Escolha um número aleatório entre 610 e 700 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
610 – Em nome das lonjuras nós viemos
Em nome das lonjuras nós viemos,
Arrostando com ventos e marés,
Tentando equilibrar nos próprios pés
As serranias das brumas que mal vemos.
Apostámos nas crenças e nas fés:
Nos gestos e atitudes nós erguemos
Em cada passo a vida a quem amemos,
À espera que dê certo este talvez.
Sabemos que a lonjura ao nosso grito
Esboroa na amplidão dum infinito
Que teima em negacear sem se dar nunca.
Mas a esperança aposta nas primícias
Por onde antegozamos as delícias
Do termo do caminho que ela junca.
611 – Avatar
Agarra-te bem ao sonho
Porque, quando se evolar,
Devém a vida o medonho
De asa quebrada avatar
Das aves, onde me exponho
A incapaz ser de voar.
612 – Artes
Tal como o pão, como o vinho,
De prima necessidade
São as artes que adivinho,
Dão mais do que linimentos:
O imo come-as com vontade
Como o estômago, alimentos.
613 – Leitura
A leitura dá prazer,
Prazer de qualquer idade,
É também necessidade
E disciplina de ser.
Nem todos podem valer,
Os livros, o que vale um.
Porém, um livro qualquer
É melhor do que nenhum.
E por quê? Porque a leitura
Abre o apetite de mais.
De cordel literatura
Se é o sendeiro que trilhais,
Conduzirá, tarde ou cedo,
A uma leitura mais nobre,
É a rampa de perder medo
À medida que o chão cobre.
Ninguém descobre a receita
De lhe abrir o apetite.
Se ao pronto-a-comer é atreita,
Logo a fome quer desquite,
Passa a gosto de gastrónomo:
Das obras no mapa vário
Escolherá rumo autónomo
- E nunca ocorre o contrário.
614 – Contabilistas
Tornam-se contabilistas
De presentes, pelas festas,
As pessoas e nas listas
Aprestam-se a escolher, lestas,
Dispêndios concomitantes
Aos do que lhes querem dar:
Os presentes importantes
São os do custo a pagar.
Assim, presente é presente
E jamais um testemunho
De quão profundo se sente,
Do amor doutrem qual o cunho.
O que é importante é a mensagem
De amor inscrita por trás
Do presente e não a imagem
Nem o preço que ele traz.
615 – Prato
Um prato de rabanadas,
Um odor a leite-creme
Recordam velhas estradas
Dum tempo mágico estreme.
Mesmo num quarto vazio,
Se o ar fica deles cheio,
É o Natal: vede, senti-o,
É o Natal que por fim veio!
616 – Ouvir
O que é mais fundamental
Num tipo de relação,
Qualquer que seja, afinal,
Ouvir é com atenção.
E, num negócio qualquer,
Competitivo ambiente,
Prevalece quem souber
Ouvir, tornar-se presente.
Ouvir cuidadosamente
Descobre o desconhecido,
Revela a tendência ausente,
Cria o novo inatendido.
Depois, audição atenta
É o que ajuda a construir
A relação que surgir
No labor que se implementa.
617 – Já
Quando atingimos um ponto
Crendo que já conseguimos,
Entramos logo em desconto,
Perdemos o que atingimos.
Temos de ter sempre em mente
O que é viável a mais,
P’ra que alcançá-lo se tente:
- Ter alma é querer demais.
618 – Instruído
Se músico devieres,
Poderão quebrar-te os dedos,
Se atleta um dia te queres,
Quebram-te os joelhos os medos…
Mas, se fores instruído,
O que houveres na cabeça
Dura para além do olvido,
- Faz que a vida não te esqueça.
619 – Nunca
Se a porta não se te abrir,
Salta lá pela janela.
Se, trancada, de ti rir,
Tenta da cave a tramela.
Se estiver fechada à chave,
Trepa então pelo telhado,
Que a chaminé não te entrave…
Há sempre aqueloutro lado
Para tudo em quanto invistas
- Desde que nunca desistas!
620 – Mais
Quanto mais a gente lê,
Mais esperto então se fica.
Quanto mais esperto se é,
Mais à escola se dedica.
Quanto mais escola houver,
Maior vitória se ganha.
Se mais vitórias tiver,
Mais notas seu filho apanha.
Por isso, ao habituar
Quaisquer crianças a ler,
Abro-lhes de par em par
O porvir que mais houver
E levanto assim do chão
A próxima geração.
621 – Empresas
Este mundo das empresas
É uma montanha a subir:
Se o tempo é bom, como prezas,
A qualquer é fácil ir.
Mas, se as condições pioram,
Em todo e qualquer lugar
Só os mais aptos se assenhoram
Das montanhas a trepar.
622 – Visualiza-te
A ti próprio visualiza-te
Vencendo teu objectivo.
O derrotismo escraviza-te,
Mata em ti quanto for vivo.
Enquanto o que é derrotista
Dele antecipa o fracasso,
O vencedor já conquista
A vitória ao ler-lhe o traço.
623 – Persistente
Entre o êxito e o fracasso
Não medeia normalmente
O talento, sempre escasso,
Mas quem é mais persistente.
Muitos brilhantes desistem,
Não querem ser derrubados
Vezes sem conta, se insistem,
Pela vergonha vergados.
Quem tem vantagem maior
Ergueu-se mais uma vez
Que os caídos, com o ardor
De quem sempre finca os pés.
624 – Empenho
Sem empenho verdadeiro
Não ganha raiz o sonho:
No grande êxito requeiro
Os riscos a que me oponho.
Se quero vencer na vida,
O princípio-mor que apuro
É não poder, na partida,
Jogar mais pelo seguro.
625 – Caça
Hoje um administrador
É tal piloto de caça.
Ao mudar tudo em redor,
Tão rápido o mundo passa
Que ninguém pode tomar
Sempre a decisão certeira:
- O que é preciso é ajustar
E corrigir à primeira.
Quando tudo é tão complexo,
Vence quem vence o reflexo.
626 – Prefácio
Primeiro o mar abriu a porta ao mundo,
Depois com o saber é que o fecundo.
Primeiro, os seus portais escancarou;
Segundo, o saber todo partilhou.
O mar estreita os laços, finda a guerra:
Aprende novos céus na nova Terra.
Prefácio do que sou e do que penso,
O saber é tão mar, tão mar imenso!
Sem o mar o saber estagnaria,
Isolado num povo, ilha vazia.
O mar nos fertiliza a Terra inteira
Do saber na lavoira e na canseira.
Deixámos com o mar de ser mais ilha:
O mar é do saber toda a partilha.
627 – Alegria
As paragens do deserto
Dão pastagens abundantes.
As colinas, longe e perto,
De alegria estão pujantes.
Os campos pelos rebanhos
Andam todos recobertos.
Enchem-se os vales de ganhos
Com trigais de lucros certos.
Explode farta a alegria
Com os gritos e os cantares
- Quando nasce um novo dia
Do porvir com os lugares.
628 – Nem
Não tem nem finalidade,
Nem rumo, nem objectivo,
Nem significa, em verdade,
Esta vida que em mim vivo.
E, contudo, sou feliz!
Não consigo compreender:
- Que é que estarei, por um triz,
A fazer certo sem ver?
629 – Vizinho
Do desgosto dele conta
Pode alguém tomar sozinho.
A alegria a tanto monta
Que, para ter bem lugar,
Tenho de ter um vizinho
Com quem a irei partilhar:
A alegria já inaugura
Toda a Comunhão futura!
630 – Lei
Há uma lei da natureza
Mística e maravilhosa
Em que o que mais alguém preza,
A liberdade que goza,
A felicidade e a paz,
Aquilo que no-las traz
É que são sempre alcançadas
Quando aos mais por nós são dadas.
631 – Final
Se eu tivera de escolher
O dia final da Terra,
Um pardal o amanhecer
Cantaria sobre a serra.
O rescender dos pinheiros
No calor do meio-dia,
Libelinhas nos canteiros,
Tudo ao sol cintilaria!
A voz do melro na mata
Ao escurecer da noite
Um luar brando desata
Que as estrelas leve acoite.
Nuvens cúmulos, por fim,
Encobririam num véu
De catedrais o confim
Dos passeios que há no céu.
Depois disto, então a Terra
Outra ser não buscaria,
O dia final a encerra,
Cumpriu que baste a poesia.
632 – Nunca
Quando tudo é contra ti
Na inviável situação
Até parecer que não,
Não te aguentas mais aí,
Nunca desistas, que então
É exactamente o momento,
Exactamente o lugar,
Em que ocorre ao movimento
De tua maré mudar.
633 – Solidões
As minhas aspirações
Poderei não alcançar,
Mas serei capaz de olhar
Delas no alto as solidões.
E ver-lhes-ei a beleza,
Nelas acreditarei:
Meu rasto é seguir a empresa
Que as tornará minha lei.
634 – Usufruir
Não há quem se agrade
Por só possuir.
A felicidade
Quer usufruir
Sempre mais além:
Quer o que convém,
- Quer a imensidade!
635 – Devida
Deve-nos bem pouco a vida
E tudo nós lhe devemos.
Toda a alegria é devida
De aplicarmos quanto temos
Do vigor de quanto é vivo
A apostar num objectivo:
Que qualquer um rasga os céus
Para um dia sermos Deus.
636 – Destino
Se o destino é rastejar,
Rastejarei satisfeito;
Se for voar pelo ar,
Voarei, ao ar afeito.
Enquanto, porém, tiver
O poder para evitar,
Infeliz não hei-de ser
Jamais em nenhum lugar.
637 – Quotidiana
A história quotidiana
Revela que o dia-a-dia
É donde a história dimana.
Tal encorajar devia
A viver intensamente
O nada que em nós se sente.
638 – Lutar
Criança, não percebia
Porque era de lutar tanto.
Hoje, adulto, é na agonia
Dos saltos do que transpomos
Que vejo nascer o dia
Para além do desencanto:
Mudo lento no que somos.
E o mistério que isto alcança
É haver mais e mais encanto
Em me tornar mais criança.
639 – Conselho
As portas se vão fechando
Porque um homem fica velho,
Há um azar de vez em quando…
Mas o que é de bom conselho,
Em lugar de se morrer
Quando o tempo vai tão lindo,
É ficar atento e ver
Quantas portas vão abrindo.
640 – Universal
Minha pátria fez de mim
Cidadão universal,
Meu caminho é rumo ao fim,
O sempre-em-frente fatal.
Voltar atrás? Impossível!
Será um tredo desengano
Relançar-me, imprescindível
Semente que sou de humano.
Somos a Terra emigrante
De eterno Sol fugitivo:
Rola a bola, rola adiante,
Só morto se calhar vivo.
641 – Voragem
Volta a casa, à profissão,
Abandona essa voragem
De trepar no corrimão,
Vem juntar-te, calmo, aos mais!
Companheiros de viagem
É o que só terei e não,
Nunca dois serão iguais!
Se atropelas, então sais
Desta estrada em contramão.
642 – Carne
Receio que o inimigo
Não descanse até matar
Na carne de alguém a ideia,
Convencido que o abrigo
Que um corpo deu ao luar
É a fonte da lua cheia.
Porém, a carne apodrece,
Mistura-se com a terra,
Fátuo no ar torna-se em fogo.
A ideia não morre: esquece
Dos potentados a guerra,
Deita-se ao caminho logo.
A ideia não morre, não:
É que as diferenças, ela
Entre os mais filhos de Adão
Nivela, sempre nivela,
- Até lavrar todo o chão!
643 – Banca
Encher-me das criaturas
É esvaziar-me de Deus.
Na banca das sinecuras
Torno-me avaro dos meus.
Vazio das criaturas,
Ficarei cheio de Deus:
- Então é que elas, de puras,
Rasgam os portais dos céus.
644 – Límpido
Ai, quando eu fico sem nenhum desejo,
Torno-me límpido até à raiz,
De além a majestade eu entrevejo,
O imenso de tudo de que ao fim me fiz,
Senhor de quanto foi, do que será…
A eternidade embebe no tinteiro
A cor e o modo inteiro de quanto há,
- É eternidade do que é passageiro.
645 – Peristilo
A consciência daquilo
Que sempre à fé faltará
Para abarcar o divino
Constitui o peristilo
Dum abraço que não há
Entre o repicar do sino
E o almuadem de Maomé.
- E só isto acorda a fé.
646 – Meta
Com o saber e a escolha dos fins
Humanizado devirá o trabalho,
Precede a meta a decisão dos sins,
Pondero nisto, afinal, o que valho.
Um homem é um animal
Que modela a ferramenta:
É do rodeio o sinal
Do espaço e tempo que inventa.
É meio de atingir fim:
Chamamos-lhe consciência
Que cresceu, cresceu e assim
Moderna atinge a ciência.
Hoje o que um túmulo atesta
É que o homem não permite
Que se acabe ali a festa
Nem que haja nenhum limite.
647 – Criação
Vou-me poder transcender
Através da criação:
Germinar e florescer
Do homem só pelo homem.
Idade, época, estação,
Enquanto eras se consomem,
Erigindo assim a História:
A história das ferramentas,
Das técnicas a memória
Que a geriram nas tormentas.
Não os domínios da guerra
Que incessantes devastaram
Marcas de Homem pela Terra.
Mas projectos que vingaram
(Mesmo os que deram aborto),
Quando buscaram o porto
Por onde emerge o sinal
Do vindoiro homem total.
648- Mutante
As pessoas mortas
Dão que reviver:
O homem da epopeia
Abre-nos as portas
Dum mutante ser
Que ao porvir ameia:
O futuro habita
Naquilo que pinta
De forma restrita,
Acaso indistinta:
- Prenhe de porvir,
Já nos diz como ir.
649 – Percurso
De arte o percurso da obra
É o caminho do sagrado
Que o meu mundo me desdobra:
Salto para o outro lado.
Meu real trespasso e o modo,
- Vou já sendo um com o todo.
650 – Deveras
Ou Deus, a força de paz,
É deveras transcendente
E nenhuma igreja faz
Ideia de quem é crente,
Ou não é e desde então
Qualquer pode pretender
Ter dele a total visão
E erro é o diverso que houver.
É por tomar consciência
Das falhas, limitações,
Que doutrem a experiência
Me colmata as precisões.
Por outras crenças e fés
Com a minha me aproximo
Da presença a cujos pés
Vislumbro chegar ao cimo.
651 – Pintura
Os olhos sempre seguiam
Quem a pintura fitara.
Por isso todos temiam,
Vendo a pintura preclara,
Que do retrato fugira,
Na mão cada qual pegara
E secreta conduzira,
Em passo furtivo e mudo,
- Ao lado de lá de tudo.
652 – Casulo
A esperança ao nosso alcance,
Mudar a face do mundo,
O casulo abrir que lance
Fora o novo homem fecundo!…
A labuta começou,
Tudo pode ainda falhar,
Tudo pende do que sou,
Do que for capaz de andar.
Tanta esperança não houve
Jamais à face da Terra
Como quando ao homem coube
Ser raiz que a desenterra.
653 – Espontâneo
É de pôr-me comovido
A espontânea penitência
De quem, sem qualquer motivo,
Injusto foi p’ra comigo
- E humilde ata a convivência.
654 – Janela
À janela aberta à lua
Pode a vida destruí-la,
Jogá-la o tirano à rua,
Cerrar portadas à vila.
Pode ao fim ser um montão
De pedra informe, tijolos,
Caliça, ferros no chão,
De poeira envolta em rolos.
Pode, que após as lesões
Permanecerão intactas
As nossas aspirações
Ao porvir que não tem datas.
655 – Mesa
Modificar por inteiro
Dos homens os sentimentos,
Só com este alvo certeiro:
- Juntos tomar alimentos.
Comer à volta da mesa
Qualquer generosidade,
Gera, quase de certeza,
Sabor a fraternidade.
656 – Rumores
Árvores, pardais e flores,
As crianças e as donzelas
São palavras, são rumores
Onde Deus abre janelas
Com murmúrios de esperança,
Dos males contra as sequelas.
E o Homem que nunca alcança!
Mas da vida as coisas belas
Continuam: Deus não cansa…
657 – Pegada
Pegada além da fronteira,
Depois do mundo, as estrelas,
Somos nós desta maneira,
Sempre a desfraldar as velas.
Escalamos as montanhas,
Descemos fundos marinhos,
Os recordes com mais sanhas
Batemos como maninhos.
E depois não entendemos
Que a sério o mais importante
É uma raia que em nós temos
Que ninguém rompe adiante.
Da mulher vai à conquista
E do homem, que melhor
Nesta fronteira é o que invista
O que fora houver de pôr.
Aqui é que importa o medo
Vencer duma vez por todas
E pôr fim ao arremedo
De ser ao sabor das modas.
658 – Extremamente
Um país, (grupo, pessoa…)
Quando extremamente rico,
Não é rico nunca à toa.
O que são, são-no, acredito,
Porque, pobres em extremo,
Pessoas, grupos, países
Vegetam pelo terreno.
Disto é que somos juízes
Em nome dum mundo pleno
Que assente noutras matrizes,
Na justiça com raízes:
Este outro é que não condeno.
659 – Topo
Há bem mais do que uma estrada
Para o topo da montanha.
De noite ou de madrugada,
Dos sendeiros na maranha,
De leste como de oeste,
Do norte como do sul,
Ora vem a estrada agreste,
Curva a perder-se no azul,
Ora o atalho cujo escopo,
Como o dos mais, é que alguém,
E nunca interessa quem,
Atinja de vez o topo.
- Como Deus seja que o tomem
Ou como o cume do Homem.
660 – Solitário
Deus é o grande solitário
Que com solitários fala:
Dele ao poderio vário,
Ao saber imaginário,
À alegria que em nós cala
Só se vai encaminhar,
Qualquer que seja a função,
- Quem encontrar um lugar
Nesta eterna solidão.
661 – Penteados
Os bem penteados
Do palco da história,
Mui acorrentados,
Trazem à memória
Selvagens peados
Que seremos nós,
De civilizados
Atados aos nós.
Ai quanta mentira!
Nunca tu ateias
O fogo da pira
Através de peias,
Algemas, correntes
Que sobre ti sentes.
Aquele que for
Capaz de criar
Sabe que o valor
Lhe vem de voar,
Não de condenado
Ser em todo o lado
A ter de ocupar
O canto da cela.
O que o revela
É o grito de alerta
Duma sentinela:
Do sono o desperta,
Não lhe tranca a porta
Numa vida morta,
Lança-lhe uma ponte
Para o horizonte.
São de madrugadas
Jamais percorridas
As fundas pegadas
Que imprime nas vidas.
662 – Pista
A beleza e a verdade
Não as procura o artista,
O além delas é o que invade
Perseguindo ignota pista.
Então, como subproduto
Da busca que nunca encontra,
Dá-lhe a beleza o conduto
Desta viagem na montra.
Assim é que o viandante
Na intérmina caminhada
Sempre alcança mais distante
O fim sem fim da jornada.
663 – Obsessão
Não é a verdade, não.
Não pode ser a verdade
Apenas pela razão
De que ela é nele obsessão
Que o encegueira e persuade,
Problema fundamental
Do artista quando procura:
É uma luta sem igual
Que o fere e jamais tem cura,
Luta de qualquer autor
Por se libertar de vez
Da maldição deste horror
De não ver a própria tez…
Procura, em vez da verdade,
Livrar-se desta obsessão
Pela verdade que o há-de
Um dia, quando o degrade,
Matá-lo de vez no chão.
664 – Eterno
Terminou a inquirição,
Finda o processo e a tortura,
É atingida a absolvição.
O eterno que se procura
Para sempre em todo o lado
E que jamais é encontrado
Breve aqui se configura.
Estamos perante o mundo
Como diante do espelho,
Não vemos nosso eu mais fudo
Por causa do mau conselho,
Por causa da prevenção:
Olhamo-nos como actores,
Mas não começa a função
Nos palcos de luz e cores.
Para se ver o espectáculo
Só se morrer ante o espelho
Ofuscado num pináculo
De luz de que me retelho,
Perdendo a máscara, o traje,
A carne e os ossos que ocultam
Meu eu secreto, o qual age
A expensas dos que o indultam.
Só por iluminação,
Descendo directo à morte,
No ventre do tubarão
Me acharei entregue à sorte.
Quando me vir condenado
A tal aniquilamento,
De repente projectado
Me vejo no envolvimento:
O tubarão da verdade
É minha incapacidade.
O tubarão permanece
Mas mudado em vasto mundo
Com estrelas, estações,
Banquete, festa, quermesse,
Com tudo quanto é jucundo
De ver, tocar nos salões.
Já não sigo dele após,
Tornou-se no inominável,
Dentro e fora está de nós,
Como o que há mais inefável.
Ao longo da eternidade
Podemos, se nós quisermos,
Devorar o tubarão.
Por mais que o comamos, há-de
Sempre haver mais dele, em termos
De homem que terei à mão:
Aquilo que dele aufiro
A ele retorna em breve,
Transformamo-nos no giro
Do tempo que nos conteve.
Vivemos da relação,
Não do acto, da viagem,
Quem come é comido então,
O que persiste é a voragem
Do infinito rumo à imagem
Do além, da ressurreição.
Assim é que na passagem
Daqui para o outro lado
Se inaugura um infinito
Que jamais se encontra dito,
Por mais que o haja lavrado.
Assim quem desperta e vive
Inaugura na palavra
A nova leiva da lavra
Nos campos que nunca tive.
E assim tudo canta e dança
Até onde a vista alcança.
665 – Tom
Homens bons de todo o lado,
O que de vós pretendia
É que erguêsseis um bocado
O tom de contar o dia.
É que o mundo em que vivemos,
Este meu mundo anda falto
Do sabor de quanto temos,
De que ele fale mais alto.
666 – Privado
Se não te conquistas
Teu tempo privado,
Não entras nas listas
De quem talha o fado.
Ninguém tem de estar
Permanentemente
Em nenhum lugar
Ao dispor da gente.
Não serves tu nada
Da nada a ninguém?
- Perdes-te na estrada
Como um pedro-sem!
667 – Vencedor
Verdadeiro vencedor
No desporto, escola ou vida
É aquele a quem o falhanço,
Longe duma despedida,
Reacender tal ardor
Que tenta, sem mais descanso,
Novamente e toda a vez
Até vencer o entremez.
668 – Campeão
Por mais que ensaie e preveja
Nunca atinjo o planeado.
Campeão que a sério o seja
Dum desaire põe ao lado
O caminho alternativo
E da queda sai mais vivo.
669 – Assombração
Quem te grita :”é assombração!”
E te não deixa espiar
Quer a parte de leão,
Manter firme seu lugar.
Vai-se a ver, a luz distante
Em que a escuridão se esvai,
Candeia que vai adiante,
É a do rumo que te atrai.
De repente, quando espreito,
Descubro que quem lá vem
É meu passo à estrada afeito,
Sou eu indo sempre além.
E quem medo me metia,
Dele me mantendo escravo,
De mim medo é que teria,
Que eu tenha da luz o travo.
670 – Não
Hinduísta não sou: não creio
Que os homens tenham poder
De arrancar do próprio seio
Os deuses em que irão crer.
E budista não serei,
Que não posso convencer-me
Que um nada de que nem sei
A alma morta venha a ser-me.
Xintoísta era baixar
A fé à filosofia,
Com ambas emparelhar,
Esquecendo a dupla via.
Não sou judeu, já que Deus
Ama a todos igualmente,
Que todos são filhos seus:
Povo eleito é toda a gente.
Se islamita, olhando o céu,
Em lugar de encontrar Deus
Encontro o profeta seu
Encimando os coruchéus.
Não poderei ser cristão,
Pois creio que Deus é Deus:
E assim é que dou a mão
A quantos abrem os céus.
Então, a todos unido
E sem ser de nenhum deles,
Encontro o comum sentido
Por onde Tu nos impeles.
671 – Deus
O nosso Deus criou tudo.
Pôs-se então a descansar,
Com a tarefa cumprida.
O porvir fica ali mudo,
Já que, para ter lugar,
Só com quem vier de seguida.
- Cabe-nos agora a vez
De jogar neste entremez.
672 – Decide
Atende às finalidades
E não apenas aos meios.
Explica mais que as verdades,
Decide, que de actos cheios
É que teu gesto é fecundo.
- E transformarás o mundo!
673 – Inéditos
Viver será conduzir
Rumo a inéditos possíveis.
Ao mais humano erigir,
Vou-me lento assemelhar
Ao sonho bem milenar
De os deuses serem vivíveis.
Quem poderá limitar
A fronteira de meus níveis?
674 – Hierarquizado
Muito bem hierarquizado
Aqui vivo atrofiado
Nos meus pendores humanos.
Ao correr destes meus anos,
Toda a minha transcendência,
O meu poder de ruptura,
Por condições, com a ausência,
A margem de autonomia
Nada apura, nada apura…
Sou degrau de hierarquia,
Acabou-se a fantasia.
E eu a sonhar em ter asas
E saltar do patamar
A voar, sim, a voar
Sobre estas malditas casas!
675 – Visão
A razão quantitativa,
Meramente operatória,
A minha visão arquiva
Num mundo-máquina, o qual,
Repetido sem história,
Me trabalha, industrial,
Nas vertentes suicidas,
Dum lado trabalhador,
Do outro consumidor.
Nesta vida sem mais vidas
Que é do sonho, que é do amor,
Das esperanças perdidas?
Onde é que, afinal, me ponho:
Nestas desmedidas lidas,
Sempre as mesmas, repetidas,
Ou no coração do sonho?
Onde é que chega meu grito:
Aos portões de meu patrão,
Dele às pistolas e ao cão,
Ou dos céus rasgo o infinito?
676 – Rival
Ciência rival da fé,
Só quando a religião,
O Deus que ela pôs de pé
For, afinal, aldrabão:
Um matemático chão,
Ou um taumaturgo físico,
Ou um alquimista tísico…
Técnica da fé rival,
Só quando esta fez de Deus,
Não de mundos um fanal,
Mas fabricante de céus.
Revolução que é rival
Da fé das religiões,
Só quando esta for sinal
De tiranos e caixões.
A fé nunca marca passo
Quando o sentido a comanda,
É rumo onde me ultrapasso:
- Ela, ao fim, é o Homem que anda!
677 – Força
A força que mora em mim
E que em mim não tem origem,
Que vem de além de meu fim,
Não das margens que em mim vigem,
Recebe o nome de Deus:
O absoluto vem quebrar
Os quadros de pensar meus
E as rotinas de actuar.
Aqui é que principio:
- Além das margens do rio!
678 – Mais
Deus é sempre aquele mais
De inédito, inesperado,
Força em criar que jamais
Tem coração açaimado.
Um homem deveras homem
É humano quando se dá,
Quando os limites se somem
Sempre além do que houver cá.
O crescimento germina
Quando neste Eu atingimos
A fonte do ser que inclina
A trepar até aos cimos.
679 – Árvore
Cresce à vontade, à vontade!
Como árvore, devagar,
Sem jamais te ultrapassar:
Lugar de maturidade
De experiência é lugar,
Que fruta madura à pressa
Ou fica peca ou depressa
Perde o sabor que lograr.
680 – Diferença
Nesta vida a diferença
Entre um êxito e o fracasso
É a vontade, sem detença,
De erguer com desembaraço
Da lama qualquer pendão
Quando caímos no chão.
681 – Erradas
Os homens livres da história,
De fazer guerras erradas
Sempre tiveram, na inglória
Senda de ignotas estradas.
Tão erradas são as guerras
Quão erradas estas terras.
É o que tem a liberdade
De mais fatal: a verdade.
A quem for livre, porém,
Nem esta nem outra morte,
Da guerra em qualquer desnorte,
De livre ser o detém.
682 – Estupidez
A guerra é uma estupidez
E o que temos a fazer
É o melhor que se puder
Para liquidar de vez
Toda a estupidez que houver.
683 – Fundo
Podemo-nos ir abaixo,
Mas lá no fundo mais fundo
Lembro aqueles de quem acho
Que o medo é bem mais profundo
E que, aposto, vão cumprir
As missões mais impossíveis.
Por isso, a todos os níveis,
Ficamos. – E há porvir!
684 – Sofri
Porque sofri, aqui estou!
E porque fui humilhado.
Porque creio na justiça
Das madrugadas que sou,
Num mundo em que, nalgum lado,
Alguém esqueça a preguiça
E dê lugar aos que a domem
- E que haja lugar ao homem!
685 – Manhãzinha
Acordar de manhãzinha
Com a certeza que o sono
É, de quem nele caminha,
Este longo corredor
Que atravessa dele o dono
Para chegar e se pôr
Do outro lado da noite…
Ao acordar sinto o abraço
Dos bons-dias por que passo:
- Tenho abrigo onde me acoite
Do dia no breve espaço,
Para tudo a que me afoite.
686 – Perguntas
Custa-me fazer perguntas,
Sabem-me a um julgamento.
Atiras uma: o que juntas
É a avalanche, num momento.
Sentas, calmo, na colina,
Solta-se a pedra do chão,
Quanto mais se à queda inclina,
Mais outras atrás irão.
Quando em cachoeira tombam,
O que vai acontecer
É que as cabeças arrombam
De quem por baixo estiver.
Quanto mais vejo os demais
Num beco já sem saída,
Tanto menos questões tais
Que os matarão de seguida.
As perguntas inocentes
São apenas as que vão
Mundo fora rasgar frentes
Nas quais as mãos se darão.
687 – Vivível
A vida só é vivível
Com o futuro na frente:
Um futuro imprescindível
É já presente ao presente.
E se o presente me dói,
Terei calmante seguro
Não no antanho que já foi
Mas no porvir que inauguro.
688 – Empolgar
Não te deixes empolgar
Das palavras pelo amor,
Não vá não haver lugar
Ao que nos tens a propor.
Optimismo ou pessimismo,
O vero, alegre ou atroz,
Em nós rasga o mesmo abismo,
Caminha para igual foz.
Não te esqueças, sobretudo,
Que existe um valor cimeiro
Para todos, para tudo:
A liberdade é o primeiro.
A dificuldade, às vezes,
É não se estar com ninguém,
Aguentar quaisquer reveses
Só para livre ser bem.
A liberdade se alcança
À custa de dor malsã,
Mas nela mora a esperança,
Fé nos homens de amanhã.
689 – Vergonha
O que é vergonha é pensar
Alguma vez saber tudo.
Admitir, em seu lugar,
Que ignoramos o conteúdo
Daquilo que nos rodeia
É que amanhãs choca em ovo:
Paro a pensar e o que ameia
O meu dedo é um mundo novo.
Tenho de tomar a peito
O escuro que há no porvir,
Será sempre o insatisfeito
Que o mundo faz progredir.
690 – Sabedoria
Cem vezes ao dia
Oportunidades
De mal haveria.
Uma só por ano
De abalar as grades
Há do desengano.
Quem dos palcos guia
- Do céu ou do hades –
Faz subir o pano?
691 – Areia
Houve outrora um grão de areia
Queixoso de ser apenas
Um átomo à lua cheia,
Vago entre coisas pequenas.
Porém, uns anos depois
Tornou-se num diamante,
É um ornamento de sóis
Que a coroa ao rei garante.
Por isso, não desesperes:
Quando mal te precatares
E quando menos esperes
Já voarás pelos ares.
692 – Livro
Um livro não haverá,
Por pior que se anteveja,
Que só tenha coisa má
E de bom lá nada esteja.
Os gostos não são iguais
E aquilo que este não come
Faz as delícias dos mais,
Deles vai matar a fome.
Vemos coisas desprezadas
Por uns mas que o não serão
Por outros cujas pegadas
Marcam desvios no chão.
Assim, pois, coisa nenhuma
Se deve então desprezar,
Que ali pode uma verruma
Abrir a porta a algum lar.
693 – Caminho
A ciência está no meio,
Que importa princípio e fim?
Mas o que vivo em meu seio
É que me importam a mim.
O caminho é estéril, seco,
Por demais aborrecido.
Para lá do muro, o beco
É que eu sonho ver corrido.
Para além mora a verdade,
A beleza, mora Deus…
Cismo até na identidade
Dos pés que lá serão meus.
Precisamos de ideal,
Meu dedo toca o infinito
E, se as mãos o agarram mal,
Queima-me o peito o que fito.
Ninguém assalta um castelo
Sem armadura, no fundo,
Nas pedras rasgando o pêlo…
- Mas conquista-se o outro mundo!
694 – Factos
Os factos nunca penetram
Onde vivem nossas crenças,
Não são eles que as perpetram
Nem lhes destroem as tenças.
Podem-lhes mesmo infligir
Bem constantes desmentidos,
Que não jogam ao nadir
Os sonhos nelas contidos.
E quem no fundo caiu
O que tenta humildemente
É trepar donde desceu
Em busca do sonho ausente.
695 – Crença
Só imaginação e crença
Podem diferenciar
Um objecto, uma pertença
Até dar-lhe um novo ar.
Então, por todos os lados
Brotam os montes sagrados.
696 – Transparente
Quando um autor se tornou
Tão transparente, tão cheio
Daquilo que interpretou
Que a si próprio se apagou,
Perdeu-se lá pelo meio,
Não é mais que uma janela:
Já não o vemos lá em cima,
É janela e através dela
O que podemos é vê-la,
Ver apenas a obra-prima!
697 – Asilo
O pior dos sofrimentos
Tem sempre um lugar de asilo:
Se mais não há linimentos,
Há o repouso. Aqui, tranquilo,
Vou curar meus pensamentos.
698 – Meio
O meio influi e permeia
Pelo flanco intelectual:
É cada qual uma ideia
A soprar no vendaval.
Como os homens não são mais
Do que as ideias que têm,
Todos se tornam iguais
Ante aquela que os retém.
Como a ideia não tem nunca
Dimensão material,
Toda e qualquer que o chão junca
Dum homem para o qual vale
Nele nunca, nunca muda.
Como a ideia aos interesses
Humanos jamais se gruda
Nem deles goza as benesses,
Um homem filho da ideia
Que por inteiro a perfilha
Vantagens não negoceia,
Negoceia a maravilha.
699 – Voo
Trabalho a cada momento
A dar forma à minha vida
Mas, ao invés do que intento,
Copio o traço e a medida
Da pessoa que aqui sou,
Sem nunca encontrar a via
Onde levantar o voo
Daquela que gostaria.
700 – Custo
O custo da vida
É muito elevado,
Mas nele é incluída
A viagem de agrado,
Grátis totalmente,
Que todos os anos
Leva toda a gente,
Sem quaisquer enganos,
Mais que ao arrebol,
- A dar volta ao Sol!