2ª. Redondilha
Deste Povo
Que Tem Voz
Escolha aleatoriamente um número
entre 118 e 238 inclusive.
Descubra o poema correspondente como
mensagem particular para o seu dia de hoje.
118
2ª Redondilha
Deste povo que
tem voz
Tenho a voz que
a mim me canta
E de mim me
desencanta
Quanto encanta
todos nós.
Voz que ata e
desata os nós
Que nos desatam
de quanta
Ilusão nos ata a
tanta
Mentira que
canta a sós.
Que a sós não há
canto algum,
Que, enquanto
sou, sou perfis
Que subtis se
juntam num,
Das mesquinhezes
mais vis
Ao crime mais
incomum:
- De vós é que a
mim me fiz.
119
120
Povo
Temporal
Morreram os
poetas,
Eis-me aqui ao temporal
Já ninguém os
lê,
Das horas que relampejam
Os versos são
tretas:
Inundando o pantanal
-Vive a sério,
sê!
Enquanto as vidas arquejam.
Larga essas
muletas
É uma explosão sem igual,
Em que ninguém
crê!
Sejam os factos que sejam,
São vidas
concretas
Seja o passado que fale
- Dizem - que se
vê.
Ou hoje e amanhã que beijam.
Quando nenhum
ovo
Na terra finquei meu pé,
-Ponho-me a
gritar-
Sem apoio ou garantia,
Restar prò
renovo,
Acolhedor ao que vem.
Quem canta a
pensar
E o maior fascínio é,
Sou eu, voz do
povo
Fustigado à ventania,
Que pensa a
cantar!
Mais me atrair quanto advém.
121
122
Indefeso
Pecado
Às intempéries me
exponho,
A poesia é o pecado,
Indefeso e
desarmado,
O pecado original
E só então começa o
sonho
Que à luz nos traz o recado
De talhar o comum
fado
Do valor que tudo vale.
Em que a humanidade
ponho
Assim tudo iluminado,
No lar cósmico, a meu
lado.
Tem consistência o real,
Alicerço-o no
medonho
Vem o sentido criado
Terramoto que me é
dado,
História além, vale a vale.
Em cada dia que
passa,
Expulsos do paraíso
Pelo turbilhão dos
factos
Do caos mais primitivo,
Que nos agride
impiedoso.
Atingimos o juízo.
Arroubado em plena
praça,
Base do existir humano,
Se há maravilha em meus
actos
Matando-me é que me vivo,
É a casa comum que
gozo.
Viver-me é ser inumano.
123
124
Silêncio
Baloiçar
A voz do
silêncio
Ser poeta é baloiçar
Por trás da
palavra...
Instável entre dois mundos:
Acolha-o ou
pense-o,
Um deus ao alto a reinar,
Por mim fora
lavra.
Em baixo, os homens imundos.
A mim me
apalavra,
Incapaz de libertar
Fuja-lhe ou
incense-o.
Seu ser em haustos mais fundos,
E a vida
escalavra
É de banido o lugar
A voz do
silêncio.
Dos tentames infecundos
Silêncio que
fala
Que faça para fugir.
Rasgando-me a
pele
Ficar entre é seu destino,
Com mago
sentido.
Nem num nem noutro descansa.
E o sentido
cala
Poeta é não ter onde ir,
A voz que me
impele
Por isso um toque divino,
Do fundo do
olvido.
Sendo ele homem, sempre o alcança.
125
126
Inofensivo
Exprimir
Ser poeta é
inofensivo,
Posso exprimir em palavras
Palavras voam no
vento,
O mais recôndito e puro
É ineficaz e
passivo,
Como adubar minhas lavras
Um mero
divertimento.
Do estrume que ao vulgo apuro.
Nunca toma um jeito activo,
O mais grave é que escalavras
No real que em sons
invento
O sublime que depuro
Jamais fora
interventivo,
Quando co'as massas te travas
Nunca lhe muda um
segmento.
Servindo-lho em vaso impuro.
Ser poeta é apenas
sonho
Nisto a mensagem se esbate,
Em que sonho a
realidade,
Cai da essência ao ordinário,
É só um jogo em que me
ponho
Devém vulgata comum.
Em palavras de
verdade.
Quando sem mais tal se acate
- Mas da acção a
seriedade
Em vão foi nosso fadário:
É o selo que aqui lhe
aponho.
Não resta sentido algum.
127
128
Plataforma
Momento
A palavra é a
plataforma
Se o momento é do poder,
Em que estável ponho o
pé,
Convulsionado e bem tenso,
Tudo aqui se me
transforma
Ciência não é saber,
Naquilo que já não
é.
Publicita e já não penso.
A fala o presente
informa
Investigar é querer
E nele me finca
até
Fugir além do consenso,
Que eu não tema qualquer
forma
Determinar o meu ser
Que, fugaz, me abale a
fé.
Fatalmente e sem bom senso.
Inaugurado o
presente,
Busco em arte então remanso
Abro o passado e o
futuro
Que abrigue a verdade inteira,
Num irisado de
cores.
Prévia e mais originária,
E a palavra é que me
sente
Fiel ao ser quieto e manso,
Firmado em cima do
muro
Sem nome e que se me abeira
No arraial lançando as
flores.
P'ra ser minha luminária.
129
130
Verdade
Técnica
Diz a escola que a
verdade
A técnica foi outrora
Adequa o
pensamento
Descobrir o resplendor
A qualquer
realidade
Do que aparece, da aurora
E acaba aí o tormento.
Que se esquivou do negror.
Mas verdade é que a
verdade
O que é verdadeiro apor
Jamais verga a nosso
intento,
Ao belo que nos namora
Negaceia a
claridade
Era a técnica maior,
E só num fugaz
momento.
Não um domínio de fora.
Rompe as trevas num
lampejo
Técnica era tão poesia
E logo se encobre
delas,
Que nos deixou o perfume
Parto nunca
consumado.
Duma eterna maresia.
E o que vejo é que não
vejo
Hoje eis no que se resume
Em tão furtivas
estrelas
A morte que se anuncia:
Que o sol enfim seja nado.
Morre à técnica este lume.
131
132
Sítio
Dinheiro
Sítio é tornar-me
espaço,
Preço do dinheiro
É limpar a minha
eira
É o preço que meço
Para um deus que, passo a
passo,
Por vir ser inteiro,
Vem plantar-se à minha
beira.
Ser sem nenhum preço.
Espacializar é um
laço
Do preço que peço
Que por fora me
joeira
Por quanto requeiro
Tudo aquilo a que me
abraço
De parco me esqueço:
E aqui planta a vida
inteira.
O preço é leveiro.
Os deuses
abandonaram
O preço que custa
As ruínas dos
lugares
Aquilo que sou
Despidos de
coração
Jamais se me ajusta,
E as crenças que hoje nos
aram
Que quanto mais vou
Os vergéis de nossos
lares
Na via mais justa
É que nos trarão
perdão.
Mais mísero estou.
133
134
Eu sou um
desconhecido
Tenho o meu corpo marcado,
Que um dia serei um
génio
Pelo tempo envelhecido.
Quando já tiver
morrido.
Vem à voz de meu recado,
Instaurarei o
milénio
Calo-me e presto-lhe ouvido:
Dum homem novo
assumido
Será que ele está fadado
Que cumprirá o
convénio
A me falar do sentido
De o porvir já ter vivido
Que faz eu estar calado
Desde o nosso
miocénio.
A ver de quem é o gemido?
Inauguro o
cidadão
Nunca fui tão fraco assim.
Que aniquilou, pela
escola,
É que eu me esqueci de mim
Subserviências de
antanho.
Ou então não sou quem era.
Perdido na
confusão,
Espremi a primavera,
Toda a gente me viola
Bebi-a com frenesim.
E a morte em vida é meu
ganho.
- Que é que me espremeu de mim?
135
136
Professor
Ladrões
O professor, turma a
turma,
Isto é um país de ladrões
Ensina quanto
subsiste,
Que são quantos eu conheço
Tudo explica, tudo
esvurma,
Que me roubam aos milhões
P'ra, no fim, 'squecer que
existe!
As vitórias que mereço.
Nomeia o Universo
inteiro,
Roubaram-me as ilusões,
Do saber sabe ele a
fome!
Mesmo o tamanho que meço:
Depois, vário e sem
dinheiro,
De minhas inovações,
Perde até seu próprio
nome!
Mal as colho, me despeço.
Tanto se esvai no que
dita,
Carnaval de foliões,
Carne, voz e
coração,
Corso em que, forçado, ingresso
Relíquia afinal
maldita
Ao chicote de mandões,
Perdida no
corropio
Sempre que licença peço,
Da vida, infrene
cachão,
Curvam, em 'scárnio, os bordões
- Que nem sequer
existiu!
- E eu logo neles tropeço!
137
138
Ulcerado
Alteza
Para além da
polidez,
Ela era uma alteza!
Só questão de
cerimónia,
Para nos mostrar
O que nos fica é
acidez,
Que a ninguém despreza
Uma escondida
acrimónia
Vem a esmola dar.
Por quanto o mundo nos
fez,
Igual singeleza,
A nossa pátria
demónia
Encantador ar,
Que nos rasga de
través
Na banana à mesa
Co'a maior
sem-cerimónia.
Ou no lupanar.
Torno-me hostil aos
demais,
É a prenda ao macaco
Por dentro todo
ulcerado
Como ao pobretana,
Com a degradante
imagem
De sorriso crente.
Que de mim vejo nos
mais.
- Não valho um pataco
Sem apelo
condenado,
(Ou muito me engana)
Morre ali minha
viagem.
Por mim pessoalmente!
139
140
Sedução
Loucos
É um jeito
particular
"O nosso é um mundo de loucos"
De aos outros dar a
impressão
Não é nunca um bom encómio.
De que o mundo vai
parar
Todos, aos poucos e poucos,
Quando vão em
procissão.
Caímos no manicómio.
A importância que lhes
dão
E mais por dentro ficamos
Vai de tal modo aumentar
Quanto mais de fora somos,
Que é o mundo inteiro em
roldão
Quando mal nos precatamos
Só para os
cumprimentar.
Somos da lista os mordomos.
E depois viram as
costas,
Podíamos esforçar-nos
Jamais alguém
reconhecem,
Por tentar nosso melhor
Aliás, nem
conheceram!
E lutar até ao fim,
Vê lá bem de quem tu
gostas:
Mas como capacitar-nos
Se aquecem e
arrefecem,
De seja lá quanto for
Já nem são,
aconteceram...
Se louco é quanto há em mim?
141
142
Criança
Comunhão
Ser criança é ter os
deuses
A primeira comunhão:
Todos em redor de
nós.
A vida vai começar!
Eles talham os
adeuses,
Vou ser grande e ter na mão
Atam e desatam
nós.
Todos os reinos do mar!
Nesta inteira
dependência,
Vou ser luz em profusão,
Eles têm a
autoridade,
Ter o direito de amar,
Nem se discurte a
premência,
Germinar meu próprio pão
Cremos que ela é
liberdade.
Até no mundo reinar!
Mas nossa preguiça
infame
Mas depois nunca me dão
É o que escapa a nosso
exame.
Nem um círio dum altar,
E as crianças mais
crescidas
Nem para mim olharão
São nisto as mais
demitidas.
Mesmo sendo um avatar.
Ninguém vê o topar da
pedra:
Como vou manter-me são
- Dentro em nós por isso
medra!
Se me falta o próprio ar?
143
144
Caixa
Louros
Mesmo se o dinheiro é
lei
Como manter a esperança
Sempre pelo mundo
fora,
Se reina a perversidade?
Jamais me
transformarei
Se o crime é que sempre alcança
Em caixa
registadora.
Os louros em sociedade?
Os valores que
apurei
Se quem floreia é que avança,
Se a chegarem nos
demora
Não quem o porvir invade?
É que o mundo que
instaurei
Como animar esta dança
Não será o fútil de
agora.
Que promete a liberdade?
Não me compram que eu não
vendo
Quando acaba a tirania
Meu coração nem o
sonho
Dos zeros que em tudo mandam
Às trapaças de
ninguém!
À caça de cada ideia?
Mas, já que o mundo, assim
sendo,
E quando é que se esvazia
Me rouba quanto
proponho,
A cartucheira dos que andam
A mim me rouba
também.
Co'a vida de esterco cheia?
145
146
Miniatura
Anões
Miniatura de
País,
Sou maior do que Camões
Portugal dos Pequeninos,
No que sonho em meu tamanho
Mesmo se fala não
diz,
Mas num País que é de anões
Quando age, são
desatinos,
Ninguém nos dá nosso ganho.
Se canta, são crentes
hinos,
Quer me chame de Pessoa
Quando aprende, o pau de
giz
Ou Sérgio, Egas Moniz,
Em pó lhe traça os
destinos,
Tenho alguma coisa boa
Um sopro apaga o que
quis.
Só depois que em pó me fiz.
Jamais a grandeza
coube
Que Camões é o padroeiro
Neste cantinho
acanhado,
Desta nossa confraria
Velhacouto de
sarilhos,
No País em que o dinheiro
E assim Portugal não
soube
É o bobo da companhia:
O tamanho alcandorado
- Quanto mais vou sendo inteiro,
Dos melhores de seus
filhos.
Mais parceiro da agonia.
147
148
Glória
Na Prancha
Tenho, enfim, de
agradecer
Na crista das ondas
A quem me não
reconhece,
Te redescobri.
Que o pedestal, o
poder
Tu jogas e sondas
Por dentro nos
empobrece.
O mar que há em ti.
Se o povo nos
agradece,
Das vagas desfrutas
A loa que nos
tecer
O instável vaivém
Tanto a nós nos
engrandece
E vives as lutas
Como a sós nos força a
ser.
Que a vida retém.
O inferno de toda a
glória
Na prancha de pé
É que obriga a
perguntar
Flutuas, instante.
Que faz a cada
pessoa:
Cais sob a maré
Se no-la grava em
memória,
Logo mais adiante.
Quando em vida a
coroar
- Prancha flutuante
Traz muito espinho a
coroa.
É o que a vida é!
149
150
Deserto
Vazio
Porque esta vida é um
deserto
Ando enchendo os dias
E neste deserto
somos
Com o meu vazio,
As raízes que aqui
pomos
Maldição das rias
À espera que bata
certo,
No pino do estio.
Primeiro é o sonho
desperto
As manhãs são frias
Dum pomar prenhe de
pomos,
E em meu calafrio
Morre depois o que
fomos,
Vou rasgando estrias
Em que o longe foi tão
perto.
Às vestes no fio.
E fica-nos na lembrança
Vagos em redor
A ilusão da
juventude:
Secam os ribeiros;
Que miséria de
abastança!
Quem tem um amor
Neste jogo quando
acerto
Veda-lhe os esteiros...
É que morro com
virtude:
- E eu neste estertor
- É desertar prò
deserto!
Por férteis lameiros!
151
152
Abundância
Inocência
O sol abunda na
praia,
Minha vida teve dias
No areal abunda a
gente,
Em que reinava a inocência.
Abunda o mar de
repente
Eu fechava as gelosias,
No poente que
desmaia.
Tudo devinha aparência.
Abunda a sardinha, a
raia,
Não havia paciência
Pula o pescador,
fremente,
Nem havia teorias,
E a abundância que se
sente
Era apenas a vivência
É o que de gentes se
espraia.
Ao sabor de fantasias.
E por toda esta
abundância
Ai tempo da minha infância
Nos deixamos
embalar
Em que um sonho de luar
Na abandonada
elegância
Jamais foi sonho mas ser!
Do regaço deste
mar.
Saudade da manigância
E este rito ao
acordar
Em que bastava fechar
Nos acorda dentro a
infância.
Os olhos para não ver!
153
154
Quarto
Lareira
O quarto da minha
infância
Primeiro raio de sol,
Tinha um tecto
original:
Todo o mundo à minha beira,
Quanto era reino
animal
Na quentura do arrebol
Tinha ali a sua
instância.
Sinto-me um gato à lareira.
Eram poses de
elegância
Desfila por mim o rol
A fazerem-me
sinal
De amigos à cavaqueira:
Sempre que eu dormia
mal,
É o momento em que se abole
Do sonho já dominância.
A fadiga e a canseira.
Riqueza de quarto
pobre,
Contra as pressas esta lida
De pinturas
estaladas
Principia e nos liberta,
E manchas por todo o lado...
A passearmos os dias.
Desforra do rico e
nobre
E com isto nos convida
Cujas paredes
pintadas
A manter a porta aberta:
Têm o zoo
esvaziado.
Reais são as fantasias.
155
156
Lar
Pavão
Eu fui ouvir o
descanso,
Duma lei da evolução
Palpar a alegria
plana
Como nos chega o pavão?
De sob o pinheiro
manso
Prà luta não é dotado,
Da planície
alentejana.
É da beleza um bocado,
Eu fui ouvir o
remanso
Não é nas defesas alto,
Da brisa abanando a
cana,
Só do belo um sobressalto.
Todo aquele falar
manso
A evolução de certeza
Que as canseiras nos
engana.
Extasia-se em beleza,
Vi o mundo todo
aberto
Esqueceu-se doutras leis
Com o sol a
passear
E sagrou os pavões reis,
Arregalado de
espanto.
Fragilidade imponente
O céu ficava tão
perto
A alegrar-nos o presente.
Que, por fim, foi em meu
lar
Arco-íris a toda a hora,
Que aqui me vi por
encanto.
Nele é o mundo quem melhora.
157
158
Fogo
Frio
É na magia do
fogo,
Já lá vem o grande frio...
Ao redor duma
fogueira,
Na lareira a crepitar
Que no mistério me
afogo
É que eu sempre desconfio
Que das raízes me
abeira.
Do calor que faz gelar.
Quando me sento à
lareira
A meus íntimos me alio,
Principiamos o
jogo:
Que p'ra além me ruge o mar,
Rito de sentar à
beira,
Lã de neve: perco o ousio,
Dar as mãos num
desafogo.
Que promete e não quer dar.
Toda a chama é de
poesia,
Vou estendendo a intimidade
Vem-nos do fundo das
eras
Pelas fronteiras do mundo
E outra vez cá
principia.
P'ra que o calor sobrenade.
E é uma paz que nos
invade,
E até no ódio mais fundo
Suspensos, ante as
esferas:
Vou tentando a claridade
- É a sagração da
amizade.
Do fogo com que o inundo.
O Parténon é uma
obra
Tomba o nevoeiro
Perdida em mundos
humanos,
De Londres na praça,
Que por todos se desdobra
Os ossos nos traça
E nunca entrega os
arcanos.
Gelo de Janeiro.
No Parténon se
recobra
Um menino passa:
A espinha dorsal dos
anos,
Logo o sol, lampeiro,
No mar do tempo é uma
cobra
Pula, galhofeiro,
Coleando imune aos
danos
Dele em toda a graça.
E pronta para
atacar
Bem sei que por fora
Com um veneno que
cura,
Os frios nos tolhem.
Com um remédio que
mata.
Mas por dentro agora
Obra não, mais é um
luar
Os fogos acolhem
Que torna a noite mais
pura
Quanto, de hora a hora,
E as manhãs corteja e
acata.
As chuvas nos molhem.
161
162
Mãe
Riso
Foste, mãe, a
lutadora,
Como choro quando rio!
Nove vidas deste à
vida
É que eu rio sem saber
Como quem nunca
duvida
Quanta lágrima esmoler
E o revés não
apavora.
Esconde o riso vadio.
Enviuvaste na
hora
São dois rios num só rio,
Em que mais te era
devida
Riso e choro a entretecer,
Força nova para a
lida
Num caudal de estarrecer,
Do mundo que nos
devora.
Vidas com que me atavio.
Analfabeta, tu
leste;
É uma anedota esta vida
Frágil, foste a mão de
ferro
Narrada com jeito tredo:
Que, firme, nos
sustiveste
Ri-me sempre em voz dorida,
Destas vidas no
aferro.
Quando rio, rio a medo...
Como quem colhe o que
investe,
É que ao rir, nesta subida,
Tu morreste e eu não me
aterro.
Perco o ar e me degredo.
163
164
Rir-se
Demissão
Se um amigo é
aborrecido
Para os teus problemas,
Nunca queiras rir-te
dele,
D. Sebastião
Que o riso é bem
recebido
Ou uma guerra à mão
Só se nos não rasga a
pele.
Resolve os dilemas.
Antes que ele te
arrepele
De tua vida os lemas
Faz da chateza um sortido
São conspiração
Tão insólito que
apele
De libertação
A rir junto até ao
olvido.
Desde que a não temas.
Rir a vida é a
medicina
Como isso é temível
Que cura as feridas da
alma,
E de riscos altos,
Tolhe a língua
viperina
Sentas-te na praça.
E desta maneira
ensina
Sonhas o impossível,
A fúria a vestir de
calma
Traças dele os saltos
E os laços de amigo
afina.
- Mas outrem que o faça!
165
166
Cavador
Perdão
Aprendi a ler a
vida
Não perdoar é ser escravo
Com uma enxada na
mão,
Dum passado que magoa,
Cavei letras nesta
lida,
Nele a liberdade encravo
Delas fiz meu
ganha-pão.
E a vida não me perdoa.
Suor verão a
verão,
Prà vida tomar seu travo
Calejado, que
convida,
Liberto-me da pessoa
À lareira do
serão,
Em cuja roda me travo,
A pensar no que me
olvida.
Livre prò tempo que voa.
Trago-lhe os regos na
pele,
Não sacrifico o presente
Cicatrizes dentro da
alma:
À voragem do passado,
Serei eu próprio ou é
ele?
Liberto-me para a frente.
Lavoira que não me
acalma,
Contra o maremoto nado
Como impedir que
atropele
E o perdão torna-me gente
E a mim próprio leve a
palma?
Que constroi um novo fado.
167
168
Desilusão
Liberdade
Sofrimento do
passado
A liberdade é um lugar
Corta-lhe as rugas da face.
Onde a nave espacial
Cansaço de sempre
adiado,
Um dia espera ir pousar,
Não há porvir que
ultrapasse.
Mas só lhe encontra o sinal.
A não ser que uma
ilusão,
Por isso é que é trivial
Frescura de vinho
novo,
Qualquer pirata assaltar,
Lhe erga no peito a
canção
Por aquele original,
Com que inaugure um
renovo.
Outro qualquer p'ra enganar.
A alma antiga vem-lhe
acima
Depois grita a ditadura
Se formos, como entre
irmãos,
Da liberdade que impõe
O bordão em que se
arrima,
Na estrela que a mão impura,
Se os copos nas nossas
mãos
Lenta, apaga e decompõe.
Forem começo da
rima
A estrela da liberdade
Em que rimem nossos
chãos.
Não tem grilhões nem se invade!
Nem a polícia secreta
Lhe garante a propriedade:
- A liberdade é directa!
169
170
Sapateiro
Justiça
Quando o
sapateiro
É tal a nossa justiça
Toca
violino,
Que defender a inocência
Isto é o mundo
inteiro
Não é com sair à liça,
A fazer o
pino.
É com perder a decência.
Quando o
sapateiro
Vai tão longe a impertinência
Se mete a
tocar,
Que o réu só se desenliça
Isto é o mundo
inteiro
Se fugir à violência
De pernas prò
ar.
E não ceder à preguiça:
Mas não há dinheiro
- Não te deixes engradar!
Que pague a
laracha
Preso, põem-te a mordaça,
De ver um
solista
Ninguém vai-te acreditar.
Feito sapateiro:
E, extramuros, já a trapaça
- Prega a mão à
tacha
Da injustiça salta ao ar:
E a sovela à
vista!
Do iníquo vemos a traça.
171
172
Pai José
Honra
Maria toda a mãe
é,
Ter honra sem ter brilhantes
Nosso plástico
sustento.
Não é do mundo um sinal:
Quem melhor que tu,
José,
Ser e ter não são distantes,
Nos diz vosso
entendimento?
Quem tem mais é quem mais vale.
Tu és o pai que, com
fé,
É por isso que o Natal
As latas de que
fermento
Já não é o que era dantes
Forças que me têm de
pé
Quando dentro dum curral
Carregas como um
tormento.
Podiam nascer gigantes.
Vestem latas teu
colar,
Hoje até de pedrarias
Tuas
condecorações,
Cobrem o menino nu,
P'ra teu filho ser quem é.
Não lhe bastam judiarias
São sumos de teu
pomar
De antanho: pobre é tabu!
Que a nossas sedes
dispões:
Se, pobre, em honra confias,
- Todo o pai é um pai
José!
Quem crucificam és tu!
173
174
Ricos
Vigília
Os ricos são quem
dispende
Estou dormindo acordado
O dinheiro ao
desbarato,
E quando acordo não creio
Vaidade de quem se
prende
Que não tenha vigiado
Da vaidade ao
aparato.
Enquanto em sono me enleio.
Mas depois é um
desacato
Embalado, a mim alheio,
Reivindicar quem lhes
vende
É no fulgor do sol nado
O trabalho, por
contrato,
Que à aventura, de permeio,
O que daí lhes
impende.
Me encontrei sempre enredado.
Para eles
excessivo
Se isto é sono ou é vigília
É sempre quanto o
jurado
Não consigo decidir,
Os obrigar a
pagar.
Que são da mesma família.
É já muito manter
vivo
Donde me vem a fereza
Quem os serve, que o seu
gado
Que, no minuto a seguir,
É a gente pobre e sem
lar.
Porque eu sonho, me despreza?
175
176
Infância
Mandar
É um jogo das
escondidas
Entre mandar e servir
O jogado desde a
infância,
Há um bizarro parentesco:
Mas esta encontra a
importância
Se, ao mandar, creio luzir,
Nas jogadas
repetidas.
Servindo, o mando refresco.
Ao invés (não tem mais
vidas)
Se das ondas no bulir,
Para o adulto a
relevância
Ao servir, p'ra mim não pesco,
Vem-lhe da infinda
ganância
Exalto-me ao distribuir
De encontrar ilhas
perdidas.
Ao povo meu peixe fresco.
Das escondidas o
jogo
E é por saciares a fome
À vida nos faz
negaças
Desprendido e dedicado
E ateia-nos o
fogo.
Que o povo que tudo come
É que todo te
embaraças:
Te elege como o sol nado:
Ao buscar teu
desafogo
Verdade é que te consome
Segues da criança as
traças,
Mas és, no fim, adorado.
O inovar que, adulto, advogo
Abandonas e deslaças...
-E é o mundo que ao fim afogo!
177
178
Doença
Poente
A saúde é uma
ausência,
Ser arte nos nossos dias,
Uma ausência de
doença.
Em nosso mundo poente,
O bem-'star nunca é
presença,
É como engrenar poesias
Fere-nos de
impaciência.
Roda a roda e dente a dente.
O bem-estar é a licença
Feita em série, de repente,
De ultrapassar-lhe a
influência,
Padroniza as fantasias,
Parca lhe é a
beneficência
Procura o lucro contente
Quando lhe vivo a sentença.
E excomunga as heresias.
Se do bem-'star tenho a
avença,
"Fulgor súbito do raio
Só lhe peso a
bem-querença
Que nos sacode na noite
Quando o já perdi de
mão.
É blasfémia em que não caio!"
Que quando o bem 'stá
presente
- E assim se vive à sonoite,
O além dele é que se
sente,
Da luz em pleno desmaio,
Só perdido é um bem
então.
Sem chispa que nos acoite.
179
180
Tecnificada
Maré
Na zona
tecnificada O
esquecimento é maré
Desta Terra que
habitamos
Que já nos sobe aos joelhos,
O bem-estar é a
morada
Já ninguém sabe quem é,
Da competência dos
amos.
De robôs somos espelhos.
Técnica que
executamos, Quanto
mais ficamos velhos,
Produção
metrificada,
Mais robôs pomos em pé,
Da cibernética os
ramos,
Tolhem-se-nos os artelhos,
Eis quem manda, a força
armada.
De mais os robôs dão fé.
E cá vamos, bem
dispostos,
Quanto mais eles aumentam
De grilhetas
ignoradas, Em funções e faculdades,
Funcionando em nossos
postos.
Mais nosso olvido acrescentam.
Nas escravidões
doiradas
As nossas menoridades
Mudaram-se nossos
gostos:
Crescem quanto mais se inventam
- Amamos as chicotadas.
Próteses pràs liberdades.
181
182
Progresso
Pornografia
Do robô é a
habilidade
Dizem que a pornografia
Mas o progresso
reside
Excita ao crime do sexo.
Em saber que tenho
idade
O crime é que desafia
P'ra que de nada me
olvide.
No sem nexo a criar nexo
Porque, se eu perco a
função,
E a quem vive desconexo
O órgão vai-se
atrofiando
A enfrentar-se à luz do dia,
E, com nossa
demissão,
A habitar o seu anexo
Anda o progresso
matando.
Tal se fora moradia.
A humanidade
regride
E assim é que o pederasta
Enquanto a máquina
cresce,
Cresce após em adultez;
Colosso já
venerando.
O espia da intimidade
E, se em mim nada
colide
Saturado, enfim, se afasta.
Contra quanto em mim
fenece,
O exibicionista,em vez
Fico em nada não sei
quando.
De ser visto, vê a verdade.
183
184
Roseira
Aviador
Quando arranco uma
roseira
Eu sou mesmo aviador,
Da terra-mãe de
raiz
Sonho e assim levanto voo.
Ela estranha a nova
leira
Quando no ar me choca a dor,
Mas jamais verga a
cerviz.
É que o sonho se esmagou.
Aplica-se com
canseira,
Mas se é apenas turbulência
Ignorando o que lhe
fiz.
E o sonho vai borda fora
Sua medida
primeira
Deito fora a minha essência
É, com gestos mais
subtis,
E o peso não vai embora.
Sugar a seiva da
geira,
Se se tem de perder peso
Fincar-se com pés
viris,
Para voar nas alturas,
Hasteando à minha
beira,
Ninguém pode andar repeso,
Como quem algo me
diz,
Perde as novas aventuras.
De quem vence esta
bandeira:
Que porvir é fero, é teso
Rosas de novo
matiz!
Com quem lhe fia as venturas.
185
186
Marca
Telenovela
Todo o relógio é de
marca,
As personagens fictícias,
Marca o tempo duma
ida,
Quando somos bem reais,
Marca o tempo, marca a
vida
Fingem fictícias malícias
De quanto com tempo
arca.
Com que nos iludem mais.
Marca o momento da
parca,
Os problemas, com sinais
Quando do rio a
descida
De nossos vagos indícios,
Marca a vida
fenecida
Sendo fictícios, jamais
Para a derradeira
barca.
Passam além de resquícios.
Marca a ferro o meu
momento
Só não doi a quem não doi
No trânsito que o
traduz:
Esta dor de faz de conta
Quando o busco em
pensamento
Quando o que doi nunca foi
Já nunca está onde o
pus.
Dor que seja dor de monta,
O relógio é o meu
tormento:
Porque, quando esta é que aponta,
- Só marca a luz que foi
luz.
Mesmo a fingir nos destrói.
187
188
Areia
Solidão
Coração cheio de
nada
As muralhas do silêncio
Bate por coisa
nenhuma.
Que emparedam cada um
Vida é areia
desenhada,
Amordaçam. Tal convence-o
Dura até que a apaga a
espuma.
Que não há porvir nenhum.
São dois dedos de
nortada,
E, assim, o futuro vence-o
Traçam dunas uma a
uma,
Sem haver embate algum,
Voz na brisa
sibilada
Fatal o destino pense-o
Até se apagar na
bruma.
Ou enoje-o seu fartum.
Vida cheia de
vazio,
Fronteiras de solidão
Feita de gestos de
acaso,
Que me enclausuram em mim
Não tem jeito nem
feitio.
Mesmo em meio à multidão
É neste viver a
prazo
E continuam assim
Que de mim sou
arredio
Quando vamos mão na mão:
E já com nada me abraso.
-Jamais salto meu confim!
189
190
Anarquista
Jovem
Quando a utopia anarquista
Fui jovem sempre distante
Dos génios
individuais
Do veludo feminino,
Se esgota na sua
lista,
Daquele toque divino
Cada um olha os
demais.
Que o carvão muda em diamante.
E para que em si
subsista
A austeridade gritante
Descobre quão
abissais
Que arvorava como um hino
Tem doutrem, enquanto
exista,
Velho em mim talhou o menino,
Carências de bons
sinais.
Jogou-me em terra, constante.
E a organizar-se
virão,
Com o tempo antecipado,
Já que tão sós se
constatam
Cada gesto, um fim preciso,
Perdidos em
multidão:
Sem lugar para o repouso,
Mas assim, por fim,
retratam,
Sou este homem condenado
Em final
desilusão,
A visar tudo o que viso
Do antigo o que nos
delatam.
Na solidão com que me ouso.
191
192
Outros
Deles
Sofridamente
descubro
Bem os pretendia amar!
Dos outros toda a
existência
Temo não ter conseguido
E por isso me
recubro
Mais que deles me apiedar,
Da dor de toda a
falência.
Perdido todo o sentido.
Por isso já não
encubro
Tento-me, aliás, criticar,
Que escapei à
violência
Que tanto tinha querido
E se de cinza me
cubro
Ser um membro de seu lar,
É por todos
penitência:
Bem no imo deles nascido!
Peço a pena de
prisão,
Apesar disto vigio,
Peço a câmara de
gás,
Represento meu papel
Campo de
concentração.
E tento ser natural.
Não suporto a
solidão
É que fica por um fio
De ficar feliz
atrás
Da balança este fiel
Enquanto os demais se
vão!
Que a eles me diz igual.
193
194
Café
Falsificar
Entro um dia no
café,
Se em democracia alguém
Encontro-me face a
face,
Um livro falsificar,
Vejo-me e não sei quem
é
Esconde a prova também
Mesmo que o espelho me
enlace.
Ou perde mesmo o lugar.
De mim não me encontro ao
pé,
Em ditadura, porém,
Aterra-me o que me
trace
Só tem direito a ter lar
Não vá me traçar
até
Quem é, como então convém,
Que o disfarce
desenlace.
Dos corruptos luminar.
Vejo-me e sou estrangeiro,
Não é que em democracia
Dia a dia me
transmudo
Murche a desonestidade
E já me não
reconheço.
Na utopia da candura.
Em mim mesmo mais
inteiro,
É que contra a tirania
Afinal fico aqui
mudo
Luta o sonho da verdade,
E nunca sei quanto
meço.
Da História sempre à procura.
195
196
Estresse
Palavra
O que nos provoca o
estresse
Ouvir a palavra àqueles
São os nossos
pensamentos.
A quem tudo a retirava!
O que a liberdade
empece
Sujeito falante, a clava
Não são freimas nem
tormentos
Que rebate nossas peles!
Mas não nos mudarmos
desse
Meu ouvido, aonde impeles
Pensar tenso nos
momentos
A abertura à voz que é brava?
Em que tudo se
entretece
Voz, onde se confinava
Com pesados
sentimentos.
O sentido p'ra que apeles?
Dominá-lo não
demora,
Os meios andam nas mãos
Se pretendemos a
paz:
Duma parca minoria
É mudar aqui e
agora.
Sob controlo cerrado
Penso calmo: isto me traz
E, se piso noutros chãos,
Mesmo paz na mesma
hora,
Me condenam a heresia:
Já nada em mim me
desfaz.
- Penduram-me aqui de lado.
197
198
Anti-escola
Louco
Lugar onde cada
qual
Se a cura do louco
Possa exprimir-se a seu
gosto,
É ficar sensato,
De si próprio, bem ou
mal,
Creio que isto é pouco.
Falar sem sofrer
desgosto,
Médico insensato
Duma anti-escola é
sinal
É que é o fim deste acto:
Que, depois deste
sol-posto,
Por inteiro mouco
Desta noite
universal,
Ao cruel retrato
Nos traga o sabor do
mosto.
Do mundo que touco,
Aqui a técnica não
tira
Cuja voz revelha
O valor à
experiência
Pretende a verdade
Ao gosto de cada
um.
No que é mera tara.
Se ingovernável
delira,
Negar tal parelha
Ao menos, em tal
vivência,
É que à sanidade
De ninguém há dono
algum.
Traz mesmo uma cara!
199
200
Adiados
Explorados
Por aqui
abandonados
Os explorados e os loucos
Em vida
vegetativa,
Todos são assassinados
Entre muros
asilados
Porque "não são baptizados",
Aguardamos vida
viva.
São homens mas são-no aos poucos.
Porém, jogados aos
lados
Também os colonizados,
De quanto para além
viva,
De "bestialidade" focos,
Nem nos conceitos
pensados
São corpos das almas ocos,
Se nos a memória
aviva.
Não homens, mas "cães danados".
Somos todos pesos
mortos,
E assim todos rotulados,
Cadáveres
ambulantes
Vítimas da violência,
A cargo de todos
mais.
Em frasquinhos arrumados,
E o mais grave é que assim
tortos
Não picam a consciência.
Nem sequer como
pensantes
Os crimes justificados
De nós logramos
sinais.
Não são crimes, são ciência!
201
202
Preservação
Cristão
Do ser toda a
negação
Jesus foi crucificado,
Pode ser
considerada
Papa é rei do Vaticano.
Como uma
preservação
"Senhor! Senhor!" - passa ao lado
Do ser perdido na
estrada.
Quem vive Deus todo o ano.
O meu eu é
condição
Jesus não foi coroado,
De vida
reencontrada.
Do poder não fez o plano
Mato-o na
antecipação
E do mundo endinheirado
Da prevista
punhalada.
Jamais creu no soberano.
Sou morto por minhas
mãos
Como compreender o império
Evitando as dos
demais
Em que as igrejas estão
E aguardo
sobreviver.
Votadas ao vil minério?
E assim é que os homens
sãos
São a anti-religião:
Dos loucos dão os sinais
- Para ser cristão a sério
Para a vida acontecer.
Não se pode ser cristão!
203
204
Conformar
Viver
P'ra me conformar à norma
Para-outrem vivi
Da sociedade
presente
Vida que me anula;
Reduzi
profundamente
Viver para-si
Tudo o que em mim me
conforma.
É vivência nula.
E assim a norma
deforma,
Para mim morri
Alienando-me
ausente:
Quanto outrem pulula
Já não sou meu próprio
ente,
E nem descobri
Que meu ser já não me informa. Quem
me manipula.
São de espírito
devim,
Mas o que é pior
A agir como toda a
gente,
É, quando me afirmo,
Tornei-me como um
qualquer.
Ser uma ameaça:
E agora não sei de
mim
Assim quanto eu for
No que serei
diferente...
Andam a iludir-mo,
- Sou quanto deixei de
ser!
- Sou uma trapaça!
205
206
Identidade
Restaurar
De mim próprio posso
ter
Quando quero restaurar
Nota directa, imediata
O meu mundo pessoal,
Que por outrem pode
ser
Mortandade é o limiar
Ou invalidada ou
rata.
Que transponho em meu passal:
E aqui começa meu ser,
Meu corpo morto é meu lar
Que a esvaziar-se
desata,
Com um sexo que é irreal,
Doutrem a se
preencher
De coração a sangrar,
Até que o nome me
mata.
Sem cabeça a dar sinal.
Então minha
identidade
Vivo esquartejado assim,
É uma
identificação
Meu corpo fora de mim.
Que os outros de mim me
dão.
Dilacerado por dentro,
Perco o rosto, perco a
idade
Não sou, pois, meu próprio centro.
E em vez da
totalidade
- É urgente encontrar os remos
De mim resta a
negação.
Que levem ao que perdemos.
207
208
Ciências
Descobrir
As ciências
sociais
Descobrir por descobrir,
São a
mistificação
Pela vã curiosidade,
Das violências
normais
Leva o novo a não surgir
Que são nossa
condição.
E a não bulir co'a verdade.
Não somos nunca
neutrais
Ou então, se a luz luzir,
Nem objectivos
então,
Como não há paridade
Nem positivos
jamais,
Com a acção para a aferir,
Que nos torce a
alienação.
Nasce a monstruosidade:
Ao descrevermos um
facto,
Pode ser a bomba atómica,
As feridas que são
nossas,
O sida ou a poluição...
Homem, animal ou
mundo
Fica a escolha dicotómica:
Descrevem pondo-se em
acto.
Bem ou mal, que decisão?
De tal acto são tais
mossas
- Descobrir só faz sentido
Que tornam tudo
infecundo.
Pela prática aferido.
209
210
Normas
Miragens
Primeiro quero
comum
O nosso teatro humano
Co'a doutrem minha
experiência.
Todo é feito de
miragens:
Partilhada esta
vivência,
Os demónios são o pano
Reduzido tudo a
um,
Que doutrem projecta imagens.
Torno-a imutável
ciência,
Não que alguém seja inumano
Entes, coisas com
nenhum
Mas que crê nestas mensagens,
Laço que as prenda em
algum
Lhes dá o corpo donde emano,
Campo de minha
carência.
Trocando minhas paragens,
Projectadas no
exterior
Com a crença de que adere
Já não são criações
minhas,
Ao pseudo-real que não vê.
Não me reconheço
nelas.
Em mim outrem vê talhada
São dado
constrangedor,
Crença igual que igual o fere.
Normas sociais,
adivinhas,
Tudo crê que tudo crê,
- E quem manda em mim são
elas!
Ninguém crê no fim em nada.
211
212
Estandardizado
Alienação
Polícias e
magistrados
Somos todos assassinos.
A vida própria
perderam
Qualquer que seja a nação,
E os políticos,
tarados,
Cantam, cultos, nossos hinos
Não são nem o que antes
eram.
A nossa prostituição:
De nossas morais
armados,
De qualquer classe divinos
Simulam, mas já
perderam,
Não são heróis nem função.
Com a fúria dos
tornados,
Os sociais desatinos
As vidas que
feneceram.
Têm o mundo na mão.
É que quanto em mim
morreu,
Por normais que nos julguemos,
P'ra ficar
normalizado,
Por morais que nos creiamos,
Fez que não fosse mais
eu.
Evoluídos, afinal,
Sou fruto
estandardizado,
O que importa confessemos
Sujeito à lei e ao
labéu
É que uns aos outros jogamos
Que eles me impõem por
fado.
Sempre esta ameaça mortal.
213
214
Adormecido
Capital
Quando vivo
adormecido
Se os filhos são propriedade,
Isso, sim, é que é
viver!
São capital investido,
Quando acordo ando
iludido,
Os pais tiram com verdade
Nenhum sonho é para
ser.
Deles o lucro devido.
Sei que penso que é
fingido
Mas, se alguém, por ter nascido,
Quanto o sonho
acontecer
Rejeitar que a liberdade
Mas o som no meu
ouvido
Se alheie sem ser ouvido,
É som mesmo sem som
ter.
Tal lucro é perversidade.
Porém, se vivo
acordado,
Se alguém é dono de si
Então é tudo
mentido,
Nesta terra alienada,
O som me acorda
frustrado
Dele fazem compra e venda.
E não consuma o
sentido:
Acaba num frenesi
Todo o acorde aqui
visado
Em busca da própria estrada:
Jamais é acorde
vivido.
- A todos nos rasga a venda!
215
216
Procuração
Despensa
Mantêm um filho
louco
É difícil compreender,
A preguiçar lá no
quarto
Muito mais do que se pensa,
À espera que o antigo
parto
Que nossa cultura ter
Muito gere deste
pouco.
É viver numa despensa.
E dele ao apelo rouco
Portas de nosso saber
Já nem ligam, não é
esparto
São de matéria tão densa
O cilício em que
reparto
Que mais fácil é esquecer
A dor e este ouvido mouco:
Que abri-las ao que compensa.
Que, se lhes doi a
loucura,
Nossa civilização,
É só
disfarçadamente,
Libertadora primeiro,
Pois por trás vão dar-lhe a mão.
Abriu-se rumo às estrelas
Nela gozam, lá se
apura
E ora estas vitórias são,
Do lazer quanto lhes
mente
Afinal, um cativeiro
Do louco a
procuração.
Cujas ideias são celas.
217
218
Peça-Fantasma
Transe
Na peça-fantasma a
actuar
Durante a primeira infância
Nós nos vemos
coagidos,
Vivemos sempre num transe.
P'ra os papéis
desempenhar
Permanecemos no lance
Dos mortos que, já
volvidos,
Até que esta manigância
A vida a
representar
Que serviu p'ra que se amanse
Doutros mortos os
sentidos
Se revele uma ignorância
Passaram sem
questionar.
Da vida e sua fragrância.
E é assim desde tempos
idos.
Então perde em nós o alcance.
É que somos
induzidos
Mas o acordar prematuro
A incarnar certos
papéis
É punido em tentativa
Que depois são
transmitidos,
Por quem é quem mais nos ama.
Por todos tornados
leis:
Erguendo em nós este muro
Mesmo não
reconhecidos,
Deixa a vida de ser viva,
Os mortos são nossos
reis!
- Dorme-se a vida na cama.
219
220
Proíbem
Deficientes
Ninguém pode pôr em
causa
Quem ama os deficientes
O sistema em forma
alguma,
Jamais deixa de espantar-se
Que é proibida qualquer
pausa
Com a ausência de disfarce
Sobre estrutura nenhuma.
Com que acolhem o que sentes.
Porém, se esta é a norma
suma,
A demência dos dementes
Jamais
explicitamente
Até adrega de adequar-se
Em regra ou lei que a
resuma
À bondade a que vem dar-se
Ela é dita
verbalmente.
Em gestos que são presentes.
Porque ao
consciencializá-la
A mais ligeira atenção
O transgressor logo
apronta
É tão fundo apreciada
P'ra fugir-lhe a lesta
mala.
Que uma carícia perdida
Proibem regras,
inibem
É bastante p'ra que vão
Que algumas vez demos
conta
Animados pela estrada
De que há regras que
proíbem.
Por todo o resto da vida.
221
222
Grau
Inventa-se
Toda a linguagem
exprime
Inventa-se uma doença
O que é humano em alto
grau
P'ra poder justificar
Por isso também
reprime,
Que um tratamento pertença
Sem usar de
varapau,
À prisão hospitalar.
O que de humano se
imprime
De batas os enfermeiros
Em cada qual, bom ou
mau.
Cobrimos, veste talar:
Se ao louco preso
comprime
Deixam de ser carcereiros
A boca que passa a
vau
Ou carrascos, ao tratar.
O rio do comum
senso
Tudo em paz de consciência
(Que grita que ele é violado,
Ali pode encarcerar
Assassinado por
dentro),
O escândalo da demência
- Tem do psiquiatra o
consenso.
Sem ter de o fundamentar.
E onde o tem
aprisionado
É assim que do louco a ausência
Chama-lhe hospital-onde-entro.
Nossa ausência vem gerar.
223
224
Ciclope
Factos
Quando ao ciclope
pergunto
Se quem é gente comum
Que é que tanto o faz
gritar,
Quiser olhar bem os factos,
Berra o estúpido
bestunto:
Verá do psiquiatra os actos
"Ninguém cá me está a
cegar!"
Aferindo cada um:
Ninguém pergunta se
alguém
Não verá doente algum
De Ninguém se há-de
chamar,
Entre os sãos postos a tratos,
Se alguém será o tal
Ninguém
Verá que há secretos pactos
Que nos anda a
encegueirar.
Em que não se ouve nenhum
Menos se pergunta
ainda
Dos presos ditos malucos
Quando cego se quer
ser
Nas masmorras do hospital.
P'ra não ver o que
incomoda.
De palavras tudo é um jogo
Sempre a cegueira é
benvinda
Que espremidas não têm sucos:
Quando aquilo que se
quer
- De bem pintam este mal
Em nós mata a culpa
toda.
Da culpa a fugir ao fogo.
225
226
Elevam
Animais
Assim como os
comunistas
Há quem o encarceramento
Os pobres por sobre os
ricos
Esconda com o hospital:
Colocam em novas
pistas,
- Psiquiatria é o fingimento!
Assim elevam aos
picos
Assassinar não é mal
Os
antipsiquiatristas
Se for nosso linimento,
Os insanos
improfícuos,
Se a libertação total
Por mais são que te
revistas.
For bomba, tiro ou tormento:
E os meus escrúpulos
pico-os
- É a antipsiquiatria final!
Nos espinhos de que
abusam
Em nome da compaixão,
Rico é mau e pobre é
bom,
Uns prendem os inocentes
Loucos são os que o não
são...
P'ra fingir paz aos demais.
E assim é que todos me
usam,
E em nome dela outros vão
Baralhando tanto o
tom
Nestes aferrar os dentes:
Que me enlouquece o que é
são.
- Somos os seus animais.
227
228
Morte
Droga
Casam o psiquiatra e o
louco
Já ninguém pode dizer:
E, ao fim de longos
anos,
"Não vives como se deve,
De comum têm mui
pouco
Vive como deve ser!"
Que não sejam
desenganos.
Ninguém hoje a tal se atreve,
Tanto quanto se foi
mouco
Que se tenho mau viver,
Ao comum juntar dos
panos,
Se estou mal, o mal é breve:
Se talhou mal o
cabouco
São nervos, temos de ver
Desta família de
enganos.
Como tratá-los de leve!
Que o casamento
forçado
Corremos ao curandeiro,
- De verdade ou de loucura -
Ao psiquiatra, analista
Só abunda em
ressentimentos.
E curamo-nos com droga.
Onde um vive
ameaçado
Se piorar, meu dinheiro
O outro vive de
tortura
Compra logo nova lista
- E em nenhum há
sentimentos.
- E em droga o mundo se afoga.
229
230
Cura
Aparências
Dantes eram os
doentes
Se ao médico alguém procura
Que os tratamentos
queriam
Que apresenta algumas queixas,
E que, como
pacientes,
Se te fias nestas deixas,
Pagavam se os
recebiam.
- Logo nele vês loucura.
Hoje são os
divergentes,
Se num hospital a cura
Mal no pântano
buliam,
Procura para as fateixas
Que, sem querer,
entrementes
Que lhe ceifam as madeixas
Na teia se
enredariam
Da vida morta à ventura,
Em que é o Estado que
paga
- Logo o vês como doente.
Aos psiquiatras p'ra
coagirem
Se acolá vai-lo tratar,
Sob a capa da
doença
Fiado no que é aparente,
Quem o poder não
afaga.
Aqui vai-lo enclausurar.
É a cura por
divergirem:
E bem caro vais pagar
- Que a si ninguém se
pertença!
Por seres tão negligente!
231
232
Música
Inimigos
Numa música entre as notas
Quem se quer ver como
vítima
O espaço é tão
importante
Tem de arranjar
inimigos:
Como as notas que
denotas
Vê logo a força ilegítima
Pela melodia
adiante.
Disfarçada entre os
amigos
No comunicar
falante
E, de todos os quadrantes
Os silêncios que
conotas
Oriunda, em seu caminho,
Paragem
significante
A rede que seus instantes
São-no tanto quanto
anotas.
Lhe requeima no cadinho.
Feito de sons e
silêncios,
A sociedade está
contra,
Nosso intercâmbio
falado
A história passa-lhe ao
lado,
São mistérios de
espantar.
Salvo ele, todos têm culpa.
Nossa soledade
vence-os
Mas assim jamais se
encontra:
Ordenando lado a
lado
Pois
responsabilizado
A fala e o mudo
falar.
Jamais é quem não se inculpa.
233
234
Queixam
Condição
Mesmo cheias de
razões,
De vítima a
condição
Quando as vítimas se
queixam,
Gera actuais
alegrias.
Exageram seus pendões,
A primeira é a
pretensão
Para trás o apelo
deixam.
De que moralizarias
Das exigências
brasões
Com a
disseminação
Armam com que então se
enfeixam
De culpa em todos os dias.
Públicas
declarações
Depois é a negação
Nem ameaças
desleixam.
De responder p'lo que
crias.
Pelo tom
ameaçador,
Sem
responsabilidade
Vítima já não se é
mais,
Pelo seu próprio
destino,
Toma-se a mão de
agressor.
Ser vítima é um
privilégio:
E eis nele os mesmos
sinais
- Murcha a personalidade,
Que aponta no
abusador
Mergulha no
desatino
Que não responde aos
demais.
De o justo ser sacrilégio.
235
236
Acredite
Grupos
Que meu vizinho
acredite
Todos os grupos
unidos
Em vinte deuses ou
num,
Por comunhão de
ideais
Se acaso faz que eu
medite,
Simbolizam os
sentidos
Não me traz desfalque
algum.
Em gestos e rituais.
Se vegetariano
fite
Por juramentos
fundidos,
Da abelha o brando
zunzum
A fé requer os
sinais
Sobre a flor que o
apetite
Que os revele
divididos
Lhe abre em troca do
perfume,
Dos infiéis, os
demais.
Isto não me parte a
perna,
Se isto é marca das
igrejas,
Nem me esvazia a
algibeira,
É-o também de países,
Nem me obriga a ser como
ele.
Famílias de sangue ou
credo.
Se o reprimo é a morte
eterna:
Cientista mesmo que
sejas,
- Nas crendices se
entrincheira,
As provas que tu
pesquises
Torna-as então sua pele.
São teus rituais de arremedo.
237
238
Sem
Rectidão
Há muito quem
auxilie
A direita convencida
Sem saber se o
auxiliado
Mais uma esquerda fanática
Quer quem assim se lhe
alie
Têm a rectidão medida
Ou quer ser diagnosticado,
P'lo passo da própria prática.
Se em quem sofre se
filie
A verdade é desmedida
Ou se à força é
filiado,
De cada qual na gramática,
Se consigo concilie
É a missão de dar a vida
Quanto o querem
obrigado.
Que a crença lhes torna enfática.
Torna-se um doente, um caso,
Convencidos do direito,
Marioneta de cordões,
Porventura do dever
Feito vítima ou
talento.
De se impor a quem resiste,
E a ajuda traz mais
atraso,
Todos nos ceifam a eito.
Que lhe aumenta as
solidões
Ninguém tem direito a ser:
A solidão deste
intento.
Violência é o que em nós persiste.