Escolha um número aleatório entre 1275 e 1362 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1275 – Então, ritmando unidos o entremez
Então, ritmando unidos o entremez,
Subimos clássicos degraus da trama
Em que o mundo demonstra quanto ele ama
A sorte de homem que o marcou de vez.
Ritmando nossa rima em quanto acama,
Verso a verso, o sentido que nos pés
E nas mãos convergir farão as fés,
Cada vez somos mais virente rama
Em árvore de vida e de Universo
Que por nós vive e com a qual converso
Em busca de remates a contento.
Por maior que no fim a decepção
Cada pegada marque pelo chão,
Restará sempre o espanto em que me invento.
1276 – Felicidade
Quando buscar o sucesso,
Para ter felicidade
Repare bem no processo
Como gere a actividade.
Quando der prioridade
Àquele, será do avesso
Que caminha, pelo que há-de
Ser feliz só no regresso.
Muitos, durante a ascensão,
Ficarão tão obcecados
Que os demais só pisarão.
Quando chegam aos telhados
Olham à volta e verão
Que estão sós: que desgraçados!
1277 – Bola
As dúvidas, incertezas,
Quando não levam à morte,
Podem agarrar as presas
Tão seguras, de tal sorte
Que nada as pode abalar:
É o que ocorre quando alguém
Nem direito tem a um lar,
Não se fixa onde convém,
Bola obrigada a rolar.
Somos hoje peregrinos
Mas sem a chama que abrasa,
Sem mosteiros por destinos.
Somos todos peregrinos
Mesmo sem sair de casa.
1278 – Quem
Quem sou eu, quem é o senhor,
Quem os mais que já não são?
Qual a verdade: o palor
Do que os espelhos me dão
Ou antes tem mais valor
Quem neles não se olha em vão?
A vida que hoje se vive,
A que mora na lembrança,
Onde estou ou onde estive:
Onde mais mora a esperança?
Agora estamos unidos,
Agora que a vida é morta?
Ou são laços mas fingidos
De quem já fechou a porta?
1279 – Memória
Nossa memória não é
Nenhum cofre de marfim
Posto na sala, de pé,
Num museu que houver em mim.
É uma fera que devora,
Que vive e que me digere.
Come-se a si mesma, embora
Para que eu mais longe impere,
Para eu continuar
A viver, para a presença
Dela não vir a afectar
O devir de minha crença.
Peneirando me peneira:
Torna-me a vida leveira.
1280 – Espera
Ninguém me espera na estrada
Que não conduz nem à glória,
Nem à riqueza que é nada,
Nem ao amor, à vitória.
Que nada leva ao amor,
Ele é que se me atravessa,
Barra-me o trilho em redor.
Para que jamais o esqueça,
Se me abandona o caminho,
Deixa-o tão interrompido,
Minado por tanto lado
Que mais que fico sozinho:
- Sou na raiz destruído,
Sou um caminho afundado!
1281 – Preço
Qual o preço da saúde,
O da angústia de a perder,
Aprendemos a que alude
Quando a sós vamos viver:
Adoentar-se alguém, febril,
Tossir noite, tossir noite,
A perna a tremer, subtil…
Se a janela à chuva acoite
A fronteira do silêncio,
Lá dentro a cama desfeita
Nem sequer é uma adivinha.
Ser acamado convence-o
Do que foi maior desfeita:
- Como a doença é sozinha!
1282 – Trinta
Trinta dias de comboio,
Trinta séculos a andar
Por entre trigais e joio
Sempre a mudar de lugar.
Ninguém pode imaginar
Um moinho como mói-o
Ao Homem jamais com lar:
Nem gente é nem nunca foi-o.
Vê-lo é ver água corrente
Entre margens de erva húmida
Que a pele crispa à serpente.
A sede em nós é tão túmida
Que o desejo é doloroso:
- A dor de Homem pelo gozo!
1283 – Ermida
Arte é uma expressão de vida,
Da vida que outrem viveu,
Não a tumba mas a ermida
Com trilho apontado ao céu.
O sentido que eles deram
A essa vida vivida
É o que as obras de arte geram
Em quem à vida as aconvida.
São os projectos viáveis
Que o homem empreendeu,
Seguidos idade a idade.
As rotas recuperáveis
Por onde percorro eu
A idade da Humanidade.
1284 – Estafetas
Revolucionário,
Dure o que durar,
Corres, duro e vário,
Metas a visar.
Jogo de estafetas,
Quem tem de agarrar
Testemunho, as metas
Nunca irá cortar.
Mas teu ideal
É passá-lo à mão
Doutro corredor.
- Teu valor real
É o da precisão
Do gesto dador.
1285 – Culpa
Algum homem haverá
Completamente liberto
Duma consciência má,
Com a culpa tão por perto?
Culpa de não fazer nada
Para salvar o seu povo
Da miséria desbragada,
Da opressão sem renovo…
Culpa disto de ser homem
Com as desgraças à solta,
Feras que jamais se domem.
Culpa dos passos em volta:
Nossas pegadas que somem
Rotina em vez de revolta.
1286 – Veneno
A verdade duma igreja
É de vizinha que more
Do povo que sofre e arqueja,
Onde a vida lhe demore.
Para então sobreviver
Com dignidade na história
Foge ao veneno que houver
Nas honrarias, na glória…
Todo o poder temporal
É mentira e falsidade:
Renuncia, que ele é o mal,
E de vez dele se evade.
Vale de vez o que vale,
Só então começa em verdade.
1287 – Combate
O Governo é tenebroso
Como a desgraça na guerra.
Não pode a guerra dar gozo
Quando o general se aterra
Com o sofrimento atroz
Que lhe atormente os soldados
- Que afinal seremos nós
Nos eventos triturados.
Não há guerras disputadas
Se as baixas são bofetadas,
Se cada dor apunhale
O peito do general.
O governo é tenebroso,
- Que minha dor dá-lhe gozo!
1288 – Panorama
Caminhamos sem pensar
Tendo ao fundo o panorama
Que muda o tempo e o lugar
Do que em redor se derrama.
Enquanto assim me arrastar,
Transporto comigo a trama
De imagens mortas dum lar
Em que vivi, colo de ama.
Até o dia em que a encontrei:
Não é mais o que deixei
O mundo, o mundo mudou!
Num abrir e fechar de olhos,
Nem sequer restam escolhos,
Quem eu fui nunca mais sou.
1289 – Espelho
O espelho, quanto reflecte
De alegre ou triste é mentira.
Das imagens lhe compete
Decifrar quanto se vira.
Porém, tudo o que decifra,
Só pelo facto de vê-lo
Transmuda-lhe logo a cifra,
Troca a marca, perde o selo.
Há um outro eu escondido
Que se não vê no do espelho,
Feito dum saber mais velho.
Alegre ou triste é o sentido
Da imagem que ali perpassa,
- A mim, o espelho não caça!
1290 – Páginas
Quando nasci me ofereceram vida
No livro com as páginas marcadas,
Previamente ali determinadas,
Mas em branco, tal rosto que convida.
A nós nos cabe encher, desde as lombadas,
Estas páginas brancas de seguida,
A indicação alheia obedecida
Ou não, que são variadas as estradas.
Em pequenos, os pais riscam por nós,
Embora muitas vezes não gostemos,
Mas nada obriga a lhes seguir a voz.
Peguemos nesse estilo que nos fez,
E a nossa própria história comecemos:
- No fim de contas, vida é só uma vez!
1291 – Raios
Os raios jamais fulminam
Os vales, mas cumeeiras.
São aqueles que dominam
As vítimas mais certeiras.
Como não fulminam vales,
O que importa é tomar tento:
Que importa se muito vales,
Se em cinzas te morre o intento?
Ser um vale e dos mais fundos
Onde a vida a sério corre
É que sempre gerou mundos.
Quem trepa aos cumes acorre
Acaso a sonhos profundos
Mas o mais certo é que morre.
1292 – Miséria
A miséria humana,
Nunca satisfeita,
No que tem se engana
E o que não tem ‘spreita
A ver donde emana
A melhor colheita.
Nisto é que se dana
E acaba desfeita.
Em troca não goza,
Sempre desejosa
Do que nunca tem,
Toda a mais-valia
Que só lhe adviria
De ser hoje alguém.
1293 – Sidéreo
O que por fim nos descansa
No problema do Universo,
Do que representa a frança
Em cujo galho converso,
É que, ao ver que não alcança
Donde vem o infindo berço,
A razão apenas cansa
Se ali me quiser imerso.
Porque, verdadeiramente,
Descoberta do mistério
Que encobre o manto sidéreo,
Só a vontade a torna urgente:
Deus a tal, em nenhum lado,
A ninguém fez obrigado.
1294 – Prisões
A religião, de estranho
Tem que não liga, desliga.
Se dela quero o tamanho,
Só furtando-me ao que obriga:
Então posso ter de ganho
Quanto universal persiga,
Quando em redor arrebanho
O que sentido consiga.
Abolindo excomunhões,
Abraçando o que há de humano
Nas crenças, povos, nações,
É que então de mim emano:
Liberto enfim das prisões,
Creio por não crer no engano.
1295 – Ditadura
A essência da ditadura
É que a palavra da rua
Não é válida, de impura,
Por não provir nua a crua
Do mentor, da direcção.
Aqui, pois, tudo se apura,
Aqui reside a questão:
Na ditadura o poder,
O bordão a que se arrima,
Bem como todo o saber,
É que ambos vêm de cima.
Então a religião,
Com a verdade acabada,
Tem-na o ditador à mão,
É a divindade incarnada:
- Seja ateu ou seja crente,
Ele é sempre o Omnipotente!
1296 – Mediação
Torna-se um homem num Eu
Dum Tu pela mediação:
No princípio é a relação,
Nela a fronteira se abriu.
Foi, pois, com esta ruptura
Que o homem principiou:
Como humano se criou
A outrem pela abertura.
Ultrapassando o limite,
Nega o limite ao sujeito
Na fronteira do convite.
E desde então fica afeito
A apostar só no palpite
Que a todos abrace ao peito.
1297 – Instituição
O que marca a instituição,
Quer a Igreja, quer o Estado,
A justiça, a educação,
É o fim ter delimitado.
Realizar uma função
E não as mais é o que visa.
Daqui lhe vem a missão
E o modo como organiza.
Hierarquia de poder,
Competências delegadas,
Mais os dogmas a crescer
Justificando as paradas.
Assim nunca inova, não:
É eterna a reprodução.
1298 – Eternos
Partindo de fins parciais
Para fins mais elevados
Descubro eternos sinais
De haver sempre os outros lados.
Eis, pois, a contradição
Trágica mas exaltante
Da vida em que os homens vão
Progredindo sempre adiante:
Por mais que o Homem progrida
Nunca atinge o fim da vida,
Nem a certeza primeira,
Nem a meta derradeira.
Contudo, creio num fim:
Viver é já dizer sim.
1299 – Postulado
Todo o pensar, todo o agir
Se fundam num postulado:
Desencadeio um devir
Vindo sempre de algum lado.
Tanto um ateu como um crente,
Como um revolucionário,
Tudo tem a vida assente
Num acto discricionário.
A diferença consiste
Em que uns tomam consciência,
Para os mais tal não existe.
Quem não vê disto a evidência
No dogmatismo persiste,
Fé só tem a sapiência.
1300 – Momento
Momento em que a razão ganha consciência
Dos postulados em que se sustém,
Momento em que capaz então devém
De pôr em causa os fins, toda a evidência,
Momento duma crítica experiência
Do limitado fim que me detém,
É negação da negação também,
Nega o limite do homem na existência.
Como pudera ver qualquer limite
Sem pressentir ao menos um além,
Horizonte qualquer onde me fite?
A fé não é o contrário da razão,
É da razão tão só final desquite
Que ma liberta enfim da solidão.
1301 – Idolatria
Quando a fé se arrefenta, a idolatria
Pelas superstições então pulula.
Pelo retorna à igreja alguém ulula,
Não por amor de Deus, como devia,
Mas por medo do povo e sua gula.
Aqueloutro, um partido propicia
Que no eleito delegue o que haveria
De escolher e a vontade própria anula.
Alguns outros pretendem convencer-se
De que a ciência a tudo lhes responde
Só para nada verem do que verse.
O erro-base de todos é o que esconde
Que a plenitude humana não virá
De rumos onde o Homem nunca está.
1302 – Passado
Só vivo é que o passado tem sentido,
Passado verdadeiro não é aquele
Que já nos não persiste sob a pele,
Porém o que mantém um dedo erguido,
Farol das vidas de hoje onde progrido.
Futuro não é aquilo por que apele,
Que há-de chegar sem mim, a sós com ele,
Que há-de chegar mas com o qual não lido.
O futuro é o porvir que nós faremos,
Jamais, portanto, o que ainda não existe,
Antes em nossas mãos do barco os remos
Com o rumo ao dispor em que me aliste.
Futuro verdadeiro, não ausente,
Respira já presente no presente.
1303 – Ritual
Nenhuma agricultura é já profana,
Da simples técnica demora além,
É um acto ritual, sacro, contém
Um contributo em que qualquer se irmana
Ao crescimento da vital refém
Energia presente ao grão que emana
No sulco a vida que jamais se fana:
Do sol, das águas ao vigor se atém.
Dos homens o trabalho ata a gavela
Destas múltiplas forças tão dispersas
E o labor doravante acende a vela,
É um rumor com sinais doutras conversas:
Estas freimas são quase uma oração
Que homem e Deus estreita em comunhão.
1304 – Nascimento
Da agricultura o primo nascimento
Não é somente um grau da economia,
Ali outra moral já principia,
Traz à religião novo momento.
Pela primeira vez finda o tormento
Que à natureza o homem submetia
E, se a pendência dela pesaria,
Mais peso nela agir tem em aumento.
As forças doravante ameaçadoras
Não são apenas já da natureza,
Encontram-se entre os homens, nas demoras
E traições à recém-nada beleza:
Tribos nómadas rondam, a pilhar
Os campos e rebanhos que inventar.
1305 – Via
A cultura da terra demonstrou
Pela primeira vez que se podia
Viver por diferente e larga via,
Diversa da recolha que imperou.
Não mais o nomadismo que buscou
Os produtos e a caça que haveria,
A matança do gado que surdia,
Domesticado agora noutro voo.
O inédito porvir então se abriu
Ante os homens e as teias do passado,
Cadáver que deveras não morreu.
Opõe-se o antigo ao novo nascimento
E o homem defendeu, sem aliado,
O direito de ser eterno invento.
1306 – Empenho
Pode a qualquer momento qualquer homem
Obter por seu empenho a liberdade,
Já que por trás de tudo ela sempre há-de
Surpreender a quantos a consomem.
Eis a libertação que o persuade
Primordial a notar forças que o domem
Para que, passo a passo, elas se tomem,
Despojos do inimigo que o invade.
De facto, quando a escolha alguém perfaz,
Mais do que o Bem e o Mal, o que nos traz
É que a Queda não é destinação.
Porque atrás, no começo, o que haveria
É poder destas mãos brotar o dia,
Pendendo do que for a minha opção.
1307 – Ilusão
A raiz da ilusão é o gesto do homem
Que vê do mundo objectos em lugar
Do acto obscuro que os anda a originar.
De si, finito, as vistas se consomem
No limite pequeno do limiar
Isolado em que todos cá se tomem:
Nas interdependências do que somem,
O mais comum é nada o revelar.
Da comum árvore folhagem, ramos,
Do mesmo oceano vagas renovadas,
Apenas existimos pelos tramos
Engrenados no mar de ondas cavadas
Pelas marés e ventos que o agitam:
- Só vêem os que o todo em si visitam.
1308 – Infinito
Foge o infinito a ser a negação,
Pois nega a finitude do finito:
Negando a negação que delimito,
Se afirma ilimitada condição.
Porém, para além disso é a transgressão
Do que a totalidade tem por fito,
Que a soma dos finitos é o já dito,
O infinito é o inédito em acção.
Não é a totalidade, mora além,
Irrupção de possíveis infindáveis,
Terreno de inovar o que convém.
O ser não delimita de verdade
Todos os possíveis, todos os viáveis:
O infinito é a raiz da liberdade.
1309 – Eternidade
Sobrevivência a vida eterna? Não.
A eternidade é além da morte e vida,
Cada qual é por ela transcendida:
É o instante no qual se fundirão,
Vivido em plenitude, o tempo vão
Do passado já morto na corrida
E o do porvir ainda sem medida,
No agora eterno que encha o coração.
O instante é eternidade quando nele
O passado e o porvir são no total,
Dele o sentido tomam que os impele
E quando o instante os gera, tal e qual
Como o ponto geométrico ao espaço
Sem de espaço haver nele qualquer traço.
1310 – Vasos
Tal como quando os vasos destruídos
O espaço aprisionado em si libertam
E desde então não mais no-lo acobertam
Que um são com o total, mal devolvidos
Os pequenos espaços divididos
Ao exterior das grades que os qpertam,
Assim os homens afinal despertam
Ao fim para o sentido dos sentidos.
Quando o homem, quebrando seus limites,
Por uma vez ignora vãos palpites
E se apaga, sereno, sem um grito,
Comunga com o além desta fronteira,
O tempo ao tempo entrega a vez primeira,
Não será mais do que um com o infinito.
1311 – Recuo
Para Deus ficar presente
Quando contemplo ou actuo
É preciso o meu recuo,
Dar-lhe lugar onde assente.
É no vácuo dos desejos,
No de mim de que estou cheio,
Que às lonjuras por que anseio
Eu oiço os vagos harpejos.
Quando nada me distraia,
Me separe do divino,
Então ponho o pé na raia:
Meu eu devém Eu de Tudo,
Em mim Deus age o destino
E falo sendo em mim mudo.
1312 – Fogo
Não abraso madeiras para o fogo,
Não incendeio os toros num altar,
As reses com as quais venho adorar
Dos rituais não vão sangrar no jogo.
Fora de mim não busco o desafogo
De algum destino a transferir lugar,
Busco antes um aceno devagar
Que então comigo já me acerte logo.
Assim ateio toda a chama em mim,
Meu coração é a pedra deste lar
Donde incendeio o mundo à volta enfim.
E a chama que em mim arde sem parar
Sou eu por dentro inteiro feito dado
Ao Todo por amor sacrificado.
1313 – Flecha
Contesto a autoridade mais os ritos,
Nem cerimónias nem inúteis preces,
Culto exterior a requerer benesses,
Tudo nos trai os mais profundos gritos.
Não mais da teologia os vãos conflitos
De especular nas infecundas messes
Do eterno e do mundo, ambos tão refeces
Tal do infinito o jogo dos finitos.
Inútil, não conduz à plenitude,
À alegria liberta da ilusão,
Antes mais fundo e para sempre ilude.
Se um homem é ferido pela flecha
O que primeiro importa é a cura e não
Quem a lançou antes que alguém lhe mexa.
1314 – Pessimismo
A vida é sofrimento. O pessimismo
Não é de registar esta existência
Duma infelicidade de evidência
Que importa ver no inteiro realismo
Da doença, da morte com que cismo,
Da velhice, do injusto, da veemência
Com que dói de quem ama a longa ausência,
- Da dor o inesgotável nosso abismo.
Pessimismo é sofrer de acreditar
Que ali nada é possível alterar,
Impossível vencer a enfermidade.
Então se nos redobra esta desgraça:
Sofreremos por crermos que não passa
E por perdermos a oportunidade.
1315 – Indivíduo
É o indivíduo antes a ilusão
De ser, enfim, autónoma entidade,
Quando mais não será que a densidade
Instável de energia em convulsão
No corpo e nos sentidos por onde há-de
A ideia se enfeixar no coração,
Devindo a consciência uma função
De toda a confusão que ali o invade.
É ilusão, afinal, acreditar
Que existe, sob um destes elementos,
A realidade em si, ser sem lugar,
Um actor atrás do acto e pensamentos
Supondo um pensador. Quando medito,
O engano é atrás não ver que há o Infinito.
1316 – Nada
A ilusão fundamental
É desligar.me do todo,
Crer-me um sujeito real
Dos desejos com meu modo,
Um ente individual,
Ilha isolada no lodo,
Quando a ignorância do bodo
Que é a trama do universal
É que me induziu a crer
Que não há interdependência.
A existência separada,
Se pudera acontecer,
Nem sequer era existência:
Era a existência do nada.
1317 – Mar
Sou forma provisória, fugitiva
Que se esboça no mar ilimitado,
Dele se distinguiu por um bocado,
Logo após é absorvida, não mais viva.
Para o mar me dirijo em comitiva,
Que é o mundo do princípio, o todo-o-lado
Não sendo nenhum deles em privado,
Gerador pólo de estelar ogiva.
Nele todas as águas já confluem
Eternamente sem jamais o encher,
Igualmente dali todas refluem,
Sem delas o esvaziar jamais qualquer:
Assim todos saímos, vago grito,
E tornamos ao seio do Infinito.
1318 – Mística
A estética é uma mística vivência,
Feito o pintor aquilo que ele pinta.
Não tem que reflectir, p’ra que não minta,
Um mundo exterior só de aparência:
O realismo é ilusão duma falência.
Não tem de projectar do imo o que sinta,
Universal medida que consinta
Por si pautar o resto da existência.
Ao invés, vai no outro dissolver-se,
Em todo o outro e no outro todo,
Segredo de encontrar no que o disperse
O que é o da criação discreto modo:
Não, eu jamais escrevo em mim um verso,
Em mim serei o invento do Universo.
1319 – Espaço
O espaço na pintura é, não ausência
De formas, o vazio que as espera,
Entre dois pontos não distância mera,
Nem zero ou nada: vera é uma existência.
É o elemento gerador, a essência,
O qual no ventre as formas todas gera.
Irão nascer geradas da quimera,
Sugando ao vácuo os modos da vivência.
Metáfora do mundo do informal,
Em si contém, de modo virtual,
O já manifestado e o só possível.
É o corredor da liberdade aberto,
De todo o jogo de criar tão perto
Que toco na raiz do que é invisível.
1320 – Margem
Quando olhamos da margem de partida
(Ponto de vista de ganhar dinheiro,
Tentativa de posse do cimeiro,
De honras, do poderio de seguida…),
Dividido se mostra o chão da vida,
De etiquetas tão cheio e tão useiro
Que desvitalizado traz o cheiro
Da maresia que ali seja haurida.
Se não puder atravessar a vau,
Estancar o cachão de entalhamentos,
Fico um fantasma preso ao varapau.
Feita a passagem, findam os tormentos:
Para além dos locais em que o divido,
Da nova margem vejo o mundo unido.
1321 – Fonte
Viver o tempo como de esperança,
De militante acção para inventar,
É o porvir lentamente no lugar,
Ligando cada meio ao fim que alcança.
Daqui a fonte brota da utopia
Na Terra a germinar os novos céus,
Deveras a curar por firme deus
O que por qualquer falso se entanguia.
Fonte do julgamento verdadeiro
De cada qual nas leiras do político,
É dos meios aos fins saltar inteiro.
Então se recupera o valor mítico:
Tanto eleva agir com tal destino
Que um desígnio em nós vive divino.
1322 – Leiras
A pretensão de vir ser a verdade
A verdade com visos de total
É nas doutrinas pecador sinal
Que os profetas tingiu de atrocidade.
Num judaísmo ou num islão o mal
É o que um cristianismo igual invade
E um Estado-nação também persuade:
Em exclusivo ter o Deus real.
Daqui nasceu o grito “Deus connosco!”
Pan-germanista multi-genocida,
Com o nazismo mais feroz e tosco,
E os demais de que a História me elucida.
Quando Deus, afinal, de nossas leiras
Sempre além mora, mora além-fronteiras.
1323 – Crismo
Resseca a doutrina
Por exclusivismo,
Enriquece e afina
Se com outra a crismo.
Progride e se afirma
Na veracidade
Quando se confirma
Com outra verdade.
Não no isolamento
Mas a abrir-se ao vento
Que soprar do largo
É que se fecunda
E então tudo inunda,
Toma o mundo a cargo.
1324 – Grito
O grito dilacerante
“Deus, por que me abandonaste?”
Testemunha bem instante:
Deus não é bordão nem haste.
Não pertence, força impante
Nem arma que já empunhaste,
A ninguém que o tenha diante,
Nem saber há que o engaste.
É apenas questão de fé,
Não de posse nem certeza.
Quem tenta prendê-lo ao pé
O que mostra é ligeireza.
O corte é mais radical:
- Quem Deus crê ter, tem o Mal.
1325 – Moda
Se até Deus pode morrer,
Isto altera e incomoda
Do mundo rotina e moda:
Não há mais nenhum poder,
Uma autoridade em roda
Ou hierarquia sequer
Que não traga no seu ser
A morte possível toda.
Nenhum poder doravante
Há intocável ou sagrado,
Nem rumo desatinado
Duma força dominante,
Que não possa ser puxado
Contra o que implementa adiante.
1326 – Conselho
Eis o mais sábio conselho:
Quando meu Eu se apagou
Então Deus em mim achou
Inteiro seu próprio espelho.
Deves, Homem, tão vazio
Ser das obras e das coisas
Que Deus possa em tuas loisas
Riscar por seu alvedrio.
Opera o vazio em ti
Para que Deus venha ali
Ocupar-te todo o espaço.
Os que não possuem nada,
Nada os possui na jornada,
São de Deus o inteiro traço.
1327 – Singularidades
Artes devêm individualistas
Quando procuram singularidades
A qualquer preço, quão maior invades
Mercados, concorrência, frustes pistas…
Arte-reflexo sem do mundo as vistas,
Então sem esperança nem verdades,
Em migalhas desfez as qualidades,
Troca em nada as paisagens por que existas.
Não é mero reflexo mas projecto
A grande arte, desvenda o que é impossível,
Do mundo de existíveis faz trajecto.
Para além de criar o imprevisível,
Celebrante da vida por nascer,
É quem já o frui sem suspeitar sequer.
1328 – Concriador
Concriador em toda a criação
E não unicamente numa artística,
É quem celebra a vida com a mística
Das obras em que céus novos se dão.
Valor profético a imaginação
E subversivo, sem qualquer sofística,
Vislumbra nos possíveis a logística
Dos mundos do porvir que ainda não são.
Sugere-nos que o mundo jamais é
Mundo já feito, é mundo a se criar.
A educação consiste, neste pé,
Nunca numa criança em adaptar
À ordem existente e seu tecido,
Mas abri-la ao jamais acontecido.
1329 – Pecado
Há pecado individual
E há pecado colectivo.
E com ambos o sinal
É o do que é morto e que é vivo.
Há pecado em toda a parte
Quando alguém for impedido
De revelar o que acarte
De humano no seu sentido.
Tolhido da divindade,
Da imagem de Deus que traz,
Desfigura a identidade
De homem-deus que em si se faz.
O que ao homem entorpece
De Deus igual escarnece.
1330 – Encadeado
Cristo não libertaria
Nenhum homem do pecado
Se não lhe varrera a via
Do mal nele encadeado:
O racismo em todo o lado,
Prostituição cada dia,
Camponês desapossado
Da terra que comeria,
Falta de estradas, caminhos,
De alojamento, higiene,
Saúde por descaminhos…
- Enquanto um homem que pene
Houver sem ter seu direito
Ninguém vê de Cristo o jeito.
1331 – Maior
A maior de energias componente
Jamais será das físicas que vemos,
Mas a daquele vácuo que teremos
No fundo coração que de repente
Devém motor de mundos, que consente
Esvaziar-se a tal ponto do que temos
Dos laços e prisões a que nos demos,
Que Deus em nós ocupa, omnipresente,
Todo o espaço que dantes fora o nosso.
Então, lá das profundas deste poço,
Uma força deriva que bem tersos
Nos torna, sem nós próprios, a mover
Em rota nova a frota de quenquer,
E somos o devir dos universos.
1332 – Cumes
Aquele que atinge os cumes
Em qualquer actividade
Não é dos naturais lumes
O que ao topo o persuade.
Ele é um dos diligentes
Que dedicam à função
Horas e horas assentes
Em vencer na prestação.
É deste afinco maior
Que ao fim lhe vem o primor.
Qualidades naturais
Não são nunca as principais.
É do pendor com que agimos
Que descemos ou subimos.
1333 – Nuvem
A vida perpassa e passa
Como nuvem sobre o mar,
Agora neste lugar,
Logo além, leve e com graça,
Desaparece pelo ar.
Aquilo que nos congraça
É o melhor que nos abraça
Enquanto a nuvem durar.
Junto aos mais, enquanto aguarde,
Se transformo em festa as lidas,
No encanto haurido em viagem,
Irei recordar mais tarde
As alegrias vividas
E eis-me, ao fim, grato à passagem.
1334 – Impelidos
Aqui vamos impelidos
Pela curiosidade
Ou pela necessidade
De explorar mundos proibidos.
Por trás dos cinco sentidos
O que move de verdade
É de voar a vontade
A cumes inatingidos.
Onde o verbo é do presente
Sem o passado ou futuro,
Não tenho onde o pé assente,
Esbarro-me contra o muro.
É só nas três dimensões
Que me trepo às amplidões.
1335 – Ponte
Podia ter-se afastado
Da ponte a bombardear:
Ninguém diria, de lado,
Que fugira do lugar…
Alguns homens, porém, nunca
Se afastam, sempre persistem.
E o fardo da guerra junca
De estilhaços os que existem.
O mundo tem dependido
Sempre do evento primário
Dum punhado destemido,
Dum punhado voluntário:
Para a guerra ou para a paz
Sempre ele é o que tudo faz.
1336 – Predador
Se o mundo pretender que seja meu
- Predador, creio bem que pouco falta! –
Terei de amordaçar quem, da ribalta,
Intransigente e só me resistiu.
Meia dúzia de vozes sob o céu
Aqui, além, se ergueram, grita em alta:
É a fome a pedir compras, que se exalta,
Que por dinheiro perde a cara e o véu.
Problema apenas há quando o dinheiro
Nenhum poder exerce ao portador
Do alerta que nem bomba cala inteiro.
Ribombo de canhões tem mais fragor,
Mais forte é que o inerme que os enfrenta,
- Só que o porvir é deste que se inventa.
Balas, bombas, canhões, quando ressoam,
Ressoam bem mais alto do que os gritos
Das vítimas que esmagam em seus fitos,
A ponto que amanhã já nada ecoam.
Engano-me, porém, que tais delitos,
Quando em estilhas as cidades voam,
É nos silêncios que, entre os fumos, soam,
Dos cadáveres sendo enfim precitos.
Então é que esta voz silenciada
Se faz ouvir de vez com toda a força,
Que doravante nada a impõe calada.
Restou ao predador o custo a que orça:
Quão mais donos da voz ele suprime
Mais a voz nos liberta de sublime.
O melhor, o melhor são todos quantos
Morreram e tiveram o cuidado
De altear sua voz longe do fado
Da morte onde morreram desencantos.
Morreram mas a voz ficou de lado,
Viva ficou dos mortos com os cantos,
Vivendo por si só, vivendo os prantos
Que algum dia na noite hão madrugado.
E o sábio predador activamente
Trabalha no projecto de calar
Esta voz, toda a voz que não tem dono.
Como será, porém, que alguém atente
Contra vozes sozinhas, sem lugar,
Contra o que dentro em nós jamais tem sono?
Era um canto incompleto, fragmentário,
Das profundas do tempo peregrino,
Mas pouco a pouco vai em coro um hino
Tecendo na cadeia longo e vário.
De vozes a cadeia do destino
De homem a homem tece o elo primário,
Depois de rua a rua, o secundário,
Até o mundo varrer num desatino.
Quando entre si se atarem como irmãos
Todos os homens do universo inteiro
E a voz única erguer juntas as mãos,
Este homem feito de homens e de vozes
Num predador jamais verá um parceiro,
De vez liquidará quaisquer algozes.
Se em troca de falar da humanidade,
Deste amor que entretece lida a lida,
De apontar que assassinos são da vida
Os que dos homens predam a verdade,
Se em vez de tal forem cantar o que há-de
Das sementes fugir do que convida
A abrir portas e portas de seguida,
Se em troca falam do que for vaidade,
Se o fútil corpo cantam das mulheres,
Do mar tredos encantos noite fora,
O vazio crepúsculo dos seres…
- Então é que o perigo em casa mora:
As vozes já não erguem mais barreiras,
Transgride o predador quaisquer fronteiras.
“Não é possível transformar o mundo,
Nem os homens terão de ser felizes:
Quem pode duvidar que iguais matrizes
Nos marcam desde o fundo mais profundo?”
Será sempre jogando em tais matizes
Que o predador com a razão confundo
E justifico o pego em que me afundo,
Elejo os criminosos por juízes.
Aos homens então resta serem nada,
Vaga poeira ali alevantada,
Logo tombada em lento entardecer.
Ao Homem bastará o sopro da vida
Quando o caminho não tem mais saída,
Ao homem basta então apenas ser?
Quando a mulher apenas instrumento
Para nós for do fim que nos propomos,
Belo e delicioso como os pomos
Que houver na cercadura do convento,
Vamos então jogá-la nua ao vento,
O canto lhe atrair de quantos gnomos
A fruta proibida tem nos tomos,
E o importuno cai no armado invento.
As vozes já não cantam roubos, crimes,
Cantarão seios, coxas de mulher,
Desatam-se do feixe então de vimes.
E só quando um amor parir quiser
Um mundo novo por ele a surdir
Dão corpo as vozes a qualquer porvir.
No dia em que este mundo for só meu
- Promete o predador à incauta amante –
Hei-de tê-la a meu lado, bem diante,
De seu marido forra, e apenas eu
Lhe ofertarei este Universo ateu
Todo inteirinho, tal um diamante,
Para enrolar ao colo cintilante,
Como um colar que nunca alguém lhe deu.
O meu sorriso – diz, toda enleada,
Esta fêmea voraz, nunca enfartada –
O meu sorriso tem todo o calor
Aberto sempre e só mas para aquele
Que no fim vista a inconfundível pele
De quem de facto for o predador.
1337 – Vivo
Mata-me, que me inporta? Estarei vivo,
Vivo dos companheiros nesta luta,
Dos que virão depois noutra disputa,
E tu serás de vez de mim cativo.
Nesta felicidade enfim revivo
Dos que virão mais tarde, aquela arguta
Comunidade, ao fim, pisando a juta
De que hoje teço a teia, calmo e altivo.
Meu canto fica ecoando a seus ouvidos
Até à derradeira geração,
Ritmo a marchar em frente dos sentidos…
Podes matar-me, que matas em vão:
Matando-me a ti matas, por sinal,
E a mim não, que me tornas imortal.
1338 – Empurrões
Dentro do tempo os empurrões da vida
Resolvem-se de pé, olhando-a em frente,
E as palavras não bastam, de repente,
É urgente muito mais que a brisa ouvida.
Da palavra é preciso nasça erguida
A mão e o braço que fará presente
Um mundo novo a renascer, ingente,
Mil dedos já na trama entretecida.
Mil dedos ou milhões a construir,
Quando um só nos bastou para acusar
Quem nos proíbe de chegar ao lar.
Na escuridão gerada, a hora a vir
Amanhece no mundo o novo dia
E eis que o Homem, o Homem principia!
1339 – Fim
Quanto a vós que jamais vedes o fim,
Nunca deixei de vos acompanhar,
Em vosso peito fiz secreto lar,
Tivestes-me por dentro sempre a mim.
A hora aguardo de vos empurrar
Para o buraco aberto no confim
Do tempo, donde ninguém volta, enfim,
E alargo dia a dia meu lugar.
A ruína no rosto que seguíeis,
Das mãos este tremor que já nem víeis
Sempre eu era a pôr minha assinatura.
Agora um vago gesto distraído
Aos distraídos selará o sentido,
De vez a morte a todo o cancro cura.
1340 – Trama
Um Deus que se ama,
Um Deus que se teme…
Dos ódios a trama
Dos humildes freme
No amor que detêm
Pelos poderosos,
No culto também
Pejado de gozos
Pelos opressores.
O ódio do amor
Onde quer que fores
Sempre o encontrarás.
Onde houver senhor
Nunca haverá paz.
1341 – Transcendência
A transcendência de Deus,
A transcendência do Homem…
Os nossos gritos aos céus
Os céus vazios consomem.
A derradeira verdade
Deste esbracejar infrene
Na busca fruste e solene
É que eu busco a Humanidade:
Em mim, noutrem, mais além,
Comunhão universal,
Que só nunca fique alguém…
- O Homem-Deus busco, afinal,
Não num qualquer, mas em mim:
De mim ao chegar ao fim!
1342 – Pátrias
Um homem poderá ter
Muitas pátrias e diversas:
Clara é aquela em que tiver,
Em terra estranha, as conversas
Que revelam a mulher,
Distante das próprias berças,
Que dum aceno qualquer
As horas converte adversas.
Só nela é que ele compreende
A trilha da raça humana
Imortal por sobre a terra:
Procria, luta, defende,
Cria do Homem quanto emana
E morre em paz, finda a guerra.
1343 – Paixão
Paixão emergente,
Porém, combatida,
Viu-a toda a gente,
De mal escondida.
Amor saciado,
De lado a acolher-se,
Finge outro cuidado,
Vai logo esconder-se.
Por isso quem desconfia
O que tem é a fantasia
Do que lhe fizer ciúme:
Não verá que o que não vê
À guerra é que dará pé,
Sofre a ausência dum perfume.
1344 – Vento
Há quem tome por desleixo
O vento a falar na rua,
Que despenteia, abre o fecho,
Põe a linguagem nua.
Porém, na madeixa um trecho
De língua fresca adequa
Quem ao ar aponta o queixo
Buscando frescura sua.
Mas é seiva criadora
Que no vento popular
A língua colhe e devora,
Injecção que vai curar
Pelo artifício supremo
A palavra com que gemo.
1345 – Quinhão
Outrora, se mais sofria,
Se mais duro era meu pão,
Se a dor mais negra feria,
Mais vida eterna em quinhão.
Agora a ilusão caiu,
Sôfrega deveio a vida
E a maré do desafio
Sobe ávida e destemida.
Eis o mundo posto a saque,
O sangue, a violação,
Cada qual pronto ao ataque…
Ninguém, pois, toma atenção
Ao que tombar com o baque
- E o mundo ao fim cai ao chão.
1346 – Cometa
Cada qual trará consigo,
Cometa que arrasta a cauda,
Lama e oiro que persigo
Lendo-os como numa lauda.
Vestígios de ideias, crimes,
Toda a marca do passado,
Horas de amargor sublimes,
Qualquer beijo que foi dado…
É um olhar de feiticeiro
Que os lê na sombra que arrasta
Cada qual atrás de si.
Nada apaga por inteiro
A infausta marca ou a fasta
De tudo quanto vivi.
1347 – Vício
Raciocinar, eis o vício
Com o qual se chega a tudo,
Mesmo a ministro: um comício
Basta, se for de veludo.
De teoria um resquício,
Qualquer palavra eu a iludo,
Que o vento a leva, de ofício,
O que importa é não ser mudo.
Isto, porém, é ilusão:
A verdade amarga é esta
Vida em que é urgente sonhar.
Os pontapés tantos são
Que na vida qualquer festa
Só no sonho tem lugar.
1348 – Canaliza
Um homem de Estado
Canaliza o sonho
Da grei para o lado
Que for mais risonho.
Projecto acabado,
Todo o herói, bisonho,
Hoje onde o telhado
Dos Estados ponho?
Conservar o lume
Na cinza latente,
Sem perigo e quente,
A tal se resume:
- A nunca apagar
O sonho no lar.
1349 – Fruto
Da vida mesmo o que for mais minúsculo
Em cada qual não será todo seu,
Já que ao invés ele antes se deveu
A um gesto doutrem de que é um mero opúsculo.
Porém não somos, mesmo em qualquer músculo,
Iguais para os demais, pois quem nos viu
Um livro ou testamento em nós não leu,
Nem quando escrito em tipo bem maiúsculo.
A personalidade social,
A sombra que acompanha cada qual,
Por mais que dele seja um elemento,
Bem pouco dele próprio foi produto,
De mil encontros será sempre o fruto,
É doutrem criação lançada ao vento.
1350 – Ciúme
Quando se apercebeu de que eram muitos
Que a mulher acreditam desejável,
Cujo corpo acordara vãos intuitos,
Cada mais saboroso, inconfessável,
Que eram muitos que sonhos tais gratuitos
Então alimentavam no inflamável
Coração, quando viu estes fortuitos
Fogos sua mulher tornar amável,
É que lhe despertou a dolorosa
Necessidade de agradar-lhe o ser
E os sentimentos de mulher fogosa.
Então é inestimável o prazer
De ensinar-lhe, sem marcas de azedume,
Que móbil lhe não dê para o ciúme.
1351 – Peso
Quem tem algo que tem peso,
Se quiser saber um dia
Como é que se sentiria
Sem de tal ter mais o vezo,
Já do espírito o desvia
E tudo o mais deixa preso
No mesmo estado em que, ileso,
Lá estava se inteiro o via.
Ora, uma ausência não é
Mera falta parcial
Com tudo o mais lá de pé.
Será o transtorno total:
Não vejo, mantendo o antigo,
Quão novo serei comigo.
1352 – Dias
Os dias de nossa vida
Nunca são todos iguais,
A mudança que é sentida
É que andam menos ou mais.
Se os dias são montanhosos,
É um infinito a escalar,
Mas se descem, escabrosos,
É só travão, devagar.
Muitas as velocidades
São as dos dias que temos.
Com os pisos e as idades
Como os carros nós nos vemos:
Quando ao fim se a vida mata
É como ir para a sucata.
1353 – Cadernos
Em páginas de cadernos
Teu nome escrevo e a morada.
Tais termos em mim tão ternos
Larga em mim te abrem a estrada.
Mas depois desta jornada
Fundo caio nos infernos,
Pois de ti não me traz nada,
Só devaneios supernos.
Afinal de ti não falam
Mas da imagem que em mim mora,
Que nem vês, que te não ralam
Fogos do que me devora
Neste vazio de mato
Que eu sem ti em mim constato.
1354 – Renunciar
Renunciar ao prazer
Duma confissão de amor
Poderá visar manter
Uma inclinação maior
Do lado do que a quiser.
Como um jardineiro à flor
Japonesa, para obter
Mais bela pétala e cor,
Lhe sacrifica em redor
Várias outras que enfezadas
Cobre de terra às pazadas.
E logo brota o primor
Daquela para a colheita
Que consagra a flor eleita.
1355 – Verso
O verso é o corpo da ideia
Que ao contrário dos demais
Tanto dela se permeia
Que é transparente aos sinais.
Suplemento é tudo o mais,
Gesto, atitude, voz cheia,
Que apostarão que jamais
Se apague a chama que ateia.
São invólucros que em vez
De esconder mais a revelam
À ideia, de tal jaez
Que, enquanto por ela velam,
Raio de água refractado,
Mais rebrilha em todo o lado.
1356 – Noutro
Sentimos num mundo
E noutro pensamos.
E, se nomeamos,
É com outro fundo.
Entre os três podemos
Uma concordância,
Ponte de elegãncia,
Ligar nos extremos.
Porém, nós jamais
Daremos finais
Saltos cujo abalo
Nos vá preencher
Os longes que houver
Naquele intervalo.
1357 – Prisão
É uma prisão o silêncio
Que vem da mulher amada,
Mais que o da prisão, que vence-o
A este o pregão da estrada.
É parede imaterial,
Impenetrável, vazia,
Mas que ao raio visual
Do abandono não ruía.
O silêncio o que ilumina
Não é uma ausente, mas mil
Entre que mil discrimina
Traições que porão senil
Um amante abandonado:
Ele ama o amor acabado!
1358 – Rompimento
A esperança de que a amante voltaria
Dá coragem de manter o rompimento,
Como crer que do combate tornaria
Auxilia ao combatente o passamento.
E, como o hábito, entre as mais plantas humanas
É a que menos requer solo nutritivo,
Que primeiro apareceu nas terras planas,
Desoladas, onde nada cresce vivo,
A princípio praticando então talvez
A ruptura em fingimento, se calhar
Este amante, a longo prazo, ali de vez
Se acostume à solidão, mui devagar:
E por fim, sinceramente abre a janela
E descobre que sozinho a vida é bela.
1359 – Estátua
Como o espírito do artista
Continua a modelar
A estátua que teve em vista,
Mesmo se a desfez no ar,
Assim nossas intenções,
Em filhos, netos, bisnetos,
Modelam corpos, noções,
Desde os traços mais discretos
Ao rigor das soluções.
Então irei incarnando,
Tal um deus materializado,
Tanto um sorriso que é brando
Como dum comando o brado…
- Falto ir eu no que assim ando.
1360 – Máscara
A vida desmascarada
Era o carnaval do avesso:
A máscara mais cuidada
É a vida inteira que teço.
Sou a máscara que meço,
Sou a que não sou também:
Comigo mesmo tropeço,
Não sou nunca o que convém.
Sou eu e não sou ninguém,
Que o que sou mais conviria
A meu ser que é ser-além.
Mascaro-me numa via,
Noutra sou desmascarado:
Fico ao fim sempre de lado.
1361 – Sonetos
Sonetos são bem mais que mera soma
De duas quadras e de dois tercetos,
Os versos de palavras são objectos,
Porém objectos que o sentido toma.
E quando, assim, deixam de ser concretos,
Os versos saltam fora da redoma:
Por dentro deles cada coisa assoma,
Retoma a vida em nós rumos secretos.
Primeiro verso é chave que é de prata,
A abrir a porta aos paços encantados.
O fio de sentido se desata,
Corremos com os olhos deslumbrados
Os catorze degraus desta cascata
E o fecho de oiro abre jardins selados.
1362 – Colar
O Natal desata
Um colar de neve,
Um colar de prata
Peregrino e leve.
E, quando se acata
O colar que enleve,
O lugar onde ata
Sua prata breve
Desce ao coração.
Aí é que inteiro
Vale quanto vale:
Quem o leva não
É mais passageiro,
Que leva o Natal!