DÉCIMO  SEGUNDO  VERSO

 

 

ENTÃO,  RITMANDO  UNIDOS  O  ENTREMEZ

 

 

Escolha um número aleatório entre 1275 e 1362 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

1275 – Então, ritmando unidos o entremez

 

Então, ritmando unidos o entremez,

Subimos clássicos degraus da trama

Em que o mundo demonstra quanto ele ama

A sorte de homem que o marcou de vez.

 

Ritmando nossa rima em quanto acama,

Verso a verso, o sentido que nos pés

E nas mãos convergir farão as fés,

Cada vez somos mais virente rama

 

Em árvore de vida e de Universo

Que por nós vive e com a qual converso

Em busca de remates a contento.

 

Por maior que no fim a decepção

Cada pegada marque pelo chão,

Restará sempre o espanto em que me invento.

 

 

1276 – Felicidade

 

Quando buscar o sucesso,

Para ter felicidade

Repare bem no processo

Como gere a actividade.

 

Quando der prioridade

Àquele, será do avesso

Que caminha, pelo que há-de

Ser feliz só no regresso.

 

Muitos, durante a ascensão,

Ficarão tão obcecados

Que os demais só pisarão.

 

Quando chegam aos telhados

Olham à volta e verão

Que estão sós: que desgraçados!

 

 

1277 – Bola

 

As dúvidas, incertezas,

Quando não levam à morte,

Podem agarrar as presas

Tão seguras, de tal sorte

 

Que nada as pode abalar:

É o que ocorre quando alguém

Nem direito tem a um lar,

Não se fixa onde convém,

 

Bola obrigada a rolar.

Somos hoje peregrinos

Mas sem a chama que abrasa,

 

 

 

Sem mosteiros por destinos.

Somos todos peregrinos

Mesmo sem sair de casa.

 

 

1278 – Quem

 

Quem sou eu, quem é o senhor,

Quem os mais que já não são?

Qual a verdade: o palor

 

Do que os espelhos me dão

Ou antes tem mais valor

Quem neles não se olha em vão?

 

A vida que hoje se vive,

A que mora na lembrança,

Onde estou ou onde estive:

Onde mais mora a esperança?

 

Agora estamos unidos,

Agora que a vida é morta?

Ou são laços mas fingidos

De quem já fechou a porta?

 

 

1279 – Memória

 

Nossa memória não é

Nenhum cofre de marfim

Posto na sala, de pé,

Num museu que houver em mim.

 

É uma fera que devora,

Que vive e que me digere.

Come-se a si mesma, embora

Para que eu mais longe impere,

 

Para eu continuar

A viver, para a presença

Dela não vir a afectar

 

O devir de minha crença.

Peneirando me peneira:

Torna-me a vida leveira.

 

 

1280 – Espera

 

Ninguém me espera na estrada

Que não conduz nem à glória,

Nem à riqueza que é nada,

Nem ao amor, à vitória.

 

Que nada leva ao amor,

Ele é que se me atravessa,

Barra-me o trilho em redor.

Para que jamais o esqueça,

 

 

Se me abandona o caminho,

Deixa-o tão interrompido,

Minado por tanto lado

 

Que mais que fico sozinho:

- Sou na raiz destruído,

Sou um caminho afundado!

 

 

1281 – Preço

 

Qual o preço da saúde,

O da angústia de a perder,

Aprendemos a que alude

Quando a sós vamos viver:

 

Adoentar-se alguém, febril,

Tossir noite, tossir noite,

A perna a tremer, subtil…

Se a janela à chuva acoite

 

A fronteira do silêncio,

Lá dentro a cama desfeita

Nem sequer é uma adivinha.

 

Ser acamado convence-o

Do que foi maior desfeita:

- Como a doença é sozinha!

 

 

 

1282 – Trinta

 

Trinta dias de comboio,

Trinta séculos a andar

Por entre trigais e joio

Sempre a mudar de lugar.

 

Ninguém pode imaginar

Um moinho como mói-o

Ao Homem jamais com lar:

Nem gente é nem nunca foi-o.

 

Vê-lo é ver água corrente

Entre margens de erva húmida

Que a pele crispa à serpente.

 

A sede em nós é tão túmida

Que o desejo é doloroso:

- A dor de Homem pelo gozo!

 

 

1283 – Ermida

 

Arte é uma expressão de vida,

Da vida que outrem viveu,

Não a tumba mas a ermida

Com trilho apontado ao céu.

 

 

O sentido que eles deram

A essa vida vivida

É o que as obras de arte geram

Em quem à vida as aconvida.

 

São os projectos viáveis

Que o homem empreendeu,

Seguidos idade a idade.

 

As rotas recuperáveis

Por onde percorro eu

A idade da Humanidade.

 

 

1284 – Estafetas

 

Revolucionário,

Dure o que durar,

Corres, duro e vário,

Metas a visar.

 

Jogo de estafetas,

Quem tem de agarrar

Testemunho, as metas

Nunca irá cortar.

 

Mas teu ideal

É passá-lo à mão

Doutro corredor.

 

- Teu valor real

É o da precisão

Do gesto dador.

 

 

1285 – Culpa

 

Algum homem haverá

Completamente liberto

Duma consciência má,

Com a culpa tão por perto?

 

Culpa de não fazer nada

Para salvar o seu povo

Da miséria desbragada,

Da opressão sem renovo…

 

Culpa disto de ser homem

Com as desgraças à solta,

Feras que jamais se domem.

 

Culpa dos passos em volta:

Nossas pegadas que somem

Rotina em vez de revolta.

 

 

 

 

 

 

1286 – Veneno

 

A verdade duma igreja

É de vizinha que more

Do povo que sofre e arqueja,

Onde a vida lhe demore.

 

Para então sobreviver

Com dignidade na história

Foge ao veneno que houver

Nas honrarias, na glória…

 

Todo o poder temporal

É mentira e falsidade:

Renuncia, que ele é o mal,

 

E de vez dele se evade.

Vale de vez o que vale,

Só então começa em verdade.

 

 

1287 – Combate

 

O Governo é tenebroso

Como a desgraça na guerra.

Não pode a guerra dar gozo

Quando o general se aterra

 

Com o sofrimento atroz

Que lhe atormente os soldados

- Que afinal seremos nós

Nos eventos triturados.

 

Não há guerras disputadas

Se as baixas são bofetadas,

Se cada dor apunhale

 

O peito do general.

O governo é tenebroso,

- Que minha dor dá-lhe gozo!

 

 

1288 – Panorama

 

Caminhamos sem pensar

Tendo ao fundo o panorama

Que muda o tempo e o lugar

Do que em redor se derrama.

 

Enquanto assim me arrastar,

Transporto comigo a trama

De imagens mortas dum lar

Em que vivi, colo de ama.

 

Até o dia em que a encontrei:

Não é mais o que deixei

O mundo, o mundo mudou!

 

 

 

Num abrir e fechar de olhos,

Nem sequer restam escolhos,

Quem eu fui nunca mais sou.

 

 

1289 – Espelho

 

O espelho, quanto reflecte

De alegre ou triste é mentira.

Das imagens lhe compete

Decifrar quanto se vira.

 

Porém, tudo o que decifra,

Só pelo facto de vê-lo

Transmuda-lhe logo a cifra,

Troca a marca, perde o selo.

 

Há um outro eu escondido

Que se não vê no do espelho,

Feito dum saber mais velho.

 

Alegre ou triste é o sentido

Da imagem que ali perpassa,

- A mim, o espelho não caça!

 

 

 

1290 – Páginas

 

Quando nasci me ofereceram vida

No livro com as páginas marcadas,

Previamente ali determinadas,

Mas em branco, tal rosto que convida.

 

A nós nos cabe encher, desde as lombadas,

Estas páginas brancas de seguida,

A indicação alheia obedecida

Ou não, que são variadas as estradas.

 

Em pequenos, os pais riscam por nós,

Embora muitas vezes não gostemos,

Mas nada obriga a lhes seguir a voz.

 

Peguemos nesse estilo que nos fez,

E a nossa própria história comecemos:

- No fim de contas, vida é só uma vez!

 

 

1291 – Raios

 

Os raios jamais fulminam

Os vales, mas cumeeiras.

São aqueles que dominam

As vítimas mais certeiras.

 

Como não fulminam vales,

O que importa é tomar tento:

Que importa se muito vales,

Se em cinzas te morre o intento?

 

Ser um vale e dos mais fundos

Onde a vida a sério corre

É que sempre gerou mundos.

 

Quem trepa aos cumes acorre

Acaso a sonhos profundos

Mas o mais certo é que morre.

 

 

1292 – Miséria

 

A miséria humana,

Nunca satisfeita,

No que tem se engana

E o que não tem ‘spreita

 

A ver donde emana

A melhor colheita.

Nisto é que se dana

E acaba desfeita.

 

Em troca não goza,

Sempre desejosa

Do que nunca tem,

 

Toda a mais-valia

Que só lhe adviria

De ser hoje alguém.

 

 

1293 – Sidéreo

 

O que por fim nos descansa

No problema do Universo,

Do que representa a frança

Em cujo galho converso,

 

É que, ao ver que não alcança

Donde vem o infindo berço,

A razão apenas cansa

Se ali me quiser imerso.

 

Porque, verdadeiramente,

Descoberta do mistério

Que encobre o manto sidéreo,

 

Só a vontade a torna urgente:

Deus a tal, em nenhum lado,

A ninguém fez obrigado.

 

 

1294 – Prisões

 

A religião, de estranho

Tem que não liga, desliga.

Se dela quero o tamanho,

Só furtando-me ao que obriga:

 

 

 

Então posso ter de ganho

Quanto universal persiga,

Quando em redor arrebanho

O que sentido consiga.

 

Abolindo excomunhões,

Abraçando o que há de humano

Nas crenças, povos, nações,

 

É que então de mim emano:

Liberto enfim das prisões,

Creio por não crer no engano.

 

 

1295 – Ditadura

 

A essência da ditadura

É que a palavra da rua

Não é válida, de impura,

Por não provir nua a crua

 

Do mentor, da direcção.

Aqui, pois, tudo se apura,

Aqui reside a questão:

 

Na ditadura o poder,

O bordão a que se arrima,

Bem como todo o saber,

É que ambos vêm de cima.

 

Então a religião,

Com a verdade acabada,

Tem-na o ditador à mão,

 

É a divindade incarnada:

- Seja ateu ou seja crente,

Ele é sempre o Omnipotente!

 

 

1296 – Mediação

 

Torna-se um homem num Eu

Dum Tu pela mediação:

No princípio é a relação,

Nela a fronteira se abriu.

 

Foi, pois, com esta ruptura

Que o homem principiou:

Como humano se criou

A outrem pela abertura.

 

Ultrapassando o limite,

Nega o limite ao sujeito

Na fronteira do convite.

 

E desde então fica afeito

A apostar só no palpite

Que a todos abrace ao peito.

 

 

1297 – Instituição

 

O que marca a instituição,

Quer a Igreja, quer o Estado,

A justiça, a educação,

É o fim ter delimitado.

 

Realizar uma função

E não as mais é o que visa.

Daqui lhe vem a missão

E o modo como organiza.

 

Hierarquia de poder,

Competências delegadas,

Mais os dogmas a crescer

 

Justificando as paradas.

Assim nunca inova, não:

É eterna a reprodução.

 

 

1298 – Eternos

 

Partindo de fins parciais

Para fins mais elevados

Descubro eternos sinais

De haver sempre os outros lados.

 

Eis, pois, a contradição

Trágica mas exaltante

Da vida em que os homens vão

Progredindo sempre adiante:

 

Por mais que o Homem progrida

Nunca atinge o fim da vida,

Nem a certeza primeira,

 

Nem a meta derradeira.

Contudo, creio num fim:

Viver é já dizer sim.

 

 

1299 – Postulado

 

Todo o pensar, todo o agir

Se fundam num postulado:

Desencadeio um devir

Vindo sempre de algum lado.

 

Tanto um ateu como um crente,

Como um revolucionário,

Tudo tem a vida assente

Num acto discricionário.

 

A diferença consiste

Em que uns tomam consciência,

Para os mais tal não existe.

 

 

 

Quem não vê disto a evidência

No dogmatismo persiste,

Fé só tem a sapiência.

 

 

1300 – Momento

 

Momento em que a razão ganha consciência

Dos postulados em que se sustém,

Momento em que capaz então devém

De pôr em causa os fins, toda a evidência,

 

Momento duma crítica experiência

Do limitado fim que me detém,

É negação da negação também,

Nega o limite do homem na existência.

 

Como pudera ver qualquer limite

Sem pressentir ao menos um além,

Horizonte qualquer onde me fite?

 

A fé não é o contrário da razão,

É da razão tão só final desquite

Que ma liberta enfim da solidão.

 

 

1301 – Idolatria

 

Quando a fé se arrefenta, a idolatria

Pelas superstições então pulula.

Pelo retorna à igreja alguém ulula,

Não por amor de Deus, como devia,

 

Mas por medo do povo e sua gula.

Aqueloutro, um partido propicia

Que no eleito delegue o que haveria

De escolher e a vontade própria anula.

 

Alguns outros pretendem convencer-se

De que a ciência a tudo lhes responde

Só para nada verem do que verse.

 

O erro-base de todos é o que esconde

Que a plenitude humana não virá

De rumos onde o Homem nunca está.

 

 

1302 – Passado

 

Só vivo é que o passado tem sentido,

Passado verdadeiro não é aquele

Que já nos não persiste sob a pele,

Porém o que mantém um dedo erguido,

 

Farol das vidas de hoje onde progrido.

Futuro não é aquilo por que apele,

Que há-de chegar sem mim, a sós com ele,

Que há-de chegar mas com o qual não lido.

 

 

O futuro é o porvir que nós faremos,

Jamais, portanto, o que ainda não existe,

Antes em nossas mãos do barco os remos

 

Com o rumo ao dispor em que me aliste.

Futuro verdadeiro, não ausente,

Respira já presente no presente.

 

 

1303 – Ritual

 

Nenhuma agricultura é já profana,

Da simples técnica demora além,

É um acto ritual, sacro, contém

Um contributo em que qualquer se irmana

 

Ao crescimento da vital refém

Energia presente ao grão que emana

No sulco a vida que jamais se fana:

Do sol, das águas ao vigor se atém.

 

Dos homens o trabalho ata a gavela

Destas múltiplas forças tão dispersas

E o labor doravante acende a vela,

 

É um rumor com sinais doutras conversas:

Estas freimas são quase uma oração

Que homem e Deus estreita em comunhão.

 

 

1304 – Nascimento

 

Da agricultura o primo nascimento

Não é somente um grau da economia,

Ali outra moral já principia,

Traz à religião novo momento.

 

Pela primeira vez finda o tormento

Que à natureza o homem submetia

E, se a pendência dela pesaria,

Mais peso nela agir tem em aumento.

 

As forças doravante ameaçadoras

Não são apenas já da natureza,

Encontram-se entre os homens, nas demoras

 

E traições à recém-nada beleza:

Tribos nómadas rondam, a pilhar

Os campos e rebanhos que inventar.

 

 

1305 – Via

 

A cultura da terra demonstrou

Pela primeira vez que se podia

Viver por diferente e larga via,

Diversa da recolha que imperou.

 

 

 

Não mais o nomadismo que buscou

Os produtos e a caça que haveria,

A matança do gado que surdia,

Domesticado agora noutro voo.

 

O inédito porvir então se abriu

Ante os homens e as teias do passado,

Cadáver que deveras não morreu.

 

Opõe-se o antigo ao novo nascimento

E o homem defendeu, sem aliado,

O direito de ser eterno invento.

 

 

1306 – Empenho

 

Pode a qualquer momento qualquer homem

Obter por seu empenho a liberdade,

Já que por trás de tudo ela sempre há-de

Surpreender a quantos a consomem.

 

Eis a libertação que o persuade

Primordial a notar forças que o domem

Para que, passo a passo, elas se tomem,

Despojos do inimigo que o invade.

 

De facto, quando a escolha alguém perfaz,

Mais do que o Bem e o Mal, o que nos traz

É que a Queda não é destinação.

 

Porque atrás, no começo, o que haveria

É poder destas mãos brotar o dia,

Pendendo do que for a minha opção.

 

 

1307 – Ilusão

 

A raiz da ilusão é o gesto do homem

Que vê do mundo objectos em lugar

Do acto obscuro que os anda a originar.

De si, finito, as vistas se consomem

 

No limite pequeno do limiar

Isolado em que todos cá se tomem:

Nas interdependências do que somem,

O mais comum é nada o revelar.

 

Da comum árvore folhagem, ramos,

Do mesmo oceano vagas renovadas,

Apenas existimos pelos tramos

 

Engrenados no mar de ondas cavadas

Pelas marés e ventos que o agitam:

- Só vêem os que o todo em si visitam.

 

 

 

 

 

 

1308 – Infinito

 

Foge o infinito a ser a negação,

Pois nega a finitude do finito:

Negando a negação que delimito,

Se afirma ilimitada condição.

 

Porém, para além disso é a transgressão

Do que a totalidade tem por fito,

Que a soma dos finitos é o já dito,

O infinito é o inédito em acção.

 

Não é a totalidade, mora além,

Irrupção de possíveis infindáveis,

Terreno de inovar o que convém.

 

O ser não delimita de verdade

Todos os possíveis, todos os viáveis:

O infinito é a raiz da liberdade.

 

 

1309 – Eternidade

 

Sobrevivência a vida eterna? Não.

A eternidade é além da morte e vida,

Cada qual é por ela transcendida:

É o instante no qual se fundirão,

 

Vivido em plenitude, o tempo vão

Do passado já morto na corrida

E o do porvir ainda sem medida,

No agora eterno que encha o coração.

 

O instante é eternidade quando nele

O passado e o porvir são no total,

Dele o sentido tomam que os impele

 

E quando o instante os gera, tal e qual

Como o ponto geométrico ao espaço

Sem de espaço haver nele qualquer traço.

 

 

1310 – Vasos

 

Tal como quando os vasos destruídos

O espaço aprisionado em si libertam

E desde então não mais no-lo acobertam

Que um são com o total, mal devolvidos

 

Os pequenos espaços divididos

Ao exterior das grades que os qpertam,

Assim os homens afinal despertam

Ao fim para o sentido dos sentidos.

 

Quando o homem, quebrando seus limites,

Por uma vez ignora vãos palpites

E se apaga, sereno, sem um grito,

 

 

 

Comunga com o além desta fronteira,

O tempo ao tempo entrega a vez primeira,

Não será mais do que um com o infinito.

 

 

1311 – Recuo

 

Para Deus ficar presente

Quando contemplo ou actuo

É preciso o meu recuo,

Dar-lhe lugar onde assente.

 

É no vácuo dos desejos,

No de mim de que estou cheio,

Que às lonjuras por que anseio

Eu oiço os vagos harpejos.

 

Quando nada me distraia,

Me separe do divino,

Então ponho o pé na raia:

 

Meu eu devém Eu de Tudo,

Em mim Deus age o destino

E falo sendo em mim mudo.

 

 

1312 – Fogo

 

Não abraso madeiras para o fogo,

Não incendeio os toros num altar,

As reses com as quais venho adorar

Dos rituais não vão sangrar no jogo.

 

Fora de mim não busco o desafogo

De algum destino a transferir lugar,

Busco antes um aceno devagar

Que então comigo já me acerte logo.

 

Assim ateio toda a chama em mim,

Meu coração é a pedra deste lar

Donde incendeio o mundo à volta enfim.

 

E a chama que em mim arde sem parar

Sou eu por dentro inteiro feito dado

Ao Todo por amor sacrificado.

 

 

1313 – Flecha

 

Contesto a autoridade mais os ritos,

Nem cerimónias nem inúteis preces,

Culto exterior a requerer benesses,

Tudo nos trai os mais profundos gritos.

 

Não mais da teologia os vãos conflitos

De especular nas infecundas messes

Do eterno e do mundo, ambos tão refeces

Tal do infinito o jogo dos finitos.

 

 

Inútil, não conduz à plenitude,

À alegria liberta da ilusão,

Antes mais fundo e para sempre ilude.

 

Se um homem é ferido pela flecha

O que primeiro importa é a cura e não

Quem a lançou antes que alguém lhe mexa.

 

 

1314 – Pessimismo

 

A vida é sofrimento. O pessimismo

Não é de registar esta existência

Duma infelicidade de evidência

Que importa ver no inteiro realismo

 

Da doença, da morte com que cismo,

Da velhice, do injusto, da veemência

Com que dói de quem ama a longa ausência,

- Da dor o inesgotável nosso abismo.

 

Pessimismo é sofrer de acreditar

Que ali nada é possível alterar,

Impossível vencer a enfermidade.

 

Então se nos redobra esta desgraça:

Sofreremos por crermos que não passa

E por perdermos a oportunidade.

 

 

1315 – Indivíduo

 

É o indivíduo antes a ilusão

De ser, enfim, autónoma entidade,

Quando mais não será que a densidade

Instável de energia em convulsão

 

No corpo e nos sentidos por onde há-de

A ideia se enfeixar no coração,

Devindo a consciência uma função

De toda a confusão que ali o invade.

 

É ilusão, afinal, acreditar

Que existe, sob um destes elementos,

A realidade em si, ser sem lugar,

 

Um actor atrás do acto e pensamentos

Supondo um pensador. Quando medito,

O engano é atrás não ver que há o Infinito.

 

 

1316 – Nada

 

A ilusão fundamental

É desligar.me do todo,

Crer-me um sujeito real

Dos desejos com meu modo,

 

 

 

Um ente individual,

Ilha isolada no lodo,

Quando a ignorância do bodo

Que é a trama do universal

 

É que me induziu a crer

Que não há interdependência.

A existência separada,

 

Se pudera acontecer,

Nem sequer era existência:

Era a existência do nada.

 

 

1317 – Mar

 

Sou forma provisória, fugitiva

Que se esboça no mar ilimitado,

Dele se distinguiu por um bocado,

Logo após é absorvida, não mais viva.

 

Para o mar me dirijo em comitiva,

Que é o mundo do princípio, o todo-o-lado

Não sendo nenhum deles em privado,

Gerador pólo de estelar ogiva.

 

Nele todas as águas já confluem

Eternamente sem jamais o encher,

Igualmente dali todas refluem,

 

Sem delas o esvaziar jamais qualquer:

Assim todos saímos, vago grito,

E tornamos ao seio do Infinito.

 

 

1318 – Mística

 

A estética é uma mística vivência,

Feito o pintor aquilo que ele pinta.

Não tem que reflectir, p’ra que não minta,

Um mundo exterior só de aparência:

 

O realismo é ilusão duma falência.

Não tem de projectar do imo o que sinta,

Universal medida que consinta

Por si pautar o resto da existência.

 

Ao invés, vai no outro dissolver-se,

Em todo o outro e no outro todo,

Segredo de encontrar no que o disperse

 

O que é o da criação discreto modo:

Não, eu jamais escrevo em mim um verso,

Em mim serei o invento do Universo.

 

 

 

 

 

 

1319 – Espaço

 

O espaço na pintura é, não ausência

De formas, o vazio que as espera,

Entre dois pontos não distância mera,

Nem zero ou nada: vera é uma existência.

 

É o elemento gerador, a essência,

O qual no ventre as formas todas gera.

Irão nascer geradas da quimera,

Sugando ao vácuo os modos da vivência.

 

Metáfora do mundo do informal,

Em si contém, de modo virtual,

O já manifestado e o só possível.

 

É o corredor da liberdade aberto,

De todo o jogo de criar tão perto

Que toco na raiz do que é invisível.

 

 

1320 – Margem

 

Quando olhamos da margem de partida

(Ponto de vista de ganhar dinheiro,

Tentativa de posse do cimeiro,

De honras, do poderio de seguida…),

 

Dividido se mostra o chão da vida,

De etiquetas tão cheio e tão useiro

Que desvitalizado traz o cheiro

Da maresia que ali seja haurida.

 

Se não puder atravessar a vau,

Estancar o cachão de entalhamentos,

Fico um fantasma preso ao varapau.

 

Feita a passagem, findam os tormentos:

Para além dos locais em que o divido,

Da nova margem vejo o mundo unido.

 

 

1321 – Fonte

 

Viver o tempo como de esperança,

De militante acção para inventar,

É o porvir lentamente no lugar,

Ligando cada meio ao fim que alcança.

 

Daqui a fonte brota da utopia

Na Terra a germinar os novos céus,

Deveras a curar por firme deus

O que por qualquer falso se entanguia.

 

Fonte do julgamento verdadeiro

De cada qual nas leiras do político,

É dos meios aos fins saltar inteiro.

 

 

 

Então se recupera o valor mítico:

Tanto eleva agir com tal destino

Que um desígnio em nós vive divino.

 

 

1322 – Leiras

 

A pretensão de vir ser a verdade

A verdade com visos de total

É nas doutrinas pecador sinal

Que os profetas tingiu de atrocidade.

 

Num judaísmo ou num islão o mal

É o que um cristianismo igual invade

E um Estado-nação também persuade:

Em exclusivo ter o Deus real.

 

Daqui nasceu o grito “Deus connosco!”

Pan-germanista multi-genocida,

Com o nazismo mais feroz e tosco,

 

E os demais de que a História me elucida.

Quando Deus, afinal, de nossas leiras

Sempre além mora, mora além-fronteiras.

 

 

1323 – Crismo

 

Resseca a doutrina

Por exclusivismo,

Enriquece e afina

Se com outra a crismo.

 

Progride e se afirma

Na veracidade

Quando se confirma

Com outra verdade.

 

Não no isolamento

Mas a abrir-se ao vento

Que soprar do largo

 

É que se fecunda

E então tudo inunda,

Toma o mundo a cargo.

 

 

1324 – Grito

 

O grito dilacerante

“Deus, por que me abandonaste?”

Testemunha bem instante:

Deus não é bordão nem haste.

 

Não pertence, força impante

Nem arma que já empunhaste,

A ninguém que o tenha diante,

Nem saber há que o engaste.

 

 

É apenas questão de fé,

Não de posse nem certeza.

Quem tenta prendê-lo ao pé

 

O que mostra é ligeireza.

O corte é mais radical:

- Quem Deus crê ter, tem o Mal.

 

 

1325 – Moda

 

Se até Deus pode morrer,

Isto altera e incomoda

Do mundo rotina e moda:

Não há mais nenhum poder,

 

Uma autoridade em roda

Ou hierarquia sequer

Que não traga no seu ser

A morte possível toda.

 

Nenhum poder doravante

Há intocável ou sagrado,

Nem rumo desatinado

 

Duma força dominante,

Que não possa ser puxado

Contra o que implementa adiante.

 

 

1326 – Conselho

 

Eis o mais sábio conselho:

Quando meu Eu se apagou

Então Deus em mim achou

Inteiro seu próprio espelho.

 

Deves, Homem, tão vazio

Ser das obras e das coisas

Que Deus possa em tuas loisas

Riscar por seu alvedrio.

 

Opera o vazio em ti

Para que Deus venha ali

Ocupar-te todo o espaço.

 

Os que não possuem nada,

Nada os possui na jornada,

São de Deus o inteiro traço.

 

 

1327 – Singularidades

 

Artes devêm individualistas

Quando procuram singularidades

A qualquer preço, quão maior invades

Mercados, concorrência, frustes pistas…

 

 

 

Arte-reflexo sem do mundo as vistas,

Então sem esperança nem verdades,

Em migalhas desfez as qualidades,

Troca em nada as paisagens por que existas.

 

Não é mero reflexo mas projecto

A grande arte, desvenda o que é impossível,

Do mundo de existíveis faz trajecto.

 

Para além de criar o imprevisível,

Celebrante da vida por nascer,

É quem já o frui sem suspeitar sequer.

 

 

1328 – Concriador

 

Concriador em toda a criação

E não unicamente numa artística,

É quem celebra a vida com a mística

Das obras em que céus novos se dão.

 

Valor profético a imaginação

E subversivo, sem qualquer sofística,

Vislumbra nos possíveis a logística

Dos mundos do porvir que ainda não são.

 

Sugere-nos que o mundo jamais é

Mundo já feito, é mundo a se criar.

A educação consiste, neste pé,

 

Nunca numa criança em adaptar

À ordem existente e seu tecido,

Mas abri-la ao jamais acontecido.

 

 

1329 – Pecado

 

Há pecado individual

E há pecado colectivo.

E com ambos o sinal

É o do que é morto e que é vivo.

 

Há pecado em toda a parte

Quando alguém for impedido

De revelar o que acarte

De humano no seu sentido.

 

Tolhido da divindade,

Da imagem de Deus que traz,

Desfigura a identidade

 

De homem-deus que em si se faz.

O que ao homem entorpece

De Deus igual escarnece.

 

 

 

 

 

 

1330 – Encadeado

 

Cristo não libertaria

Nenhum homem do pecado

Se não lhe varrera a via

Do mal nele encadeado:

 

O racismo em todo o lado,

Prostituição cada dia,

Camponês desapossado

Da terra que comeria,

 

Falta de estradas, caminhos,

De alojamento, higiene,

Saúde por descaminhos…

 

- Enquanto um homem que pene

Houver sem ter seu direito

Ninguém vê de Cristo o jeito.

 

 

1331 – Maior

 

A maior de energias componente

Jamais será das físicas que vemos,

Mas a daquele vácuo que teremos

No fundo coração que de repente

 

Devém motor de mundos, que consente

Esvaziar-se a tal ponto do que temos

Dos laços e prisões a que nos demos,

Que Deus em nós ocupa, omnipresente,

 

Todo o espaço que dantes fora o nosso.

Então, lá das profundas deste poço,

Uma força deriva que bem tersos

 

Nos torna, sem nós próprios, a mover

Em rota nova a frota de quenquer,

E somos o devir dos universos.

 

 

1332 – Cumes

 

Aquele que atinge os cumes

Em qualquer actividade

Não é dos naturais lumes

O que ao topo o persuade.

 

Ele é um dos diligentes

Que dedicam à função

Horas e horas assentes

Em vencer na prestação.

 

É deste afinco maior

Que ao fim lhe vem o primor.

 

Qualidades naturais

Não são nunca as principais.

 

É do pendor com que agimos

Que descemos ou subimos.

 

 

1333 – Nuvem

 

A vida perpassa e passa

Como nuvem sobre o mar,

Agora neste lugar,

Logo além, leve e com graça,

 

Desaparece pelo ar.

Aquilo que nos congraça

É o melhor que nos abraça

Enquanto a nuvem durar.

 

Junto aos mais, enquanto aguarde,

Se transformo em festa as lidas,

No encanto haurido em viagem,

 

Irei recordar mais tarde

As alegrias vividas

E eis-me, ao fim, grato à passagem.

 

 

1334 – Impelidos

 

Aqui vamos impelidos

Pela curiosidade

Ou pela necessidade

De explorar mundos proibidos.

 

Por trás dos cinco sentidos

O que move de verdade

É de voar a vontade

A cumes inatingidos.

 

Onde o verbo é do presente

Sem o passado ou futuro,

Não tenho onde o pé assente,

 

Esbarro-me contra o muro.

É só nas três dimensões

Que me trepo às amplidões.

 

 

1335 – Ponte

 

Podia ter-se afastado

Da ponte a bombardear:

Ninguém diria, de lado,

Que fugira do lugar…

 

Alguns homens, porém, nunca

Se afastam, sempre persistem.

E o fardo da guerra junca

De estilhaços os que existem.

 

 

 

O mundo tem dependido

Sempre do evento primário

Dum punhado destemido,

 

Dum punhado voluntário:

Para a guerra ou para a paz

Sempre ele é o que tudo faz.

 

 

1336 – Predador

 

Se o mundo pretender que seja meu

- Predador, creio bem que pouco falta! –

Terei de amordaçar quem, da ribalta,

Intransigente e só me resistiu.

 

Meia dúzia de vozes sob o céu

Aqui, além, se ergueram, grita em alta:

É a fome a pedir compras, que se exalta,

Que por dinheiro perde a cara e o véu.

 

Problema apenas há quando o dinheiro

Nenhum poder exerce ao portador

Do alerta que nem bomba cala inteiro.

 

Ribombo de canhões tem mais fragor,

Mais forte é que o inerme que os enfrenta,

- Só que o porvir é deste que se inventa.

 

 

 

Balas, bombas, canhões, quando ressoam,

Ressoam bem mais alto do que os gritos

Das vítimas que esmagam em seus fitos,

A ponto que amanhã já nada ecoam.

 

Engano-me, porém, que tais delitos,

Quando em estilhas as cidades voam,

É nos silêncios que, entre os fumos, soam,

Dos cadáveres sendo enfim precitos.

 

Então é que esta voz silenciada

Se faz ouvir de vez com toda a força,

Que doravante nada a impõe calada.

 

Restou ao predador o custo a que orça:

Quão mais donos da voz ele suprime

Mais a voz nos liberta de sublime.

 

 

O melhor, o melhor são todos quantos

Morreram e tiveram o cuidado

De altear sua voz longe do fado

Da morte onde morreram desencantos.

 

Morreram mas a voz ficou de lado,

Viva ficou dos mortos com os cantos,

Vivendo por si só, vivendo os prantos

Que algum dia na noite hão madrugado.

 

E o sábio predador activamente

Trabalha no projecto de calar

Esta voz, toda a voz que não tem dono.

 

Como será, porém, que alguém atente

Contra vozes sozinhas, sem lugar,

Contra o que dentro em nós jamais tem sono?

 

 

Era um canto incompleto, fragmentário,

Das profundas do tempo peregrino,

Mas pouco a pouco vai em coro um hino

Tecendo na cadeia longo e vário.

 

De vozes a cadeia do destino

De homem a homem tece o elo primário,

Depois de rua a rua, o secundário,

Até o mundo varrer num desatino.

 

Quando entre si se atarem como irmãos

Todos os homens do universo inteiro

E a voz única erguer juntas as mãos,

 

Este homem feito de homens e de vozes

Num predador jamais verá um parceiro,

De vez liquidará quaisquer algozes.

 

 

Se em troca de falar da humanidade,

Deste amor que entretece lida a lida,

De apontar que assassinos são da vida

Os que dos homens predam a verdade,

 

Se em vez de tal forem cantar o que há-de

Das sementes fugir do que convida

A abrir portas e portas de seguida,

Se em troca falam do que for vaidade,

 

Se o fútil corpo cantam das mulheres,

Do mar tredos encantos noite fora,

O vazio crepúsculo dos seres…

 

- Então é que o perigo em casa mora:

As vozes já não erguem mais barreiras,

Transgride o predador quaisquer fronteiras.

 

 

“Não é possível transformar o mundo,

Nem os homens terão de ser felizes:

Quem pode duvidar que iguais matrizes

Nos marcam desde o fundo mais profundo?”

 

Será sempre jogando em tais matizes

Que o predador com a razão confundo

E justifico o pego em que me afundo,

Elejo os criminosos por juízes.

 

Aos homens então resta serem nada,

Vaga poeira ali alevantada,

Logo tombada em lento entardecer.

 

Ao Homem bastará o sopro da vida

Quando o caminho não tem mais saída,

Ao homem basta então apenas ser?

 

 

Quando a mulher apenas instrumento

Para nós for do fim que nos propomos,

Belo e delicioso como os pomos

Que houver na cercadura do convento,

 

Vamos então jogá-la nua ao vento,

O canto lhe atrair de quantos gnomos

A fruta proibida tem nos tomos,

E o importuno cai no armado invento.

 

As vozes já não cantam roubos, crimes,

Cantarão seios, coxas de mulher,

Desatam-se do feixe então de vimes.

 

E só quando um amor parir quiser

Um mundo novo por ele a surdir

Dão corpo as vozes a qualquer porvir.

 

 

No dia em que este mundo for só meu

- Promete o predador à incauta amante –

Hei-de tê-la a meu lado, bem diante,

De seu marido forra, e apenas eu

 

Lhe ofertarei este Universo ateu

Todo inteirinho, tal um diamante,

Para enrolar ao colo cintilante,

Como um colar que nunca alguém lhe deu.

 

O meu sorriso – diz, toda enleada,

Esta fêmea voraz, nunca enfartada –

O meu sorriso tem todo o calor

 

Aberto sempre e só mas para aquele

Que no fim vista a inconfundível pele

De quem de facto for o predador.

 

 

1337 – Vivo

 

Mata-me, que me inporta? Estarei vivo,

Vivo dos companheiros nesta luta,

Dos que virão depois noutra disputa,

E tu serás de vez de mim cativo.

 

Nesta felicidade enfim revivo

Dos que virão mais tarde, aquela arguta

Comunidade, ao fim, pisando a juta

De que hoje teço a teia, calmo e altivo.

 

Meu canto fica ecoando a seus ouvidos

Até à derradeira geração,

Ritmo a marchar em frente dos sentidos…

 

Podes matar-me, que matas em vão:

Matando-me a ti matas, por sinal,

E a mim não, que me tornas imortal.

 

 

1338 – Empurrões

 

Dentro do tempo os empurrões da vida

Resolvem-se de pé, olhando-a em frente,

E as palavras não bastam, de repente,

É urgente muito mais que a brisa ouvida.

 

Da palavra é preciso nasça erguida

A mão e o braço que fará presente

Um mundo novo a renascer, ingente,

Mil dedos já na trama entretecida.

 

Mil dedos ou milhões a construir,

Quando um só nos bastou para acusar

Quem nos proíbe de chegar ao lar.

 

Na escuridão gerada, a hora a vir

Amanhece no mundo o novo dia

E eis que o Homem, o Homem principia!

 

 

1339 – Fim

 

Quanto a vós que jamais vedes o fim,

Nunca deixei de vos acompanhar,

Em vosso peito fiz secreto lar,

Tivestes-me por dentro sempre a mim.

 

A hora aguardo de vos empurrar

Para o buraco aberto no confim

Do tempo, donde ninguém volta, enfim,

E alargo dia a dia meu lugar.

 

A ruína no rosto que seguíeis,

Das mãos este tremor que já nem víeis

Sempre eu era a pôr minha assinatura.

 

Agora um vago gesto distraído

Aos distraídos selará o sentido,

De vez a morte a todo o cancro cura.

 

 

1340 – Trama

 

Um Deus que se ama,

Um Deus que se teme…

Dos ódios a trama

Dos humildes freme

 

No amor que detêm

Pelos poderosos,

No culto também

Pejado de gozos

 

 

Pelos opressores.

O ódio do amor

Onde quer que fores

 

Sempre o encontrarás.

Onde houver senhor

Nunca haverá paz.

 

 

1341 – Transcendência

 

A transcendência de Deus,

A transcendência do Homem…

Os nossos gritos aos céus

Os céus vazios consomem.

 

A derradeira verdade

Deste esbracejar infrene

Na busca fruste e solene

É que eu busco a Humanidade:

 

Em mim, noutrem, mais além,

Comunhão universal,

Que só nunca fique alguém…

 

- O Homem-Deus busco, afinal,

Não num qualquer, mas em mim:

De mim ao chegar ao fim!

 

 

1342 – Pátrias

 

Um homem poderá ter

Muitas pátrias e diversas:

Clara é aquela em que tiver,

Em terra estranha, as conversas

 

Que revelam a mulher,

Distante das próprias berças,

Que dum aceno qualquer

As horas converte adversas.

 

Só nela é que ele compreende

A trilha da raça humana

Imortal por sobre a terra:

 

Procria, luta, defende,

Cria do Homem quanto emana

E morre em paz, finda a guerra.

 

 

1343 – Paixão

 

Paixão emergente,

Porém, combatida,

Viu-a toda a gente,

De mal escondida.

 

 

 

Amor saciado,

De lado a acolher-se,

Finge outro cuidado,

Vai logo esconder-se.

 

Por isso quem desconfia

O que tem é a fantasia

Do que lhe fizer ciúme:

 

Não verá que o que não vê

À guerra é que dará pé,

Sofre a ausência dum perfume.

 

 

1344 – Vento

 

Há quem tome por desleixo

O vento a falar na rua,

Que despenteia, abre o fecho,

Põe a linguagem nua.

 

Porém, na madeixa um trecho

De língua fresca adequa

Quem ao ar aponta o queixo

Buscando frescura sua.

 

Mas é seiva criadora

Que no vento popular

A língua colhe e devora,

 

Injecção que vai curar

Pelo artifício supremo

A palavra com que gemo.

 

 

1345 – Quinhão

 

Outrora, se mais sofria,

Se mais duro era meu pão,

Se a dor mais negra feria,

Mais vida eterna em quinhão.

 

Agora a ilusão caiu,

Sôfrega deveio a vida

E a maré do desafio

Sobe ávida e destemida.

 

Eis o mundo posto a saque,

O sangue, a violação,

Cada qual pronto ao ataque…

 

Ninguém, pois, toma atenção

Ao que tombar com o baque

- E o mundo ao fim cai ao chão.

 

 

 

 

 

 

1346 – Cometa

 

Cada qual trará consigo,

Cometa que arrasta a cauda,

Lama e oiro que persigo

Lendo-os como numa lauda.

 

Vestígios de ideias, crimes,

Toda a marca do passado,

Horas de amargor sublimes,

Qualquer beijo que foi dado…

 

É um olhar de feiticeiro

Que os lê na sombra que arrasta

Cada qual atrás de si.

 

Nada apaga por inteiro

A infausta marca ou a fasta

De tudo quanto vivi.

 

 

1347 – Vício

 

Raciocinar, eis o vício

Com o qual se chega a tudo,

Mesmo a ministro: um comício

Basta, se for de veludo.

 

De teoria um resquício,

Qualquer palavra eu a iludo,

Que o vento a leva, de ofício,

O que importa é não ser mudo.

 

Isto, porém, é ilusão:

A verdade amarga é esta

Vida em que é urgente sonhar.

 

Os pontapés tantos são

Que na vida qualquer festa

Só no sonho tem lugar.

 

 

1348 – Canaliza

 

Um homem de Estado

Canaliza o sonho

Da grei para o lado

Que for mais risonho.

 

Projecto acabado,

Todo o herói, bisonho,

Hoje onde o telhado

Dos Estados ponho?

 

Conservar o lume

Na cinza latente,

Sem perigo e quente,

 

 

 

A tal se resume:

- A nunca apagar

O sonho no lar.

 

 

1349 – Fruto

 

Da vida mesmo o que for mais minúsculo

Em cada qual não será todo seu,

Já que ao invés ele antes se deveu

A um gesto doutrem de que é um mero opúsculo.

 

Porém não somos, mesmo em qualquer músculo,

Iguais para os demais, pois quem nos viu

Um livro ou testamento em nós não leu,

Nem quando escrito em tipo bem maiúsculo.

 

A personalidade social,

A sombra que acompanha cada qual,

Por mais que dele seja um elemento,

 

Bem pouco dele próprio foi produto,

De mil encontros será sempre o fruto,

É doutrem criação lançada ao vento.

 

 

1350 – Ciúme

 

Quando se apercebeu de que eram muitos

Que a mulher acreditam desejável,

Cujo corpo acordara vãos intuitos,

Cada mais saboroso, inconfessável,

 

Que eram muitos que sonhos tais gratuitos

Então alimentavam no inflamável

Coração, quando viu estes fortuitos

Fogos sua mulher tornar amável,

 

É que lhe despertou a dolorosa

Necessidade de agradar-lhe o ser

E os sentimentos de mulher fogosa.

 

Então é inestimável o prazer

De ensinar-lhe, sem marcas de azedume,

Que móbil lhe não dê para o ciúme.

 

 

1351 – Peso

 

Quem tem algo que tem peso,

Se quiser saber um dia

Como é que se sentiria

Sem de tal ter mais o vezo,

 

Já do espírito o desvia

E tudo o mais deixa preso

No mesmo estado em que, ileso,

Lá estava se inteiro o via.

 

 

Ora, uma ausência não é

Mera falta parcial

Com tudo o mais lá de pé.

 

Será o transtorno total:

Não vejo, mantendo o antigo,

Quão novo serei comigo.

 

 

1352 – Dias

 

Os dias de nossa vida

Nunca são todos iguais,

A mudança que é sentida

É que andam menos ou mais.

 

Se os dias são montanhosos,

É um infinito a escalar,

Mas se descem, escabrosos,

É só travão, devagar.

 

Muitas as velocidades

São as dos dias que temos.

Com os pisos e as idades

 

Como os carros nós nos vemos:

Quando ao fim se a vida mata

É como ir para a sucata.

 

 

1353 – Cadernos

 

Em páginas de cadernos

Teu nome escrevo e a morada.

Tais termos em mim tão ternos

Larga em mim te abrem a estrada.

 

Mas depois desta jornada

Fundo caio nos infernos,

Pois de ti não me traz nada,

Só devaneios supernos.

 

Afinal de ti não falam

Mas da imagem que em mim mora,

Que nem vês, que te não ralam

 

Fogos do que me devora

Neste vazio de mato

Que eu sem ti em mim constato.

 

 

1354 – Renunciar

 

Renunciar ao prazer

Duma confissão de amor

Poderá visar manter

Uma inclinação maior

 

 

 

Do lado do que a quiser.

Como um jardineiro à flor

Japonesa, para obter

Mais bela pétala e cor,

 

Lhe sacrifica em redor

Várias outras que enfezadas

Cobre de terra às pazadas.

 

E logo brota o primor

Daquela para a colheita

Que consagra a flor eleita.

 

 

1355 – Verso

 

O verso é o corpo da ideia

Que ao contrário dos demais

Tanto dela se permeia

Que é transparente aos sinais.

 

Suplemento é tudo o mais,

Gesto, atitude, voz cheia,

Que apostarão que jamais

Se apague a chama que ateia.

 

São invólucros que em vez

De esconder mais a revelam

À ideia, de tal jaez

 

Que, enquanto por ela velam,

Raio de água refractado,

Mais rebrilha em todo o lado.

 

 

1356 – Noutro

 

Sentimos num mundo

E noutro pensamos.

E, se nomeamos,

É com outro fundo.

 

Entre os três podemos

Uma concordância,

Ponte de elegãncia,

Ligar nos extremos.

 

Porém, nós jamais

Daremos finais

Saltos cujo abalo

 

Nos vá preencher

Os longes que houver

Naquele intervalo.

 

 

 

 

 

 

1357 – Prisão

 

É uma prisão o silêncio

Que vem da mulher amada,

Mais que o da prisão, que vence-o

A este o pregão da estrada.

 

É parede imaterial,

Impenetrável, vazia,

Mas que ao raio visual

Do abandono não ruía.

 

O silêncio o que ilumina

Não é uma ausente, mas mil

Entre que mil discrimina

 

Traições que porão senil

Um amante abandonado:

Ele ama o amor acabado!

 

 

1358 – Rompimento

 

A esperança de que a amante voltaria

Dá coragem de manter o rompimento,

Como crer que do combate tornaria

Auxilia ao combatente o passamento.

 

E, como o hábito, entre as mais plantas humanas

É a que menos requer solo nutritivo,

Que primeiro apareceu nas terras planas,

Desoladas, onde nada cresce vivo,

 

A princípio praticando então talvez

A ruptura em fingimento, se calhar

Este amante, a longo prazo, ali de vez

 

Se acostume à solidão, mui devagar:

E por fim, sinceramente abre a janela

E descobre que sozinho a vida é bela.

 

 

1359 – Estátua

 

Como o espírito do artista

Continua a modelar

A estátua que teve em vista,

Mesmo se a desfez no ar,

 

Assim nossas intenções,

Em filhos, netos, bisnetos,

Modelam corpos, noções,

Desde os traços mais discretos

 

Ao rigor das soluções.

Então irei incarnando,

Tal um deus materializado,

 

 

 

Tanto um sorriso que é brando

Como dum comando o brado…

- Falto ir eu no que assim ando.

 

 

1360 – Máscara

 

A vida desmascarada

Era o carnaval do avesso:

A máscara mais cuidada

É a vida inteira que teço.

 

Sou a máscara que meço,

Sou a que não sou também:

Comigo mesmo tropeço,

Não sou nunca o que convém.

 

Sou eu e não sou ninguém,

Que o que sou mais conviria

A meu ser que é ser-além.

 

Mascaro-me numa via,

Noutra sou desmascarado:

Fico ao fim sempre de lado.

 

 

1361 – Sonetos

 

Sonetos são bem mais que mera soma

De duas quadras e de dois tercetos,

Os versos de palavras são objectos,

Porém objectos que o sentido toma.

 

E quando, assim, deixam de ser concretos,

Os versos saltam fora da redoma:

Por dentro deles cada coisa assoma,

Retoma a vida em nós rumos secretos.

 

Primeiro verso é chave que é de prata,

A abrir a porta aos paços encantados.

O fio de sentido se desata,

 

Corremos com os olhos deslumbrados

Os catorze degraus desta cascata

E o fecho de oiro abre jardins selados.

 

 

1362 – Colar

 

O Natal desata

Um colar de neve,

Um colar de prata

Peregrino e leve.

 

E, quando se acata

O colar que enleve,

O lugar onde ata

Sua prata breve

 

 

Desce ao coração.

Aí é que inteiro

Vale quanto vale:

 

Quem o leva não

É mais passageiro,

Que leva o Natal!