Mar com neblinas do avesso…

Tão apaixonadamente

Me agarro que me parece

Que atrás de mim, aos milhares,

Fantasmas ficam de gente

Que sou eu e que me esquece

Ao dissipar-se nos ares.

E o derradeiro comigo

Fantasma mais semelhante,

Da lareira ao quente abrigo

É o que se senta diante,

Sonhador, mui atinado,

Sobre um livro debruçado

Que ignora no mesmo instante.

 

Vagabundo em todo o lado,

Sou da Humanidade um dado,

Para trás, para diante

Eternamente jogado.

 

 

555 – Crítica

 

Foi a crítica, do Ocidente

A mais fértil criação.

Negação por acidente

Ou até destruição,

O que é vero ponto assente

É ser a desobstrução

Da via que aos mais capazes,

Assente em sólidas bases,

Permite a reconstrução

Dos sonhos os mais audazes.

 

 

556 – Arte

 

Uma obra de arte é um rosto

Fisicamente acessível

Do sentido de que gosto,

Do sentido do invisível.

 

Todo o sentido é vivido

No invisível do sentido.

 

 

557 – Germe

 

Um herói traz nele

O futuro em germe.

A lei (que revele

De que ser é a derme

Que vai dar à vida

A nova unidade)

Nele ainda não lida,

Busca a identidade:

Vai lenta crescer

Dos húmus que houver.

 

 

558 – Lemos

 

Não lemos uma pintura,

Um poema, um monumento,

Como lemos um tratado

Em que uma gestão se apura,

Um matemático aumento…

É leitura doutro lado.

 

Compreender uma obra de arte,

Mais que obra de pensamento

Quer que nela tome parte

De homem o inteiro elemento:

 

Quer cabeça e coração,

Quer da acção o sangue vivo,

Quer o sonho e a maldição,

Eu todo em meu corpo activo.

 

Requer-me a totalidade

E abre-me a uma imensidade.

 

 

559 – Reino

 

Não chega ao Reino a conquista

Mas o desapossamento:

Do pequeno eu a lista

De bens e de rendimento

 

Esvaziá-la e dos desejos

Parciais, fora do todo.

Para alguns criar ensejos

Ao porvir em que já rodo,

 

Àquela presença em nós

De algo que nós nunca somos,

Que incessante quer dar voz

À maturação dos pomos

 

Do acto cultivador

Que cria incessantemente,

- Que sempre me torna actor

De mim, feito dele agente.

 

 

560 – Transcende

 

Transcendemos tudo o mais

Na natureza e na História

E vemos nisto os sinais

Dum ser que nos deu tal glória.

 

 

 

Mas quem nos transcende é um acto

Criador que testemunha

A presença em nós de facto

Do que ao fim ninguém dispunha.

 

Não se capta nos sentidos,

Também não pelo conceito…

- Mas fico só com ruídos

Quando seu canto rejeito.

 

 

561 – Sede

 

Deve a sede de justiça

Ser clamada e reclamada

Até que ela venha à liça

E a sede fique apagada.

 

É que um só grito na noite

Pode despertar quem dorme

Mas, se a outros não se afoite,

Volta o sono mais enorme.

 

Criar, por breves momentos,

Expectativa, incerteza,

Sem mais passos, argumentos,

De vez mata o que se preza.

 

 

562 – Mapas

 

Nos mapas se marcam terras,

Nos mapas se marcam povos,

Nos mapas se marcam guerras…

- Mas não se marcam as serras

Que alteiam ideais novos.

 

 

563 – Voz

 

Quando a voz pobre protesta

Goza de invisível força,

Amedronta tanto à testa

Que o que não faz se reforça

E provoca o que faria

Se ocorrera qualquer dia.

 

 

564 – Bate

 

Bate o nacionalismo remoçado

No internacionalismo mal nascente,

A raça novamente põe de lado

Da Humanidade a ideia agora ausente.

 

O clubismo, do estádio na bancada,

O apreço, o universal desportivismo

Na claque adversa mata, de assentada:

Renascente na rota camuflada,

Prolifera a escalada do fascismo.

565 – Azul

 

Quem é que pintou os céus

Com este azul transparente?

O pincel atirou Deus

Para as mãos de Fra Angélico

Que detém secretamente,

Para nosso olhar famélico,

A combinação da cor

Que, de fria, dá calor!

 

 

566 – Maquiavel

 

Defende Maquiavel

Que um súbdito se assassine

Se houver mister de tal pele.

 

Mas o príncipe previne

De que nas propriedades

Nada bula e que se incline

 

A ver as facilidades

Com que da mente o demónio

Nos apaga as crueldades,

 

Mesmo até dum pai a morte,

Mas nunca do património

A perda que tal importe.

 

Tão crus talhamos a sorte:

Dos bens pende em matrimónio,

Que é que ao divórcio a exorte?

 

 

567 – Escrínio

 

Tem o que for amoral

Uma marca de fascínio

Sobre um intelectual

Que a jóia perdeu do escrínio:

 

Este invejará demente

Os homens que os corpos usam

Sem escrúpulo nem mente,

Nada lhe negam e abusam.

 

É que um intelectual

Se engana às vezes de lado:

Tanto busca um ideal

Que acaba sendo castrado.

 

 

568 – Freio

 

Se não foram inventores,

Engenheiros, cientistas

E os mais empreendedores

Que era de nossas conquistas?

 

Diante duma aspereza,

O Homem ocidental,

No desconforto a braveza,

À fera da natureza

Pôs-lhe freio entre o varal.

Com o arreio na mão

Saltou da contemplação,

Vence passo a passo o luto

Não olhando ao absoluto,

Enfrentando o inimigo

Em lugar do próprio umbigo.

 

Doutro modo havia a peste

Como a morte prematura,

Não os cómodos que investe

Ao mundo dar com fartura.

 

Assim melhorou a vida

Como a prolongou também.

Fica a magia delida

Na prosa que a tal convém?

 

Nas jeiras por onde lavras

Há poesia em quanto poisas:

Há poesia nas palavras

Como nos factos e coisas.

 

Questão é que a compreendas,

Que a fruas gratuitamente

E não que a compres nem vendas

Como ages actualmente.

 

 

569 – Hora

 

É hora de decidir

Que será mais importante:

Levar tudo a progredir,

Empurrar para diante

Tanto povo a se esvair,

Ou continuar aumentando

A riqueza a qualquer preço,

Meus padrões de vida quando

Nem sequer sei já o que meço?

 

A minha felicidade

Assim solitariamente

É tão triste de verdade

Que é só feliz quando mente.

 

 

570 – Rótulo

 

Socialista, se quiser,

Utópico, porventura,

Humanista, tal quenquer

Que liberal se afigura…

 

 

 

O rótulo que me aplique

Que me importa, que interessa?

Preocupa-me é que fique

A justiça bem impressa

 

No tecido social.

Tudo o mais é diversão

Que só pode fazer mal

Se daquilo é distracção.

 

Portanto, ponto final!

 

 

571 – Brecha

 

A brecha da culpa humana,

Em nosso estado mortal

Rasga funda e longe emana,

De modo que cada qual

 

Jamais vai lograr tapá-la.

Bem guardada e vigiada

Pode ser. Dela na vala

O inimigo busca a entrada

 

De novo na cidadela

E pode ir mesmo, no assalto,

Outro rombo rasgar nela,

Erguendo o pendão bem alto,

 

Pois na muralha arruinada

A ferida permanece

E do inimigo à passada

O distraído falece.

 

 

572 – Corrente

 

Era o tempo esta corrente

Onde me sento a pescar.

Bebo as águas lentamente,

Correm águas devagar.

 

Descubro o leito de areia

Que é muito pouco profundo:

Água em turbilhões passeia

Por sobre um parado mundo.

 

Correm águas, sopra a brisa

Mas o estranho foi que vi:

A correnteza desliza,

O rio não sai dali!

 

 

573 – Camponês

 

Vantagem de camponês

É de ser obediente

Ao sol e à chuva do mês,

Nunca vai contra a corrente.

Por isso é que, sem arnês,

Nas ideias renitente,

Desarmado como o vês,

- É quem é mais resistente!

 

 

574 – Medo

 

Não há nada que por si

Seja mau ou seja errado.

É o medo de errar aqui

Que mais erra em todo o lado.

 

O medo leva a deixar

De semear os quintais

Por se pôr a ponderar

Que hão-de chegar os pardais.

 

 

575 – Pardais

 

Os pardais a cantar e a mesa posta

Enquanto lava a loiça e se penteia,

O acordar da manhã, o sol na encosta

A escorrer em mel morno da colmeia…

 

O rio a passear pelas barcaças,

Mastros e cascos a correr de leve…

- A corrente da vida, funda, às braças,

Fluindo dentro em im, eterna e breve.

 

 

576 – Paciência

 

Com o eco das vitórias celebradas

Entretêm do povo a paciência

A que restam só almas desnudadas

Que nada desvincula da evidência

De que os loiros a carne jamais dão

De que famintos se alimentarão.

 

O povo desde sempre então murmura

E a coroa jamais fica segura.

 

 

577 – Consolador

 

O que é mais consolador

É que eu, nós, o monte, o sol,

Somos do mesmo teor,

Do Todo enchemos o rol.

 

Da mesma lei governados,

Rolando no mesmo fim,

Jamais somos torturados

Por responsáveis, enfim.

 

 

 

 

Somos só conformações

Que uma força alheia impele:

Que descanso das questões

Que nos vão rasgando a pele!

 

 

578 – Queda

 

Não foi a queda de Adão

A origem de todo o mal,

Foi de erguer as mãos do chão,

Ter-se em pé como quem vale.

 

E é porque Eva recolheu

De árvore a fruta nos ramos,

Não na terra onde caiu,

Que hoje em pé tão mal nos damos.

 

Das quatro patas libertos

Sonhámos voar um dia.

- Não fôramos tão espertos,

Nem do mal alguém sabia!

 

 

579 – Não

 

O que é mais consolador

Do Universo na questão

É o facto de não se impor

A ninguém, seja quem for,

Que lhe encontre a solução.

 

 

580 – Via

 

Aquilo que concebemos

Determina o que faremos:

A ignorância combater,

Mais do que ter a verdade,

Questão de ser ou não ser

É da personalidade.

 

É, pois, a sabedoria

Que nos abre ou fecha a via.

 

 

581 – Divino

 

O divino realiza

Ordem e conservação

E mais além se divisa,

Move-se, é revolução.

 

Assim entalha o destino

As linhas de nossa mão:

Só nos contrários atino

Com o meu rumo de acção,

Dum só lado desafino

A minha equilibração.

 

582 – Além

 

O valor das obras de arte

Conserva-se para além

Da história de que são parte:

Transcende-a, como convém.

 

Jamais elas são reflexo,

Trepam um degrau acima,

Consumando o vago amplexo

Do porvir com o bom clima.

 

A nossa alienação

Nunca tão total nos trava

Que não possamos à mão

Cobrir o fosso que cava.

 

 

583 – Supremo

 

De Deus o supremo fim

É criar. Insatisfeito

Há-de ficar, deste jeito,

Enquanto não haja em mim,

Por inteiro e acabado,

Dele o Filho bem gerado.

 

 

584 – Alibi

 

Qualquer imagem que um homem

De Deus fizer para si,

Não é Deus, todas o tomem

Embora como alibi.

 

Uma questão se coloca:

O que esta celebração

Vai fazer sair da toca

Na vida como na acção,

 

Cada qual como esvazia

Seu eu  pequeno, mesquinho,

Para o espaço encher do dia

Que é o Deus do pão e do vinho.

 

 

585 – Selecção

 

Crua e cega é a selecção:

Em passeio aleatório

Se encaminha a evolução,

Promontório a promontório,

Por entre necessidades,

Rumo a possibilidades.

 

Sem roteiro nem senhor

Ou com fio condutor?

Que maldição nem sequer

Suspeitar como saber!

 

586 – Maravilhas

 

Técnicas e científicas

Maravilhas ao dispor

Que jamais foram sonhadas

Pelas gerações passadas.

 

E que exigências terríficas,

Que problemas se vão pôr

Quando, delas oprimidos,

Já se perdem os sentidos!

 

 

587 – Caruncha

 

Caruncha a pedagogia:

Tornaste-te instituição,

Serves, serves dia a dia

Rotina e satisfação,

Seguras quem se confia…

 

Que é que nisto falharia?

- Já não dás inspiração!

 

 

588 – Contas

 

Julgar as vidas humanas

É prestar contas ao tempo

Da forma como as semanas

Gastei momento a momento.

 

O tempo é que se encarrega

De fazer justiça ao homem.

Sou mero peão de brega:

Às arenas os que as domem

Como é que farão a pega,

Se afinal este juiz

Sou mais eu que quanto fiz?

 

 

589 – Gaveta

 

Tudo acabou com a morte,

Tudo arrumado de vez

Na gaveta, cuja sorte

É nem haver um talvez.

 

Torná-la a abrir é impossível,

Que se deitou fora a chave.

- É por isto que é credível

Como viver é tão grave!

 

 

590 – Instante

 

Quem me dera que este instante

Nunca mais nos acabara!

Mas o instante dura o instante,

Logo no alçapão tombara

Do tempo que enfim o engole,

Tal qualquer fruto maduro.

Depois já nada ali bole:

 

- E em tal nada me penduro!

 

 

591 – Pena

 

Os infelizes dão pena

E os felizes ainda mais,

Não é que estas mais pequena

A pena de penas tais.

 

É que ter pena é tão triste

E tão infinitamente

Que, ao fim, a pena que existe

É a pena que pena sente.

 

 

592 – Palavras

 

Saem da boca as palavras

E não dizem nada, nada

Dos sentidos que tu lavras

Quando rasgas tua estrada.

 

Palavras saem da boca

E são soltos animais

Que ao acaso o instinto toca,

Não o rumo onde tu vais.

 

A palavra é traiçoeira:

Se a não digo, não é nada;

Se a disser, é a primeira

A espetar-me uma facada.

 

 

593- Herói

 

Um herói que for decente

A si nunca diviniza,

Nunca deixa a demais gente

Degradando-se, imprecisa,

A incensá-lo eternamente.

 

Deste outro ninguém precisa,

Não é herói, é um prepotente:

Não liberta, por divisa,

Corta-nos as asas rente.

 

 

594 – Tiro

 

Não dispararei um tiro,

Não estou em campo algum!

Dos homens sou, no retiro,

Com os homens, um a um,

 

 

Um amparo na miséria,

Entreajuda de aflitos,

Uma agonia sem féria,

Uma irmandade de gritos…

 

No meio dos estertores

Quem cuida em tirar partido?

Encarno todas as dores,

- Não sou campo, sou sentido!

 

 

595 – Insectos

 

Os homens, estes insectos

Uns aos outros se comendo,

Sobre o monte de dejectos

Da Terra que mal defendo…

 

A julgá-la grande, grande

E afinal tão pequenina,

Se a perspectiva comande

Do Universo na colina!

 

Ah, como somos tão nada,

Tão nada à berma da estrada!

 

 

596 – Herdou

 

Quem herdou um nobre estado

Bem pouco, ao fim, se lhe deve,

Que a fortuna que haja herdado

É por acaso que a teve.

 

Bem mais fizeram aqueles

Que, tendo a sorte contrária,

Com manha e rasgando as peles,

Domaram a sina vária.

 

Se chegaram a bom porto,

É que remaram com força.

A vida não é um aborto

A quem na vida se esforça.

 

 

597 – Custa

 

Quando alguém morre o que custa

Não é o corpo abandonar,

É o sonho que não se ajusta

A quanto sonhou sonhar.

 

A morte agarrada a mim…

Porque cravo unhas na vida

Quero o sonho até ao fim

E rejeito a despedida.

 

 

 

 

Ao que cada qual se prende

É a suas aspirações,

Não a um corpo que não rende

Matéria para ilusões.

 

Vede que a vida aborrece

Mas cada qual em seu imo

Aquilo que não esquece

É que acha nela um arrimo.

 

Quando a ilusão cai por terra

Fica sempre a aspiração

De sonhar que além da serra

Espreite outro vale chão.

 

 

598 – Quimicamente

 

Quimicamente produz

A substância da matéria

Vida, morte, amor ou luz,

Com a cegueira mais séria.

 

Da vida, pois, o destino

É sem destino viver,

Cumprindo seu fim mais fino

Sem mais do que apenas ser.

 

Ridículo nesta sorte

É que é viver para a morte.

 

Ora, o que à vida convém

Fica sempre mais além…

 

 

599 – Campas

 

As massas para as campas retiraram

Que pelas próprias mãos se já escavaram.

 

Perderam o contacto do real

Para além do sustento corporal.

 

Do espírito é evidente que deixou

Este corpo de ser templo do voo.

 

Deste modo é que o homem então morre

Para o mundo – e o Criador a quem acorre.

 

Na desintegração, o mal vivido

À vida faz perder todo o sentido.

 

O agir desenfreado o que efectiva

É cada vez mais pôr a chama viva

 

Que a actividade insólita transporta

Da breve Humanidade em breve morta.

 

 

 

600 – Coveiros

 

Hoje são povos inteiros

Os expulsos dos países,

Chacinados. E os coveiros

Torcem ao mundo os narizes,

Tocados nos sentimentos

Mas ineptos a intervir.

De milhões os sofrimentos

Não nos logram afligir

Mais do que um vulgar incêndio

Num qualquer jardim zoológico.

O medo tolhe o dispêndio,

Ter ânsia não é ser lógico.

 

O homem que planifica,

Autómato deificado,

Pelos tronos pontifica,

Cerca-nos por todo o lado.

 

O seu papel aparente

É de vez se destruir,

Levando, quando cair,

Atrás de si toda a gente.

 

 

601 – Morre

 

Morre, morre mil, mil vezes,

Mas conhece um homem vivo,

Não o mudes nas soezes

Questões que escondes no arquivo.

 

Nós não somos um problema,

Somos carne, somos osso,

Gritamos, mas o teu lema

É jamais olhar o fosso.

 

Não ganharás, porém, nada

No espírito, na matéria

Se tua alma geminada

Não vês em minha miséria.

 

A verdade mais gritante

É que acabarás exangue:

Andas já morto diante

De tua carne e teu sangue.

 

 

602 – Faltosos

 

Barreira negra do medo,

Tão alta, tão imponente,

Muitas vezes tela fina,

Rasga-se em menos dum credo,

Ou de tão alta se inclina

Que cai estrondosamente.

 

 

 

Por vezes, um toque a rompe.

Outras há que, em desespero,

Meto-lhe ombros do que quero

E a raiva aos portões irrompe.

O mais vulgar é o anseio

Fazê-la cair ao meio.

 

E nós sempre tão medrosos

A perder, dia após dia,

Da vida todos os gozos,

Sempre à chamada faltosos

Do que a vida prometia!

 

 

603 – Oportunidade

 

Por que há-de a oportunidade

Bater sempre antes de entrar,

Quando a tentação me invade

E entro sempre sem bater?

 

Ou errámos de lugar,

Ou então errei de ser!

 

 

604 – Curandeiro

 

Meus dedos de curandeiro

Curam-te a dor de cabeça

Que eu usei quando, primeiro,

Dela fiz, interesseiro,

De engrenagem mera peça

Que sem ti existiria

A doer de ti vazia.

 

Meus dedos de curandeiro

Não te vão servir de guia:

Nem pressentem o teu cheiro

Na dor do que te doía.

 

 

605 – Assustador

 

Cada qual faz o melhor

E não é possível mais.

É um bocado assustador

Que a vida por onde vais

Em tudo decorra assim.

 

Êxito como antever,

Que ao trabalho dês bom fim,

Ou que um estudo qualquer

Te abra a porta nem sequer

Revelada a um serafim?

 

Tentaste, tentei e é tudo.

A cada passo tropeço,

Sem armas combatemos nem escudo,

Bem parco é o final sucesso,

Os dias atropelam em excesso…

 

Não é mundo o mundo: é mudo!

 

 

606 – Decadente

 

Um país que foi tamanho,

Quanto mais for decadente,

Mais acredita ter ganho

Na vã grandeza que ostente.

 

E nesse passado morto

Onde a saudade viceja

Nem mais horto nem mais porto

Vai encontrar que se veja.

 

E por isso a novidade

Nele não encontra abrigo:

Grandeza que nasceu há-de

Ter a marca do inimigo.

 

E então seu novo tamanho

Será sempre a pequenez:

Nunca será de seu ganho

O mundo novo que fez.

 

 

607 – Fita

 

Uma vida morta a meio

É uma fita de cinema

Quebrada, de que receio

Que ninguém perceba o tema.

 

E depois desta avaria

Nem sequer há já retorno

Do bilhete que auferia

O dono deste suborno.

 

E nos perdidos e achados

Ninguém entregou os dias

Perdidos quando encontrados:

Vivê-los? Que fantasias!

 

 

608 – Partiria

 

Para Londres partiria,

Para o Rio de Janeiro,

Em Bruxelas principia

Ou no Havai, por derradeiro…

 

Sempre em busca duma terra

Mais livre e mais generosa,

Mais complacente, sem guerra.

A meta com que se cosa

 

 

 

 

Nunca a transpõe, vencedor:

Não foge só dum país,

Da pasmaceira ou bolor,

Dos egoísmos senis.

 

Dele mesmo anda a fugir,

Duma imagem enquistada

Que não logra corrigir,

Pedra em que deu a topada.

 

Não se podendo aceitar,

Não se lobriga na montra,

Perde-se em todo o lugar:

Procura e nunca se encontra.

 

 

609 – Todo

 

Muito os homens julgam mal

Quando tomam pelo todo

Dele o que é vago sinal

Que o não dá de nenhum modo!

 

Confundido com a parte

Já se o todo não reparte

 

E permanece escondido

O derradeiro sentido.