5ª. Redondilha
Que na
Terra de Ninguém
Escolha aleatoriamente um número entre
495 e 710 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
495
5ª. Redondilha
Que na terra de
ninguém
Se nos marcaram
as marcas
Com que nos
cortam as parcas
As vidas p'lo
sonho além
É quanto o canto
retém,
Que sempre as
forças são parcas
E pobres do
tempo as arcas
Prà lonjura que
nos tem.
Canto, pois,
quantos enganos
Nos enganam
nossos anos,
Quanto o longe
mora perto.
E canto quantos
encantos,
No entanto, nos
prendem tantos
Sonhos ao que é
tão incerto.
496
497
Aviso
Taça
Por não ser
ficcional,
Grandes poetas da praça,
Uma eventual
divergência
Em vossa praça não entro.
Entre esta história e o
real
Que importa o esplendor da taça
É mera
coincidência.
Se não tem nada lá dentro?
498
499
Poeta
Inocentes
Houve poetas cuja raça
Os outros são poetas inocentes,
Talhava leitos ao
rio.
Satisfeitos consigo e suas classes.
Hoje sempre enchem a
taça Só eu não gozo como
tais dementes
Toda cheia de
vazio. Que
o mundo tornam num bordel de impasses.
500
501
Ovelhas
Anões
Pascem sempre em qualquer
"ismo"
Vivo entre estes anões todos,
As pastagens mais
viçosas
Todos em bicos de pés,
Aqueles que, em meu
abismo,
Tão sem pés nestes seus modos
São as ovelhas
ronhosas.
Que os gigantes jamais vês.
502
503
Loucos
Eminentes
São
poucos
As pessoas eminentes,
Os cordatos e
decentes.
Por motivo das invejas,
Por isso os
inteligentes
Acabam sempre indigentes,
- São
loucos!
Pasto podre das varejas.
504
505
Solitário
Génio
Têm inveja e nunca
dó
Se eu jantei ontem contigo,
Do eminente em tema
vário
Por mais génio que tu sejas,
Mas, se ele sempre anda
só,
Contigo jamais consigo
Fica assim mais
solitário.
Ver-te no cume que almejas.
506
507
Tamanho
Fama
Sempre o génio há-de ser
génio
De alguém a fama é uma sombra,
Sem que ninguém o
conheça:
Ora o precede, ora o segue,
É que jamais há um
convénio
Tanto o alonga pela alfombra
Do tamanho em que se
meça.
Como encolhe o que persegue.
508
509
Herói
Esperto
De mim fizeram
herói,
Ser esperto não compensa,
Perdi-me como
pessoa:
Entendemos bem depressa.
Que é feito de mim, quem
foi
E a ferida de quem pensa
Feliz co'um naco de
broa?
Rasga-se e não há compressa.
510
511
Inocência
Aqui
Toda a inocência
ultrajada
Sou e, portanto, eis-me aqui
Nos impede de
enfrentar
Irrompido no presente.
O ultraje feito de
nada:
E, contudo, para ti,
- Não fere se se
ignorar.
Sou um aí tornando-se ente.
512
513
Grão
A Pulso
Sou aquele grão de
acaso
Ergo o meu poema a pulso,
Em busca de se
fixar:
Com grande esforço nele entro,
Sou tão livre que o meu
caso
Mas logo de mim o expulso,
É o de tão só me
encontrar.
Que nada encontro lá dentro.
514
515
Estrada
Claridade
Virás ter ao meu
deserto
Ser poeta é perigoso:
Se eu te der a boa
estrada?
As faíscas que em ti levas
- Não te quero de mim
perto,
São um lume tão fogoso
Quero quem venha por
nada!
Que até te lançam nas trevas.
516
517
Roubo
Antigos
O pensador ao
poeta
Prò velho escol a beleza
Rouba a verdade
solerte
Era o manto que ocultava
De nossa esfinge
concreta:
Da verdade uma inteireza
- Di-la assim: "não sei
dizer-te!"
Que só a ciência nos dava.
518
519
Fulgurar
Obra-prima
É o fulgurar dum
instante
Vizinho duma obra-prima,
Que irradia como o
belo.
De repente noutra parte,
Passa-lhe o cientista
adiante
Pairo leve sempre acima:
Sempre à pocura sem
vê-lo!
Tempo e espaço não têm arte.
520
521
Negócio
Ente
Na cultura do
negócio
Uma obra de arte é um ente,
Arte é só bem de
consumo,
Um ente que antes não era,
Serve p'ra informar o
ócio,
Que irrompeu pelo presente
Espremida não tem
sumo.
E após ser logo morrera.
522
523
Coisificada
Produto
Uma arte coisificada
Degradada num produto,
É um traste, um produto
mais.
Obra de arte é não-imagem,
De bem-'star
emburguesada,
Esconde no estar em bruto
Morre em símbolos sociais.
O mistério da mensagem.
524
525
Matemática
Ciência
A matemática é um ídolo
Uma história da ciência
Que adoramos
ignorantes:
Faz alguma vez sentido
Em arte, seu grito
estrídulo
Se não tiver a evidência
São fantasmas delirantes.
Da dos homens no ouvido?
526
527
Só Cego
Quem é mais digno de
dó
Um cego na multidão
É o que sofre as
multidões.
Co'a bengala da verdade...
Já não me sinto tão
só:
- Na multidão é que vão
- Nele ainda há mais
solidões!
Os cegos da humanidade!
528
529
Almoço
Banquete
Fui ao almoço de
festa
Ando por aqui sozinho
P'ra quebrar a
solidão.
Nesta sala de banquete,
Mas que maldição é
esta
Findaram danças e vinho:
Que estou só na multidão?
- É a vida e não se repete!
530
531
Solidão
Grandes
"Está já
desenganada!"
Nossos grandes sofrimentos
- Rezam numa
ladainha.
E as alegrias que tais
Da morte não 'speram
nada:
Cavam-nos isolamentos,
Ser pessoa é estar sozinha.
Não se partilham jamais.
532
533
Ganância
Medir
Se me aperta a
solidão,
O homem, como convém,
Vulnerável, morro de
ânsia.
Busca medir o seu pé:
Pior fico ao dar a
mão
Não vale pelo que tem
A uma insaciável
ganância.
Mas por aquilo que ele é.
534
535
Mós
Actuar
Com três mós o mundo
moi:
Quando uns actuam na vida,
Quem tudo faz
ocorrer,
Outros são espectadores.
Os que vêem
acontecer
Só aqueles dão a medida
E os que perguntam: "Que
foi?"
De que o que vale traz dores.
O homem é o senhor da
Terra
Alentejo, quem te pinta
Mas depois,
desfeiteado,
Com tão virente paleta?
Quando o cataclismo
aterra
Poema com tanta tinta
Não é mais que
estrangeirado.
Nem precisa de poeta!
538
539
Viver
Rimar
"Viver a
natureza
Mas por que é que a natureza
E não
percepcioná-la..."
Com beleza há-de rimar?
- Mas é a mesma
beleza,
É p'ra lembrar, com certeza,
A do amante e a da
bala?
Quanto a despreza meu ar.
540
541
Domésticos
Uivo
Nesta vida de
cansaços,
É um uivo de liberdade
Do cão ou gato a
influência
O que ouvi na serrania.
É acordarem-nos
espaços
Não é, não, ferocidade:
Prà doméstica
inocência.
- São ecos da humana via.
542
543
Pés
Museu
Pés terríveis e
pacientes,
"Vamos criar um museu,
Pés de gentes que
trabalham,
É qualidade de vida!"
Corpos franzinos,
doentes...
- E o povo honesto que é o meu
- Não vivem, só se
baralham!
A precisar de comida!
544
545
A
Cruz
Tradição
A Cruz de Cristo nas
naus
Ser português e boçal
Não foi muito p'ra
rezar.
É quinhão da tradição.
Desfizemo-la em dois
paus:
Não teria qualquer mal,
"Vamos a isto! É
malhar!"
Não fora ter-nos à mão.
546
547
Igreja
Montanha
Nesta igreja
vede
"Não subas para a montanha,
Como Cristo é
exangue:
Há lobos, podes perder-te..."
- Temos fome e
sede,
- Como é que a ameaça é tamanha
Mas de carne e
sangue!
Se não há que nos aperte?!
548
549
Racional
Burguesia
Se o homem é
racional
Valores da burguesia
Como é que Hitler tem
poder
São duma velha ciência:
Co'a finança
mundial
O dinheiro é o que os guia
A apoiar quanto vai
ser?
E uma serena inconsciência.
550
551
Ditador
Dever
Um ditador não se
impõe,
Entre dever e poder
Nós é que impomos que
seja:
Grande conflito se estende:
Se ele é que põe e
dispõe,
Se podes, vais empreender
O povo é que as mãos lhe
beija.
Contra o que o dever pretende.
552
553
Cinza
Mitos
Passaram anos
inteiros
Outrora, inteiro fui crente,
Obrigando-me a um
pensar.
Hoje sou crente sem ritos:
Hoje é a cinza dos
cinzeiros
Só cremos dificilmente
Que tem dogmas p'ra
adorar.
Na traição de nossos mitos.
554
555
Alegria
Sociedade
As longas horas de
emprego
A nossa sociedade
Conseguem
emurchecer,
Esconde no patológico
Muito p'ra além do sossego,
Faltas de maturidade:
A alegria de
viver.
Tudo então se mantém lógico.
556
557
Insucesso
Drogado
Para ser bem
sucedido
É urgente mudar de rumo
Nesta
civilização
Ao drogado ocasional:
O melhor é ter
querido
É que um casual consumo
O insucesso por
função.
É um suicídio casual.
558
559
Recordes
Vítima
Os concursos entre
atletas
Em nosso mundo sempre houve
São tempos,
velocidades...
Muita vítima ilegítima
Não são recordes de
estetas,
E o que hoje mais a gente ouve
Que eram de
felicidades.
É quem queira armar em vítima.
560
561
Esterco
Velho
Dantes era
eliminar
Dantes parecer um velho
De vítima a
condição;
Implicava sisudez,
Hoje, tudo a
chafurdar,
Hoje ver-se em tal espelho
Buscam deste esterco o
pão.
É velho, não sensatez.
562
563
Democrática
Dormir
Quando uma
república
No quarto ao lado, aos milhões,
Se diz
democrática
Dizes que morrem países.
É trapaça
pública:
- Como é que tu te dispões
Tapa que é
autocrática!
A dormir sobre o que dizes?
564
565
Reinam
Palavra
Os sábios como os
heróis
'Stala a guerra e ouves um conto,
São como os deuses
antigos:
Cantas quando o inferno lavra...
Reinam um tempo e depois
- Quem vive a vida em desconto
Morrem com os seus
amigos.
Troca o ser pela palavra.
566
567
Inaugura
Feitiço
A fala o tempo
inaugura
A linguagem é um feitiço
E desde esse tempo
existe
Que enfeitiça a inteligênia:
O tempo que me
procura
Quando o pensar dá por isso
E o tempo que sou
persiste.
Já perdeu a pertinência.
568
569
Nomeado
Controvérsia
O que não é
nomeado
Violência na controvérsia
Para muitos não
existe:
Como a recusa de ouvir
É o silêncio
conjurado
Travam-me a pátria de inércia
P'ra escapar ao que
subsiste.
- Quando o que urge é construir.
570
571
Igualdade
Morrer
"Os homens todos
iguais"
Não acreditas nos homens reais,
- É que eu penso o que tu
pensas
Em teus ideais tu não acreditas,
Ou são ligeiros
sinais
De ti desacreditas, para mais...
De que aceito as
diferenças?
- Morreste demais pràs nossas desditas!
572
573
Metade
Lixo
Metade da nossa
vida
Todo o cadáver é um lixo
É p'ra aprender a
viver,
Na lixeira deste mundo
Outra metade é perdida
E é por isso que eu me deixo
Com aprender a
morrer!
Em quanto de vida inundo.
574
575
Coroa
Povoléu
Esconde as migalhas,
povo,
De tanto o povo tem fome
Que teu jantar é de
broa!
Que, em desdém, é povoléu.
De oiro se for o teu
ovo
- Quem se esconde atrás do nome
Dele to monda a
Coroa.
É que o obriga a andar ao léu.
576
577
Pobre
Povo
Com o rico a gritar
louco
Meu povo, teu nome é rei
P'lo pouco que ao pobre
dais,
Quando sobre ti alguém
O pobre jamais tem
pouco,
Quer reinar sem fé nem lei:
Pobre é o louco que quer
mais.
- És sempre rei sem vintém.
578
579
Plebe
Dispor
A plebe é tão
furial,
Quando a minha liberdade
Mostra-se tão mais
briosa
É da dos outros dispor,
Quanto indefesa
encurrale
A ilusão toma a cidade
A vítima com que
goza.
E a poesia é a do sol-pôr.
580
581
Nobre
Revolucionário
A fidalguia sem
pão,
O revolucionário tem um rosto
Nobreza de pé descalço,
No qual a treva da verdade aflora
Ou é alegre
remendão
E é sempre co'este brilho de sol posto
Ou nobre falido e falso.
Que se afinal confunde a luz da aurora.
582
583
Regime
Perfeição
Quando um regime é a
verdade,
Quem é bom não chama nomes,
Então temos que
mentir,
Nem amesquinha ou critica:
Manter a
serenidade
- Louva que lhe mato fomes,
P'ra viver e
prosseguir.
Não grita que se entisica.
Inquisidor é um
possesso
Como o potro duma mula,
Com a ideia embriagada:
Nascido me espezinhaste.
Incomoda-o em
excesso
- Tal é de saber a gula
O excessivamente
nada.
Que faz que tudo se afaste!
586
587
Suicida
Morte
Vamos arrancá-lo à
morte,
Por muito que a vida fira
Libertá-lo do
delírio?
Não me convence a ferida,
- Mas tal gesto é o
passaporte
Que a morte é que me retira
Prò devolver ao
martírio.
As desilusões da vida.
588
589
Buraco
Caindo
A vida é um
buraco
Vivo caindo desde que nasci,
Sem fundo ou saída:
Caí na vida quando vim ao mundo
Quando a ela a
ataco
E por mim dentro sem parar caí
Fica em mim
ferida.
E nunca chego de mim mesmo ao fundo.
590
591
Assassinado Morto
Eu fui logo
assassinado
Um vivo tem muito peso,
No ventre de minha
mãe:
Um morto tem muito mais,
Cada qual é um
alienado
Não tanto de gelar teso,
Das potências que ele
tem.
- De a morte pesar quintais.
592
593
Dura
Vida
Dura a morte muito
pouco.
Ao nascer eu gritei já,
Antes de o caixão ser
pó
Foi já morte sem rebuço;
Já nosso coração
louco
Minha vida não será
Esqueceu que ficou
só.
Mais do que um longo soluço?
594
595
Biblioteca
Nada
A vida é uma
biblioteca
Vaga enorme, sobrenada
Com bizarro desafogo:
O activismo desta lida.
Junta os dias, me
hipoteca,
É uma montanha de nada
P'ra no fim nos deitar
fogo.
Sempre a retirar-me a vida.
596
597
Ressurreição
Viagem
Sexta-feira da
Paixão,
Toda a vida é uma viagem
Domingo de
Aleluia:
E do berço até à tumba
A morte é uma
iniciação,
É sempre a verde paisagem
Aguarda o terceiro
dia.
Onde um ciclone retumba.
De bicicleta, hora a
hora,
Dia a dia a vida faz-se,
Pedalo a vida
concreta.
Não contamos para nada:
Como me tranquei de
fora
Preparado, o bebé nasce
Desta minha
bicicleta?
Sem a mãe 'star preparada.
600
601
Portátil
Entrudo
Levo uma vida
portátil,
Tudo nos é limitado
Tanto de trazer por
casa
Pela estupidez de tudo:
Que me deixa a impressão
táctil
A vida, arlequim fardado,
De me estar queimando em
brasa.
É o nosso estúpido entrudo.
602
603
Depressa
Civilização
Nós vivemos tão
depressa!
Ante a civilização
Nasço já em
maioridade:
A esboroar nossa vida
Nossa religião é
avessa
Volto atrás mas negação
A qualquer
eternidade.
Dá-me outra fonte exaurida.
604
605
Funciona
Técnica
Tudo funciona e
funciona,
A técnica é nossa vida
(Técnica é moto
contínuo),
Mesmo em relações humanas:
Nossas raízes à
tona:
Na Terra já de fugida,
Já perdemos o
destino!
Para a Lua é que te emanas.
606
607
Louco
A Contento
A vida sabe-me a
pouco,
Ganhar tempo, perder tempo,
Trai sempre quem se lhe
aferra.
Que tenho ainda a perder?
E o homem é mesmo
louco
Nunca uma vida a contento,
Quando tem os pés na
terra.
Já que ir sendo nunca é ser!
608
609
Superpotência
Estrangeiro
Técnica é
superpotência
Eu tornei-me um estrangeiro
Com uma essência
impensada.
Na minha terra natal:
E o pensar, esta
indigência
Como trocar por inteiro
A enfrentá-la
desarmada.
A mãe que nos deu o bornal?
Perdem uns a
infância,
O estrangeiro é aborrecido,
Outro a vida em
si.
Quebra a harmonia do acorde,
Perco, na minha
ânsia,
Já ninguém canta de ouvido
A terra em que
vi.
E o costume a cauda morde.
612
613
Incógnito
Novidade
Porque o incógnito é
useiro
Aparece a novidade,
Na ameaça a meu
perfil,
Vamos a correr comprá-la.
O Universo é-me
estrangeiro
Vem a prova da verdade:
E por isso mesmo
hostil.
- Caímos numa cabala!
614
615
Valor
Cultura
Quem não quer valer dois
chavos
Se a cultura segue o ouro,
Vai cobrir-se com
diplomas:
Do seu culto o culto afasta,
Só em currículos, cem
avos;
Que o culto vive em desdouro,
Ele é o zero atrás das
somas.
Toda a vida lhe é madrasta.
616
617
Crime
Fanático
Quando um crime é um
preconceito
Todo aquele que é fanático,
Desatento ao que outrem
quer
Religião, ciência ou ganância,
Vai apodrecer a
eito
Não deixa um caminho prático:
Quanto a cultura
colher.
Só há acordo ou discordância.
618
619
Indigno
Dor
Não ser nunca
dominado,
Furtadela a furtadela,
Não ser nunca
possuído,
Nos prepara a vida à dor,
P'ra muitos é triste
fado,
Que, nesta dor à parcela,
Indigno de ser
vivido.
É menor dor a maior.
620
621
Médico
Contumazes
Tenho um médico
caseiro
Somos todos incapazes
Que por dentro de mim
mora:
De perceber que sofremos
É a dor que, no corpo
inteiro,
Por forjarmos, contumazes,
Me vigia de hora a
hora.
A dor de quanto sofremos.
622
623
Contentamento Fortuna
Se a vida é
contentamento,
O tempo como a fortuna
Por detrás do lago
calmo
Ambos são bem inconstantes.
É o jacaré do
tormento
Se hoje orvalha sobre a duna,
Que te segue palmo a
palmo.
Ficam-te os oásis distantes.
624
625
Medo
úvida
O ter medo da
vergonha
Que poderei afirmar
Ou ter vergonha do
medo
Se provável vi primeiro
Provém de como me exponha:
O que hoje é falso luar
Em público ou em
segredo.
Que é p'ra amanhã verdadeiro?
626
627
Moscas
Direito
Porque as verdades mais
toscas
Há um Direito daqui
Nem sequer as
discutimos?
E um Direito dacolá,
Será que tudo são
moscas
Jamais há o Direito em si:
Que só de nós
sacudimos?
Direito, por fim, não há!
628
629
Liberdade
Realidade
Quando gritam
liberdade
Buscar a realidade
A plenos pulmões na
rua
É iscar o desconhecido,
Suspeito logo a
verdade:
Que nas curvas da verdade
Não é a minha nem a
tua.
Todo o caminho é perdido.
630
631
Facto
Erro
No que existe há um velho
pacto,
Determinar uma essência
O que existe é o que se
vê
É realizar que a verdade
Mais o imponderável
facto:
Mostra, ao mostrar-se, a evidência
Não se vê aquilo que
é.
De que é um erro em liberdade.
632
633
Casa
Hábito
Minha casa é uma
presença
Todo o hábito me apraza
Que alguém habita
talvez,
A repisar o baralho:
Porém, como uma
doença,
Em casa não vejo a casa
É um alguém que nunca
vês.
E sair fora dá trabalho.
634
635
Escondidas
Oculta
No jogo das
escondidas,
Oculta por trás do rosto
Qual, natureza, é o
disfarce?
A sorrir da natureza,
Tantas trilhas
divididas:
Suportando-lhe a beleza,
Natureza ama ocultar-se!
'Stá a caveira do desgosto.
636
637
Engano
Mesma
Dantes achava
Os factos todos se grudam
Que estava
errado
Como os traços duma loisa:
Mas não
estava:
Quanto mais as coisas mudam
- Sou um
enganado!
Mais são sempre a mesma coisa.
638
639
Sinceridade
Político
Quem levanta o
estandarte
Político que proclama
Da pura
sinceridade
Que alguém mentir-nos é atroz
É porque quer fazer
parte
É que anda a fazer a cama
De quem trai sempre a
verdade.
P'ra se deitar sobre nós.
640
641
Senso
Saciar
Que todos tenham bom
senso
Falam pelos cotovelos
Não é do senso
comum
Para a fome saciar,
E menor neste é o
consenso,
Mas de tal fome os apelos
Que comum não é nenhum.
Não se fartam com falar.
642
643
Bestas
Proprietários
Do varredor ao mais douto
Somos todos proprietários
Somos as bestas de
carga
De bens que são nossos donos.
Que animam o
velhacouto
Se nos roubam, roubam vários
Em que a sorte é-nos amarga.
Nossos íntimos entonos.
644
645
Nota
Indigente
Reformado, sem idade,
Vivo num tempo indigente
Senta ao banco a
solidão,
De carência e negação:
É nota sem
validade,
Ainda não sou deus patente
Já não tem
circulação.
E homem só, também já não.
646
647
Mundo
Público
O mundo não pode
ser
Público é o que vem à luz,
Só com o homem o que ele
é.
Mas a luz escancarada
Mas, sem este,
acontecer,
De tanto que nos seduz
Nem por um acto de
fé!
Tudo obscurece à chegada.
648
649
Preguiça
Perfume
A preguiça é uma
doença
A tristeza tem perfume,
Que ataca no
coração:
Cheira a ausência de sentido,
É o sintoma de que a
crença
Por dentro a requeima o lume
Se mudou em
ilusão.
Que arde nas cinzas do olvido.
650
651
Eminências
Receio
As eminências
pequenas
Sinto comiseração
Que vêm à
televisão
Pelo homem do receio
Fazem cócegas
apenas,
Para quem trabalho não
Matam-nos toda a
ilusão.
É um fim mas vago meio.
652
653
Memória
Oficina
O que é estranho na
memória
A memória é uma oficina
Não é tanto o
recordar,
Que nossas recordações
É que ela nos lavra a
história
Bem retocadas afina
De esquecer mais que
lembrar.
Com nosso cunho e brasões.
654
655
Imagino
Esquecimento
Se forço a
recordação,
Passam a todo o momento,
Acontece que
imagino:
Vivos já os vermes os comem:
Pior que esquecer-me
então
São homens do esquecimento,
É nem ver que desatino.
O esquecimento feito Homem.
656
657
Louca
Nome
Olha com olhos de
louca
Muda-nos a idade o rosto
Na inocência do
tormento:
Como quem muda a camisa,
Olhos de vida tão
pouca,
Só o nome que nos foi posto,
Olhos cor de
esquecimento!
Sempre igual, nos não avisa.
658
659
Vento
Horizonte
Sussurra o vento,
rolando
O horizonte da velhice
Entre ervas às
cambalhotas,
Recua perante nós
Tal o nosso nome
quando
Como se o longe fugisse
O calcam do mundo as botas.
Ao nosso passo veloz.
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Acaso
Brutais
Do princípio até ao
fim,
São uns rapazes brutais.
Tanto que ninguém faz
caso,
Porém, se eles são assim,
Tanto acaso mora em
mim
É que não tiveram pais:
Que filhos somos do acaso.
- Ninguém lhes disse que sim!
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Farrapos
Doença
Ofertam-lhes roupas
novas,
O pior duma doença
Breve ficam em
farrapos.
É de se fechar em si:
Riem uns, dando-lhes
sovas,
Tirania da presença
Trapos mais que aqueles trapos.
De ti próprio sobre ti.
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Morro
Problemas
Eu morro por eu me
ter
Encarar os problemas
Sobre mim próprio
virado,
Um a um não se perfila
Porque é proibido se
ver
Quando recusam seus temas
E acabei vendo meu fado.
A se colocar em fila.
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Política
Limpo
A política é o
espectáculo
Pode estar limpo ainda alguém
Que arrasta mais
multidões:
De guerras e tiranias?
É que atrás do seu
cenáculo
P'ra mudar roupa convém
Toda é choque de emoções.
Lavar-se o mundo alguns dias.
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Desvendados
Inteligência
Evitam falar e
sentam-se
A inteligência depende
Na última fila
apagados,
Daquilo que a gente faz
Mas é que assim
apresentam-se:
E não, como se pretende,
Não querem ser
desvendados.
Da aparência que se traz.
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671
Científico
Mentir
O cientista sempre
falha
O que mais distingue um homem
O objectivo num
objecto
Dum animal é sentir
Porque, quando falar
calha,
Que estes, feros, se consomem,
Fala um sujeito
concreto.
- Só o homem sabe mentir!
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Notícia
Normal
Notícia bastante
má
Todo o homem que é normal,
De si própria é
garantia;
Neurótico é sem saber:
A boa notícia
está
Não há fronteira ou sinal
A pedir por si quem fia.
Entre o ser e o não ser.
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Nem
Doentes
Um indivíduo não é
Os que chamamos doentes,
Nem completamente
louco
Que enviamos para o asilo,
Nem são do topo ao
sopé:
São vítimas permanentes
De ambos temos sempre um pouco.
Da violência em que os exilo.
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677
Muro
Coisa
Isola mais do que um
muro
O doente não existe
Mata mais do que o
arsénico
Para quem só vê a doença:
Quando "é louco!" - lhe
murmuro
A seus olhos só subsiste
Ou lhe chamo
esquizofrénico.
O que a uma coisa pertença.
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Observador Objectividade
Quando o observador se
põe
Buscar objectividade,
A estudar na
defensiva,
Se traz muitas coisas boas,
Se à coisa bruta se
impõe
Só nos traz a falsidade
'Scapa-lhe a pessoa
viva.
Nas ciências das pessoas.
680
681
Ciência
Insólito
Vejo através da
ciência
Se apenas vejo a doença,
Como as coisas me
aparecem
O sindroma é meu acólito
Mas esquece-me a
vivência
E da pessoa a presença
Do que as coisas me
conhecem.
Sempre é um fenómeno insólito.
Reificarmos
alguém
Compreensão objectiva
É um erro
metodológico
Não é humana mas da ciência,
E uma violência
também:
É um resguardo que me esquiva
Mistifica quanto é
lógico.
Doutrem a luminescência.
684
685
Continuidade Esquizofrenia
Entre o normal e o
louco
Fronteira à esquizofrenia
Existe
continuidade:
Anda a saúde mental.
Por demais um nome é
pouco
Da raia que as dividia,
P'ra criar uma
entidade.
De má fé resta um sinal.
686
687
Teoria
Demónios
A teoria
padece
Outrora os demónios foram
Dos males do
esquizofrénico:
Da loucura a crente via,
Desagrega, abstrai,
fenece,
Hoje os demónios demoram
- É a louca dum grupo
cénico.
Dentro da patologia.
688
689
Máquina Inconsciente
Quando outrem for uma
coisa,
O inconsciente é o que não
Máquina então serei
eu
Comunico nem a mim
E a vivência em que
repoisa
Nem a outrem porque são
Em nós ambos já
morreu.
Os monstros que me dão fim.
690
691
Loucos
Louco
Todos os loucos são
maus,
Quando te chamarem louco
Mas, se são
irresponsáveis,
Vê se te falte a razão
Por que lhes jogam
calhaus
Ou se é de a terem tão pouco
Como se foram
saudáveis?
Que tal nome eles te dão
692
693
Consultório
Nada
Considero o mundo
inteiro
Que o psiquiatra se convença
Meu privado consultório?
Em paz o doente a deixar:
- Cada pessoa é,
primeiro,
Onde não há uma doença
Um candidato ao
velório!
Não há nada p'ra tratar!
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695
Diagnosticar Forma
Diagnosticámos
doenças
Religiosidade a mais
Que ninguém sabia
tratar;
É uma forma de loucura,
Hoje tratam-nas por
crenças,
Como loucura demais
Não há que
diagnosticar.
É uma forma de fé pura.
696
697
Lisura
Doente
Quem fustiga a
sociedade
Muito doente é doente
Por nos levar à
loucura
Que a doença põe de pé
Por vezes quer, na
verdade,
Contra quem quer que ele invente
Roubar-nos com mais
lisura.
Que ele seja o que não é.
698
699
Incomodam
Nossa
Razões por que se
acomodam
Toca no fundo da gente,
Os loucos nos
hospitais
Mesmo à mais fina faz mossa:
Não é por doenças
mentais:
- Até onde a nossa mente
É que cá fora
incomodam.
É inviolavelmente nossa?
700
701
Loucura
Curar
A loucura não é
nada,
Há quem me queira curar
Que loucos somos aos
poucos:
De eu não ter de que curar-me
A loucura é fabricada
E se o vou contrariar
Pelos médicos dos
loucos.
Cura-me p'ra que eu desarme.
702
703
Morrendo
Pesadelo
Morrendo com nossas
dores
Quando alguém se dá bem conta
Morreu muita
terapia:
Que o que vive é um pesadelo
Dantes foram sangradores
O terror a tanto monta
O que é hoje a
psiquiatria.
Que louco é provável vê-lo.
704
705
Pensamos
Pressentimentos
Penso que sempre
pensamos Os
nossos pressentimentos
O que não é p'ra
pensar
Merecem benevolência
De modo que
garantamos
Que enterram os argumentos
Que o não pensamos a
par.
Nos húmus da consciência.
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Colibri Contradição
Uma pessoa
cansada,
Da prosperidade
Canseira de quem
trabalha
É contradição
- E este colibri de
nada
Ser rica a cidade,
Corre o mar todo sem
falha!
Pobre, o cidadão.
708
709
Pouco
Silêncio
Não é o que
ignoremos
Subitamente parou
Que põe tudo
louco:
Todo o falatório vão.
Nós muito
sabemos,
E o relógio então falou
Sentimos é pouco!
Silêncio sem ilusão.
710
Si
Hoje é fácil percorrer
O mundo de ponta a ponta.
...Tanto mais difícil ter
De si com que dar-se conta!