Escolha um número aleatório entre 1363 e 1456 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1363 – Transporemos sarcasmos e ironias
Transporemos sarcasmos e ironias
Com que medimos
Os troços que traímos
De amores escondidos atrás das gelosias.
Transporemos pés botos, noites frias,
Quando zurzimos dos cimos
Todo o mal que imos
Cevar, porcos nojentos, pelas pias.
Transporemos tempo novo,
Que, quando quero, me inovo
E agarro com alma os remos.
Atrás deixo o rasto
Que me foi nefasto
E transpor-nos-emos!
1364 – Casamento
Um casamento é aceitar
Passar o resto da vida
No meu quarto a tiritar
Junto à pessoa querida
Que, de calor, fica a assar!
Neste desencontro unidos,
Aqui mantas e cobertas
E acolá delas despidos,
É que então há descobertas.
1365 – Até
O casamento é tal como
Fazer uma pirueta,
Com fachis comer um pomo:
Quando nele repararmos,
Parece fácil receita,
Facílima… Até tentarmos!
1366 – Controlo
- Controlo de nascimentos?!
Os filhos são Deus quem dá!
- Também a chuva e os ventos,
E o guarda-chuva aqui está…
1367 - Rugas
Se rir muito, muito rir,
Quando for velho, decerto,
As rugas que então curtir
Curtirão no lugar certo.
1368 – Organizado
Aquele que é organizado
É que a preguiça é demais
Para andar por todo o lado
À procura dos dedais.
1369 – Inteligentes
Os que são inteligentes
Por experiência te falam.
Os que o são mais é que sentes
Que, por experiência, calam.
1370 – Destino
O destino é a mais fecunda
Imagem do desatino:
É que há muito quem confunda
Má cabeça com destino.
1371 – Nostalgia
A nostalgia é lembrar
Os preços de ontem, porém,
Esquecendo de hoje, a par,
O salário que se tem.
1372 – Riso
O riso é como a compota
Na torrada que é a vida:
Doutro sabor dá-lhe a nota,
Fica a secura delida
E, a quem enfrenta o porvir,
Mais fácil o é de engolir.
1373 – Mexer
Travando a vida a correr
Quantos asnos há que zurrem?
- Se acaso não se mexer,
Não espere que o empurrem!
1374 – Vizinhança
Toda a vizinhança espera
Ver-me envolvido em sarilhos.
Que prazer que isso lhe dera,
Quantos ditos para os filhos!
Um saco de caranguejos,
Todos lá dentro amarrados,
Andando ao acaso, vejo-os
Tolhidos de muitos lados.
Decide um tentar a fuga
E então os mais, de repente,
Tal do sono quem madruga,
Correm a fazer-lhe frente.
Andavam fazendo nada.
Doravante, porém, acho
Que deram rumo à jornada:
- É puxá-lo para baixo!
Toda a vizinhança espera
Ver-me envolvido em sarilhos:
Que labor que tal lhe dera,
Que sentidos para os filhos!
1375 – Conservar
Aos vinte anos temos só
Roupas, orgulho e apetite.
Dos vinte aos cinquenta o pó
Nem tempo tem que espevite
Quanto p’ra casa acarreto.
Aos sessenta delicio-me,
Desde o chão até ao tecto,
Com tanta tralha! Após rio-me
E, dos sessenta aos setenta,
O maior prazer é dar.
Depois disto o que alguém tenta
É só os dentes conservar!
1376 – Além
Meça além quanto haverá
Depois do gesto primeiro:
Coce um cão e encontrará
Um trabalho a tempo inteiro!
1377 – Dinheiro
O dinheiro nunca pode
Comprar a felicidade
Mas ajuda, quando acode,
A achar-lhe a localidade.
1378 – Xadrez
A tua cor favorita,
De tão indeciso que és,
Não fala nem geme ou grita,
A tua cor é o xadrez!
1379 – Fragrância
Económico, concentro
Duma pechincha a fragrância
Pelo menos a um centro
Comercial de distância.
1380 – Sarno-os
Melhor é evitar tormentos
(Muitos, viciosos, eu sarno-os)
E saltar à contramão:
- Pois com certos alimentos,
Nós podemos viciar-nos
Em boa disposição.
Alimentar-me equilibrado e bem,
Mais que alimento é festa que tem.
1381 – Truques
Os truques com a ilusão
Do desaparecimento
Mais rápidos jamais são
Que as oito horas que aumento
Às do trabalho outras oito,
Mais as oito em que pernoito:
- Duram, sem truque, um momento!
1382 – Propósitos
Bons propósitos dirão
Que nos servirão de cura…
- Os bons propósitos são
Mais cheques sem cobertura!
1383 – Organização
A organização atinge
O ponto de perfeição
No momento em que não finge,
- Cai em colapso no chão!
1384 – Nariz
Se tu tens o teu nariz
Só no trabalho enfiado,
A vida passa-te ao lado,
Do que vês não és feliz.
No teu mundo de não-ser
Apenas a ti terás
De teu nariz bem atrás…
E o trabalho por fazer!
1385 – Diferente
Pobre, rico, é diferente
Mais do que a bolsa lhes meça:
O pobre vai para a frente
Só quando mesmo tropeça!
1386 – Cego
Bem gostava de ser velho,
Sendo o novo que aqui vou,
Descansando o perro artelho
Atrás a ler longo o voo.
Crendo repentinamente
Que tinha feito e cumprido,
Que importara a muita gente,
Era o velho em novo erguido.
Ser, porém, um velho velho,
Deus me livre, te arrenego:
Não é mais que o mau conselho
De quem me quer de vez cego.
1387 – Festas
As festas infantis
São mais que cantos e danças,
Nelas é que descobris
Que mais que as vossas crianças
Outras há bem imbecis:
Como são aborrecidas!
- E é por isso que as convidas:
Como então te recompensa
Constatar a diferença!
1388 – Incenso
Nas espirais de incenso escuto os coros,
Reencontro ali dentro a mesma entrega,
O mesmo entressonhar distantes louros,
Fé que não se interroga e a que se apega
Um desejo obcecado do seguro,
De o responsável ser fumigação,
Tornado mais suave e talvez puro,
De esquecer a Cruzada, a Inquisição…
- Quando deixou de ser a perseguida
A Igreja usou da espada e da foguueira,
Com as torturas fez desde então vida
E é doravante o fruto desta asneira.
1389 – Lagostim
Nós somos o lagostim
Na panela de água fria
P’ra cozer, cozer sem fim,
Até que a morte sorria.
Chegam os cinquenta graus,
Gritamos todos em coro:
Como os tempos correm maus,
Quem nos dera o antigo choro!
Quando vêm os sessenta:
Ai que bem que nos faria
Retornarmos aos cinquenta
Que ainda há um nada se sofria!
E sempre assim por diante
O que nos marca a saudade
É que é o passado o garante
Da mais ínvia eternidade.
1390 – Sacrifício
Afinal a que conduz
O sacrifício de Cristo?
Sangrentas mortes na cruz,
Fanatismo jamais visto,
Às câmaras de tortura
E morte da Inquisição,
Ao suplício da fartura
De bruxas que inventarão,
Dos heréticos à morte…
- E tudo em nome do amor
Do próximo, cuja sorte
Salvou Deus Nosso Senhor!
Valha-nos Deus, Deus nos valha
Mais a sorte que nos calha!
1391 – Ocioso
Liberdade de ocioso:
Não tem qualquer profissão,
É um homem desocupado.
Todo inteiro entregue ao gozo,
Dia e noite na função…
…É como a pega do lado!
1392 – Esterco
Como é rude
Chamar de esterco a um filho!
E como o amor ilude!
Por mais que ofusque o brilho,
Que mais é que um poio de imundície
Que apenas tem dele em abono
Os brocados da superfície?
Somos um monte de esterco
Arreado de oiro e prata.
Se pelas sedas me perco,
Este é o erro que me mata.
1393 – Fogo
Dia de fogo na aldeia
É um palco de actuação:
À tragédia dar a mão
No prazer da dor alheia…
Depois cada qual é herói
A contar como é que foi.
1394 – Temas
As mulheres nunca tardam
A chegar aos grandes temas:
Vida, morte, liberdade, amor…
Os homens, só quando lhes ardam
Nas mãos os problemas.
O resto é política, futebol e a avaria no motor…
1395 – Poder
Quando um homem conquista o poder
A desgraça é que o poder é seu:
Até as galinhas e os cães que tiver
Sobem ao céu,
Como se não bastara a desgraça de a ele
Inchar-lhe de sapo a pele!
1396 – Civilizado
Num país civilizado
Eu caminho protegido,
Mas ai de mim se, de lado,
Rumo a um rumo proibido.
Se quero a verdade toda,
Troca o guarda a identidade,
Ata-me os grilhões em roda,
- Carrasco da liberdade!
Mas porque é civilizado,
Este discreto tropismo
Nem sequer mesmo é notado:
- De paraíso é que o crismo!
1397 – Político
Um político, em mercado,
Deteriora-se e se iguala
Ao que, podre, no passado,
Rejeitado fez a mala.
1398 – Prisão
Tem o mérito a prisão
De tornar deliciosos
Os dias que aí virão
Da vida livre e de gozos.
1399 – Desejo
O desejo carnal, mesmo escasso,
É um inimigo secreto, avassalador:
Quando não fora devasso,
É mesmo devassador.
Quer saltar da cerimónia
Ao rito da intimidade,
Da casca ao cerne sem acrimónia,
Da sala à alcova com alacridade.
Enquanto vai da rua ao quarto,
A deliciosa fatia inicial
Que me reparto,
Assim tão empenhado,
É um mero naco de animal
Sublimado.
1400 – Greve
A greve uma grande arma tem de ser
Para ter a fabricação
Por conta dela do pão
Que o grevista, afinal, deixa de comer.
1401 – Peles
Polícia, guarda, um soldado qualquer
Alugam peles vivas, as suas peles.
Depois outros convencem-nos a morrer
Por uma causa que não é a deles.
E, ao fim de tantos anos,
Nunca os convenceram de que são humanos.
1402 – Fome
A beleza como o mais
Que mundo além me retome
Só existe quando o anotais
Com a barriga sem fome.
1403 – Desculpa
Aos cacos da loiça partida
Com supercola os grudo.
Assim opera a desculpa na vida:
- Repara quase tudo.
1404 – Televisão
A televisão
Muito pode dar,
Porém tempo, não
Para alguém pensar.
1405 – Celebridade
Os heróis revelarão
A humana potencialidade:
A celebridade
Apenas é dos meios de comunicação.
1406 – Difícil
É fácil no lugar
Ficar sentado a observar.
Difícil, a seguir,
É levantar-se e agir.
1407 – Mapa
O mapa da estrada indica
Os caminhos do regalo,
Mas não te dá qualquer dica
De como deves dobrá-lo.
1408 – Saber
Devias casar com ele,
Que sabe bem o que quer.
O outro prefiro: aquele
Que o que eu quero quer saber.
1409 – Adolescente
Instruir o adolescente
Sobre os eventos da vida
É dar ao peixe, demente,
O banho com que ele lida.
1410 – Jornalistas
Outrora, os jornalistas
Falavam de acontecimentos,
Hoje correm noutras pistas:
De Deus são novéis portentos.
As novas que irão ser nosso amanhã
Clamam agora, omniscientes.
Mas, se a pretensão resultar vã,
Do nada criam tais entes,
E assim, sendo omnipotentes,
O acontecimento inventado
Comentam por todo o lado.
Fazem mal e caramunha,
Ninguém contratestemunha.
São deus:
Quem pode tocar nos céus?
1411 – Obelisco
Um obelisco,
Imponente falo artificial
De pedra, em que risco
Um complexo de castração:
Sinal
Em alta
Duma potência de erecção
Que à civilização falta.
1412 – Latinos
Latinos, a maioria
Como gosta de falar!
Que bom convívio seria
Se escutaram tanto a par!
1413 – Fuzilaria
A eterna posição do democrata:
Dos extremistas a fuzilaria
Se conjuga, baleia e o maltrata
Apenas porque traz a luz do dia
E só de escuridão vive a barata.
1414 – Porcelana
Pensamentos eróticos nutrir
Por uma donzela tão frágil e tão lhana
É querer dormir
Com uma boneca de porcelana.
Embora haja a considerar
Que um minúsculo transístor oriental
É tanto ou mais operacional
Que um rádio vulgar…
Tudo vem do que o pretendente
Quiser,
Jamais de ser
Oriente ou ocidente.
Quem disseca
O erotismo que emana
Duma boneca
De porcelana?
1415 – Demais
Quem não teve pai nenhum
Buscará segundos pais.
Contudo, pai há só um
E, às vezes, um é demais!
1416 – Patife
Na vida nunca encontrei
Um patife
Com a cara que é de lei
E corpo mesmo de esquife.
Isto é que jamais é prático,
Torna a imagem perigosa:
- Todo o patife é simpático,
Pessoa mesmo amorosa!
Caso o não fora,
Bem fácil era a justiça
Que nele se enguiça
A toda a hora.
1417 – Semi
Em tudo serei semi:
Semi-poeta, semi-artista,
Semi-gente, semi-cientista…
Semi-satisfeito aqui
Porque além me semi-falta.
E o pior de tudo
É que assim também sou semi-sortudo.
Depois cá vou, semi-ave pernalta,
Ambulando em todo o lado
Só semi-envergonhado!
1418 – Fêmeas
Duas fêmeas em disputa
Pelo mesmo homem
Apontam os seios em luta,
Canhões armados,
Para que de assalto o tomem,
Finalmente, os couraçados.
Uma da outra diante,
Aprestando-se à batalha,
Ora é a cena canalha,
Ora, a cena galante.
Silentes embora, clamam,
São um grito,
Em ambos os casos pelos homens chamam:
Este é o derradeiro fito.
A diferença de cariz
É mero verniz:
Cairá logo se, na estrada,
Tiverem de disputar à bofetada.
1419 – Preto
- Apresentou-me, indiscreto,
A um preto! Deu-me uma gana!
- Não será que, antes de preto,
Ele é criatura humana?
1420 – Nostalgia
O mundo ainda haveria
De sentir a nostalgia
De quando o Sol se não punha
Do colono onde ia a unha.
Os culpados indirectos
Dos políticos fantoches
Intelectuais são selectos,
Imperitos em deboches.
Defendem, mui liberais,
A autodeterminação
Sem que prevejam jamais
O que requer tal função.
Sem responsabilidade,
Que liberdade haveria?
Senso comum persuade
A não ter fé na magia.
Que nações deformações
São viáveis onde as tribos
Se comem às refeições,
Umas doutras feitos cibos?
O pior é que, com isto,
Eternos se comerão
Sem jamais terem o visto
De que devirão nação.
Que chatice! Que chatice!
Se não fora coisa séria,
Não passara de sandice,
Tudo ria da pilhéria!
1421 – Três
Cada qual são três pessoas:
O que insulta com a raiva,
O insultado, sempre às boas,
E o que nunca entre ambos caiba.
1422 – Imprensa
Onde é livre a livre imprensa?
No Estado totalitário
O poder nela condensa
O poder discricionário.
Porém, na democracia,
O económico poder
Nos controla a fantasia,
Conta o facto e o dever-ser.
Quando não mexe no ter
Aqui resta a liberdade
De dizer quanto quiser,
Seja mentira ou verdade.
Acolá, nem esta faixa:
Tudo na monotonia
Do idêntico acorde encaixa.
A mentira? É todo o dia.
1423 – Pouco
A gente pode inventar
O que o Senhor esqueceu.
Seis dias para aprontar
Um mundo, como é que deu?
Seis dias é muito pouco,
Por isso de tempo a falta
Deu com este mundo em louco.
- De nós pende dar-lhe a alta.
1424 – Estábulo
No estábulo nasceu Cristo.
Por no estábulo nascer
Não quero dizer com isto
Que alguém Cristo venha a ser.
Esse é o erro permanente
Que perde a revolução:
Crer que alguém fecunde a gente
Só porque é estrume do chão.
Quando na terra enterrado,
O estrume então fertiliza
E jamais quando é jogado
Nas ventas de quem se visa.
1425 – Vergonha
Vergonhoso é descrever
As vergonhas da Nação
Ou é uma vergonha haver
Vergonhas dela em função?
1426 – Patas
Com a cabeça e as mãos
O que ergues, o que desatas,
Se não medes os teus chãos
Desfarás com tuas patas.
1427 – Bem-aventurados
Bem-aventurados os mansos
Porque possuirão a terra?
- Coitados dos tansos!
Pelos rebentamentos cavos
Da guerra,
A terra é dos bravos.
Os mansos terão de seu,
Quando muito, o céu.
E, mesmo assim, mesmo assim,
É o que se há-de ver no fim:
- Ou então as igrejas,
Sempre aliadas e donas do poder,
Que rumo nisto dão ao que almejas
Vir a ser?
1428 – Assim
O nacionalismo é assim:
Pela pátria, honra e tradições,
Vai pôr fim
À pátria, honra e tradições
Duma nação afim.
E nisto não verá quaisquer senões.
O partidarismo é assim:
Ao vencer, ajeita o ninho
Cortando as cabeças que, enfim,
Pertencerão ao partido vizinho
E reina solitário no confim.
E o crime chama augúrio de adivinho.
O clubismo é assim:
Em lugar do desporto,
O adversário é, para mim,
Um homem morto,
Morto, sim!
Nenhum vê qualquer senão
No que atropele.
E tem razão:
- O senão
É ele!
1429 – Cretino
Bem conhece as mulheres, diz o cretino,
Realista indivíduo terra a terra:
Dormir com a mulher é o mais divino
Saber de quem viveu a pior guerra.
Contudo, só colisões
Teve com o outro sexo.
Da maquilhagem as sobreposições
É que dum saber passam por nexo.
Careca de ideias até à nuca,
Confrontado com uma mulher,
Enfia a psicológica peruca:
É tão ridículo como qualquer
Velho a tentar parecer jovem.
E tais trejeitos nem sequer
Já nos comovem.
1430 – Pensar
Pensar é aquilo que dá mais trabalho.
Talvez seja por isso que tão poucos
Se meterão a tal. O valor dá-lho
Isto de sermos, afinal, bem loucos!
1431 – Preocupação
A preocupação
Custa menos do que quanto
Vier resolver a situação.
E tanto
Que escolhemos o problema que mais aterra
Para que nossa preocupação o mundo oiça:
Todos queremos salvar a Terra;
Ninguém ajuda a mãe a lavar a loiça!
1432 – Cortesão
A primeira qualidade
De quem quer ser cortesão
Sempre é que a memória lhe há-de
Falhar em cada questão.
Cortesão quer um saber
Que é o de saber esquecer.
1433 – Fome
Quem come
Não tem fome.
A quem não come
O come a fome.
Da fome em redor
Se tece das vidas o teor.
Afinal,
Esquecemos depressa
Que tudo começa
Por que o homem é mesmo um animal!
1434 – Jumento
O sacerdote é tal qual seu paramento
Que o tempo não perturba.
Diante da turba
Ventrudo jumento,
Caminha à frente da manada
De camelos obedientes.
As seitas desviam grupos da estrada
A incitar estes azelhas
Dementes
A puxarem a corda,
A puxarem ao jumento as orelhas
- A ver se acorda.
1435 – Loucos
Há loucos e loucos.
Se todos o somos,
Há loucos com juízo
E sem juízo loucos.
Daqueles os gomos
Contam-se bem poucos
Na laranja do siso.
Quando o louco com juízo
Responde ao louco parvo,
Onde se lhe nota o aviso
Não é no garbo,
É que decora com cuidado
O termo com que lhe moldou o fado.
1436 – Partido
Um partido político
Em toda a parte
É o negócio já paleolítico
De camuflar com arte
Os membros nele envolvidos
Com interesses pessoais
Como sendo os mais destemidos
Cavaleiros das causas nacionais.
Queixam-se então,
Quando caem no esgoto
Que são,
Da infidelidade do voto
Que lhes dão.
Já têm muita sorte!
Por muito menos
Foram outrora levados à morte
Criminosos bem mais pequenos!
Político sem mentira
É tão raro
Que quem o crê é que o faro
Lhe delira.
1437 – Cruzada
A cruzada contra o aborto
Ocupa bem mais lugar
Do que o que mais nos tem morto:
A corrida a nos armar.
O objector de consciência
Que se recusa a matar
Não tem nenhuma eminência
A defendê-lo do altar.
O respeito pela vida
É só no estado fetal?
Fica a do adulto esquecida…
…Que é que era fundamental?
1438 – Excepto
As ciências humanas ensinam
Do homem tudo em redor,
Quantos mundos nele se combinam…
- Tudo, excepto o que o homem for!
1439 – Borra
O psicanalista lê
Na borra de café
Do inconsciente
Que a pintura de Picasso é
Uma pulsão erótica.
Como se tal pulsão não estivera presente
Em qualquer de nós,
Sem nos obrigar à anedótica
Sorte, de destino deveras escasso,
De cada qual ter de ser um Picasso!
1440– Cimeiro
Aquilo que o mundo mais esquece
E que deveria ocupar em todas as actas
O lugar cimeiro:
- O que conhece
Não é um cérebro montado em duas patas,
É o homem inteiro!
1441 – Sacrifício
Vai pedir-me sacrifício
Um absoluto à medida:
O da Igreja, o Santo Ofício;
O do dinheiro, uma vida.
A nação, a classe, a raça,
A seita, seja o que for,
Em mim faz qualquer que nasça
Sempre um grande inquisidor.
Se em posse estou da verdade,
Duma verdade acabada,
Quem ma conteste então há-de
Ou ser doente, de entrada,
Ou um rebelde que engrade
Nas prisões que ergo na estrada.
1442 – Perseverar
Perseverar é o trabalho
Árduo que é feito em vez
Da canseira do trabalho
Árduo que já se fez.
1443 – Vingança
A vingança tem o efeito
Mitigador de emoções
Que, de água salgada, ao peito,
Se os bebo, fazem galões.
1444 – Retrato
A vida sempre a chamar-nos
E nós a virar-lhe as costas,
Para depois lhe tirarmos,
À vida, o retrato às postas.
1445 – Está
O que está, está bem,
Pelo facto de que está.
Porque ignora e desconhece,
Quem
De tal duvidará?
O dever moral aquece
O que está porque está lá.
E ao governo o que acontece,
O que à nação não esquece
É que assentam acolá.
Todo e qualquer bem pensante,
O lúcido, o inteligente,
São a raça confiante
Em que o mundo roda em frente.
E das calhas no carril
Lá corremos sempre além,
Aos bandos, de mil em mil,
Que o que está sempre está bem.
1446 – Bornal
Cabo, sargento, oficial
São feras e não pequenas:
Levam à morte centenas
Pela medalha e o bornal.
1447 – Louros
Os louros tanto procura
A Humanidade cansada!
Não vê que lhe não dão cura
Nem sequer boa almofada!
1448 – Moleza
O dinheiro atrai dinheiro,
Pobreza arrasta pobreza:
Se não fores do primeiro,
Cuidado com a moleza!
1449 – Podar
Sempre há quem chore no lar
Por se podar a fruteira
E a mãe vai abandonar
Morta à fome ou de canseira!
1450 – Desconhecido
Ocorre, por vezes,
Não ver um amigo
Uns meses…
- Quando o reencontro, que desconhecido!
1451 – Mitologia
Numa aldeia, uma pessoa
Que antes ninguém conhecia
É como a chegada à toa
Dum deus da mitologia.
1452 – Carne
Um beijo, qualquer carícia,
Tão medíocres, banais
Numa carne sem delícia
Aforrada aos cabedais!
Porém, se esteticamente
Deveio numa obra-prima
Para a rotineira mente
Que desde então a sublima,
A mesma carne é motivo
De celeste adoração,
Peça de museu, de arquivo,
Divinal coroação.
E o amante já não perde
O tempo, sempre enfadado,
Amadura um olhar verde,
Raro e desinteressado
De artista a ver o exemplar
Raríssimo que vislumbra,
Coleccionador sem par…
- E a peça então o deslumbra!
1453 – Espanto
O espanto do mar, o marulho das ondas,
Sei lá quão
Deliciosos
Serão!…
Convenço-me dos gozos,
Do valor das escolhas e das mondas,
Dos gostos desinteressados,
- Meus vectores, meus lados –
Convenço-me da beleza
Quando caríssimo pago o quarto de hotel
Que perante a janela ma oferta, presa
Fiel.
Deriva pela beleza o enorme apreço
- Afinal, do preço!
1454 – Galope
Enquanto o mundo for mundo
Sempre veremos patrões
No galope mais jucundo
Sobre os criados poltrões.
E sempre haverá criados
A rastejar como bichos,
Dispostos a ser montados
A saciar tais caprichos.
1455 – Neurasténicos
Aos neurasténicos há
Quem cansaços redobrados
Provoque ao lembrar que já
Andam muito fatigados!
1456 – Mobília
A opinião que uns dos outros temos,
Os laços de amizade,
Mesmo a família
Não têm a rigidez que neles vemos,
Fixa aparência de realidade,
Numa mobília
Pelas assoalhadas a trocar
Permenentemente de lugar,
Eterna mobilidade
Flutuante do mar.
Tantos divórcios, daí,
Entre esposos tão perfeitos
Que logo após, se os revi,
Um ao outro se revelam tão atreitos.
Tanta infâmia dum amigo
Sobre outro amigo jogada!
Quão depressa esta levada
Se estancou e, no pascigo,
Lobo do cordeiro abrigo,
Ambos encontro, pacatos,
Nos convívios mais cordatos!
A muda tem tal presteza
Que ninguém
Sequer o tempo tem
De recompor-se da surpresa!