11ª. Redondilha
Miro o
longe até ao imo
Escolha um
número aleatório entre 1551 e 1650 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagm particular para o seu dia de hoje.
1551
11ª. Redondilha
Miro o longe até
ao imo
Em que o sonho
de adultez
Redundou na
pequenez
Da criança aqui
no cimo
Desta vida a que
me arrimo
Como a um bordão
que uma vez
De coxo a
brincar me fez
E assim meu
sonho perdi-mo.
Canto a lonjura
de mim,
Este meu
princípio e fim
Que dá volta ao
Universo.
Canto quanto
esta distância
Me mata, fatal,
com ânsia
Dum além de todo
o verso.
1552
1554
Nunca
Semente
Nunca pertenci a
escolas,
Nós somos sempre a semente
Não me inscrevo em
movimentos,
Duma planta bem tenaz
Que, se naquelas te
atolas,
Que amadurece na gente
Nestes murcham
sentimentos.
E que só se satisfaz
Quando atinjo a plenitude
O movimento sou
eu
E o vendaval se me ferra
E a escola, quando
nasceu,
Em mim e minha virtude
Foi neste sopro de
vento
Espalhando-me na Terra.
Onde me integro e me invento.
1555
1553
Fundo
Neblina
Aqui me deito e me afundo
Somos aquilo que julgamos
ser,
No abismo da escuridão,
Somos o que outrem julga que
seremos. Quase paz se atinjo o fundo.
Nem nós nem eles, afinal,
sabemos
Porém, não há fundo, não.
O que em tudo isto se virá
conter:
O que aqui no escuro jaz
- Desta neblina se enevoa o
ser.
Não tem paz, procura a luz.
E o que este sono me faz
É medir se sou capaz
Do abismo a que me propus.
=================================================================
1556
Na crista da onda em equilíbrio instável
Por ora e desde sempre vogarei.
Arrebol
Pesco ao destino a sardinha e o sável,
De dias me alimento que história me sei.
É sempre um nascer de sol
Quando tudo
principia
Tremo na prancha do tempo que muda,
E depois, esta
agonia,
De afogar-me em risco furto-me à lei,
Consumado o
arrebol.
Equilibro-me em fuga sobre a vaga ruda,
Além, sempre além,
Não era o vinho da
vida,
Fujo ao maremoto conforme convém
Apenas um cheiro a
mosto:
E às margens de além um dia darei.
- Sempre me perco em corrida
Neste nascer de sol
posto.
Ser, não ser,
Como o saberei?
1557
- Será a viver
Que um dia serei.
Passageira
Se o
Tempo acabar porque Tudo principiou,
A vida é tão
passageira
Aí, finalmente, sou o que sei
Que nunca se
justifica
E sei o que sou.
Viver nela a vida inteira.
Por isso é que sempre
implica
1560
Um salto além da fronteira
Mesmo se nunca me
diz
Mente
Que a algum lado chegarei
E que não quebro o
nariz
- Que é que tens em mente?
Por ser tão
fora-da-lei.
- Quando o encontrar
Estarei presente
1558
E, quando o olhar,
Esta é a minha lei,
Deus
- Aí saberei!
Deus morreu em Jesus Cristo,
1561
Desde então não há mais Deus,
Desde então só resta isto:
Ser
- Ser em mim todos os eus!
Serei Deus se, qualquer
dia,
Ser ou não ser
Por um salto de
magia,
Não é questão,
For isto o que então
existo.
Se calhar,
Que a razão
1559
De meu ser acontecer
É pensar ou não pensar.
Sei
Não só por pensar em ser,
Ser, não
ser,
Não só por pensar que penso,
Como é que me
desvendo?
Mero fruto dum azar,
- Sou apenas este
querer
Mas por ser este arco tenso
Ir
sendo.
Dum ser que é ser ao pensar.
=================================================================
"Penso, logo
existo."
Antes pouco do que nada.
Mas
existirei?
Porém, se o pouco não chega,
- Ao pensar,
subsisto
Mais vale nada, que nega
Vendo se sou
isto
Toda esta vida alugada
Que, ao pensar,
serei.
Em que o sonho se me emprega
A adiar a madrugada.
1563
1567
Viver
Gaiola
O que importa é viver muito,
Por muito que esse
muito
Sou disparo duma mola,
Seja, afinal, muito
pouco.
Rasgo os espaços, sou raio!
Só o infindo me consola
- Pouco
importa:
Mas só por sonhos o atraio,
Importa
muito!
Que minha fome me imola:
Fugitivo papagaio,
1564
Fujo sempre na gaiola.
Vida
1568
A vida não é viver,
Chama
Viver é como estar morto
Até o anjo
acontecer,
O dia chegou ao fim
Até três vezes
bater
E eu aguardo aquela chama
No portal que abre prò
horto
Que me irá contar, enfim,
Onde minhas asas
corto
O sol que há p'ra além da rama.
Com frutos a emurchecer.
Bate o anjo e
principia
Mas meu galho é de tal trama
A romper por mim a
raiva
Que nele o sol não se acama
Até que o mundo em mim caiba:
E, pardal ferido na asa,
- E desde então nasce o
dia!
Jamais voo além de casa.
1565
Senão
Era uma noite de
cão
Em que o vento me
gania
Sempre a pular-me às
canelas.
Era da vida o
senão,
Todo inteiro uma razia,
Neste furtar-me as estrelas.
=================================================================
1569 Mesmo
que morra em mim mesmo
É o mesmo de mim que em ti
As Voltas da
Vida Talhará
vias a esmo
P'ra amanhãs que não vivi.
Há muitas voltas à volta
Das voltas que a vida traz.
Mas viverei amanhã
Uma só volta não volta,
No sonho que viverás,
A volta que volta
atrás.
Manhã serei a manhã
Teu norte de vida e paz.
Porque esta volta não
volta,
Volta e meia
reparamos
Morrerei ressuscitando
Que só vivi meia
volta
No coração do porvir.
E a volta inteira
acabámos.
Amo a vida e há Vida quando
Toda a vida é ressurgir.
E qualquer reviravolta
Que as voltas da vida dão
Primeiro na evocação,
Deixa o travo da
revolta,
Grata herança em toda a gente.
Imita um sim mas é
não.
Depois bem no coração
Serei eu pessoalmente
Ah! Tantas voltas voltando
Neste instante
voltejar
Quando o tempo for tão nosso,
Não mudarão de vez
quando
Quando em ti formos tão nós
Toda a vida as
completar?
Que do Universo o colosso
Se tornará nossa voz.
Completá-las dando a volta
Às voltas que, sem
juízo,
Nele me renascerás,
São a vida
desenvolta
Criador da nova grei:
Não a vida que é
preciso.
Corpo cósmico de paz,
Todos num, aí serei.
Que eu sonho uma vida envolta,
Muito p'ra além da
saúde,
Seremos o Universo,
Numa volta que é tão
solta
Do Infinito o corpo quando
Que nos volta a plenitude.
Eu e Tu formos um verso:
Se Eu for Tu, tanto te amando
Que devenhas o meu berço.
1570
Aí não morro, estou chegando...
À Chegada
Dos abismos do passado
Aos páramos do porvir,
Eu não morro, estou
chegando.
Estou chegando, compassado:
Estou chegando e, enquanto
chego,
Eu não morro, estou a ir...
Crêem que é o fim, quando ando
Inaugurando o sossego.
Eu não morro, eu me inauguro,
Toda a vida foi preparo.
Se me fino é que o futuro
Principia aonde eu paro.
=================================================================
1571
Sem ti
Nem mesmo seria.
Saudade
Porque te vivi
Meu ser principia.
Ter saudade é ter memória:
Ter memória do
passado
Mas és tu, afinal,
E do futuro
também.
Ou serei eu?
- Que importa? Real
É ter o tempo na
mão.
É o que, comum, se viveu.
Ter saudade é ter a
glória
Somos nós, enfim,
De ser tempo
acumulado
Que aí vivemos?
Não na mente mas além:
- Fomos Nós que aí nascemos:
- Por dentro do
coração!
Inaugurámos o Fim!
1572
Inaugurámos a via
Em que tudo principia:
Ruptura
- O Infinito desata a falar em mim!
Eu penso no que em
verdade 1574
Antes vivi mas perdura,
Que eu sou sempre esta
ruptura
Celebrar
Entre os tempos que me invade.
Celebrar é mais que festa,
Mesmo a minha
liberdade
É mesmo mais que vivência,
É o fruto desta
secura
Celebrar é abrir a fresta
De as nascentes de água
pura
Em que quebramos a ausência.
Ir procurar noutra
idade.
Aqui dos outros gostamos
E gostamos de aceitá-los,
Ferida sem dar
sinal
Rimos sem servos nem amos.
De algum dia ter mais cura,
Nesta alegria louçã
Perde-me no que
inaugura,
Até ao cantar dos galos
Não lhe descubro
hospital.
Hoje somos o amanhã.
E assim, na triste
figura
1575
De ser um num ser dual,
Sou o carnaval que mais dura. Sonho
1573 Os
outros são um inferno
Quando luto contra ti,
Amigo Mas eu
jamais te bati,
Foi o meu sonho de eterno.
Estou
Contigo.
Mesmo quando em beijo terno
Ser
Amigo
O infinito eu entrevi,
É o ser que
sou.
Não foi a ti que te vi
Mas a mim em quanto hiberno.
O inferno doutrem, por fim,
É via do céu p'ra mim.
=================================================================
Com outrem na
relação
As ideias são carvão,
Conta primeiro a
vivência
Tua fonte de energia.
E o que sou em tal
função,
Mas jamais explodirão
Culminando a experiência
Se não houver, algum dia,
De mim co'a
confirmação.
Uma centelha de fora
Estes elementos
são
Que pegue fogo ao rastilho:
Constitutivos da essência
- É noutrem que, nessa hora,
Dum encontro, da
união
Descobrirás teu gatilho!
Que funde a mútua valência.
Com outrem o encontro não
Ocorre como
organismo,
Viagem
Que ele sonha e se projecta:
- Seus actos jamais
serão
Desta vida na romagem,
Um processo mas o
abismo
Todos à largada,
Que ele salta para a
meta.
O que importa é a viagem,
Não é a chegada.
1577
Mas se chegar não importa,
Diálogo
Que importa viajar?
- Tão urgente é abrir a porta,
Diálogo autêntico
Sonhar o além-mar!
É criar um mundo,
Nomear-me
concêntrico,
Se ele, ao fim, não existir,
Deus a Deus
idêntico
Caminhar além
De mim no mais
fundo.
Desencadeia o devir
No que ele retém.
1578
Viver é continuar,
Desencontro
Fixar-se é morrer,
Embora nenhum luar
Vivo neste quarto
escuro
Gere o amanhecer.
Desta vida solitária
Sem jamais saltar o
muro
Vai, porém, gerando o sonho
De tua presença
vária.
De amanhãs soalheiros
Sei, porém, que estou
contigo,
E os luzeiros que aqui ponho
Já que é sempre
solidária
Serão medianeiros,
Esta minha mão de amigo
Buscando a tua
contrária.
Mediando o que p'ra além
Sei que nunca
coincidimos
Vier a aflorar,
Mas ir contra o
desencontro
Mesmo que seja também
É como não
colidimos:
Breve patamar.
- Sendo contrário te encontro.
E assim vamos projectados,
Visando o infinito,
Mesmo no que os novos dados
São sempre o já dito.
=================================================================
1581
1584
Caminhar Meu
aluno
Tanto a vida é
caminhar
Ser aluno é abrir as portas
Que, se lhe arrastas os
pés,
Pròs caminhos de amanhã,
Vai-se-te a vida
arrastar
Que o amanhã tem comportas
E jamais serás quem
és.
Cuja chave é o que suportas
P'ra abrir o sol da manhã:
Se andas com largas
passadas,
Quando ele entra por ti dentro
Teus braços varrendo o
mundo,
Nascem campos e florestas.
Alegres tens as
entradas
É uma lavoira em que eu entro:
Para um porvir que é
fecundo.
Vou-te gradando as arestas
E frutifico nas frestas
Tudo requer
energia.
Das folhas da salsa e coentro
Se andares de olhos no chão
Com que aromatizas festas
Logo te foge a
alegria
Que entram p'lo futuro dentro!
P'ra quem vida for canção.
1585
Entendimento
Caminho
Nada pode ser conhecido
Perder o
caminho
Antes do entendimento,
Não tem
importância.
Pois qualquer conhecimento
A mim cria-me
ânsia
Das coisas só é haurido
É o ficar
sozinho
Na dependência daquele
Sem o
encontrar:
E jamais inversamente.
- Se o não
adivinho,
Como
caminhar?
Mas visto-lhe sempre a pele
Sem jamais o ter em mente.
Cultura
- Sou culto?
- Não, tenho
cultura.
- Não, sou
cultura.
- Não, não, a cultura é meu
ser,
Quer dizer, a cultura
é-me.
- Não, a cultura é e eu
sou.
- Não, não, a cultura é o que eu
for,
Quer dizer, a cultura, sem mim, não é nada.
... Ou sou eu que nada sou?
=================================================================
1586
1589
Conhecimento
Palavra
Todo o
conhecimento
A palavra
Provém dos
sentidos,
É tão criadora
Por isso é um
tormento
Que por dentro a vida inteira lavra
Buscar a
verdade,
E de cada qual se assenhora.
Que são
deduzidos
Por
necessidade
Apela-me ao cume,
Todos os
saberes
Se lhe ouvir: "És capaz!"
Sem
contestação.
Ao inferno me resume
Mera
probabilidade
Se me grita: "Satanás!"
São quantos houveres
Por
repetição.
Tanto pode o educador
Só a razão torna
seguro
Que lhe vai sair da voz
O que vem do campo
impuro
Ou do mundo o salvador
Da empírica
colheita.
Ou o caixão de todos nós.
Assim, não tem cura,
Já que sempre esta é a
receita,
1590
Nossa intérmina procura
Da ciência
perfeita.
Troca
1587
Quando ao meu filho eu ensino
Que pode conseguir tudo,
Verdade
Como quando era menino,
Sem nada em troca, a miúdo
O que, em verdade, a
verdade
O que ensino na atitude
Nos põe sob o seu
império
É o que há de mais destrutivo
Não é nossa
liberdade
Numa pessoa, em virtude
Mas esta
fatalidade:
Do que rege quanto é vivo:
Que da verdade o
mistério
Que o que vive é uma abertura
Jamais vai contra a
verdade.
À partilha e nunca à usura.
1588
1591
Dedutiva
Engano
Para nos garantirmos contra o preconceito
Mesmo que todo o saber,
Urge raciocinar por via
dedutiva,
Por imposição fatal,
Partindo de evidências e segando a
eito Fora um engano total,
Os dogmas intocáveis que o poder cultiva.
Para enganar-me, hei-de ser.
As ideias gerais são a
imaginativa
Sobre este saber final
Representação falsa do que a
realidade Não há engano nem poder.
Acolá nos vai dar do que for a verdade.
=================================================================
1592
1595
Persuadir
Salvar
Terei de
persuadir
Salvar os fenómenos significa,
Quando houver qualquer
razão
Para qualquer ciência antiga
Que contra mim vem
bulir,
Um modelo que se modifica
Pôr-me a verdade em
questão.
Mas nunca atinge a fadiga:
Outra harmonia para igual cantiga.
Que, se me fundo em ciência,
Não há mais
persuasão:
Para quem rasga o porvir
Dado que tudo é
evidência,
O que importa é penetrar a trama
Dúvidas não vingarão.
Do Universo em devir
Nas camadas em que se acama.
Todo o ludíbrio, porém,
Vem de crer que aqui
cheguei Tudo
quanto for observável
Quando aquilo me
retém
Torna-se então previsível,
Para sempre em sua
lei.
Devém um saber fiável:
É o futuro, pouco a pouco, mais visível.
E jamais alcançarei
O saber que me
convém:
1596
O cientista não é rei
Dum dado sempre p'ra
além Espanto
Do que algum dia terei
De minha mente
refém.
Meu espanto é sempre o espanto
De quanto é extraordinário
1593 E que esconde,
por enquanto,
Quanto isto é um saber primário.
Concreto
Tudo o
que admirável julgo
É só ignorância do vulgo.
Todo o concreto, hoje em
dia,
Só que o fito de meu grito
Que nos diz a
realidade
É o silêncio do infinito.
Da coisa que se anuncia
É uma bizarra
verdade:
É uma forma matemática
Que passa o saber ao acto,
- É um concreto que, na prática,
É inteiramente abstracto.
1594
Claro
Tenho medo de quanto é claro
Não porque fuja ao que é raro
Mas porque o que é claro nos mente.
É que o que é luminescente
É o morrão a arder na vara:
Isto, que é escuro, é que aclara!
=================================================================
1597
Mais tudo quanto se vê
Que ali pode ser contido.
Principia
E aquilo que a gente crê
Principia o
conhecer
(Que, à partida, é reduzido)
No fenómeno
sentido.
Se alarga tanto em sentido
Que acaba contendo até
A experiência, porém,
Todo o mundo num vagido.
Nunca me conduz ao
ser,
Mas pensamento
vivido 1600
Que os universais contém.
Coisas
Mas é sempre uma ilusão
Crer que estes se
alcançarão
Pensamento empresta às coisas
Fora da mente que os
pensa.
Os limites e as medidas.
Mas nas coisas se repoisas
Quem tal crer, não vê que
são
Crias já formas devidas.
Só um motivo de crença,
Cedo demais os
dispensa
Se com técnica ali poisas,
E é dupla a
contradição,
As coisas tornam-se as loisas
Torna-se a ilusão
imensa.
Em que escreves novas vidas
Que lá andavam escondidas.
Vem a céptica descrença
Culminar a
operação.
1601
E assim, sem que ninguém
vença,
Janelas
Se eterniza a frustração,
Nossa marca de nascença.
Quando entro em actividade
Abro janelas prò mundo,
1598
Respiro então de verdade,
Toda a energia fecundo. .
Acabara
Morta a tensão, a ansiedade,
É de paz que aí me inundo.
Mesmo que o mundo acabara
Neste instante eu
conseguia
1602
Lhe reproduzir a cara
E, ao sabor da
fantasia,
Quase
Revivê-lo logo adiante.
Nós, no ser, somos um quase,
O saber nunca
depende
No saber somos talvez.
Mais do que, fora, me
espante
E não há lume que abrase
Do que de dentro o
atende.
Nem tempo que nos apraze
O modo que assim nos fez.
1599
Sentido
Uma coisa é aquilo que é
Com aspecto definido
=================================================================
1603
1607
Sábio
Filosofia
Muito pode o
pensamento!
Dizem que a filosofia
Mais pode, porém, se
ignora Se
abre na interrogação.
E, ao ignorar no
momento,
A criança assim seria
Disso mesmo toma
tento:
Matriz da sabedoria,
- É sábio na mesma
hora.
Tanto nos questiona em vão.
Fonte de toda a
ciência:
Qual é a altura do céu?
- Da ignorância ter
consciência.
Por quê o cão abana o rabo?
Quando é que a folha aprendeu
1604
Que de cor mudar deveu?
Que é que havia, ao fim e ao cabo,
Raiz
Antes de o mundo ser mundo?
Todo o esforço da
razão
Quando encontro uma criança
Acaba por
concluir
Eu das dúvidas me inundo,
Que uma
fundamentação
Do que há p'ra além me fecundo,
Corre o risco de
aluir
Viso o que jamais se alcança.
Porque a razão, ao luzir,
Rasga sempre a
escuridão
E é assim que a filosofia
Que lhe serve de
matriz
Na ignorância principia.
E onde mantém a raiz.
1608
1605
Aparência
Espelho
Da felicidade
Compreender é ver no
espelho
Só conhecemos a palavra.
O espelho do que já
vi,
O fogo que por nós lavra
Reflexo do mundo
velho
É todo feito de ausência.
Com que o novo construí.
Do saber os
aparelhos
Toda a verdade
São este jogo de
espelhos.
É aparência.
1606
Errado
Está muitas vezes certo
Quem começa por dizer:
"Eu poderei estar errado."
Da verdade fica perto
Quem a não pretende ter
Mas sabe que lhe anda ao lado.
=================================================================
1609
1612
Fel
Paciência
Há certa escolha
medonha
Porque o mal é violento,
Que nos mata de
raiz:
Só o combate a violência.
Só é feliz quem não
sonha,
Por isso é que o bem é lento
Só quem sonha é que é
feliz.
E nos requer o tormento
Desta imensa paciência.
Sonhar só não é viver,
Viver quer outro
matiz:
1613
A roseira, p'ra crescer,
No estrume embrenha a
raiz.
Beleza
Porém, se em húmus me embrenho,
A beleza jamais será uma qualidade
Seja ele ordem,
tradição,
Que qualquer ser ostente como sua forma
E do voo perco o
empenho, Mas o
efeito encantado em subjectividade
Da luz fiz
escuridão.
Da forma que o enforma, que me dita a norma
De ver e de sentir
na actual identidade.
Ser feliz é uma arte
esperta, Pois que, se o nosso olhar fora o dum
microscópio,
Quer bom treino e não
ludíbrio: O perfume mais belo deviria
de ópio
Ao sonho uma porta
aberta, E mesmo a formosura que hoje
mais encanta
Pés no chão em
equilíbrio.
Seria, ao raio X, uma caveira branca.
É remando entre os dois portos 1614
Sem jamais num aportar
Que espalho os frutos dos
hortos
Prazer
Onde cultivo o luar.
É o desejo do prazer
1610 Que é a essência
da vontade
Como esta é a faculdade
Bom
De amar o bem que eu quiser.
Este amor próprio é feliz,
Ninguém se esforça ou quer, ambiciona ou
deseja É de si ser criador,
Alguma coisa ou sonho porque os julgue
bons Um prazer que
assim me diz
Mas ao invés julgamos que uma coisa é
boa O
que é que motiva o amor.
Porque nos esforçamos pelo que se almeja,
Porque o queremos muito. É o que nos muda os
tons:
Então é que o
cantamos nesta infinda loa.
1615
Ressonância
O
bom e o agradável, como o belo e o feio
Ou
o desagradável são a ressonância
Das modificações que em nós provoca o meio,
São uma concordância ou uma discordância,
O
mundo exterior a bradar em meu seio.
1611
Bem
Todo o bem se define pelo crescimento,
Ser que se torna mais, utilidade
funda,
Do desenvolvimento fiel instrumento.
Manancial de frescura, meu tempo me inunda:
- É o inútil mais útil de que há documento.
=================================================================
1616
1619
Signo
Somos
O signo, para o ser, terá de ser
dual:
Nós somos como um polígono
Senão, que significa em relação a
qual? De lados ao infinito.
O pensamento é múltiplo e esta
verdade Somos, de facto, o epígono
É o que lhe permitiu pensar a identidade.
Do círc'lo jamais descrito.
O mundo é conta infinda, sem limite algum:
- É multiplicidade e é sempre só
um!
Somos esta linha curva
De raio quase infinito:
1617
Quase recta, mal se encurva,
- E assim morre nosso grito!
Corpo
Corpo é o ponto de vista das facetas da alma:
Quando esta é a ideia, aquele é o livro onde se
espalma.
Assim o mundo humano inteiro se
hipoteca,
Corpo-espírito unido numa
biblioteca. 1620
A significação é a relação que
acalma,
Como se este meu corpo fosse letra de
alma.
Mudo
1618
Não vale a pena mudar-me,
Que mudando-me não mudo.
Cão
P'ra compor o melhor carme
O melhor é aqui fixar-me
Eu tenho na vida um
cão
Porque tudo está em tudo.
Que se me mantém fiel.
Não me vem comer à mão, 1621
Come a mão que lhe dá o mel.
E nesta vida
canina
Consentida
Em mim vou ferrando o dente.
É tal esta minha
sina
A poesia é consentida,
Que sempre a julguei
divina
Não há nunca intromissão,
E aqui tombo
finalmente
Que lhe entrego minha vida
No que o diabo
consente:
Para a levar pela mão.
Qualquer que seja o
momento
- Sou de mim próprio
alimento.
Mas é também com-sentida
Ainda por outros modos:
Termino assim
destroçado,
- Se me dá sentido à vida
Tanto a sorte me
seduz,
Dá sentido então a todos!
Tombado aqui para o lado,
Borboleta ardida à luz.
=================================================================
1622 - E um
deus em germinação
É o que aflora no local!
Amarrotado
1626
Sou sempre o papel rasgado
Dum discurso cujos
traços
Consenso
Se deslaçou nos abraços:
Vivo aqui
amarrotado,
No que temos de melhor
Um papel feito em
pedaços!
É que tem de haver consenso,
Que é maravilha maior
1623
Do nada tirar o imenso.
Meta
E é de nosso imenso nada
Que assim nasce a madrugada.
Fica tão distante a meta
Neste fado sempre
adiado
1627
Que ser poeta
É ficar, por fim,
calado.
Cotio
1624
Um gato
Deitado no tapete,
Motivação
Um sapato
Esquecido na carpete,
É por causa dum
motivo
A insegura mão
Que me jogo para a
meta
Que gatinha descuidada
Nesta corrida em que
vivo.
Em vagos trejeitos de asa,
- A meiga ilusão
Mas, se a lida ficar
preta,
Rasgando uma estrada
Importa agir sem
pensar
Por dentro de cada casa.
Se uma aurora se projecta
No rumo em que
caminhar.
1628
Meu agir precede então
Criança
E gera a motivação.
Criança, esta beleza
1625
Ardente e infeliz,
Este embaraço, esta incerteza,
Camaleão
Desejo que diz e jamais diz,
- Criança-estrela, aqui ao lado,
O homem é um
camaleão,
Caída no planeta errado!
Ora deus, ora animal,
Conforme acolhe o
sinal
Ou da imensa solidão
Ou da força
universal.
Se ambas funde em união
E a solidão tornar tal
Que todos nele estarão
Em potência seminal,
Esta solidão então
É uma presença total
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1629
1632
Modesta
Mãe
Era uma loja
modesta
Se tu és mãe, és o fogo,
Postada à esquina da vida,
Teus filhos são o calor.
Uma promessa de
festa
Se em tua luz eu me afogo,
Ainda bem longe da
ermida.
Neles teu brilho é maior.
É o sonho que nos
empresta
Árvore és; eles, teu fruto.
Para a festa esta
guarida
Se encontro em ti boa sombra,
Cuja riqueza
requesta
Eles são a tua alfombra,
A pobreza com que
lida.
- São nós ambos em produto!
São nossos dias a loja
1633
Em que se sofre a distância
Que de tudo nos despoja
Duas Vezes
Num faz-de-conta de infância.
Duas vezes dezoito anos teria,
1630
A vez primeira, quando eu sorria
Ao sonhar-te divinal
Faltar
No meio do mundano pantanal.
Vive o mundo este fado
barrigudo
A segunda vez, quando te falando
De buscar mais e mais, ninguém
repoisa. Descobria a possível poesia
E sempre com tudo isto, enfim, me
iludo, De te ir, mago, desvendando
Que na vida ninguém pode ter
tudo:
Para além de quanto cria.
- Viver é faltar sempre alguma coisa!
Mas a sério a vez primeira
1631
Foi quando me esqueci de mim por ti,
Sonhos lutei, contigo então sofri,
Pai
E a dor me foi tão leveira!
Com três letras bem
pequenas
E a segunda verdadeira
Soletro a palavra
pai.
Foi quando a história desatou crescendo,
Pouco mais que um ai
apenas,
Projectos, filhos, vida mais inteira,
Por ele é que o mundo
vai.
E o porvir assim veio amanhecendo.
Com três letras quase em grito
Escrevo pai, som de nada:
Tão discreto é o infinito
Donde nasce a madrugada!
Pai, tão pequena é a palavra
E de paz a vida inunda
E a vida inteira em nós lavra
E leira a leira a fecunda!
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1634
1636
Indiferente
Onde
Quando alguém me é
indiferente
O que amo em ti onde está,
Posso ser gentil com
ele,
Já que nunca mora em ti?
Que a maldade só
pressente
Mora sempre para lá,
Quem tocar na minha
pele.
Num além que é sempre aqui.
Mas se alguém me toca
fundo
O mistério que em ti há
Com as primícias do
eterno
Confesso que o descobri,
Quantas vezes o
fecundo
Só que então já não 'stá cá,
Não com céu mas com o
inferno!
'Stando, afinal, sempre ali.
É tanto o mal que lhe
faço,
1637
Tal fúria a voz me encandeia
Que ninguém vê neste passo
Discreto
Que é de amor que se incendeia.
Todo o verdadeiro amor
Tão longe vai o
martírio,
É só o amor que perdura.
Ao ódio tanto
assemelha
Como quanto tem valor
Que deste é mais um
delírio
Não é evidente esplendor:
Que do amor a ilusão
velha.
É discreto, nem murmura.
Desta afeição feita em
ódio
1638
Nem os amantes discernem
Nas feridas de tal bródio
Metas
Quais a cada qual concernem.
Amar alguém é ter metas
E por trás desta
traição,
Em comum e pessoais.
Escondida em cada
grito
Quando por estas te metas
A terra da promissão
É bom que te comprometas
Perder-se-á no
infinito.
Daquelas co'estes sinais:
Teu companheiro partilha
- E estivera mesmo à
mão
Em teu sonho, não da trilha,
Visada por nosso
fito!
Do horizonte que trocais.
1635
1639
Pássaro
Envelhecer
Pássaro
misterioso,
Como é que ao envelhecer
Mulher outrora
sonhada,
Posso manter juventude?
Como é que teu canto gozo
Se em mim mirras
enjaulada?
Uma fruteira, ao morrer,
- Se teu canto é
fabuloso
Gomos cheios de saúde
É que em frente abre uma
estrada.
Em cada ano faz nascer:
Pois é por esta virtude
Que, até ao fim, nos ilude
Co'a vida eterna a crescer.
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1640
1643
Fugir
Rico
Impulso de
abandonar
"Ultrapassa os meus recursos"
E iniciar vida
nova...
- Diz o rico, displicente.
Ou quer virar nossos cursos
- Mas o sonho por
sonhar
Ou, p'ra colar-se-nos, mente.
Por mim dentro é que se
inova!
De qualquer modo, os discursos
Não vale a pena
rumar
A imitar ser pobre gente
Aos bancos da Terra
Nova
Guardam-lhe, sem mais percursos,
Porque o peixe que eu
pescar
O porvir desde o presente.
É no abismo desta cova!
1644
Chave
Conto
Nossa grandeza ou miséria
Era um conto de
Natal:
Vive-nos fechada à chave
- E o Homem nasceu no
animal!
E ninguém nesta matéria
Descobre a chave mais grave:
1642
- É que ninguém sabe quem
Nossa chave nos retém!
Recanto de Natal
1645
Procuro qualquer recanto
Em que se me acabe a
dor
Contradição
E o que encontro é desencanto
E a dor fica então
maior.
De velas e sofrimento
Se faz nosso enterramento
Mas Natal é dor de
parto
Como nas trevas da luz
Em que inauguro uma
vida.
Cresceu nosso dia a dia:
Desta dor sempre eu me
parto
- A contradição traduz
Rumo à festa
perseguida.
Que sorte nos alumia.
Entre dor e dor
distingo,
1646
Uma calo, outra converso:
Uma é de Tântalo o
pingo,
Interrogatório
Outra além me abre o Universo!
O que é mais perturbador
Da lama salta um
respingo?
No denso interrogatório:
Pulo além, fora do berço,
- De nada sou sabedor
Se me atinge e assim me
vingo.
Neste imenso parlatório,
Mas sou forçado a depor
Preso, nas grades me
firo;
E mesmo sem saber nada
Libertado, aos céus me
atiro!
Sigo este corso de entrudo
Na intérmina caminhada
Obrigado a dizer tudo!
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1647
1650
Vazio
Paroxismos
Não tenho horror ao
vazio,
Como não és portuguesa,
Já que o vazio é
importante.
Amsterdão dos mil e um povos
É o intervalo do
frio
Que comem à tua mesa
Que dá o sabor ao
estio.
Do mundo inteiro os renovos?
É a pausa que, logo
adiante,
Mapa-múndi do porvir,
Da música tece o
fio,
Vives hoje o que amanhã
Deserto que sonha o
rio,
Será o caminho a seguir
Que aos oásis lhes
garante
Por qualquer cultura sã.
O valor que lhes
confio.
Mas se unes povos inteiros,
Paragem de
desafio,
Juntas também os abismos
Vazio é maré
vazante,
E é nestes teus atoleiros
Limpa a praia em que
desfio
Que previno cataclismos,
A vida de instante a instante,
Lá preparo o
corropio
Sonho um mundo de parceiros
Das naus pelo mar
hiante.
Em que se anulem os sismos...
Suspensão de
desfastio,
- São meus sonhos derradeiros,
Todo o sabor me
garante.
Ou da morte os paroxismos?...
Conhecer a frustração
Muda-nos a adversidade
Em desafio que em vão
Nos desafia a vontade.
Perante este persevero,
E nesta perseverança
Encontro o sabor primeiro
Do sucesso que se alcança.
Capaz
A nossa fé, por fim, toda repoisa,
Não tanto no que vem de firme estudo
Mas no que é já princípio em que me iludo:
Para se ser capaz de qualquer coisa,
Deve-se ser, então, capaz de tudo.