OITAVO  VERSO

 

 

DOENDO  DA  PEGADA  O  CALO  EXPERTO

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 701 e 789 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

701 – Doendo da pegada o calo experto

 

Doendo da pegada o calo experto

Cá vamos manquejando pelas trilhas,

Sangrando dos artelhos, das virilhas,

Sem nunca o longe ficar de vez perto.

 

Do desespero sentirei o aperto

Quando em minhas pegadas vir as filhas

Das outras que ante mim ficaram ilhas

Do continente longe a que me acerco.

 

Quantas traições e quantos bem maninhos

Terrenos ficarão donde haurir vinhos

Que as forças restauravam à jornada!

 

Ao fim, porém, como adivinho o preito

A quem prestar quando me vejo a eito

Condenado de vez a não ser nada?

 

 

702 – Falta

 

Doutrem a falta de apoio

Constitui factor de risco

Para a saúde, pois mói-o,

Ao solitário do aprisco,

Como o vai moendo o cigarro

Ou a falta de exercício.

Será o mortuário carro

Que enterra mais este vício.

 

 

703 – Emoção

 

Vai ser a nossa emoção,

Ao colorir o que ouvimos,

Que nos desliga a audição,

Pois então nos impedimos,

Ao concentrar-nos num grito,

De ouvir o que está a ser dito.

 

 

704 – Fim

 

Sozinha, no fim da vida,

Sem sequer ter o conforto

Da veneração devida

Ao que é o derradeiro porto,

 

Não guarda, porém, rancor,

Esquece quanto perdeu

E recolhe, com calor,

O nada que cai do céu.

 

Com o nada que ficou

Reconciliada, nem diz

O que, atento, alguém notou:

- É uma mulher tão feliz!

 

705 – Enganos

 

Ontem viu televisão,

Limpou o pó, puxou brilho?

Não teve tempo, pois não,

De ler um livro ao seu filho?

 

Pois veja o que são enganos:

Continua o pó no chão

Mesmo daqui a vinte anos,

- O seu menino é que não!

 

O mais vai permanecer.

- Ele, não, deixou de o ser!

 

 

706 – Descaro

 

Se uma pessoa mais velha

Se queixa pelo descaro

Da juventude, estará

A queixar-se, no reparo,

De incapaz, no que aconselha,

De impor-se ao respeito já.

 

É sempre comum a culpa

Se entre idades há sandice:

Juventude não desculpa

E, muito menos, velhice.

 

 

707 – Relação

 

O homem numa relação

É tal qual uma formiga

Sobre um pneu de camião.

É claro que ela lobriga

 

Que está sobre qualquer coisa

Muito grande, muito grande.

Mas nem por sombras lhe poisa

A miopia no que ande.

 

Se houver então movimento,

Com os pneus a rebolar,

A formiga sente o evento,

Algo de grave a passar.

 

Mas enquanto até ao solo

Não rolar, for esmagada,

O que pensa, p’ra consolo,

Minusculamente é nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

708 – Cómico

 

A luta dá-nos antenas

Para descobrir o cómico

Nas conjunturas sinistras.

De sobreviver às penas

É o imprescindível tónico.

 

O burlesco traça as listras

Por onde navego, barco

De equilibração tremida:

Das tempestades é o marco

Que nos pontuam a vida.

 

 

709 – Sonâmbulas

 

As pessoas que vagueiam

Sonâmbulas pela vida

O dia-a-dia semeiam

De rotina desmedida.

 

Não param a perguntar:

Que é que eu ando aqui fazendo?

- E não há resposta a dar

Objectivos não havendo.

 

 

710 – Deveras

 

É estranho como esquecemos

O que importará deveras.

A roupa ou quanto comemos

Compramo-lo sem esperas.

 

Mas um sonho que se esvai

Em que praça, de que estilo

O compro, se a compra o trai?

Como, como readquiri-lo?

 

Com que moeda cunhada

Na Terra reaveremos

Essa visão adorada

Que perdemos, que perdemos?

 

 

711 – Cobertor

 

A vida é tal cobertor

Pequeno, curto demais.

Puxais acima e ficais

De pés frios de torpor.

 

Se o sacudis para baixo

É nos ombros que a tremer

Ireis de frio sofrer.

Da luz e calor o facho

 

 

 

É dos que são bem dispostos:

Vão encolher os joelhos,

Ficam quentes os artelhos

E os dias correm compostos.

 

 

712 – Plenitude

 

Enquanto o homem viver

Há-de sempre procurar

O que lhe der mais prazer

Por todo o modo e lugar.

 

Procurar não significa

Que aquilo a que então se aplica

Venha por fim a encontrar.

 

Da felicidade a base

É a plenitude da vida:

- Tão essencial e quase

Acaba sempre esquecida!

 

 

713 – Porta

 

Qundo uma porta se fecha,

Outra logo se abrirá.

Porém, fico preso à mecha

Que se apagou acolá.

 

Perco tanto tempo, tanto

A olhar o que se perdeu

Que nem reparo no encanto

Da porta que se me abriu!

 

 

714 – Fardos

 

Conseguimos facilmente

Suportar os nossos fardos

Se de cada dia os cardos

Sofro separadamente.

 

A carga pesa demais

Se hoje transporto outra vez

De ontem os negros sinais

De amanhã mais o revés.

 

Tanto fardo, antes de alguém

Me exigir que sobre a pele,

Como a pesado refém,

Carregue afinal com ele!

 

 

715 – Sozinho

 

Eu prefiro estar sozinho

De meu tempo a maior parte.

A companhia, adivinho,

Mesmo a que melhor reparte,

Breve devém cansativa

Todo o tempo que conviva.

 

O melhor é a solidão.

A maior parte dos casos

Ficam mais sós quantos vão

Junto aos mais quebrar acasos.

 

Quando alguém pensa ou trabalha

Estará sempre sozinho,

Mas, no aposento onde calha,

Porque, afinal, é seu ninho,

Quebra do mundo a muralha.

 

A solidão não se mede

Pelo espaço que medeia

Entre um homem e quem pede

Que se lhe junte em colmeia:

 

Se dum superpovoado

Arranha-céus morar perto,

Vive alguém mais isolado

Do que um monge no deserto!

 

 

716 – Arco-íris

 

Quem corre atrás da riqueza

Corre do arco-íris atrás,

Fascinado da beleza

Do que nunca alcançarás.

 

Quem o pretende alcançar,

Quem pelo arco-íris se tenta

Esfumar-se-á breve no ar

Numa neblina cinzenta.

 

Tão exigente é a riqueza

Que a luta por alcançá-la

Breve ignora o fim que preza

Ou tarda a festa de gala:

 

Quem busca ficou tão velho

Ou tão cansado ficou

Que ao se vislumbrar no espelho

A luz não vê que o guiou.

 

A felicidade, di-lo

O saber, tem os seus tramos

E só raramente aquilo

É aquilo que nós pensamos.

 

 

717 – Riqueza

 

Os meus bens exteriores

Com o íntimo em harmonia:

Quem tiver sabedoria

Tem da riqueza os primores.

 

O limiar da riqueza

Que um homem que é comedido

Pode suportar e preza,

É o que pode ter sentido.

 

Um pouco mais e de fora

Pesa o peso tanto mais

Que me vou de mim embora

E já não sou eu jamais.

 

 

718 – Cuidado

 

De que vale esta vida, se tanto cuidado

O tempo te retém, se nada for olhado?

 

Sem tempo de ficar à sombra das ramadas

Mal somos animais que pastam em manadas.

 

Pelos bosques andar sem tempo para ver

Nas ervas se um esquilo as nozes retiver,

 

Sem tempo para ver, ao sol e ao luar,

Dos céus a correnteza em rio a lucilar,

 

O rosto da beleza sem poder fruir,

Nem os passos da dança quando os pressentir,

 

Sem a boca poder, em compasso de espera,

Enriquecer sorrisos que um olhar venera,

 

Que vida miserável, com tanto cuidar,

Se nem tempo de a ver nela tiver lugar!

 

 

719 – Como

 

Como é que pode achar pouco

Alguém ter vivido o sol,

Ter gozado a Primavera,

Ter amado como um louco,

Ter pensado o que é que era,

Ter agido e ter gerado

Um mundo do outro lado?

 

Como é que pode achar pouco?

- Só se muito alguém for oco!

 

 

720 – Opulência

 

A opulência, quando aflui,

A um ou outro maior

Êxito conduz e influi…

- Só não logra sobrepor,

Mesmo se nos persuade,

Nada ao que é felicidade.

 

 

 

721 – Expectativa

 

Muitas coisas são geradas

Contra nossa expectativa.

As que eram mais esperadas

Jamais a vida as cativa.

Não contamos com aquelas

De que o sonho foi conviva…

 

- E somos só tais sequelas!

 

 

722 - Barco

 

Culpamos de tudo a vida

Sem forças para embarcar

No barco de qualquer ida

Que aportaria a um lugar.

 

Prisioneiros do importante,

Descuidamos. Permanece

Vivo algo por nós adiante:

A vida que nos esquece.

 

 

723 – Troços

 

Dói a condição humana

Que divide carne de alma

Em dois troços sem fusão.

Cada qual o corte traz,

Mas dele breve se acalma:

Como é fatal, fica em paz.

Por tal falta de união,

Aos mais, porém, guerra faz:

Multiplica a divisão.

De mais ser não é capaz,

Perdido na dispersão.

 

 

724 – Instante

 

Perdemos a cada instante

O que cremos possuir

Só porque passa adiante.

Quando deixa de existir

É que finda o movimento

E então fica-me o lamento.

De facto, pois, se bem vir,

Não terei nenhum momento

Em que eu esteja perante

O espelho do que me encante.

 

 

725 – Vez

 

Só nascemos uma vez,

Ninguém vai recomeçar

De experiências que já fez

Doutra vida um limiar.

Abandonamos a infância,

Que vai ser a juventude?

Casamos numa ignorância

Do casal, pois nos ilude.

 

Quando vamos para velhos

Quem sabe o que nos espera?

Não há da velhice espelhos,

Trepo inocente à galera.

 

A nossa história completa

É mais que duma existência:

É dos homens o planeta

Planeta da inexperiência.

 

 

726 – Assassino

 

Prefiro na consciência

Manter preso um assassino

De que não tenho a evidência

Que mantém da morte o tino,

 

Do que a morte de inocentes,

Homens, mulheres, crianças,

Da amnistia consequentes

Que para o assassino alcanças.

 

 

727 – Pânico

 

Do pânico a sensação

É a de que, de todo o lado,

De holofotes a visão

Sobre nós se haja focado.

 

Tal como se o mundo inteiro

Nada mais para fazer

Houvera que ver primeiro

O que eu de fazer houver!

 

 

728 – Ouvintes

 

Os ouvintes de rosto calmo e recolhido,

Acreditando firmes num altifalante,

A máquina aplaudindo, tal se fora ouvido

Um ser humano cego que os não vê diante.

 

Mostrador da cegueira que no mundo impera,

Impelido por medos, pelas histerias,

A multidão agarra uma banal quimera

Desde que se liberte do peso dos dias,

 

Do peso de pensar e do de responder,

Responsabilidade que em terror receia,

Que pretende evitar, embora sem saber…

-Serve-lhe então a máquina de panaceia.

 

 

729 – Nacionalismo

 

Nacionalismo exaltado

É uma pedra no caminho:

Ergue-se e, por todo o lado,

É de mil vermes o ninho.

 

E, perante a insanidade

Que dele mostram as prosas,

Cobrem a vulgaridade

De mil palavras pomposas.

 

Quem se deixar encantar

Pelo canto da sereia

Tomba decerto no mar

Nas vagas da maré cheia.

 

 

730 – Farsa

 

A farsa da humanidade:

Da vil força o detentor,

A presa e o espectador.

Esta última entidade,

 

Sempre presente e ausente,

Deixará pender os braços:

À presa matam-lhe os traços

Sem que libertá-la tente

 

E tudo porque receia

Pela própria segurança.

E eis porque jamais a alcança:

Nunca faz o que a grangeia.

 

 

731 – Emanação

 

É o tempo uma emanação

Da morte, porém, subtil.

Penetra com lentidão,

Com jeito em nós tão gentil,

 

Qual veneno inofensivo!

Gota a gota, dia a dia,

De início torna-me activo

De tal modo que eu creria

 

Ser quase mesmo imortal.

Mas a força acumulada

De cada gota o que vale

Num ácido é que é  mudada

 

Turva-me e corrói meu sangue.

Com os anos que nos restam

Nem que tentáramos, langue,

A juventude, não prestam

 

 

 

Tais pretensões a tal fim.

O tempo muda o composto:

Sou sempre eu em meu confim

Mas jamais no antigo rosto.

 

 

732 – Só

 

Talvez a felicidade

Só para quem morra exista,

Tanto quanto a eternidade,

E não se as sentir à vista.

 

Do tempo fora da escala,

Tornam-se definitivas:

Cá mantê-las as entala

Nas engrenagens cativas

 

Do temporal, do passado…

Não mais fica em nossa mão

Impedir que as mate o fado

Que as dispersa em pó no chão.

 

 

733 – Ilusão

 

A morte que nos persegue

A cada momento obriga

A rumar ao que se segue,

Mesmo cansados da briga.

 

Nem ao menos um momento

Para guardar a verdade

Da ilusão, nosso tormento,

Da ilusão da eternidade!

 

 

734 – Injustiças

 

Não as grandes injustiças,

As pequenas é que são

As que mais ferem nas liças,

Mais dor a suportar dão.

 

O que se impõe esquecer

Quanto ao pedaço de pão

É o facto de nos caber

O mais pequeno quinhão.

 

E que sempre o mais seguro

É que vai cair-me em sorte

O labor que for mais duro

Hoje e sempre até à morte.

 

 

 

 

 

 

 

735 – Pobre

 

Não posso rasgar a roupa

Porque sou meu país pobre.

E quem os joelhos poupa

Poupa a roupa que o recobre.

 

Feridas que em mim fizer

Sempre acabam por sarar,

Mas as meias que romper

Novas terei de as comprar.

 

E a quem de génese é pobre

Onde há dinheiro que sobre?

 

 

736 – Demasiado

 

A música não me aquece…

Escuto-a demasiado,

Tal se atrás do pano houvesse

Condão mal adivinhado,

 

Condão que jamais se vê…

Por que é que será que nada

Nunca, nunca põe de pé

A perfeição desejada?

 

Esperamos, esperamos,

A chorar do corpo todo,

E a planta não deita os ramos

E a flor atola no lodo!

 

Nós no leito da alvorada

E não acontece nada,

E não acontece nada!

 

 

737 – Solidão

 

Certos dias, solidão,

És o vinho inebriante

Que embebeda cada instante

Até me librar do chão.

 

Noutros és tónico amargo

E noutros, um tal veneno

Que a vontade dá-me o encargo

De gritar todo o terreno

 

A bater, tal como vedes,

A cabeça nas paredes!

 

 

738 – Partida

 

Minha próxima partida…

Que é feito da liberdade?

Só deslumbra quando é ida

Vivendo amor em verdade,

Como alguém vive o primeiro

Em jeito de iniciação,

Quando o dou em gesto inteiro

A quem amo tão cimeiro

Que o darei sem contenção.

 

Novas regiões, cidades,

Vividas tão de relance,

Confundidas na memória,

Como serão liberdades

Se ficam fora de alcance,

Fora de qualquer história

De quem perde a vida toda

Sempre, sempre andando em roda?

 

 

739 – Sono

 

De que sono tão ausente

E com que asas me retorno

Para que tão lentamente

Me acolha, surpreso e morno,

Tão exilado, humilhado,

Que aceito estar deste lado?

 

 

740 – Pompa

 

Com toda a minúcia e pompa

Das armas a ordenação

Se estrondeia ao som da trompa

E o apocalipse não

Se vê na marcha em que rompa.

 

Mas o que deixa à passagem

É morte e destruição,

É o esbulho, a ladroagem,

O estupro, a violação,

Vida humana é agiotagem,

Aposta de mão em mão

Sem outro preço ou imagem.

 

Vão-se tornando os soldados

Em quadrilhas de assassinos,

Em piratas, paus mandados

A que se apõem destinos

Com nomes altos, doirados:

É honra, direito, glória…

E retiram da memória

Que igualmente os outros lados

Honra, glórias e direito

Iguais têm, de igual preito.

 

A verdade verdadeira,

Escamoteada na festa,

Fica mascarada nesta

Irracional brincadeira.

Ao fim quem mais é que vê

Que nos vai faltando o pé?

 

- E que a paga que é devida

É que é paga com a vida?

 

 

741 – Cortesãos

 

Os cortesãos do poder

De máscaras são um baile

Em que o perfil de quenquer

Se disfarça sob o xaile.

 

São de traição e peçonha

As mentirosas figuras,

Tudo fingimento e ronha

Quando o que forem apuras.

 

A caraça das caraças

Com que o mundo bem se ilude

É que escondem tais desgraças

Sob a capa de virtude.

 

 

742 – Perdoar

 

Ninguém pode perdoar

Ao criminoso, de intuito

Futuro sempre inseguro:

Quem uma vez abusar

Já não precisa de muito

P’ra saltar de novo o muro…

 

É por não ter isto em conta

Que hoje a justiça no mundo

Não é o justo nem fecundo,

Mas entontece e anda tonta.

 

 

743 – Teologia

 

Que importa a teologia

Se quanto a valida, apenas

É o acto que a igualaria?

As razões são bem pequenas:

Se Cristo prega a pobreza,

Como pode um cardeal

Arrebanhar a riqueza

Sem ver a míngua geral?

 

Verifico, quando cismo,

Em caso de desacato

Da palavra pelo acto,

Que o verbo não vence o abismo.

 

Que importa a teologia

Se na vida é fantasia?

 

 

 

 

 

744 – Idolatria

 

É sempre uma idolatria

Reduzir Deus ao sinal

Que uma cultura daria

Ou que a História erigiria…

- Assim lhe apago o fanal

Transmudando em noite o dia.

 

 

745 – Vergonha

 

Vergonha em pedir dinheiro,

Se a necessidade obriga,

Tão odioso é, tão rasteiro

Como ante uma rapariga

Formosa agradar-se inteiro

E depois, na desobriga,

Envergonhar-se dum mal

Que, ao fim, é um bem natural.

 

Quem quer a superstição

Que em mal muda quanto é bom?

 

 

746 – Miséria

 

A miséria, ilimitada

Torna a inulta humilhação

Da multidão explorada

Por quem, sem tê-la esmagada,

Não prosperaria, não!

 

É por isso que o chicote

(Que doutra vida não sabe)

Muito escravo há que o adopte.

 

Nunca outro mundo lhe cabe:

Nunca encontra o passaporte

Dum mundo que ele haja em sorte.

 

 

747 – Inimigo

 

O Partido do Congresso

(Que conduz à independência

A Índia dos grandes sonhos)

Dos ingleses foi egresso

Discordantes da violência

Que a crimes dos mais medonhos

Sobre os hindus indefesos

Perpetravam, sempre ilesos,

Os colonos de Inglaterra

Esventrando a alheia terra.

- Não foi o hindu violentado

Quem de tal teve o cuidado.

 

Também contra a escravatura

Quem as sementes lançou

De que após lhe veio a cura

Foi o branco: quem livrou

O negro da escravidão,

Mais que o negro, foi o não

Do branco livre, consciente,

Que a vida quis mais decente.

 

A mesma contradição

Dos caminhos da justiça

Leva a que alguns homens vão

Terçar as armas na liça

De libertar a mulher

Quando ela própria não quer,

De ancestrais habituada

A ser sempre utilizada.

 

Treinada na submissão

Milenarmente sagrada,

A mulher chega à agressão

De quem a quer libertada.

 

- Inelutável castigo

Da humana contradição

De o meu pior inimigo

Ser eu mesmo à minha mão.

 

 

748 – Ingresso

 

Por se não querer ingresso

No ideário da ditadura,

À Pátria não há regresso,

Devém a pátria da usura.

 

“Pátria de todos os filhos”

É o pendão de tais regimes,

Quando, afinal, só cadilhos

Prendem o tronco dos vimes.

 

Por uma fatalidade,

Devém a pátria somente

De quem governa a cidade

E que embolsa toda  gente.

 

A ditadura supura

O pus que houver nas feridas,

Não as cura, do que cura

É de as manter bem podridas,

 

- Que moscas apodrecidas

São os cidadãos que apura!

 

 

749 – Martírio

 

Maior e mais prolongado

Do que o dos cristãos em Roma

É o martírio silenciado

Dos homens por quem os coma,

Membro a membro, de hora a hora,

Escravos, servos da gleba,

Operário que labora…

 

Para dar conta da leva

Da intérmina eploração,

“Ressuscita, expoliado!”

Se eu gritara ante um caixão,

Era um mundo alevantado!

 

Num esforço concertado

Dos mortos a maioria

Decerto que se ergueria

Sempre, sempre lado a lado!

 

 

750 – Coro

 

A reclamação em coro,

Fora embora ela a mais justa,

Mesmo feita com decoro,

Dela não convence à custa.

 

Ao invés ela endurece

Quem a puder atender:

A força unida entontece

A solitária que houver.

E, quanto mais solitária,

Tanto mais surda emudece

E mais é discricionária.

 

Em comum terás mais força?

- Mais o muro a que te opões

Bloco a bloco se reforça:

Só a tiro de canhões!

 

 

751 – Cães

 

Pertinazes cães vadios,

Farejando saguões

E pelos desvãos vazios

Ou do lixo nos caixões

 

Que são velhas oficinas,

Do trabalhador sucata,

Onde o labor, às esquinas,

Pouco alimenta e mais mata,

 

- Assim vamos procurando

Trabalho no desemprego,

O osso, que, em nos faltando,

Nos muda em cães sem sossego.

 

 

752 – Estátua

 

O político delira

Ou pretende um mundo a meias

E uma estátua que o encime.

Governante que prefira

A evolução das ideias

À mantença do regime,

Onde está, onde estará?

 

- Só no céu, como o maná,

Que na terra, em tantas teias

Se enreda que nenhum há!

Ou então é tão sublime

E veio de mãos tão cheias

Que ninguém o vê por cá…

Será nossa miopia?

 

- Como é boa a fantasia!

 

 

753 – Lágrimas

 

Das lágrimas tenho medo,

Um homem erguem de nós

Tão frágil que é de segredo,

Tão provisório que após

Apenas nos resta o credo

Nestes novelos de pós

Que somos: perco o sossego,

Nas traições a que me apego

Ao ver quanto estamos sós.

 

 

754 – Escombros

 

Dum século ante os escombros

Persiste esta ansiedade

De erguer, erguer sobre os ombros

Novos mundos de verdade.

 

Sob múltiplas versões

Das eras vem dos confins,

Inextinta, aos corações,

A luta do fim dos fins.

 

Crueldades, sacrifícios,

Heroísmos e traições,

Amor, ódio – nos inícios

De que lado é que te pões?

 

Do mesmo todos em busca

Sem ninguém saber por onde,

Terna ou brusca, - terna ou brusca? –

Onde é que a chave se esconde?

 

 

755 – Tutanos

 

Pelos direitos humanos

Um ou outro congressista

Fará um discurso de enganos.

 

O que tem por trás em vista

Será o suco dos tutanos

Que os fuzis terão na lista.

 

Quando se confiscam bens

Aí, sim, é que os protestos

Contra o céu e a terra tens.

 

Só se soltam dos cabrestos,

Não para ilibar reféns,

Mas atulhar os seus cestos.

 

Para os direitos humanos

Ficam, quando muito, os restos

- E é se não causarem danos!

 

 

756 – Padrões

 

Não sou famoso nem rico:

Pelos padrões dominantes

Sou fracasso e tal me fico.

 

Mas quam são os meliantes

Que impõem estes padrões?

Quem confirma e quais garantes

 

Lhes fundam tais pretensões?

São deuses? É um super-homem?

Vejo, ao ver-lhes as razões:

 

- São os ladrões que nos comem!

 

 

757 – Salário

 

O meu primeiro salário

Mal juntos nos permitia

Corpo e alma num calvário

Manter no meu dia a dia.

 

Trinta quase anos passados

Ainda não consegui

A união de ambos os lados

Sólida do que vivi.

 

Será justa, será justa

Toda esta iniquidade?

Quem a vida vive à custa

Da vida que se me evade?

 

 

758 – Sonata

 

Um homem ali tocando

A sonata em violoncelo

E pelos dedos, em pêlo,

A revolução passando…

 

As armas e as munições,

Fronteiras de contrabando,

As militares acções,

Onde emboscadas e quando…

 

E, contudo, é um pacifista

Que repele a violência,

Cujo ideal era a conquista

Dum canto a sós e de ausência.

 

Como é tal viável, como?

Como àquele homem se ajusta?

Tantos gomos num só pomo!

Deveras isto é que assusta,

 

Não é das armas a justa.

É que os exremos se tocam

E na morte desembocam

Do que é humano sempre à custa.

 

 

759 – Intelectuais

 

Sempre os intelectuais

Serão péssimos na acção.

Por não serem como os mais?

- Por serem mais o que são!

 

Repelem os absolutos

Filosóficos, políticos…

Das ideias os produtos

Não vêem como graníticos.

 

As coisas não podem ser

Apenas brancas ou pretas,

Têm um matiz qualquer,

São infindas, não completas.

 

Os homens e seus problemas

Têm tal complexidade

Que nem os temas nem lemas

Lhes mostram a identidade.

 

Isto é pedra de tropeço

Para uma revolução,

Com isto sempre enfureço

O dogmático da acção,

 

Até porque, em hecatombe,

Deveras espelha mais,

Por detrás de quanto tombe,

Complexos individuais.

 

O sonho então não é sonho:

São mas é doenças, taras

De que, encobertas, disponho,

A matar delas nas aras.

 

 

760 – Palavras

 

Palavras que o Criador

Espalhou pelo Universo,

Na natureza em redor,

Das cores dos céus no verso,

Das Galáxias na grandeza,

Nas pétalas das crianças

E dos lagos na pureza,

Na folhagem que há nas franças,

 

Dos pássaros na plumagem,

Nos mistérios que há no mar,

Da beleza na vantagem

Que vem de a amar, de a criar…

 

Que sentido é que terão

Nesta sintaxe divina

De dor palavras que são

Cancro, lepra, carabina?

 

E a guerra, a capacidade

Que o homem tem de odiar,

Que um dia se calhar há-de

Do mundo pôr fim ao lar?

 

 

761 – Insincera

 

Retomar a solidão

É bom esquisitamente

No meio da multidão

De gente que não é gente.

 

O prazer de vaguear

Entre sombas de ninguiém

Sem a ninguém ter de amar,

O gozo que isto não tem!

 

Sem a ninguém pertencer,

Ouvindo esparsos farrapos

Do que houver de fala ser

E é só uma manta de trapos.

 

A multidão, insincera,

A par da futilidade

Simula o ser que não era:

É o nada em maturidade.

 

 

762 – Trilha

 

Tempo nem capacidade

De gozar o que fazemos

Nós já nunca arranjaremos.

E o pior é que a verdade

Mudou tanto de lugar

Que a não encontra quenquer:

Fazer será mais que ser

E agir mais que contemplar?

 

Vá depressa ou devagar,

Eis que o homem nem sequer

A trilha encontra dum lar.

 

 

763 – Tirania

 

Ponham fim à tirania

E a justiça social

Em troca floresceria…

 

Hoje é quanto, por sinal,

Sob a feroz ditadura

Maior injúria nos vale.

 

É que o poder desfigura?

Ou o tempo deteriora

Tudo, tudo, com a usura

De quem o sonho tortura

E de vez nos manda embora?

 

 

764 – Toureiro

 

Toureiro morto na arena.

Ao lado da capa e espada,

Escorneado em faena,

A apodrecer de gangrena

Sem ninguém lhe ligar nada…

Festa brava não tem pena,

Corre em fogo incendiada.

 

Homens há, tal com os toiros,

Que investem contra as mulheres,

Rasgam sexo, o ventre e os loiros

São parte de seus tesoiros,

Entram no rol dos haveres.

Embora cobertas de oiros,

Ei-las mortas como seres.

 

Para ali ficam deitadas

Sem capas ter nem espadas.

Homem-toiro, quando houveres

De em faena te entreteres,

Da arena mata as entradas

Para  as festas que tiveres

Pela vida programadas,

Já que mortas, as mulheres

Deixam-tas sempre assombradas.

 

 

765 – Vento

 

Sopra o vento nos bambus,

Não lhe retêm o som,

Sobre os lagos frios, crus,

Voam os gansos selvagens

E as sombras não gravarão

Nos lagos quaisquer viagens.

 

Assim, a mente madura

Opera, se algo acontece,

E logo após se depura,

Vazia e pronta, à procura

Do que a seguir aparece.

Quem ficar prisionado

Fica ancorado no porto,

Fica morto no passado,

Já que o passado é o que é morto.

 

Então, na vala comum,

A vida passa-lhe ao lado,

Não tem préstimo nenhum.

 

 

766 – Escritor

 

Como pode um escritor

Viver só comprometido

No programa sem valor

Dum político partido?

 

Como ser fiel ao homem

No engajamento total

Se os juízos se consomem

A cumprir o ritual?

 

É que ao homem ser fiel,

À vida em toda a riqueza,

Só atendendo a quanto apele

A transgredir a certeza.

 

E um partido realista,

Tal qualquer ideologia,

Põe chavões em sua lista,

Torna o povo fantasia.

 

Abstrairá das pessoas,

A morte tem na tenção

Do mundo ao salvar as broas,

Torna a dor uma abstracção.

 

Perdido em tal fanatismo,

Não é mesmo inteligente

Alguém que queira este abismo,

Que então deixa de ser gente.

 

 

767 – Vacuidade

 

A ciência é vacuidade,

Tal este bêbado aos berros

Que pela lama se evade

Em vez de trepar aos cerros.

 

“Não creias – grita – não creias!

Que importa o ignoto escondido?”

E tu, de infindo às mancheias

Em chão de terra fundido!

 

Não creias que os mortos voltem

E, não tarda, virão eles,

Com dedos que te não soltem,

Do peito arrancar-te as peles!

 

768 – Quimeras

 

Encharco-me de quimeras

Que não posso realizar,

Imaginação de esperas

Em vida activa a aflorar.

 

O sonho me é permitido

Para depois me atirar

De estrelas que houver haurido

À Terra, meu pobre lar.

 

Mas que crime cometi

Para que assim me castigue?

A cada instante vivi

A que tropeções me obrigue.

 

Faço parte do infinito

E das ruas da cidade:

Se na Via Láctea grito,

É a turba que é minha grade.

 

Assim, Deus e anjo caído,

Aqui vou, trocando o passo,

Em demanda do sentido

De por que não me ultrapasso.

 

 

769 – Metáfora

 

A metáfora não borda

Só uma comparação,

O real dela transborda,

Sofre transfiguração,

 

Fica em comunicação

Com um reino superior:

Desperta-me o coração

Do outro lado ao fulgor.

 

 

770 – Privado

 

Um prazer é avaliado

Bem, pela primeira vez,

Quando dele se é privado:

O proibido é desejado

Quando afastado é que o vês.

 

 

771 – Vantagem

 

A vantagem sobre eles que sentia

Consistia talvez não em saber

Mas em poder mostrar-lhes que sabia.

Deste modo o saber se corrompia,

Apenas calcanhar que é do poder.

 

Tal poder já deixou de ser serviço

E vai calcar aos pés tudo o que é viço.

772 – Latrinas

 

Não urge ter grande faro,

Veranear em latrinas,

Para apurar o dom raro

De respirar como caro

O excremento das sentinas:

 

Não cheira a salsa e coentro

Quem vive podre por dentro.

 

 

773 – Revés

 

No estado de morbidez,

Quem receie tanto a morte

Como uma cura de vez

É que a cura lhe é um revés

Que, em vez de trazer-lhe a sorte,

O mata demais talvez:

 

- Se lhe mata, de repente,

Quanto ele for no presente.

 

 

774 – Egoísmo

 

Tão sensível é o nervoso

Que o egoísmo lhe cresce:

Doutrem não suporta o gozo

Que exibir a dor lhe tece,

Só quando ele é que a padece

É que exibi-la é gostoso.

 

Mas do nervoso o pior

É que não vive sozinho,

É que é do nosso teor:

Todos nós nele adivinho.

 

 

775 – Bem

 

Se a virtude sem riqueza

Não for o supremo bem

Que a pessoa de bem preza,

Por igual não é também

A riqueza sem virtude

Que jamais é um ideal.

A não ser que o mundo mude,

A riqueza é o pedestal

Sem o qual destituída

Fica a virtude de encanto

E do mérito investida

De ser desprezada ao canto.

 

Quer a virtude o conforto

Da riqueza que a premeie

E a riqueza só num horto

Deve crescer onde ondeie

A flâmula da justiça.

Tudo o mais a vida enguiça.

 

 

776 – Adversários

 

Os mais cruéis adversários

Não são os que contradizem,

A persuadir-nos, contrários,

A dizermos o que dizem.

 

As notícias os que inventam

Que nos irão desolar

Piores são, quando aumentam

Quanto a vida tem de azar.

 

Nem sequer uma aparência

Duma justificação

De mágoa nos traz ausência,

Nem uma diminuição.

 

Estes timbram em mostrar,

Para suplício completo,

Que nem nos querem a par

No partido que é seu tecto.

 

Um verdadeiro inimigo

É o que nos põe sem abrigo.

 

 

777 – Corpo

 

No corpo duma pessoa

Toda a possibilidade

Com que a vida inteira a invade

Localiza, um pouco à toa,

Como em aberta janela,

O mundo inteiro que há nela.

 

 

778 – Indivíduo

 

O indivíduo nunca fica

Claro, imóvel, ante mim,

Com defeitos, qualidades,

Um casaco de pelica,

Intenções que irão assim

Gerar novas realidades.

 

Um indivíduo é uma sombra

Que não posso penetrar,

Não há modo de entrar nele.

Sempre da crença na alfombra

Me deito, com o vagar

Do cego no que o impele:

 

Meu bordão são as acções,

São palavras, atitudes…

Porém, insuficientes

Me dão as informações

Do dono destas virtudes:

Ao fim vemo-nos ausentes.

 

 

779 – Ressurreição

 

Ressuscito ao despertar,

Após me alhear no sono,

Como um verso cai do ar,

Lá esquecido ao abandono.

 

Da morte a ressurreição

É talvez a final glória

Que em nós vai ter a função

Fundamental da memória.

 

 

780 – Volto

 

Redescobri num momento

Aquilo que fui outrora

Quando volto ao elemento,

À casa, à fruteira, à amora

Tombados no esquecimento:

Volto a ser jovem agora.

 

Serão peregrinações

Muito, muito aventurosas:

Ao fim delas, os quinhões

Se dividem nas gostosas

Antigas celebrações

E em decepções dolorosas.

 

Um lugar fixo e perfeito,

Contemporâneo em anos

Diferentes em meu peito,

Em mim é que tem arcanos:

Vou buscá-lo, deste jeito,

Dentro em mim com menos danos

 

Do que lá fora se encontra.

Dentro em mim tem a poesia

Com que lhe decoro a montra

Que me mostra a fantasia.

Lá fora tem sempre um contra:

Morreu já quanto lá havia.

 

 

781 – Farol

 

As profundas criações

Da mente humana, clarões

Dum farol, luz material,

São do espírito o fanal

Sondando o espaço inimigo

A avisar onde há perigo:

Ao levar, certo, aos desvios

Vem-nos salvando os navios.

 

 

 

782 – Gebo

 

Doente é que me apercebo

De que não vivo sozinho,

Mas acorrentado a um gebo

De minhas costas vizinho.

 

Ser dum reino diferente,

De que me afastam abismos,

Ignora-me, indiferente,

Ao vê-lo, abalam-me sismos.

 

Fazer-me dele entender

É meta que não encorpo,

Que jamais me vê sequer:

- Que estranho que é nosso corpo!

 

 

783 – Sina

 

A medicina é o compêndio

De erros e contradições

Que do médico estipêndio

Nos traz, afinal, lições.

 

Correndo ao melhor dentre eles

Há uma possibilidade

De, entre tudo a quanto apeles,

Vir, peregrina, a verdade.

 

A verdade que depois,

Alguns anos mal passados,

Revista, é malquista, pois

Será um erro dos mais grados.

 

Crer então na mediicina

Eis a suprema loucura,

Se, não crendo, pior sina

Não nos fora a que se augura.

 

 

784 – Arco-íris

 

Um arco-íris é mais

Que obra física, obra de arte:

Se o vemos, vemos sinais

Que, ondas de luz aparte,

 

O que mostram é o assombro.

O meu activismo vence-o

O breve toque em meu ombro

E fico a olhá-lo em silêncio.

 

 

 

 

 

 

 

 

785 – Distância

 

Não preciso viajar

Para o jardim descobrir

Perdido na minha infância,

Algures naquele lar

Donde saltei ao nadir

Da distância.

 

O que é preciso é descer,

Porque o que cobriu a terra,

Se o quero voltar a ver,

Sob ela é que se descerra,

Como um tesoiro qualquer

Doutra guerra.

 

Já não mora mais sobre ela

O que em baixo se enterrou,

Uma excursão não revela

A aldeia que se finou.

A escavação é que apela

Ao que vou.

 

As impressões fugidias

Reconduzem, bem fortuitas,

Ao passado, como guias.

Assim, mui finas, gratuitas,

Mo darão, bem mais espias

Do que as muitas

 

Excursões a corta-mato.

Nestas só por ilusão

É que creio que reato

Laços que, afinal, só vão

Mexer meu sono pacato

Ao serão.

 

 

786 – Tabuleiros

 

Jogando em dois tabuleiros,

- Experiência, imaginário –

Sonho com homens inteiros

Num cotio que é primário.

Mas, se os sonhos viageiros

São o meu toque sumário,

Quero os homens verdadeiros:

- De mim vou sempre ao contrário.

 

 

787 – Dama

 

Ser grande dama é de dama

Representar o papel

E a simplicidade acama,

Em malhas de ingénua trama,

Um simulacro de pele.

 

 

 

O papel de simples custa

Muito caro, tanto mais

Que a simplicidade ajusta

Só o encanto quando justa-

Mente lhe escolhe os sinais

 

Podendo não o fazer

Porque, enfim, se é muito rico…

E a beleza da mulher

Ninguém na altura vai ver:

A floresta esconde o pico.

 

 

788 – Garrafa

 

Era louco porque cria

Que dentro duma garrafa

Uma princesa teria.

 

Curaram-lhe a crença gafa.

Quando deixou de ser louco,

Tornou-se estúpido: a estafa

 

De curar-lhe o mal de pouco

Terá valido, que há males

Com que, se os curo, me apouco.

 

O que importa é que te rales

Com a cura, quando é surdo

O curativo ao que abales:

 

Quando com as curas urdo

Teias de mais graves males,

Ando de absurdo em absurdo.

 

 

789 – Imaginação

 

A imaginação

É a realidade

Vestida ao serão

Com solenidade.

 

Na festa das vidas,

Deleite que furtas:

Põe vestes compridas

Em ideias curtas!