1ª. Redondilha
Na voz que
este povo tem
Escolha aleatoriamente um número
entre 1 e 117, inclusive.
Descubra o poema correspondente
como mensagem particular para o seu dia de hoje.
Apresentação
1
Humaníadas
As Humaníadas
são,
Não a história
universal,
Mas os feitos da
razão
Sondando o saber
total.
Primeiro foi o
animal,
Mas os passos
dados vão
Atingir em cada
qual
O fulgor da
reflexão.
Meu canto não
canta tanto
Recantos p’lo
tempo além
Mas este tempo
de encanto
Que nos encanta
também
E o saber, neste
entretanto,
Do sabor que
tudo tem.
Sumário
2
A Voz
Na voz que este
povo tem,
Deste povo que
tem voz
Recolho o que
todos nós
Fizemos mais
para além.
Que na terra de
ninguém
Frágeis ataram
os nós
As pegadas dos
avós
Que pelos netos
devêm.
Agora de cá do
cimo
Das serranias da
história
Miro o longe até
ao imo
Onde me alcança
a memória.
É do saber neste
arrimo
Que o Homem
retira a glória.
3
1ª. Redondilha
Na voz que este
povo tem
Canto o que o
canto me diz
Do que a nós nos
dá a matriz
Que do nada cria
alguém.
Primeiro quanto
nos vem
Da infância com
o matiz
Mais da fala
esta raiz
Que o mundo em
poema retém.
Daqui nos
arranca o sonho
Que nos rasga
céu na terra,
Dentre nós nos
dividindo,
E o que,
infindo, em mim deponho
E a que o
coração se aferra:
- Por ti além
meu ir indo.
4
5
Povo Aleixo
Maravilhas
P'ra que a leves a
sonhar,
No país das maravalhas
Este livro que te
deixo
Eu procuro maravilhas
Sonha a vida por
levar,
Mas o que encontro são ilhas
Meu povo poeta
Aleixo.
De sonho por entre as falhas.
E, porque assentas neste
eixo,
Todas as ilhas são
filhas,
Prendes nos olhos o
mar
Nas aventuras, de gralhas.
Quando só tens dele o
seixo
Golfo a golfo teço as malhas
Em que te vens
assentar.
Assim deste mar de Antilhas.
De quem amas as
madeixas
Sou Alice dum país
Cortas p'ra
recordação.
Em busca de independência
Tuas mãos são as
fateixas Mas ninguém fala nem
diz
Desta morte aos que te
são.
Que este é meu país de ausência:
Pára, povo, a tua
mão,
E a maravilha que quis
- Que eterno é aquilo que
deixas! Da maravalha é a falência.
6
7
Miniatura
Lembro
Portugal dos
pequeninos,
Eles não têm memória;
É tudo em
miniatura
Eu lembro as fomes e o frio.
E só nele
descobri-nos
Gozam a fútil vitória;
Em nossa vera
estatura:
Ao vivê-la eu me
arrepio.
Temos obra que
perdura,
Moram contentes na glória;
Génios por quem cantar
hinos.
Se de glória me glorio
Mas é sempre a escória
impura
É da que ri da vanglória,
Que tem feitos mais
ladinos
Corre de fio a pavio
E vivemos
acossados
Este meu corpo humilhado,
No país das
escondidas
Fruto de todos os pobres
Espreitando-nos à
esquina.
Que um dia saltaram lestos
Morrem assim
vitimados
Para o meio do tablado:
Quantos trazem novas
vidas
- Eu grito quanto são nobres
Que nos dão traça
divina.
Dos desprezados os gestos!
8
9
Testemunho
Pequenos
Ser homem é
testemunho,
Por mais que andes ou que mandes,
Manifesto aquilo que
é,
Prà sangria não há drenos:
Crispo bem alto meu
punho
Sofremos problemas grandes
Para assumir-me de
pé.
Homens sendo tão pequenos!
Sou quanto de que der
fé,
Problemas e desafios
Já que sou quanto
esgardunho
Aumentam de ganho em ganho
E assumir-me é ir-me
até
E nós, tolhidos dos frios,
Ao ponto em que me
desunho.
Sempre do mesmo tamanho.
Dizer-me não é o
efeito
Quando os riscos ameaçam
Ocasional de ser
homem
E os abismos são gritantes,
Nem de a mim me prestar
preito.
Sempre os desesperos grassam
É dispor-me tão
afeito
Se as forças não são bastantes.
Aos raios que me
consomem
E hoje os grandes homens passam,
Que amor e razão me
tomem.
Só os problemas são gigantes.
10
11
Valer
Idiota
O mundo é cheio de
gente
Este mundo é governado
Que diz valer um
império
Por quem é mais idiota,
E o que tenta é
impunemente
Embora de peito alçado
Rebaixar quem vale a
sério.
A crer que é gente de nota.
Que quem vale a sério
viva
Porém, se alguém se conota
Na mais remota
ignorância
Com o génio, é eliminado,
É a liberdade
cativa
Prisioneiro da derrota:
Nos silêncios da
distância.
Que ele ofusca o iluminado!
Apenas o tempo
cria
A mediocridade impera,
O crivo da
qualidade
Desta vacuidade inchada,
E a justiça principia.
Mortas todas as cabeças.
Mas é sempre uma
ironia
E avançamos de era em era
Que só na tumba a
verdade
Co'a lixeira entronizada
Faça jus a quem
valia.
Em vez de lhe armarmos essas.
12
13
Camões
Poeta
Ah! Camões, meu velho
irmão,
Ser poeta é apunhalar-me
Vós sabeis quão somos
parvos!
Com a dor do apartamento
Génio saldam-no a
tostão
Que nos murcha dentro o carme
E, imbecis, tentam comprar-vos!
Das clausuras no tormento.
Como poder
alegrar-vos
Pressinto o impulso a empurrar-me
Após tanta
humilhação?
Para além do ferimento
Como o valor imputar-vos
A exigir que o verbo se arme
Se nem vos chega prò
pão?
Das juntas com o cimento.
Mas o que mais nos
destrói
Todo o ser quer ser mais ser
Não é fome, nem
vergonha,
Mas nos múltiplos de si
Nem a ignorância
viloa.
Se dispersa rumo ao nada.
É que, de sempre, rei
foi
Ser poeta é compreender
Quem nos pisa e rouba e ponha
Que o abismo entre mim e ti
Estes louros na
coroa!
Tem lá sempre uma jangada.
14
15
Demais
Piedade
Se de si fala o
poeta Ser
poeta é ter piedade
Ou fala de toda a
gente
Do tempo que por fim somos,
Ou toda a gente discreta
É ler a facticidade
No poeta não é
crente.
Como os domésticos pomos
O poeta se
desmente
Que colhemos nesta herdade,
Se a nossa vida concreta
Feita de dias e tomos,
No poema não
consente,
Onde a rega da verdade
Se de si enche a
paleta.
É o suor de que dispomos.
Se só de mim fala o
verso A
palavra concilia,
Não fala de nós
jamais
Leva à presença comum
Senão se abraça o
Universo,
E assim nos repousa em paz.
Se, nos cômputos
finais,
A discórdia é o fim da via,
O verso com que
converso
Não nos deixa fruto algum,
Me fala, afinal, demais.
Tudo o que faz nos desfaz.
16
17
Essência
Pensador
A essência da
poesia
Poeta, chamo o pensador
Dizem que é o que há de
comum
Para em meu socorro vir.
No que veio à luz do
dia
Pensador, eu penso a dor
Em tempo e lugar
algum.
Do poeta a se exaurir.
Mas isto
indiferencia,
De minha fala ao calor
Ao juntarmos tudo
num,
Quando o creio conferir
O que arrouba e o que
agonia,
Arrebata-me o estupor
Não há critério
nenhum.
Deste vulcão a explodir.
Indiferenciadamente
A eclosão original
Válido é o
indiferente,
Da verdade fulgurante
Jamais é o
fundamental.
Deflagra no encantamento.
Onde tudo
principia
E já de nada me vale
É na essência da
poesia:
Salvar quem me vai adiante,
- É de nós no
essencial.
Que me perco em seu tormento.
18
19
Sinais
Habitar
A vida escreve no
muro
Habitar poeticamente
Uma rede de
sinais.
Um mundo cheio de deuses
No poema eu só murmuro
É ser tocado na mente
Com que os
descodificais. Pelas sortes e reveses
E do palácio ao
monturo Da intimidade das coisas,
Soam os cantos
vitais
É acreditar que, por vezes,
Que inauguram
além-'scuro No coração delas poisas,
As auroras
boreais.
Vos cumprimentais, corteses.
Mas como é que tais cantares
É neste lar que me fundo,
Podem ser
contraditórios?
Quando o acolho e lhe dou voz
Os sonhos com que
sonhares De sangue fresco me inundo.
Serão todos
ilusórios?
Só então começo a ser nós,
- Ou vislumbro a estrela
Antares
Eu e tu a meio do mundo,
De todos os
promontórios? - E jamais ficamos sós.
20
21
Arquipélago
Cada Qual
Nenhum homem é uma
ilha
É cada qual com seu sonho,
Perdida na solidão,
Cada qual com sua vida
Continente também
não
Quando minha orelha aponho
Onde só o ditador
brilha.
Pelas vidas repartida.
Em arquipélago
são
O outro é um longo deserto.
As ilhas que se
palmilha,
Cada qual ergue o seu fumo:
Separadas em
união
Quer ouvintes, mas decerto
Junto à distância da milha.
Nem vê noutrem igual rumo.
Ao homem não convém,
não,
E a história do viajante
Que sua voz seja
filha
Morre no silêncio eterno
De alguém de cuja audição
De quem cala sem ouvintes.
O coração não
partilha,
Somos o traído amante
Mas que alçada atinja um
som
Que sonha um lume de inverno
Que nos chame à comum trilha.
Mas que acorda entre pedintes.
22
23
União
Olhar
Os outros são impermeáveis,
Quando olho para mim mesmo
Desconfiados,
subentendem,
Ou suporto o olhar de alguém,
Os dias são
intragáveis
A espontaneidade lesmo,
E os encontros nos
ofendem.
Vida, alegria também.
Com os nervos nos
contendem
À defesa me ensimesmo,
As raivas
irrefragáveis
Que nada passa ou ninguém
E os ares do campo
tendem
Ao tiroteio que a esmo
A tornar-se
irrespiráveis.
O olhar-polícia mantém.
E odiamos a
cidade
Táctica de morto-vivo,
Que nos impede a
expansão,
Eu então me petrifico
Sonhamos outro
horizonte.
P'ra ficar fora de alcance.
Mas não temos
liberdade
Mas como ficar passivo
De atingirmos a
união
Se por dentro de mim fico
A partir duma tal
fonte.
À espera que a mim me lance?
24
25
Experiência
Viva
Quando é nossa a
experiência,
Toda a experiência que é viva,
Reveste p'ra cada
um
Tanto interna como externa,
Os sinais duma
evidência
Activa como passiva,
E a doutrem não tem
nenhum.
Ora exalta, ora consterna,
Mas também minha
vivência Vive
na mente e no corpo,
Não deixa sinal
algum A
história marca de eterna.
Quando noutrem a
aparência
Quanto mais com ela encorpo
Se lhe transmuda em
fartum.
Mais luz me entra na caverna.
Contudo, sempre
constato
É nela que me unifico
Quanto de mim nele
mora,
E todas as divisões
O que de mim entra em
acto,
Ali perdem o sentido.
Como ele em mim
comemora
É na experiência que fico
Quanto dele ato e
desato...
Unido a mim e aos milhões
- Sermos nós, quanto
demora!
Com que nem sei como lido.
26
27
Linguagem
Pena
Prò poeta a
linguagem
Quando seguro na pena
Não é uma
matéria-prima,
Entra-me a pena na vida,
Já que é dele na mensagem
Que as letras que ela me ordena
Que a linguagem se
arrima.
São a minha dor ferida.
Há sempre uma
desfasagem
Mas quão mais nas folhas pena
Em quanto a palavra
oprima,
Mais a dor fica delida
Quem cria a livre
paisagem
Nas ondas desta melena
É do poeta uma
rima.
Das palavras em corrida.
Para o verbo
acontecer
Não sei se é da confidência
Teve o poeta de
nascer
Ou do mero desabafo,
Com a fala
original.
Que o papel não tem ciência
Matriz do bem e do
mal,
Nem me reanima o seu bafo.
O povo a colheu
aí
- Sei que é um pouco de paciência
E nela se encontra a si.
E já de dor não abafo!
28
29
Ambiguidade
Arte
Palavra enquanto
palavra
Arte é ser-me o mais humano,
Não dá qualquer
garantia
Ser dum génio singular,
De ser um fogo que
lavra
Afinal tão desumano
Ou ser uma
fantasia.
Que nem a história é seu par.
Por vezes
evidencia
A luz que de mim dimano
Nas tramas de sua
lavra
Não é minha, antes meu ar
Que de mim não
carecia
Que me excede e em que me irmano
Quando afinal me
apalavra.
Dos homens à terra e mar.
Na simpleza mais
banal,
É, porém, mais que um contexto
Inesperada, é o
real
Porque me arranca as entranhas
Que muitas vezes
revela
E lança-me além de mim.
E outras vezes
afivela
De mim corre este meu texto
Uma máscara
endeusada
Com magias tão estranhas
E o que no fim traz é o
nada.
Que o dia não tem mais fim.
30
31
Mais
Dois
Arte, traças um
perfil
Todo o homem tem dois rostos,
Que o conceito jamais
diz,
Um bem definido e claro
Nem o mais puro entre
mil Em que tenho os olhos postos,
Contigo nunca
condiz.
Outro oculto, um bem mais raro.
Se bebemos no
cantil
Em arte, os rostos compostos
Que com a sede te
fiz,
São, primeiro, o que reparo
Não seca o nosso funil
Na feitura e, contrapostos,
A tua fonte
matriz.
Os sentidos do anteparo
És tão mistério
insondável
Do segundo que jamais
Como a planície, a
montanha,
Se me entrega sem reserva.
Esta rocha ou a
imensidão.
O primeiro dá sinais
De facto és
cientificável
Do que o segundo preserva.
E serves, fiel, quem te
apanha:
E, se aquele se vê mais,
- Manténs-nos em
servidão!
Só deste é que a vida é serva.
32
33
Pintura
Elo
Uma pintura é aquele
ente Explosão do ser no belo
Perdido entre os outros
mais
É essência de qualquer arte
Que se mostra de
repente
Que é mutante e não tem elo
Ou não se mostra
jamais.
Que interligue o que reparte.
Jazer apenas
dormente
Pode ser que ao fim se aparte
Do tempo nos
lodaçais,
Da verdade cujo apelo
No transcurso do
presente
O coração a pulsar-te
morto entre coisas
banais,
Pôs em ti como seu selo.
Não é essência de obra de
arte.
Pode nisto soçobrar
(Perdida num
existir,
A aventura iniciática
Toda a verdade se
parte
Nesta floresta dos medos:
Donde jamais pode
vir).
Com medo de aí morar
- Seu raio rasga um
instante
Treme nossa história errática
Sem atrás nem
adiante.
E os povos tolhem-se quedos.
34
35
Livro
Literatura
Pego num livro e
folheio
Sem o livro, Deus é mudo
A janela aberta ao
mundo.
E a justiça se adormece,
Num jeito de olhos
circundo
A ciência ignora tudo
A Amazónia, a mim
alheio.
E a filosofia se esquece.
Trepo em ameno
recreio
Literatura é o canudo
Aos Himalaias e
inundo
Onde o longe me emudece
Meus olhos deste
profundo
Quando o espreito e ali me iludo.
Mar de antanho, mar de
enleio.
Sem livro, também fenece!
Vejo p'los olhos de
alguém,
No meio da escuridão
Abro a porta a mais
amigos
O livro acende uma luz
Quando o livro arranco ao
pó.
Que as coisas torna presentes.
Por este meu gesto
vêm
Sem ele a cultura não
Casa adentro e eu
bendigo-os,
Faria a si própria jus:
Pois quem lê nunca está só.
De nós ficamos ausentes.
36
37
Povo
Noite
Por que é que o poder ao povo
Já não há estrelas na noite,
Sempre chama
populaça?
Que os fantasmas da ignorância
Teme a fonte do
renovo,
Geram-te intérmina infância,
Fá-lo passar por
arruaça?
Não há quem nela se afoite.
E se não sou eu que
inovo
E fica-te sempre à distância
Mas o povo em bloco
ameaça,
(O terror do escuro foi-te
O poder mata-o no
ovo,
Acuando onde se acoite)
Trata-o como apenas
massa.
A libertação de tal ânsia.
Na massa anónima
morrem
Que, afinal, tal fojo é um túmulo
As promessas de
porvir
Onde nem a morte adiada
Mais os que atrás dela
correm.
Disfarça da morte o acúmulo.
Que aos que andarão a
cerzir
- Se eu fora do brio a espada,
Prò que há-de vir o
caminho
Teu brio levava ao cúmulo
Guarda-lhes o povo o
ninho.
E seria a madrugada!
38
39
Luar
Lua
Primeiro a lua é de
prata
Quis agarrar a Lua com a mão
Quando o olhar da infância
dura;
E os raios do luar por mim passaram,
Depois é alfange de
lata Só noite por herança me deixaram,
Da adultez à vista
impura.
Abandonado à imensa solidão.
Depois é o tédio que a
mata
Uma vida perdida sem perdão
Quando em rotina
perdura
Em que os sonhos acordam, germinaram,
E se o cotio a
maltrata
Mas antes da alvorada se fanaram
Nenhum raio as nuvens
fura.
Por culpa de ninguém no árido chão.
Ninguém lhe vê quanta
luz
Em busca de tesouros escondidos
Enluara noite
fora
Rasgamos hora a hora nossos dedos,
Mistérios da
imensidão,
Perdidos na floresta dos enganos.
Como a discrição
produz,
Jamais sendo os anseios atendidos,
Quando o sol se vai
embora,
O segredo de nossos vis segredos
'Strela a estrela, a
admiração!
É que ao fim não vivemos nossos anos.
40
41
Génese
Saudade
Nasci duma mãe
ignota
Minha saudade menina,
E dum pai que pouco
tive.
Com dez anos de ilusões,
Minha ama foi gasta
nota
Os punhais com que transpões
Que à miséria
sobrevive.
A minha infância mofina!
Minha pobre história
anota
Ser órfão foi minha sina
Que meu passado não
vive
Dos seis anos aos milhões
E onde vive não tem
cota
Com que arrasto aos tropeções
Em mercado que o
cultive.
A História que desatina.
É por isto que
quenquer
Doi-me a saudade do mundo,
Com que tope no
caminho
Desta humanidade perra,
Me requer com ele
ter
De costas para amanhã.
O cuidado dum
vizinho:
E quanto mais me aprofundo
Neste anónimo
qualquer
P'la noite dentro da Terra
Minha origem
adivinho.
Mais me doi não ser manhã.
42
43
Casa
Nódulo
Esta minha velha
casa
Um homem viaja e se espanta.
Tão escura da
fuligem,
Mudas tanto que depois
Minha, aquece-me uma
brasa,
És desconhecido a tanta
Velha, enraiza-me a
origem.
Gente que ignora quem sois,
Minha senda torna
rasa
Que da parentela a manta
E abismos não dão
vertigem,
Nem de antanho os arrebóis
Nela os demónios
abrasa
Não protegem contra tanta
E as memórias ternas
vigem.
Arremetida em que dois
Vivenda ou choupana é o
mesmo,
De estranheza nesta arena
Nem palácio lhe melhora
Em que a vida se te torna.
A esteira em terra
batida.
Resta um nódulo no fundo:
Nem que leve a vida a
esmo,
O coração se te engrena
Desde o início até
agora
À terra-mãe e contorna
Guardo cá o filão da
vida.
Dali os tufões do mundo.
44
45
Intrusos
Batuque
Uma espécie de
magia
O batuque primitivo
Nos veio acolher,
intrusos,
Repete o meu coração,
Quando nascemos um dia.
Mas, se é por ele que vivo,
Habituámo-nos aos
usos
Não vive a imaginação.
E do canto a
melodia, Nesta, a música que arquivo
Nestes ouvidos
contusos,
Tem voos e precisão,
Já não sabe a
fantasia,
É o sonho em que me motivo,
Morreu por cantos
escusos.
Denso cristal feito som.
E a irresistível
doçura
Nos ruídos do batuque
Do encantamento à
partida,
Apercebo o pó da terra
Esta primavera
eterna,
Em que mergulho as raízes
É o que, enfim, nos
configura,
Mas quando um pouco me eduque
Sonhando, o sabor da
vida,
Do sol o apelo em mim berra
Amante instável mas
terna.
E do céu colho as matrizes.
46
47
Aniversário
Viúvo
Hoje é o dia de
anos
Eu sou um viúvo alegre
De milhões no
mundo.
Dum sonho que me morreu.
É a festa, no
fundo,
Qualquer festa em que me integre
De milhões de
enganos.
Morre um sonho que era meu.
De enganos
inundo
P'ra que a romagem me alegre
Antigos
arcanos:
Basta o sinal que partiu.
Frente aos
desenganos
Que tudo se desintegre,
Busco o mais
profundo.
É que não chegou ao céu.
Se a morte
acontece,
Enquanto dura a viagem,
Inauguro a
vida:
Como é doce caminhar!
Dia a dia
esquece
Como a ilusão da miragem
A rota
devida
Nos anima e incendeia!
- E a festa
entretece
- P'ra tudo vir a acabar
Os trilhos da
ida.
No luto da nova ideia!
48
49
Mar
Comigo
O sol
molengão,
Eu fui ouvir o silêncio
Mar da
Caparica, Em terras do Alto Alentejo.
A vida aqui
fica
Traz um amigo e convence-o
Um problema
vão...
A ser feliz neste beijo.
Poente em
vulcão,
Eu fui ouvir o silêncio
A gaivota
bica
Lá nos murmúrios do brejo.
Na poalha rica
Teu orgulho agarra-o, vence-o,
De peixe o
quinhão.
Vem ser feliz sem ter pejo.
Multidão-gaivota
Pararam as correrias,
Pela praia aos
mil,
Entupiram as buzinas
Reencontrada
rota
E o frenesim das folias.
Do sonho ao
perfil:
Monte, vale, meu amigo,
- Romaria
erguida
Como é que comigo atinas
Às fontes da
vida! Se
eu não atino comigo?
50
51
Forçamos
Acolhimento
Fui brincar a
Benavente
Para mim não vale a pena
Com pão e sardinha
assada
Gastar freimas e cansaços,
Mais o toiro
impenitente
Que sempre a noite serena
Na chega da
garraiada.
Me soube acolher nos braços
Dancei fandango entre a
gente, E sempre ali se me ordena
Batendo o pé pela
estrada
O silêncio dos espaços
Como quem no peito
sente Num cântico de sirena
Dum toiro sempre a
marrada. Do mistério a ler-me os traços.
Depois, por entre os
taipais,
Na chave da imensidão
Solta-se o toiro
iracundo, É que eu vou curar feridas
Tentando quem tenta a
sorte. Que me rasga o meu irmão
Por entre chufas e
ais Em paga de quantas lidas
Forçamos a porta ao
mundo, Por ele e por nós me vão
- Forçando a porta da
morte! Matando as minhas mil vidas!
52
53
Ocidental
Selvagem
Na colónia
ocidental Eu
sou aquele selvagem
A vida é simples e
sã, Que
já farto do batuque
Mas a ternura,
afinal, Corro
a vida na voragem
E a amizade
temporã
Dum silêncio que me eduque.
Cada vez mais o
sinal Oiço
as brisas que por truque
Dão duma procura
vã.
Falam mudas na ramagem:
Nem da tirania o
mal
Sem que pense ou lhes retruque
Nos largou a
barbacã.
Lhes saboreio a mensagem.
Cada vez mais nossos
nós
Sou a civilização
Cada qual a
bisturi
Saturada de ruído
Corta nos tolhendo a
voz
Que vive mordendo o pó
Que se torna um
alibi:
E só encontro a comunhão,
Vivemos mais e mais
sós,
Assim vivendo fugido,
Cada qual fechado em
si.
Quando comigo estou só.
54
55
Rir
Brincar
Temos de rir a
cultura,
Vamos lá brincar aos sonhos,
Não porque seja
risível,
A voar por sobre as casas,
Mas porque rindo é
visível
Longe dos tufões medonhos
Quanto o que é sério se
apura.
Que lá em baixo ateiam brasas;
E desta forma
perdura
Trepar aos cimos bisonhos
Muito além do
inteligível
Onde à neve o sol aprazas,
Porque a rir é
traduzível
Deslizar voos risonhos
Do que a sério se não
cura.
Ao jeito de nossas asas.
É uma cultura de
vida
Vamos brincar, que, brincando,
Que nos inaugura em
festa
A brincadeira que brinco
Com mordedura
fingida.
É mais séria do que quando
É que ao fingir que te
assesta
Vivo a vida com afinco,
A flecha com que
revida,
Que a fruta me anda matando
Vais batendo, ao rir, na
testa.
Do dia a dia que trinco.
56
57
Senhores
da
Guerra
Espectador
Senhores somos da
guerra,
Vou a uma festa mas fico
Fazemos dela o
Natal
Espectador da alegria.
Para extirpar sobre a
Terra
Desta pobre, fico rico,
Qualquer semente
venal.
Que diante se desfia
Se a bélica marcha
aterra
A imagem que gratifico:
É que cremos que,
afinal,
Era a mim que ali me via,
Se a fera da guerra
ferra,
Mais que da festa o salpico,
Trato logo a paz
mundial.
Se, ausente, co'os mais bebia.
Ninguém tem desta a
receita
Sendo só um espectador,
E o Natal é bem
preciso
Sofro por dentro esta ausência
Mais o sonho que ele
traz.
De quem dentro está de fora.
Quenquer que este sonho
aceita
E mesmo que seja actor
Busca a festa, busca o
riso:
Me morde sempre a influência
- Vir a ser senhor da
paz!
Da distância que em mim mora.
58
59
Dor
Ambiguidade
Toda a dor é
tonta
Quero mais poder,
E louco é quem
liga.
Busco mais domínio,
Quem a não
desconta
Trepo ao monte Hermínio,
Leva a que
prossiga, Pedestal do ser.
Já com ela
conta,
Vergo o entardecer,
Torna-a numa
amiga.
O sol cognomine-o
Depois tanto
monta
De falaz ou mine-o
Que lhe faça
figa,
Do temor de o ter.
Que nesta
loucura
Longe e longe, aflito,
Já se não
distingue
Elevo o meu grito
A causa do
efeito.
Sempre mais além.
Quem isto
procura
Depois isto, a mim,
Nem logra que
vingue
Tanto dá, no fim,
Uma flor ao peito.
O mal como o bem.
60
61
Agradar
Dentro
Sempre que possas
fazer
Quando entre dois prisioneiros
Algo p'ra agradar a
alguém,
Dentro da mesma prisão,
Se te não custa o
dever
Enquanto um olha as estrelas,
Deves fazê-lo por
bem.
Outro fixa o olhar no chão,
Que por bem não é
quenquer
Não são factos corriqueiros
Que faz agrado a
ninguém
Que tornam as vidas belas
E menos se lhe
doer,
Ou as enchem de lameiros,
Que não paga a dor que
tem.
Pois não é de fora que elas
Mas, se me não custar
nada,
Devêm naquilo que são.
A quenquer
agradarei:
É dentro dos dois parceiros,
Crio vida sublimada.
Como encaram o senão,
E por que não, nesta
estrada,
Que o mar se cava em procelas
Pagar o custo da
lei
Ou, em afagos leveiros,
Se alguém há que por mim
brada?
Se abre, calmo, às caravelas.
62
63
Penúria
Coisas Certas
Ando aqui de mão
'stendida
Nas normas em que repoisas
Neste tempo de
penúria
Mergulhas, jamais despertas:
Por uma esmola de
vida
Vais fazer certas as coisas,
Que me dê sentido à
fúria
Não fazer as coisas certas!
Em que constato
delida
Deve e haver de tuas loisas
Mesmo a ponte da
luxúria,
Não registam os alertas:
Solitária
margarida
É que gerar certas
coisas
No campo da massa
espúria.
Não é gerar coisas certas!
Que romagem nos congrega
De que te vou criticar?
Nesta fuga à
podridão
- Ir prò céu não é rezar!
Cuja vertigem nos
cega?
Só posso manter-me vivo
No cocuruto da
serra
Por um imenso objectivo
Vou-me abrir à
imensidão
- E não é marcando passo
Ou largo de vez a
terra?
Que vergarei tempo e espaço!
64
65
Preto
Mundo
Se o preto tem pouca
sorte,
Este mundo é mesmo bola
O branco nem sorte
tem,
Que não rebola direita:
A não ser de ir dando a
morte
Ele estreita a carambola
À vida que lhe
convém.
Quando ao polo ela se afeita.
Quando órfão desta
consorte
Por isso é que é sempre tola
É nos lutos que
retém
Peita bolada em suspeita,
O preto por
passaporte
Que a justiça feita empola
Para a vida mais
além.
Quem se enrola na desfeita:
Perdido o rumo, sem
norte,
É sempre vã tentativa,
Com a saudade
refém,
Se o polo de baixo ocupas,
Vai ser o preto o
suporte
Esperar justiça viva.
Da vingança que
mantém:
Se no de alto andas às upas,
- Fardo que o preto
transporte
Há lá lei que sobreviva
É o branco a enterrar a
mãe.
Se com lei tu nem te ocupas!...
Porque já nasceu
comigo,
"Bem dito! Bem dito!"
Cresceu comigo,
implacável,
- Aplaudes com alma.
Devia ser um
amigo,
Mas esse teu grito
Mas por mistério
insondável,
A mim não me acalma.
É meu fatal
inimigo,
É que entro em conflito
Habita-me,
irrecusável.
Se empunhas a palma
Aliás, nem o
maldigo,
Só porque é redito
Simulo ignorá-lo,
amável.
O que nos desalma.
Desconfiando
traição,
Porque repetir
À vida que é minha
amante
O que tu já sabes
Pressuroso aumento a corte,
Não nos traz porvir.
Mas, perdida na
ilusão,
E eu quero atingir,
P'lo meu rival, num
instante
P'ra além dos entraves,
Ela me troca: p'la morte!
Mar por descobrir.
68
69
Brilhante
Passado
O que na vida é brilhante
O passado é tão fugaz
Não é nunca
habitual,
Mas no fim tão persistente
Que o hábito torna o
instante
Que se mantém no presente
Resquício do que é
banal.
Sua marca pertinaz.
Imos pela vida
adiante
Na lenda ancestral que intente
Na insensatez
genial
Encantar um ferrabrás
De repetir
militante
Num megalito, aliás,
O que apenas nos faz
mal.
Não há nada que se invente,
Bastaria um gesto
apenas
Tudo é mensagem de antanho
E o desarranjo das
horas
Sobrevivendo p'las eras,
Acertaria o
compasso,
Segredando-me, discreta.
Mas preferimos as
penas
E, no fim, o meu tamanho
Que nos trazem as
demoras
Decorre, afinal, deveras,
Deste infindo marcar
passo.
É desta matriz secreta.
70
71
Andaime
Progressista
Fui andaime toda a
vida
É ser muito progressista
De prédios de que me
orgulho
Lutar contra a alienação
E no fim há quem me
agrida,
Que ao pobre pede a oração
Lançam o andaime no
entulho.
E o condena se resista.
Uma vez uma obra
erguida,
Mas, ao invés, quem insista
Vem da emoção o
marulho.
Em erguer povos do chão,
Chega a minha
despedida
Vítimas de expoliação,
Mas a ausência faz
barulho.
É já não ser pacifista.
É que é triste a
arquitectura
E a paz é a vaca sagrada
Porque, linda, está
desnuda
Destes novos redentores,
Daquilo que a pôs de
pé.
Quinta coluna avançada
E na memória
perdura
A sagrar os ditadores.
Esta ausência que se gruda
Mais que pobreza esmagada,
Como uma alma àquilo que
é.
Esmagam nossos pudores!
72
73
País
Novo
Corrida
Quando chego a um país
novo
Toda a vida é uma corrida
Não há trabalho que
encete,
Mas do tipo corta-mato:
Enquanto o espanto
renovo
Se à desfilada é a partida
O mistério se
repete.
Perco o peito, ainda me mato;
Quando cada dia é um
ovo
Se a passada é comedida,
A que renascer
compete
Ganho força enquanto empato
Será que sou eu que
inovo
E o fôlego da subida
Ou punhal que em mim se
espete?
Torna-me o percurso grato.
Pois perante tanto
espanto
E, quando a meta é atingida,
Em que o labor se
finou
É com sorriso cordato
É que o espanto é mesmo
tanto
Que, depois de toda a lida,
Ou tolheu-se-me o meu
voo?
Constato vencer de facto
Por entre preguiça e
encanto
Em mim a vida vencida
Por qual é que, enfim, eu
vou?
Pagando um preço barato.
74
75
Viajantes
Agir
Creio que meus
semelhantes
Como agir não é falar,
Pressa demais dão-se em
tudo:
Nem sequer com eloquência,
Sendo todos
viajantes,
Menos ainda é pensar
Perdem sempre o
sobretudo.
Mesmo que com pertinência,
Já não são como eram
dantes
Em vão pregas para o ar
Contando pelo miúdo
E sonhas com a influência
Aventuras
navegantes
De teus sonhos de sonhar.
Do sem sorte e do
sortudo.
Nada nos muda a vivência
Nos atropelos da
pressa
Se não arroteia o campo
Morrem sem pompa nem
glória
Em que o pensar se semeia
No olvido dum
contratempo.
Nos calos de cada gesto.
Esqueceram bem
depressa
Se neste vergel acampo,
Toda a capa da
memória
O que a colheita medeia
Que os protegia do
tempo.
É o meu sangue que lhe empresto.
76
77
Palmas
Destino
Ora sou quem bate
palmas,
Meu destino é ser criança
Ora outrem as bate em
mim,
Jogando o jogo do mundo.
Somos feitos de mil
almas,
Por que é que o berlinde lança?
Nunca chegamos ao
fim.
Porque jogar é jucundo.
Porém, o mais
curioso
O jogo não tem mais fundo
É que este outro em mim,
enfim,
Do que ser a eterna dança,
Sou mais eu e dá mais
gozo
Cósmica dança em que fundo
Do que eu próprio em
frenesim.
O fundo que me descansa:
Só consigo ter
repouso
Quanto se funda em si mesmo.
Se me unificar um
dia,
O meu mais fundo porquê,
Como hoje ocorre no
louco.
Quando, extremo, me ensimesmo,
Ser louco, porém, não
ouso,
É descobrir que não é.
Que render-me é
covardia...
Não tem de haver fundamento
...E assim saibo sempre a
pouco!
Do mel de que me alimento.
78
79
Fantasia
Esquecimento
Como é que a
pornografia,
O esquecimento é o meu nome
Sendo tão
repetitiva,
A perder-se no caminho.
Tanto excita a
fantasia,
O monstro da noite o come,
Tanto o sexo nos
aviva?
Já nem sei quem me é vizinho.
Como é que assim
principia
Corro com passos de fome
Mas, se nos tem por
conviva,
No vazio de meu ninho
Logo após nos
entedia
E no vácuo se consome
Mesmo que por nós
reviva?
Cada sombra que avizinho.
Se a acolho sem
preconceito,
Já não sei qual era a senda
Ou me enoja e então me
inibe,
Nem quem serei, afinal,
Ou me atrai e é porta
aberta.
E onde estou não se desvenda.
Conforme for tal
preceito,
Vejo a rua que não sei,
Ou me recua o que
exibe,
Perdido no vendaval
Ou, soltando-me,
liberta.
Da sombra em que me tornei.
80
81
Esvaziados
Cisco
Os corpos
esvaziados
Como um aviador em risco,
De quem passa ali na
rua
Quando a vida em si desaba
Sem memórias nem
passados,
Jogo fora como um cisco
Trilha de pegadas
nua,
Todo o sonho que me acaba.
Cofres de vácuo
pejados
Com isto, porém, arrisco
A sugar quanto
flutua
A jogar fora, além da aba,
P'ra melhor ser
enganados,
O fato inteiro e no aprisco
Noite esquecida da
lua,
Só resta o que menoscaba.
A rir, alarves, da
mágoa
As dores, quando o sopeso,
Que lhes vem do veio de
água
O sonho também depura,
Que seca sempre que
passam,
Quando, ao senti-las, afague-as.
Corpos que a vida
trespassam,
Se o sonho da vida é o peso,
Ocos de nada
reter,
É também, quando ela é dura,
- Corpos serão,não são
ser!
Brisa que sustenta as águias.
82
83
Queda
Vertigem
Não é preciso
talento
Sempre que me encontro à beira,
Para nos salvar da
queda, Olhando bem para cima
Nem mais génios são
moeda
Da muralha sobranceira
Com que compremos o
invento,
Tudo em mim me desanima.
Que não é novo
instrumento
Sou do escuro uma toupeira:
Com que pagar a
almoeda
O muro da luz se anima,
Contra o que nos
arremeda
Trepa, do infindo se abeira
Que nos urge o
pensamento.
E eu não sei subir lá acima.
Que talentos há que
chegue
Atacado de vertigem,
E génios, até
demais.
Olho a imensidão dos ares
Para que ao porvir se
agregue
Como um abismo a sugar-me
O nosso passo, os
sinais
E qualquer regresso à origem
Que a liberdade os
congregue
Já não são meus deuses lares:
E perseveremos
mais!
- Como de mim desatar-me?
84
85
Morto
Vítima
As construções
racionais
Entre vítima e carrasco
De tão fúteis se
consomem
O mundo me obriga à escolha
Ante os sangrentos
sinais
E então de mim ganho asco
Do pobre mundo do
homem.
Se branca me fica a folha
Dão-nos sistemas
morais
Quando em vítimas me atasco.
E os políticos se
comem
Tem de haver outra recolha
Atassalhando os
demais
P'ra dentro de nosso frasco,
Antes que os demais os
tomem.
Não o veneno que molha
São discípulos
egressos
Tudo o que nos envenena,
Dos filósofos da
paz
Esta vergonha entranhada
E da perene
harmonia
Com que a vida me decepo.
Mas os seus passos
confessos
Que não há escolha serena:
São este ódio que nos
traz
Sou vítima degolada
Morto o sonho e a
fantasia.
De mim próprio no meu cepo.
86
87
Problemas
Disse
Todos nós temos
problemas.
Aquilo que ele não disse
O que importa é o que se
faz
Como o que disse importou.
P'ra ultrapassar os
dilemas,
Quis dinheiro (era sandice?),
Se vou à frente ou atrás.
Língua de patrão falou:
Problemas são
teoremas
"Talento e capacidade
P'ra mostrar do que é capaz
Tenho para avançar mais,
Quem lhes resolve os
sistemas
A responsabilidade
Com solução
eficaz.
Dê-ma que eu darei sinais!"
Desafiam-me e eu me
meço
Não tendo falado em ganhos
Enfrentando-os
denodado,
Sublinhou que trabalhar
Em vez de fugir
medroso.
Lhe despertava a miragem.
Apenas assim me
esqueço
Ao sacrificar os anhos
Do terror de ter ao
lado
Da fé do patrão no altar,
Este esgar com que me
entroso.
Tomou-lhe em mãos a viagem.
88
89
Hierarquia
Saúde
No topo havia os que comandam
sós, O que julgamos
ser norma,
Dão os castigos, inculpando os
mais, O que é
saúde mental
Mas eles próprios também são dos
tais É uma alienação em forma
Que são culpados como todos
nós.
De calmante racional.
Interligados são tais estes
nós
E a loucura que se forma
Que juntos somos um sistema de ais,
À margem do que é normal
Na culpa unidos, entes
infernais
É uma crise que conforma
Infernizando-nos com fúria
atroz.
Todo um crescer pessoal.
Somente alguns, porém, são
conscientes O normal é indesejável
De fazer parte deste
pesadelo,
De tão convicto e tão fixo,
Iluminados como incréus
dementes.
Só que o louco é um intratável
E quantos são conscientes do
flagelo Se o
prego num crucifixo.
Duplamente se vão rangendo os
dentes, A loucura só fermenta
Que os desgraça a desgraça sem
apelo. Se é sã massa o que alimenta.
90
91
Todo
Socorro
Numa situação
normal
Todo o louco ou marginal
Com meu corpo formo um
todo.
São um grito de socorro,
Contudo, se isto é
geral,
Mas o queixume só vale
Jamais é sempre o meu
modo.
Quando ao precipício acorro.
Nos resíduos do meu
lodo
Porque isto de estar no mundo
Acorda-me um
anormal
Pode ser insuportável
E, se nele me
acomodo,
E se alguém devém imundo
De mim perco o meu
sinal.
É que algo não lhe é agradável.
Então, louco,
desconheço
E assim é que tem sentido
Este meu corpo
estrangeiro
O que sentido não tem.
Que me não merece
encómio.
Mesmo quando não me olvido,
E logo após
reconheço
Porém, o que lhe convém
Que, afinal, o mundo
inteiro
Muitas vezes nem vivido
Não passa dum
manicómio.
Trepa o abismo que o retém.
92
93
A investigação
decorre
Todas as contradições
Sob o primado do
objecto:
Podem sempre ao fim gerar
Por isso a cultura
morre
Novas totalizações
E o sujeito é mais
discreto.
Sem de vez finalizar,
E nunca a ninguém
ocorre
Se o conflito após repões
Que a salvação é o
projecto
Para além reconquistar
Em que a pessoa
discorre,
Sempre novas soluções,
Do saber perfil
concreto.
Patamar a patamar.
Toda a ciência
talhada
Há, porém, dificuldade
Sob os nexos das
pessoas
Em ler a contradição:
É o que pode enfim fundar
O imprevisto é indecifrável.
A festa da
desfolhada,
Em troca então da verdade
As espigas para as
broas
Vem a mistificação,
Toda a vida a alimentar.
Torna a morte inevitável.
94
95
Nascer
Morte
Há pessoas que nasceram
Se me encontro com alguém
Mas não nasceram prà
vida,
Tanto pode vir a vida
Que à vida conta o que
deram,
Como a morte vir também.
Não o ser vida
nascida.
Se a morte for prevenida,
Porque se existentes
eram,
Um fingimento convém,
Não eram vida
querida
O duma morte fingida
Mas o fado em que
vieram
Por quem se sente ninguém
Contra a corrente
sofrida.
Para enfrentar com quem lida.
E como a vida os
provoca
Porém, este fingimento
Num ataque
permanente
Que promete a liberdade
Para o qual jamais há
tréguas,
Gera, afinal, mesmo a morte.
Defendem-se de quanto os
choca
Para evitá-la, o tormento
A fugir
perpetuamente,
Ou é a minha soledade
Deles e do mundo a
léguas.
Ou noutrem perder-me à sorte.
96
97
Relação
Antes
Já não somos
relação
Antes da doutrinação
Mas solidões em
conjunto,
Familiar a criança
Distintas em quanto
são
Tende sempre a dizer não,
E que entre si jamais
junto.
A ultrapassar o que alcança.
Condenados à
prisão,
Antes de a escola em tensão
Desumanizo-me
junto
Colocar a sua dança,
A um sistema em que nós
não
A criança em embrião
Teremos qualquer
adjunto.
Não tem nunca a fera mansa.
Ninguém nunca é
responsável
Ela é um artista em potência,
E doutrem são sempre os
erros:
Um visionário feliz
"Limitei-me a
obedecer..."
Com revoluções em sonho.
Assim nada é
libertável,
Tabus matam-lhe a inocência,
São de silêncio meus
berros:
Culpas ferem-lhe o que diz...
- É tão morte este
viver!
- Morte é o que nela deponho.
98
99
Desaprender
Contradição
O que temos de
fazer
Explode a contradição
É aprender
constantemente
Entre a nossa sociedade
O que é de
desaprender
Que é toda dominação,
De quanto temos em
mente,
Que reduz a identidade
P'ra podermos
compreender
À anónima multidão,
Quanto no ensino nos
mente,
Faz da personalidade
Virmos então a
saber
Uma mera ordenação,
Quanto não se ensina à
gente.
Classifica cada idade;
Porque a urgência mais
urgente
E as pessoas que, traídas,
É limpar o nosso
ver
Querem gritar o seu nome,
Para se ser
competente
Sua erguer uma obra-prima
Vendo além quanto for
ser,
Em que, jamais confundidas,
Não este mundo
demente
Possam liquidar a fome
Que é centro sem centro
haver!
De ficar sempre por cima.
100
101
Consciência
Invivível
Se começo a ter
consciência
Quando o pormo-nos em causa
Dos fantasmas com que lidas,
Se tornou mesmo impossível
Só te resta, com a
ciência,
Urge fazer uma pausa
Louco como me
apelidas,
Porque aconteceu o incrível:
Pôr o mundo em
continência
Por mim viver é invivível!
Ante ti de mãos
erguidas,
E o que tal defeito causa
Para esconder a
falência
É que noutrem pus o nível
De todas as tuas
vidas,
E a mim próprio pus em pausa.
Que os fantasmas que te
aponto
É que pôr-me em causa a mim
São tua
realidade
É pôr o meu mundo inteiro
E nada mais te é
real.
Que ali se esbarrondaria.
Se o que desvendo te
conto
Vazio, não tenho fim,
É que é a única
verdade,
Nada fica a mim fronteiro,
Tudo o resto nada
vale.
Doutrem sou uma fantasia.
102
103
Contestar
Errado
Se quem me contesta
for
Quando alguém depara alguém
P'ra mim louco
furioso,
Com um atraso qualquer
Muito convicto o vou
pôr
E pergunta o que ele tem
Num hospício,
escrupuloso.
De errado para assim ser,
Porém, se ao me
contrapor,
Busca o que mais lhe convém:
Vejo antes que é,
desgostoso,
Àquele homem ou mulher
Rasgar meu véu de
senhor
Ele à distância mantém,
Para nos abrir ao
gozo,
Entre ambos foge ao que houver.
Então é crítico
esforço,
E nunca este muro cai,
Desespero mal
armado,
Porquanto fica ignorado
Tentame para
escapar,
Por quem nele se distrai:
Em desajeitado
escorço,
Jamais vê que o que há de errado
Às sombras de nosso
lado...
É quanto em si próprio trai
- Então só me resta
amar!
Dum amor não partilhado.
104
105
Violência
Respeitar
Sem os
coletes-de-força
Silêncio não quer dizer
Ainda a violência
acontece
Uma falta de atenção,
Se a responder não se
esforça
É respeitar e acolher
Quando a pergunta
aparece;
Noutrem sua condição.
Se de amor sem jeito
estorça
É como que lhe dizer:
Algo à jovem que
estremece
"Aqui estou à tua mão
E a palavra não
reforça
Para o que der e vier.
O gesto de que
carece.
Podes confiar, que não
Se depois sou
perigoso
Te imporei qualquer querer
Injectam-me mais calmantes
Que não seja a volição
Sem me dar
explicações.
Do sonho que te aprouver.
Não vêem que o maior
gozo
Se não quiseres, então,
De quem perdeu seus
instantes
Fico ao teu dispor ao ser
É armadilhar
explosões.
Bem guardado em teu porão".
106
107
Lista
Vivo
Por que é que ele está na
lista?
Quem saúde sempre teve
É que tudo o que ele
fez
Não imagina jamais
Foi só ser um
activista,
Como a alegria foi breve
Um activista
chinês...
A quem a já não tem mais.
Co'a democracia em
vista,
O rico nunca conteve
Gritou ordens, bateu
pés,
Estas contenções fatais
Sonha um povo que
resista
Que o pobre tornam tão leve,
Aos dogmas, às cegas
fés.
Já que lhe não vive os ais.
Irão talvez
fuzilá-lo...
Das experiências que leio,
Não poderão
fuzilar
Que intelectualmente capto
Mais uns mil e cem
milhões,
E não vivo pessoalmente
Mas degolam o
cavalo
Nunca o saber me proveio,
E a corrida vai
parar
Nunca me tornaram apto...
-Porque tu nada ali
pões!
-Só o que vivo me não mente.
108
109
Inimigo
Recuso
O inimigo do
inimigo,
O louco é a quem eu recuso
Se meu este último
for,
Que seja o que tem de ser:
É, por vezes, meu
amigo
Psiquiatra, cometo o abuso
Prò pior e prò
melhor,
De internado o ir prender;
Mas só na guerra eu
consigo
Psicanalista, é de obtuso
Disto colher o
valor.
Que o tomo se me não quer;
Se em política
persigo
Antipsiquiatra,o que eu uso
Manter-lhe o mesmo
sabor,
É coroar o que quiser.
Já não tem sentido
algum.
Se procura a liberdade,
A afinidade só
ocorre
É falta de percepção;
Quando afim nos é a
verdade.
É inacessibilidade
E não tem valor
nenhum
Qualquer não cooperação;
Se a razão porque se
morre
Ou é sociabilidade
É uma falsa
identidade.
Quando nos viola em vão.
110
111
Mente
Falso
"Os loucos nunca
existiram",
É tão falso e enganador
- Mas eles tratam dos
loucos!
Dizer que a esquizofrenia
"São mais sãos que os sãos" que
viram, É uma crónica mania
Mas vão-nos curando aos
poucos!
Dum fingido sonhador,
"Os hospitais nos
mentiram",
Como afirmá-lo seria
- Mas fazem ouvidos
moucos
Do soberbo pundonor
E outros novos
erigiram
Duma esposa de valor
Berrando outros nomes,
roucos!
De quem então se diria
Depois deste
desvario
Que ser conscienciosa
Não se encontra fácil
fio
Seria um crónico mal.
Separando são e
doente.
Que, ao fim, a cronicidade
Com tanta
contradição
Vem do sistema que goza
Quem não pode, enfim, ser
são
Ao pressionar cada qual
É quem tanto assim nos
mente.
A salvo da impunidade.
112
113
Em
Vão
Crueldade
Como marido e
mulher
Se aquele que te liberta
Um ao outro se recriam
O faz despoticamente,
Nos laços que os
uniam
Em primeiro lugar mente,
Numa existência
qualquer,
Que a porta só fica aberta
Vai o louco recolher
Co'a chave de quem se invente.
Do médico e dos que o
viam
Em segundo, se desperta
As vias por que
andariam
Contra um déspota e o aperta,
Seus passos a transcorrer.
Vai exceder certamente
Uns aos outros se
criando,
As crueldades daquele
Médicos e loucos
são
Em nome da liberdade.
Um problema de
consciência:
Déspota que se sacode,
São a tragédia
actuando.
Ou nos paga a própria pele
Disto a cura aguardo em
vão,
Ou é nova crueldade
- Urge findar-lhe a
existência!
Sobre o mesmo eterno bode.
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Pessoais
Salomão
Há certos bens
pessoais
Quando humanas relações,
Que, protegidos por
lei,
Em especial entre pares,
Parecem ser mais
reais
São forçadas uniões,
Que os reais que de mim
sei.
Não contratos singulares,
Minhas peúgas valem mais
Sempre então as coacções,
Ante o conselho do
rei
Bem como seus avatares,
Que meus sonhos
principais,
Buscam justificações
Que o nome que até
terei.
P'ra tantos erros palmares.
Mas bem cá dentro em meu
imo
Enquanto isto for assim
O que íntimo
considero
Não há forma de arbitrar
São tais bens
imateriais.
Quem tem direito e quem não.
O poder a que me
arrimo
E, quando se lhe põe fim,
É que vive o
desespero
Para se poder julgar,
De lhes não ver os
sinais.
Só se alguém for Salomão.
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Ausência
Multiplicar
Quanto mais cada
doente
Nem sempre multiplicar
Não paga pela
assistência,
É contrário a dividir,
Tanto mais esta
carência
É só buscar o lugar
O faz perder a corrente.
Certo para o conseguir.
E se for a
previdência
Se for coisas repartir
Que mantém
conta-corrente
Nunca as irei aumentar:
Co'o médico, mais premente
Com que fico no porvir
Se revela aquela
ausência.
É o que lembro de seu ar.
Não há mais mútua
escolha
Porém, a felicidade
Do médico pelo
doente,
Multiplicar poderei
Um ao outro são
impostos.
Por este meio inaudito:
E assim não há quem
recolha
Reparto-lhe a identidade
Quanto a liberdade
invente,
Por amigos a quem dei.
Dela ao fim perdem-se os gostos. - Multiplico-a ao infinito!