12ª. Redondilha

 

Onde me alcança a memória

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Descubra o poema respectivo como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1651

 

12ª. Redondilha

 

Onde me alcança a memória

Canto o traço que me traça

A profundeza que abraça

Minha derrota e vitória.

 

Além de toda a vanglória

Canto quanto a vida é lassa,

Como nos borbota escassa

Em cada passo da história.

 

A sabedoria canto

Com cada traço de encanto

Que nos encantou as eras.

 

Canto o mestre que, do olvido,

Me sustém na vida erguido,

Daqui me lança às esferas.

 

 

       1652

                                                  

Compreender

 

- Mestre, como compreender?

- Tentando e descobrindo que não compreendes. Quando aceitares que não compreendes, então saberás.

- Saberei?!

- Saberás, embora continues a não compreender.

- Nada mudou?

- Tudo mudou. Tu e o enigma então sereis um: abriste os portais do infinito!

 

       1653

 

Ser para Ser

 

- Mestre, que fazes de mim?

- Sou tua condição de ser.

- Posso prescindir de ti?

- Não! Deixarias de ser. Prescindirias, afinal, era de ti.

- És meu criador?

- Não, dou-te a chave da criação.

- Criação de quê?

- De ti próprio.

- A partir de ti?

- A partir de mim, não. Senão duplicar-me-ias e já não serias tu próprio.

- A partir do muno?

- A partir do mundo, não. Degradar-te-ias num objecto, serias o animal-máquina, o mais perfeito robô, mas apenas e só robô.

- A partir de mim?

- Sim. De ti és tu princípio e fim. Eu sou apenas o meio.

- Meio para quê?

- Para atingires o fim de ti.

- A morte?

- A plenitude.

- Plenitude de mim?

- De ti comigo.

- Então que plenitude?

- Conseguirmos vir a ser, algum dia, definitivamente Nós.

- Um Nós universal, sem retorno nem fronteiras?

- Integralmente Nós, isto é, o Infinito.

- Para a eternidade?

- Para a eternidade.

- Seríamos deuses...

- Seremos Deus!

- Num amanhã qualquer?

- Não, para além do tempo, quando lhe ultrapassarmos a fronteira,  quando mudarmos de natureza. Porque o tempo somos tu e eu enquanto não formos Nós.

 

       1654

 

 Enriquecer

 

- Mestre, é mau ser rico?

- Somos infinitamente mais ricos que o homem de Cro-Magnon. É bom.

- Então é um bem.

- Não, é um mal.

- Mas se melhoramos...

- Só melhoramos quando melhoramos em comum. O melhor só é quando é para todos.

- Isso não é enriquecer?

- Não. Rico só há onde há pobre. Se todos formos iguais, ninguém é rico.

- Não sentimos melhoria?

- Ninguém a valoriza.

- Ficamos então infelizes?

- Infelizmente.

- Por quê?

- Porque desatamos a querer ser ricos e aí principia todo o mal.

- Como assim?

- O rico explora apenas frémitos dos sentidos.

- Qual é o mal?

- Transforma tudo e todos em brinquedos.

- Brinquedos?!

- Sim, brinca aos automóveis e às mulheres, brinca às jóias e ao poder...

- Diverte-se!

- Não, transforma-nos em joguetes, somos marionetas com que se entretém.

- Isso é fatal?

- Fatal.

- Como assim?! Perde a liberdade?!

- Não. É livre de desenvolver até ao fim o mal original: o primeiro erro.

- Qual?

- Ser rico, em lugar de ter enriquecido em comum.

- Não pode ser o mesmo?

- Não, porque o rico, para sê-lo, empobrece outrem.

- O contrário, no ver dele, era ser pobre.

- Na realidade enriqueceria bem em bens.

- Sendo rico tem sempre mais bens também...

- Mais males: vai desenvolver sempre mais longe o mal que lhes dá origem.

- Jamais se libertará? Poderia renunciar a tal caminho...

- Sim. Mas não pode inflecti-lo.

- Por não inflectir o primeiro passo?

- Pois. Prosseguirá na lógica fatal dele até ao fim.

- Quanto mais rico...

- Pior!

- Para os outros!

- Também para ele: paga os bens com o ser. Quanto mais tem, menos é!

 

       1655

 

      Porvir

 

- Mestre, como será o futuro?

- Para mim, negro.

- Como para ti?

- É que, para ti, será azul.

- E nele próprio?

- Negro e azul. E todo o arco-íris.

- No nosso imaginário?

- Na realidade.

- Não pode ser. Ela é uma só.

- Uma só para cada um que a vive.

- No juízo que dela fazemos?

- Não. No que fazemos dela por causa dos nossos juízos.

- Mas se são contraditórios!...

- Aparentemente. Somos todos complementares.

- Mas se um quer preto e outro branco...

- Preta é a morte e é dela que alimentamos a vida...

- ...O arco-íris.

- Que quando se unifica é branco.

- É indiferente, então, o que eu quiser...

- Ao invés, é tão importante que, sem a tonalidade de cada um, jamais atingiremos um dia a pureza da brancura.

- Mas nada mudará...

- Mudará tudo, porque tudo será cada vez mais da cor que tu lhe deres.

- Terei tal poder?

- O porvir hás-de ser tu, o futuro seremos nós.  À medida  do  nosso sonho,  do  sonho  que formos capazes de sonhar.

 

       1656

      Morto

 

- Mestre, podemos recuperar um mestre morto?

- Jamais.

- Não sobrevive?

- Não.

- Não ressuscita?

- Não.

- Fica reduzido a um silêncio eterno?

- Dá voz a outros.

- Mas ele, pessoalmente?

- Morreu definitivamente.

- Sem esperança?

- A esperança, para ele, somos nós. Mas nem a esperança lhe resta: porque ele não é nada.

- Então?

- Nós é que damos sentidos aos sentidos que ele nos deu..

- Sobrevive-lhe a mensagem?

- Não, nós é que sobrevivemos pela nossa mensagem que nos chegou por ele.

- Só isso?

- Só, até que algum dia rompamos a porta dos limites.

- E então...?

- Vencido o espaço-tempo, vencido o relativo, a plenitude ficar-nos-ia ao alcance.

- E a morte?

- Vencê-la-emos: ressuscitaremos os mortos.

- Os mestres, queres dizer.

- Não, os mortos. Que todos somos mestres, mesmo jamais reconhecidos.

 

       1657

 

    Homem

 

- Mestre, que é o homem?

- Junção da eternidade e do tempo.

- Mas é mortal.

- Cada indivíduo.

- A espécie ocorre no tempo: pode sempre extinguir-se...

- Enquanto não criar um tempo eterno.

- A eternidade impossível...

- Não, seria ainda só meia eternidade possível.

- Mas inexequível...

- Não, sempre indefinidamente aproximável.

- A eternidade da alma?

- Do corpo e da alma, que cada homem é um só: ou se salva todo ou nada se salva.

- Estamos então perdidos!

- Enquanto a eternidade não assumir e consumar o tempo.

- Uma eternidade temporal?

- É a outra metade do tempo eterno.

- Jogos de palavras...

- Não, jogo do real que é simultaneamente a realidade jogando-nos.

- Somos joguetes?

- Enquanto o Universo inteiro se resume em nós e por nós joga a sorte do todo.

- Quais são nossas possibilidades?

- As dum campo de forças.

- Temos saídas?

- Infinitas.

- Com que poder?

- O do infinito.

 

       1658

 

      Tudo

 

- Mestre, o espaço é tão grande!

- Infinito.

- O tempo é tão extenso!

- Interminável.

- Como poderemos atingi-los?

- Jamais.

- O infinito não nos está ao alcance?

- Ninguém sabe. Mas visamo-lo.

- Mas se é impossível...

- Por aí.

- Há outra via?

- Tentar o infinito em cada coisa.

- Se o alcançarmos será diminuto.

- Ao invés, será tudo.

- Como assim?

- É que tudo está em tudo. Se abrires uma janela, entra-te por ela o mundo inteiro.

 

       1659

 

 Dilaceração

 

- Mestre, porque vivemos tão dilacerados?

- Desejamos a eternidade prisioneiros do tempo.

- Não podemos desistir?

- Seria encurralarmo-nos numa das opções.

- Pararia o sofrimento?

- Jamais. Torna-se no inferno.

- Não há, pois, libertação.

- Há. Mantemos a tensão, perdura o apelo a sermos deuses.

- Mas isso é que é o desespero...

- E a esperança!

- Como?

- A fúria do amor pode romper com a fatalidade.

- Matando-nos?

- Transcendendo-nos.

- Sem nos aniquilar?

- Pela morte que ressuscita.

- Após a morte é o nada.

- Donde o amor pode criar tudo.

- Quem morreu já não ama.

- Mas pode ser amado.

- E daí?

- Do nada o amor o fez nascer a vez primeira. Assim será também da segunda.

- Reencarnação? Seria outra pessoa!

- Não. Ressurreição: só lá chegaremos quando, no fim, cada um for ele mesmo, para a eternidade.

- Só por um acto de fé.

- Não, se for precisa a fé, ainda não chegámos lá.

- Mas com que evidência?...

- Com a da infinitude cuja fronteira conquistaremos um dia.

- Antes disso já estaremos todos mortos.

- É verdade.

- Então, não há saída!

- Pode haver, desde que morrer seja mudar de natureza.

- Uma metamorfose?

- Não: o fim do ser em todo o seu modo para assumir o Ser-em-Todos-os-Modos.

- Como será?

- Ninguém o sabe.

- Mas é possível?

- Ninguém o sabe.

- Então...

- Aqui principia e acaba a fé.

- Não vale a pena.

- Ao contrário, é a única coisa que vale a pena.

- A única?!

- Sem isto é que nada vale. Absolutamente nada!

- Fico de mãos vazias.

- De mãos vazias é que somos todos. Só nos resta a possibilidade de as manter abertas à eventualidade de se encherem algum dia.

- Isso é verdade?

- Tudo o mais é ilusão.

 

       1660

 

        Ver

 

- Mestre, não vejo e não estou cego.

- Tens de ver com o sentimento.

- Dei uma topada na pedra. Não a vi!

- Tens de vê-la vivendo-a.

- Tornando-me pedra?

- Tornando-a um membro de ti.

- Mas ela é morta...

- Vivendo-a dar-lhe-ás vida.

- Ao utilizá-la?

- Não, ao senti-la.

- Com os sentidos?

- Não, com o íntimo, com o eco do coração.

- Então ela ficará sempre fora de mim...

- Nada no Universo está fora de ti.

- Não pode ser! O universo é infinitamente grande. Não cabe em mim!

- A imagem dele, o valor que lhe dás, o êxtase que te oferta não ocupam espaço: o infinito só existe no teu íntimo. Cá fora é tudo muito limitado.

- Mas não é jamais a pedra em si que terei em mim.

- Enganas-te. A pedra em si é apenas justamente o que dela houver em ti. O mais é ilusão.

- Mas está aí.

- Apenas aí está o que alguém, no íntimo, dela viver e partilhar.

- Mestre, como é possível se ela existe antes de alguém ter existido?

- Antes de alguém ter existido, Alguém a existiu e continua existindo para que ela exista hoje para nós e para que, por ela, possamos existir para todos, sempre.

- Não creio que a pedra seja alguém.

- E não é, mas o que vês de Alguém que a vive.

- Mas é apenas ela!

- Evidentemente. Só que ela é a palavra que Alguém te dirige.

- Não ouço palavra nenhuma...

- Mas podes vê-la se quiseres ver com o coração. E só tal palavra vale a pena ver-se.

- A ciência não presta?

- Prestará quando a ouvirmos no íntimo. Então ir-nos-á revelando Alguém escondido na palavra do Universo. Até lá andaremos cegos vendo tudo.

- A ciência desvenda o segredo cada vez mais...

- E nós tanto mais cegos quanto mais virmos!

- Como prová-lo?

- Só pode provar-se o que não vale. O que vale não se prova, vive-se.

- Mas se não existir...

- De que prova precisas de ti, se te vives?

- De nenhuma. Sou eu.

- Só se prova o que não se vive. Vive o Universo e não precisarás de prova.

- Elimino a ciência?

- Não. Apenas a prova. É que precisas de conhecer para decifrar a palavra da imensidão.

- Sem prova não descortino a verdade.

- A prova torna-se o teu dicionário. Não demonstra, traduz-te a mensagem de Alguém. Não é muda, também fala de ti a outrem, através da palavra-pedra, através do discurso-Universo.

- Então o meu saber...

- Será o segredo desvelado de Alguém para todos; tu serás o porta-voz, o tradutor do Infinito.

- E o que eu fizer....

- Será tua palavra feita pedra e Universo, conversando com todos em todo o tempo.

- E com Alguém?

- Será tua resposta a Alguém, tornando-te corpo do Universo. Serás corpo alargando-te ao Infinito.

 

       1661

      

      À Toa

 

- Mestre, sabe o homem o que faz?

- Jamais.

- Não tem um sentido?

- Tem-no sempre e nunca é verdadeiro.

- Mas crê nele?

- Quando tem algo de sábio.

- Algo?

- O sábio verdadeiro crê e sabe que a crença é falsa. Irremediavelmente.

- Isso é estúpido.

- Estúpido é o vulgar: gesticular à toa.

- À toa?

- Ninguém sabe o que faz. Pensa que sabe e isto lhe basta.

- Por que não se pára de vez?

- Mexem-se apenas para não ficarem quietos.

- Que é que os move?

- O medo de enfrentarem o que são, o terror do que serão, o pesadelo do que lhes está fatalmente acontecendo.

 

       1662

 

 Sossegado

 

- É noite, mestre, tudo dorme sossegado.

- Tudo dorme sossegado, quer de noite, quer de dia.

- Em vigília, mestre?

- Em vigília é que se dorme a sério.

- Por distracção?

- Por concentração. Ninguém vê o que está para além.

- Mas vê o que vê.

- Não. Apenas vê o que quer ver e não acredita no que vê.

- Afinal, vê ou não vê?

- Vê quanto o deixa sossegado e ignora quanto o perturba.

- Simula não vê-lo?

- Não, torna-se cego.

- Voluntariamente?

- Inconscientemente. Por isso é que é cegueira a sério: não vê definitivamente.

 

       1663

 

     Peritos

 

- Mestre, estou divertido e alarmado.

- Com um comportamento bizarro?

- Com a obediência cega às regras e regulamentos.

- Os homens dependem dos sistemas que criaram para se libertarem.

- É contraditório.

- Se a cegueira for a norma.

- Mas são os mais lúcidos...

- Têm uma fé inabalável na lei; na ciência, fruto e norma da lei; na técnica, lei incarnada. Não são lúcidos.

- Mas se os sábios são escravos...

- Não são sábios mas peritos, peritos em escravidão. O sábio é livre e libertador.

- Estes de agora são servos da tecnologia. Vivem obcecados por ela.

- As máquinas são os novos senhores.

- Mas são mesmo eficientes.

- Pode não ser mau, enquanto tal for o sonho e a carência do homem.

- Liberta, então, mestre?

- Os demais, não os humanóides telecomandados.

- Como é possível? Todo o fruto da escravidão é desprezível.

- Quando a escravidão é forçada. Esta é voluntária e militante.

- E o fruto não degrada, como ocorreu através das eras?

- Só a quem creia nos dogmas das jaulas doiradas. Sem os dogmas, restam instrumentos, bens e serviços. Para libertar e promover ou para oprimir e marginalizar. Ao arbítrio e consciência de cada um.

- Até quando?

- Até ao dia em que as máquinas se avariem.

- Aí pararia tudo: seria um bem.

- Seria um mal. Para os escravos, que já não sabem viver sem dono. Para os libertos, que já não sabem viver sem hábitos.

- Mas tudo então seria recuperável...

- Ou tudo ficaria perdido: aí as máquinas poderão tomar o poder. Definitivamente.

- Como assim, mestre?

- A obsessão da ausência delas pode submeter-lhes de vez a humanidade inteira. Tudo e todos, humildes, ao serviço do novo deus ausente.

       1664

      Perdi

 

- Mestre, perdi o sonho!

- Mergulha em teu íman.

- Qual?

- Primeiro a água.

- Nadar, ir à praia...?

- Não.  Abandona-te inteiro ao abraço da água-mãe: deita-te nela, fecha os olhos e deixa-te embalar.

- Repousar?

- Reencontrarás a paz.

- Mas como viver?

- Segundo a árvore.

- Plantando-a?

- Não. Abraçando-a. Aperta-lhe os braços à volta do tronco.

- E daí?

- Sente a vida fluir, suave, dela para o teu corpo abatido.

- E terei força?

- A força da árvore passará, discreta, a robustecer a tua fragilidade.

- Basta uma?

- Primeiro, uma. Depois, a floresta inteira. Quando a força te embeber, poderás voltar ao seio dos homens. Ficarás ébrio de vida. Serás a alegria.

 

       1665

 

   Domínio

 

- Mestre, é feliz quem domina?

- Nunca.

- Então o ideal é a obediência.

- Depende.

- De quê?

- De ser ou não em consonância com teu íntimo, com o sonho de plenitude que te anima.

- Nesse caso não obedeço.

- Obedeces, em ti, ao que em ti te ultrapassa.

- Mas não a uma chefia.

- Obedeces a uma chefia que te mande obedecer à profundeza de ti próprio.

- E se não mandar assim?

- Impede-la de dominar-te. Libertando-a da perversão do domínio, leva-la a comandar em prol de tua plenitude: tua chefia também pode ser feliz.

- Como educarei meu filho? Aí sou eu que mando.

- Mandando-o ir dominando sua vida.

- Mas ele não a pode controlar.

- Por isso a infância é infeliz, contrariamente ao que julgam.

- Então?

- Dá-lhe cada dia mais participação em quanto lhe diga respeito.

- Se o fizer...

- ... Dás-lhe o sentimento de poder controlar a vida mais e mais.

- E daí?

- A esperança de algum dia atingir a plenitude principiou: passo a passo tem a prova de ir a caminho. Cada vez será maior o poder para realizá-lo. O infindo começa a ficar ao alcance.

 

       1666

 

   Pertença

 

- Mestre, ninguém gosta de mim.

- Faz algo por outrem.

- Mas fiquei abandonado...

- Apenas deixaste de dar-te a alguém gratuitamente.

- E quem o fará por mim?

- Tu!

- Como, se é por outrem?

- Se te dás a alguém, pertences-lhe, és parte dele.

- Alieno-me, despersonalizo-me...

- Ao invés, se é por gosto, seduze-lo, conquista-lo.

- Manipulo-o, manobro-o.

- Não serias gratuito, ficarias mais só.

- Então dominar-me-á...

- Ninguém dominará ninguém. Pertencereis um ao outro em reciprocidade.

- Acabará o vazio?

- O sentimento de pertença plenificará cada minuto de vossos dias.

- Dar-lhes-á sentido?

- Rumo ao Nós total sempre visado, jamais consumado. Germinareis toda a fecundidade da Vida.

 

       1667

 

   Apreciar

 

- Mestre, ninguém me aprecia.

- É que não aprecias ninguém.

- Se lhes der valor, valorizam-me?

- Não.

- Então?!...

- Faz que se apreciem a  si próprios.

- E eu?

- Aí apreciar-te-ão.

- Como?

- Em ti residirá, a partir de então, o valor deles.

 

       1668

 

     Alegria

 

- Mestre, como encontro a alegria?

- Dando-a.

- Como dá-la se a não tenho?

- Como o artista.

- Mas o artista não dá alegria.

- Pois não.

- Então?!...

- Ele encontra alegria ao partilhar o belo com todos.

- Mas se eu não for artista?

- Torna a vida inteira uma obra de arte!

 

       1669

 

      Gerar

 

- Mestre, a alegria é genética?

- Jamais, só a predisposição à serenidade.

- Vem do clima criado por pais felizes?

- Jamais, embora a corrobore.

- Como?

- Ajudando a aprender a atitude adequada para gerá-la.

- Como se gera, afinal, a alegria?

- Cada qual tem o poder de emaná-la das profundezas do próprio íntimo.

- Como?

- Vivendo-se inteiro a partir daí.

 

       1670

 

  Felicidade

 

- Mestre, a felicidade é possível?

- Jamais.

- Então seremos fatalmente infelizes.

- Nunca.

- Como assim?!

- A felicidade é aproximável.

- De que modo?

- Admira alguém.

- Que me adianta?

- Principiarás a amar.

- E daí?

- Se lho manifestares, torná-lo-ás mais feliz.

- E eu?

- Elogiá-lo-ás.

- Mas então...

- Então dar-lhe-ás incitamento.

- E em mim fica tudo igual.

- Em ti tudo mudou.

- Em quê?

- Aprendeste a admirar, a amar, a elogiar e a incitar. Doravante a tua vida é outra.

- Mas sempre infeliz.

- Não. Com a felicidade de criar felicidade.

- É muito pouco.

- Isto é apenas meia verdade.

- Qual é a outra meia?

- É que noutrem despertarás por ti admiração, amor, elogio e incitamento.

- E daí?

- Rumareis à plenitude, indefinidamente.

- É a nossa felicidade?

- É a felicidade possível a nossa actual natureza.

- Actual?! Não há outra!

- Todo o possível é possível.

 

       1671

 

       Dom

 

- Mestre, qual é o maior dom que posso receber?

- Dares-te.

- Ora essa! Aí não recebo nada!

- Recebes.

- Quê?

- A felicidade de quem te é querido.

 

       1672

 

       Feliz

 

- Mestre, que diferencia um casamento feliz dum infeliz?

- Três palavras não ditas.

- Quais?

- A humilhante, a importuna e a que destrói o silêncio da comunhão.

- Só?

- E três palavras ditas todos os dias.

- Quais?

- A que reconhece,

A que enaltece

E a que emudece

Porque a ternura aparece.

 

       1673

 

   Escolhas

 

- Mestre, a liberdade de escolha garante a felicidade?

- Uma porta aberta não é nunca o caminho caminhado.

- Mas ajuda.

- Ou desajuda.

- Como?

- Podes escolher ser infeliz.

- Então a felicidade...

- ... É um acto de vontade.

- Mas há motivos para ser infeliz...

- ... E a liberdade de escolheres a atitude perante eles.

- Para os dominar, abolir, reconverter...?

- Para decidires entre o desagrado e a esperança.

- Mas, se são razões de infelicidade...

- Mesmo na prisão ou afundas o olhar na lama ou lança-lo às estrelas.

 

       1674

 

     Sonho

 

- Mestre, a felicidade é realizar um sonho?

- É abrir-se a todos os sonhos.

- Sem os realizar?

- Para sempre ir realizando ao menos um, quando os mais forem bloqueados.

- Até quando?

- Até atingirmos o derradeiro deles.

- O derradeiro?!

- E darmos o salto para Além.

 

       1675

 

 Adversidade

 

- Mestre, como fugir à adversidade?

- Não lhe fugindo.

- Essa agora! Então ficamos esmagados.

- As pessoas felizes ultrapassam-no.

- Como?

- Aprendendo o positivo do negativo.

- E daí?

- Explorando até ao limite a positividade ignorando o resto.

- Mas o resto continua lá.

- Não. Os felizes tiram da morte a vida. No limite só esta continua.

 

       1676

 

    Divórcio

 

- Mestre, aceitas o divórcio?

- Quando ele existiu desde sempre.

- Mas é para casados...

- Não. Para enganados que julgaram casar.

- Isso são todos...

- Não, apenas os que após o divórcio continuam os mesmos...

- Deveriam mudar?

- ... Continuam com os mesmos valores...

- E não deveriam mantê-los?

- Continuam com igual incapacidade para enfrentar os problemas...

- Não deverão refazer a vida?

- ... Continuam com o mesmo relacionamento com os outros.

- És injusto com eles.

- Nunca. Criam novas relações iguais às anteriores.

- Mas então...

- Por mais que casem jamais ficarão casados.

- Não podem mudar?

- Podem. Só que então nunca se divorciariam.

 

       1677

 

  Prudente

 

- Mestre, não é prudente a quem casa tomar precauções para a hipótese de não dar certo?

- Nunca.

- Como assim?

- Quanto mais abrimos o abismo mais fácil é cair nele.

 

       1678

 

   Segredo

 

- Mestre, qual o segredo dum amor para a eternidade?

- Saber ceder.

- Quem?

- Ambos.

- Mas assim ficarão cada vez mais alienados.

- Ao invés. Encontrar-se-ão cada vez mais.

- Cada qual encontrará mas é o outro.

- ...É que no outro encontrar-se-á a si mesmo.

 

       1679

 

       Paz

 

- Mestre, como viver em paz com meu cônjuge?

- Metade do tempo, que ele faça o que quiser.

- E na outra metade?

- Faz tudo o que ele quer.

- E quando chega a minha vez?

- Quando ele te fizer o mesmo.

- E se o não fizer?

- Enganaram-se. Não são ainda cônjuges.

 

 

            1680

 

          Paixão

 

- Mestre, por que morre a paixão num casal?

- Porque o amor se desenvolve.

- Não morre?

- Não. Transmuda-se, mergulhando pelos amantes dentro.

- Mas tantos se separam...

- Ignorantes!

- Onde erram?

- Não conviven até saborear que o amor cresce tanto quanto a paixão arrefece.

 

            1681

 

         Diálogo

 

- Mestre, por que é tão difícil o diálogo entre o homem e a mulher?

- Não é.

- Não?!

- Se for sobre o trabalho, a televisão, o cinema...

- Então por que se desentendem?

- Porque os homens privilegiam as notícias, o desporto, a música...

- Mas as mulheres também falam disso...

- Só que preferem conversdar da família, saúde, roupa, peso, comida, sexo...

- E os homens não?

- Tanto o homem como a mulher encaram o tema predilecto do outro como uma futilidade.

- Que fazer então?

- Centrar o diálogo nas áreas comuns.

- E abandonar o resto?

- Não. Acolher a diferença: cada um ouvirá então o outro no que lhe é favorito.

- Mas se não o partilha...

- Ambos se sentirão mutuamente acompanhados. Começarão a ser um só.

 

            1682

 

            Ideal

 

- Mestre, não encontro a mulher ideal.

- Encontras, sim, mas não a vês.

- Como a descobrirei?

- Tornando-te o homem ideal.

- Por quê?

- Porque ela procura o homem ideal.

- E não me descobre?

- Como tu a não descobres a ela.

- E andamos lado a lado?

- Permanentemente.

- Então não há saída.

- Há.

- Como? Nenhum de nós é ideal...

- Pondo-vos a caminho pela mediação dum ao outro.

- Mas ignoro quem ela é...

- Descobri-la-ás quando te abrires à mediação.

- Ora! Qualquer uma o pode fazer, nenhuma é ideal...

- Pois não. Ideal é a que poderá vir a sê-lo por tua mediação.

- Não o é à partida?

- Também é.

- Como assim?

- Tem nela a possibilidade de vir a sê-lo. Por isso já o é.

- Mas como é que vou dar conta disso?

- Olha-a com o coração. Depois segue-o.

 

            1683

 

          Mulher

 

- Mestre, qual é a mulher de minha vida?

- A que mais te desafia.

- E qual me desafia mais?

- A mais segura de si.

- Não me ameaça?

- Até pode humilhar-te.

- Então?!

- Fascina-te: será irresistível.

 

            1684

 

      Discussão

 

- Mestre, hoje sinto-me bem: ganhei uma discussão à minha mulher.

- Então vai pedir-lhe perdão.

- Não compreendeste. Fui eu que ganhei. Ela é que não tinha razão.

- É por isso mesmo que tens de pedir-lhe perdão.

- Essa agora! Por quê?!

- Porque te alegra a humilhação dela.

- Mas se ela não tinha razão...

- Devia alegrar-te a descoberta da vertdade, jamais a tua vitória sobre ela.

- Ela é que devia desculpar-se por discutir sem fundamento.

- Não. Ela deve apenas agradecer-te a razão a que lhe deste acesso. Tu tens de pedir-lhe perdão porque a não amas.

- Não amo?!

- Não. Não te alegra o crescimento dela, antes a escravidão a que a submetes. Só julgas crescer com sua diminuição.

- Mas eu gosto dela!

- Gostas? Adoras exaltar-te reduzindo-a a capacho de teus pés.

- Não é bem assim...

- Não será quando lhe fores pedir perdão.

- É humilhante.

- Não. É a humildade que te falta. Tu não amas. Apenas cultivas a soberba.

- Mas tenho uma família...

- Tens um campo em que cultivas teu orgulho, matando o amor: matas tua mulher a fogo lento, vens-te marando a ti em cada dia que passa. Não tens uma família, é um campo de concentração.

- Não exageremos...

- Não exagero. Nutres-te do fracasso dela, alimentas-te de seu cadáver.

- Mas geramos novas vidas...

- Geras novas mortes disfarçadas de vida. De ti só provirão cadáveres adiados. Vives num sepulcro, teu riso é já o de tua caveira.

 

            1685

 

        Sucesso

 

- Mestre, é verdade que por trás de cada homem de sucesso há uma mulher?

- É.

- E deve-se-lhe o sucesso, tanto quanto ao empenhamento do homem?

- Nunca.

- Então?!

- Por trás do sucesso, a mulher pergunta: “por que chegas cada dia mais tarde?”

- Quer dizer que o sucesso...

- ...Hoje leva ao insucesso.

- Ora! É vencer na vida.

- Jogando a civilização inteira na sepultura.

- Que fazer?

- Lutar pelo sucesso no amor, na família, nos amigos, na vivência comunitária.

- E no emprego, na carreira, no negócio, na indústria, na empresa, na investigação...?

- Enquanto for compatível com aquilo.

- Não é sempre?

- Quase nunca.

- Nunca?! O dinheiro não dá felicidadem mas ajuda. Só não dá a quem o não tem.

- Quem não tem não é feliz. Se perder todo o ter deixou de ser.

- Então?!

- Ter só ajuda se for para ser. E somos o que formos no amor.

- E daí?

- O problema é aquela ajuda deixar de ter a que ajude. Fica o ter sem ser nenhum.

- Acontece?

- Mundialmente. Com cada um, com todos. É a civilização a afundar-se.

- Mesmo tão rica e poderosa?

- Não é por não ter, é por não ser.

 

            1686

 

          Música

 

- Mestre, meu pai nunca aprendeu a tocar uma música para nós.

- E tu?

- Toco para corresponder ao sonho frustrado dele.

- Então não é frustrado.

- Não?!

- Ao tocares, tua música não é tua.

- É, sim.

- Não, é a de teu pai.

 

            1687

 

            Ódio

 

- Mestre, o amor aprisiona-nos às vezes?

- Numa gaiola cheia de sol.

- Como?

- Libertamos raios de nós à velocidade da luz.

- Nesse caso, o ódio...

- ...É escuridão que nos asfixia por todos os lados. Veda-nos o horizonte.

 

            1688

 

         Ter-me

 

- Mestre, por que não me tenho a mim?

- Porque só te tens a ti.

- Como assim?

- Só te terás quando tiveres algo maior do que tu.

- Mas se nem sequer a mim me tenho...

- É que te não abres para além.

- Continuarei a não me ter...

- Ao invés, se no poema te abres ao infinito, se na pintura lhe vislumbras o rosto, aí, finalmente, ter-te-ás.

- Pois. Na frustração, no vazio...

- Na plenitude prometida que, passo a passo, irá tomando posse de ti.

- Não serei outra vez eu.

- Devirás plenitude tanto quanto aprendas a abandonar-te.

- Passivo?

- Empenhado até ao derradeiro fundo de ti próprio.Aí principia o Infinito.

 

            1689

 

           Férias

 

- Mestre, não gozas férias?

- Gozo sempre.

- Como, se nunca daqui sais?

- Metendo-me em aventuras.

- Mas estás sempre parado!

- Vivo peripécias empolgantes por dentro de mim mesmo.

 

            1690

 

      Montanha

 

- Mestre, nada me apetece...

- Sobe à montanha.

- Para quê?

- Para encontrares horizontes.

- Para quê?

- Apetecer-te-ão.

- Ainda ficarei mais frustrado.

- Ficarás realizado.

- Sem nada?

- Com tudo.

- Como?

- Tudo principia quando te abrires à imensidão.

- E como acaba?

- Com a sabedoria.

- É pouco demais.

- É tudo, no tempo intermédio que é o teu.

- Mas desespera.

- Só se fechares a tua porta à possibilidade da infinitude.

- Mas como comprová-la?

- E como provar o contrário?

- Não há certeza nenhuma!

- Há: tudo fica em aberto, indefinidamente. Se o fechas, é à tua responsabilidade.

- Jamais lá chegarei.

- Como podes afirmá-lo, se, antes de nasaceres, nem de ti podias suspeitar e agora te afirmas assim? Que sabes tu do mistério que nos rodeia?

- Oh, mestre...

- Sábio é não entravar o curso do rio, é seguir o murmúrio do vento. Aí teu coração vai começar a escutar.

- O quê?

- A imensa paciência da esperança.

 

            1691

 

            Mar

 

- Mestre, qual o sentido da vida?

- O do mar.

- Do mar?!

- Que nos atrai e apavora.

- Como assim?

- Pára diante dele. Que sentes?

- O fascínio.

- Que te paralisa. Simultaneamente ele te chama e te ameaça.

- Por quê?

- Porque ali estão infindas possibilidades em gérmen: é a tua matriz primordial.

- Isso é bom, deveria entusiasmar-me.

- Mas, se lá mergulhas, afogas-te nas tuas próprias sementes e nenhuma germina. É a morte.

- Não poderei desenvolvê-las?

- Podes, mas isso implica escolhas. Optas por umas e ignoras outras: abandonas a matriz original.

- E se me enganar?

- Essa é a tragédia da vida. Podes não poder retomar o fio no ponto de partida e então tudo estará perdido.

- Não há alternativa?

- Jamais. Nunca terás duas vidas para viver.

- Mas isso é terrível! Como é que alguém se atreve a dar um passo?

- Se o não der, morre também. Em gérmen. É o fim.

- É um desespero!

- Não, apenas angústia. Só desesperas quando não rompes o cerco do fascínio.

- Como fazê-lo?

- Pelo sonho possível.

- Mas é só imaginário.

- Por esse imaginário nos lançámos ao mar e descobrimos o mundo.

 

            1692

 

Pequenos Homens

 

- Grandes homens, mestre, criaram os grandes impérios!

- Foram demasiado pequenos para os terem criado.

- Pequenos?!

- Só foram grandes na ambição desmedida.

- Mas ficaram na História!

- Recordados apenas por quem é tão pequeno quanto eles.

- Dominaram tribos e reinos, tiveram génio!

- O génio do mal. O do bem não domina. Liberta e promove.

- Foram geniais, mesmo se perversos...

- Não. Foram genialmente estúpidos!

- Como assim?!

- Não houve vantagem. Nem para eles, nem para ninguém.

- Mas ganharam riqueza e poderio incomensuráveis...

- Ora! Mesmo que o grande imperador tenha cinquenta mil pares de sapatos, só poderá calçar uns de cada vez!

 

1693

 

          Altitude

 

- Mestre, por que é que os melhores sofrem tanto?

- Pela altitude.

- Como?

- Quanto mais trepamos a encosta, mais feros sopram os ventos.

 

            1694

 

            Fama

 

- Mestre, a fama presta?

- Para conseguires um lugar num restaurante apinhado, se calhar.

- Mas sabe bem...

- Não a quem busca o reconhecimento pela autenticidade.

- E a fama não é isso?

- É o contrário: a vulgarização plebeia que esvazia tudo. Impede a descoberta do autêntico de cada um pelos demais, entrava o desenvolvimento dele por dentro de cada um.

- Nesse caso os eminentes ficarão sempre ignorados. É injusto!

- Serem reconhecidos é a justiça que buscam, não o serem famosos.

- Mas a fama não pode ajudar?

- A fama ajuda-te a afastar essa mosca que te está importunando?

- Claro que não!

- Se nem para tal serve, serve então de bem pouco. E agora repara, ainda por cima, quanto a fama lançará sobre ti nuvens e nuvens de mais moscas.

 

1695

 

     Reconhecer

 

- Mestre, por que é que as pessoas são medíocres? Por desprezarem quem é de qualidade?

- Não.

- Mas se admirassem o melhor tentariam assemelhar-se-lhe.

- E tentam.

- Então por que não fugimos à mediania?

- A chama interior não é igual em todos e menos ainda o fôlego para atear a fogueira.

- Isso não é resignar-nos à mediocridade?

- É.

- Então?!

- Mesmo resignados, continua a fascinar-nos o melhor, o maior ou o mais pequeno. Nunca o médio.

- Como?

- É o que nos emociona ao vermos cair um novo recorde mundial. É o que tornou o livro dos recordes ele próprio um recorde mundial de vendas.

- Então somos masoquistas. Nunca lá chegamos...

- Não. Adoramos entrever o infinito.

 

            1696

 

         Poderio

 

- Mestre, como é que o poderio é uma tão grande fragilidade?

- Quanto maior o poder, mais frágil é.

- Então não é poder.

- É. O da fragilidade.

- Mesmo se mata milhões?

- Se mata é porque é frágil. Senão, não precisaria.

- Mas uma hecatombe, um genocídio...

- Quanto mais inseguro, mais destrutivo.

- Por quê?

- Para ir adiando a queda do débil pedestal.

- Que jamais se mantém?

- Jamais.

- Mas a religião, a Igreja manter-se-ão indefinidamente.

- Todos os fanáticos o gritam, a ver se o tornam real. E sempre o reino dos mil anos falhará.

- Mas Deus e a fé...

- Nunca reivindicam poder, por isso se mantêm para a eternidade.

- Só que os deuses também caíram...

- Quando tomaram forma, organização e poder: aí condenaram-se à morte.

- Não há maneira de ter poder?

- Há. A da fragilidade.

- Mas é a ausência de poder!

- Ao contrário. É a presença da força.

- Como?

- Como esperança duma fé.

- É vago.

- É a vaguidade que dá força.

- A demagogia, o populismo?...

- Isso são as corrupções que perdem a força: querem organizá-la.

- Mas sem organização...

- Temos a força de quanto é frágil: a do sonho e a da crença.

- Que tomam forma sempre.

- Que incarnam em mil formas e não têm forma nenhuma.

- Todas são deles.

- Não se esgotam em nehuma e apossam-se de todas sem se lhes submeterem.

- Como é tal força?

- A única que subsiste, a única que existe.

- A única?

- Toda a força é a daquilo que, desde sempre e para sempre, está para vir.

- E nunca aqui está?

- Sempre aqui está em promessa.

- Só?

- Só. Porque toda a promessa é uma semente. Tudo está a germinar.

- Mas isso não é nada.

- É tudo: é um nascimento eterno. Por isso é frágil, por isso é a Força.

- Mas jamais se consuma.

- Consuma-se em gérmen todos os dias. Sempre aqui presente, é nossa medida da eternidade.

 

            1697

 

     Importância

 

- Existirá um único homem que tenha importância?

- Todos.

- Os grandes homens como os anónimos?

- São iguais.

- Mas uns são recordados e os outros...

- Todos serão finalmente esquecidos.

- Lembramos ainda os sábios de há milénios...

- E de há centenas de milénios? Nenhum!

- Houve-os?

- Como sempre. E, como sempre, a apagar-se lentamente na escuridão do passado.

- Mas os grandes mudaram o mundo...

- O maior imperador morrerá sem ter mudado a face da Terra. E será esquecido apenas um pouco mais tarde que os ignorados.

- Tudo permanecerá imutável?

- É preciso um prodígio para mudar um nada. Mas muda.

- Vale a pena?

- É o pequeno rasto que fica.

- Mas se tudo esquece...

- O rasto, mesmo ignorado, fará parte dos vindoiros. Será o que eles forem, mesmo sem o saberem.

- Mas então quem fomos...

- Já ninguém lembrará. Mas todos trarão, sem o notarem, a nossa marca na carne.

- Amar-nos-ão?

- Seremos o coração deles.

 

            1698

 

       Primavera

 

- Mestre, a história humana é um permanente marcar passo.

- Não pretendas que a Primavera seja o Outono.

- Mas nunca mais muda, é sempre igual...

- Enganas-te. É apenas a época das flores.

- Flores?! Bem tristes são!

- São as que somos.

- Precisamos de ver resultados. Senão, como manter a fé?

- Aguardando. Uma árvore não pode dar flor e fruto em simultâneo.

- É um desespero.

- A história humana é a gestação duma infinita paciência.

 

1699

 

           Apoio

 

- A vida não vale nada, mestre.

- Contudo vive-la.

- É tão frágil que não merece a pena.

- Ela vale quanto valeres.

- Eu não valho nada.

- Vales tudo. Que só tu é que vales.

- Mas é tão pouco!

- É muito.

- Porque é tudo?

- Porque daí poderás chegar a tudo.

- Mestre, como consegues ver branco em quanto é negro?

- És tu que o estás vendo.

- Só porque me falas assim.

- Não. O louvor encoraja. Vai polindo o que o quotidiano enferruja.

- Que sabedoria deténs!

- Sabedoria? Toda a flor deixa perfume na mão que a oferta!

 

1700

 

        Efémero

 

- Mestre, tudo é efémero.

- Para sê-lo, permaneceu ao menos um instante.

- Mas morre...

- Porque viveu!

- É louco desejar que algo perdure?

- É, já que nada é permanente.

- Mas então...

- Mais louco é não o saborear enquanto dura.

- Minha rosa murchou...

- Joga-a fora. Sem tristeza.

- Mas é triste!

- Triste é teres perdido a fugidia madrugada em que a beleza dela foi real.

 

1701

 

            Luz

 

- Mestre, parece que, quanto mais sabemos, mais o mundo fica escuro.

- Não é pelo saber, é do sabor.

- Como?

- Todos somos, cada vez mais, gente sem sentido.

- Mesmo com o saber crescendo dia a dia?

- É que perdemos o sabor da vida.

- E daí?

- Só quando aí nos descobrirmos saberemos a luz que por nós se revela.

 

            1702

 

             Sol

 

- Mestre, o Sol vai perdendo energia, arrefecendo de ano em ano.

- É um desafio à humanidade.

- Estamos nos derradeiros dias do mundo?

- E nos nossos primeiros.

- Ora! Está tudo a esboroar-se e a História esbarronda-se.

- Muitas vezes teremos de treinar...

- Treinar?!

- ...Até descobrirmos a continuidade para além.

- Mas toda a civilização entrou em colapso. E o do planeta não anda longe.

- É como algum dia aprenderemos a lição.

- Se tudo for aniquilado...

- Renasceremos das cinzas!

- Até que o Sol se extinga?

- Aí já teremos descoberto substituto.

- E até lá?

- Morreremos tantas vezes quantas as necessárias para aprendermos a nascer Sol dentro de nós.

 

1703

 

           Medo

 

- Mestre, é terrível o futuro da Humanidade.

- Jamais.

- Mas está o mundo inteiro a desmoronar-se!

- O fim duma civilização não é o fim da Humanidade.

- Nunca o cataclismo foi tão vasto nem tínhamos poder para o apocalipse.

- Sempre o Homem esteve em crise, sempre ela foi universal. Apenas nossa força e a consciência do risco mudaram em paralelo.

- Não tens medo?

- Não.

- Por quê?

- Porque podemos agir.

- E daí?

- Depende de nós o porvir que criarmos.

- E se nos aniquilarmos?

- Desde que reste um de nós, tudo continuará.

- Então não há motivo para temer?

- Há.

- Como?

- Se algumas vez ficarmos condenados à destruição – de mãos tolhidas.

- Mas, se perdermos sem sermos tolhidos, é o mesmo.

- Não é, porque antes pudemos agir. E após o colapso, igualmente.

- Ficaremos aniquilados, de qualquer modo.

- Restará ainda a esperança.

- Caso contrário é o desespero?

- Será o verdadeiro terror. O único.

- Por quê?

- Porque aí parou de vez o caminho. Jamais haverá qualquer horizonte.

 

            1704

 

      Matemática

 

- Mestre, a matemática é tudo?

- Não, tudo é matemática, embora a matemática não seja tudo.

- Como é possível?

- A relação é matemática, mas não o que se relaciona.

- Tudo, então, é relação?

- Não, tudo é amor. Por isso é que só pode ser relacionando-se.

- Na ordem humana?

- Na ordem universal, desde a partícula subatómica que só persiste fundindo-se, até ao Cosmos, com o bailado das miríades de Galáxias.

- E a matemática lê tudo?

- Não, em tudo lemos matemática.

- Também na liberdade humana?

- Também, em tudo quanto ela exprime.

- E em quanto ela é?

- Enquanto é, ela cria a matemática.

- Mas se esta lhe prè-existe...

- A liberdade recria a mundo e, nisto, recria-lhe a matemática.

- Recria só? Então a criatividade é uma ilusão.

- É-o quase por inteiro. Toda a liberdade é condicionada. Porém, entre os limites da condição, abre-se uma estreita nesga: daí reinvento o mundo.

- Matematicamente?

- Sempre. Mas no amor, o princípio do inédito.

- Inédito como, se a matemática é previsível?

- Porque ainda a não descobrimos toda.

- E quando tal acontecer?

- Teremos a previsão absoluta duma absoluta imprevisibilidade!

 

1705

 

      Liberdade

 

- Mestre, a liberdade é uma ilusão?

- Não, é uma libertação.

- Mas, se tudo está matematicamente determinado...

- Tudo, menos a tua escolha entre os determinismos matemáticos.

- Todos predeterminados, portanto.

- Isso é que te liberta.

- Como?

- Se fosse o caos, estarias perdido, não valeria a pena escolher.

- Mas há grande escolha?

- Imensa. Entre os imensos matematismos que entretecem o mundo.

- Mas se nos são todos impostos...

- Ainda aí podes escolher.

- O quê?

- Entre a matemática que te é imposta e a recusa de toda ela.

- Mas, se a recusar nessas condições, aniquilo-me.

- Tornas-te herói ou mártir.

- E acabou tudo. Não valeu de nada.

- Não. Começou tudo: inauguraste aí o mundo novo.

 

1706

 

     Prisioneiros

 

- Mestre, somos livres?

- Somos prisioneiros da vida, desde a concepção à morte.

- A liberdade seria não existirmos?

- Ao invés. Só poderemos libertar-nos porque existimos.

- Mas, se estamos encarcerados na vida...

- É que a chave anda algures deste lado da porta.

 

            1707

 

         Libertar

 

- Mestre, pode alguém libertar-se sozinho?

- Jamais.

- Pode alguém libertar alguém?

- Jamais.

- Não há liberdade?

- Há o caminho para ela.

- Como?

- Pela mediação de outrem.

- E por aí atingimo-la?

- Jamais.

- Então?...

- Liberdade, só no infinito. Apenas podemos pôr-nos a caminho. E o caminho é indefinido: sempre mais próximo e definitivamente longe.

- Ninguém nos pode valer?

- Em parte.

- Pela mediação?

- Pela comparticipação.

- Como, se ninguém me pode libertar?

- Podes tu viver a libertação doutrem.

- Mas se eu não sou ninguém mais...

- Se nalguém viver teu sonho, se ele o soltar pelos espaços, é já um pouco de ti que nele ruma ao infinito.

- Mas eu pessoalmente...

- ...Principiaste nele a libertar-te!

 

1708

 

            Além

 

- Mestre, há uma Terra Prometida?

- Fica sempre além.

- E a nova liberdade?

- Também.

- É uma promessa fingida?

- Até que alguém

Atinja a idade

Em que será cumprida.

- No outro mundo?

- Neste.

- Não a remeteste

Para o Além?

- O além é o que neste quiseste,

No fundo,

Que fosse outro, como te convém.

- Um mundo outro a meu gosto?

- Tanto quanto nele for posto

O gosto de todo o sujeito

E o do Universo inteiro.

- Quando sei que tal é feito?

- Quando tomares o mundo a peito.

- Ficaria esmagado!

- Não. Do Universo pelo peso leveiro

Serias finalmente libertado!

 

            1709

 

       Observar

 

- Mestre, para saber basta observar?

- Para observar é preciso saber.

- Mas antes de captar alguma coisa nada sei.

- Sabes muito mais do que julgas.

- Como?

- Sabes captá-la, sabes querer captá-la, sabes por que o queres, sabes até onde o queres e tens mil outros saberes anteriores àquilo que ignoras.

- Mas nada sei da coisa ignorada.

- Nem saberás observando-a apenas.

- Então...?

- Tens de juntar-lhe o raciocínio.

- Aí descubro-a?

- Não. Descobres o imenso abismo da tua ignorância dela.

- Mas sei dela um pouco...

- Nunca dela saberás nada. É de ti nela e dela em ti que elaboras conhecimentos.

- Mas são acerca dela!

- Não. De ti relativamente a ela. E só.

- A ciência não é objectiva?

- Não. Procura uma objectividade que indefinidamente lhe escapa.

- Como assim?

- Quanto mais avança, mais fundo descobre o abismo de cada ser, por onde ele lhe foge.

- E não o capta?

- Jamais. Vai captando apenas o tamanho da noite de que se rodeia.

 

            1710

 

     Percepção

 

-  Mestre, a percepção dá-me as coisas?

- Não, dá-te a ti.

- Elucida-me?

- Acerca das trevas que te rodeiam.

- Mas descubro as coisas.

- Não. Modificas o teu íntimo representando-as em ti.

- Mas são sempre elas.

- Não. São as formas que lhes atribuis.

- Não são delas?

- Nunca. São sempre só as tuas, de que tua consciência é capaz.

- Mas se as capto nas coisas...

- Se teus olhos me vissem ao raio x, atribuir-me-ias uma forma inteiramente diversa.

- Não serias tu?

- Jamais. Dirias minha a forma que afinal é sempre tua. Eu apenas te permito a aparição e aplicação dela.

- Jamais conheço os seres?

- Jamais.

- Mas alcanço-me a mim?

- Jamais.

- Contudo, tudo isso é meu...

- Mas nunca és tu.

- Então de mim...

- Sabes que és. O mais é mistério.

 

1711

 

           Valor

 

- Mestre, vi a Guernica de Picasso. Vale uma fortuna.

- Não vale, não.

- Mas é uma obra-prima!

- Não é, não.

- Mestre, Picasso é um génio.

- Enganas-te.

- Não posso crer.

- Podes, sim.

- Como?

- O valor da Guernica está no teu olhar.

- Mas uma obra-prima é uma obra-prima!

- Jamais. É apenas o que tu nela vês.

- Ora! Picasso é quem é. Não depende dos olhos de quem o vir.

- Não?! Então vai perguntá-lo àquela vaca que pasta diante de nós. Ela verá melhor que eu.

- Mas...

- É a mestra da tua teimosia: descobre nela o tal valor da obra-prima do génio.

 

1712

 

        Recusar

 

- Mestre, temos liberdade de recusar a verdade?

- Jamais.

- Mas todos os dias ela é repudiada...

- Não. Nunca alguém repudiou a verdade.

- Como é possível?!

- Ninguém teve nem tem nem terá jamais a verdade.

- Então que temos?

- Conhecimentos.

- Mas alguns são verdadeiros, demonstrados na matemática, provados na ciència...

- São apenas mais verosímeis, jamais a verdade.

- Não deveriam ser postos de lado.

- Por que não? São falsos como quaisquer outros.

- Mas mais seguros.

- Não, o mais seguro é ser-se livre perante eles.

- Mas são a verdade maior que nos é possível...

- A liberdade maior ao nosso alcance é que poderemos sempre libertar-nos da tirania deles.

- Para cairmos na ignorância?

- Para mantermos indefinidamente a porta aberta para além.

- Sem jamais acabar?

- Até que o salto para o que somos se dê e rasguemos as portas da infinidade.

- Aí deixaremos provavelmente de ser livres...

- Aí seremos a verdade.

- Prescindimos do resto?

- Não poderemos aí ser livres porque seremos a liberdade: tudo em nós solto em plenitude, projectado no infinito.

 

1713

 

          Razão

 

- Mestre, temos razão?

- Temos. Para saber que nunca temos razão.

- Então que adianta?

- Conhecer a verdade.

- A verdade de que jamais conhecemos?

- A verdade que a razão permite conhecer.

- Mas como, se jamais conhece?

- Utilizando-a correctamente.

- Mas se ela falha sempre...

- Correcta, é infalível.

- Então a correcção...

- ...É um ideal inatingível.

- Ficamos condenados ao fracasso.

- Não. Porque é indefinidamente aproximável.

- Sem jamais se consumar?

- Em nossa actual condição.

- Não temos outra...

- Mas poderemos vir a ter.

- Quando?

- Quando mudarmos de ser.

- E daí?

- Daremos o salto para o absoluto: seremos a infinidade.

 

1714

 

          Falível

 

- Mestre, tudo é falível.

- Não.

- Que é que não é?

- O que acabas de afirmar.

- Mas então tudo falha.

- Menos a tua certeza disso.

- Pois, mas se os mestres falham...

- Falham!

- ...Se os livros também falham...

- Falham!

- ...Como irei aprender?

- Com aquela certeza que te resta.

- Deixa-me vazio!

- Mas obriga-te a pensar por ti próprio.

 

1715

 

           Altura

 

- Mestre, os políticos ganham votos pelos seus programas?

- Quase nunca.

- Pelo que fazem?

- Por vezes.

- Então como é?

- Pela altura.

- Das ideias?

- Não. Da estatura.

- Da estatura?!

- Os altos tendem sempre a ganhar aos baixos.

- Não posso crer! Então e os correligionários?

- Vêem sempre o chefe mais alto e os adversários mais baixos do que na realidade são.

- É estúpido!

- Mas verdadeiro.

- A vida não é assim!

- Enganas-te. Os altos conquistam melhores empregos, ganham mais dinheiro.

- O meu porteiro é alto e nunca saiu do atoleiro.

- Mas é gordo, não é verdade?

- Uma barrica!

- Os gordos, à vista, ficam atarracados. Perderam a altura toda.

- Mas isso não pode ser uma norma.

- É uma tendência.

- Universal?

- Até a  mulher, para tornar credível a luta pela igualdade, teve de calçar saltos altos.

- Somos tão irracionais?

- Não. Somos tão racionais que temos de ir reconhecendo as fronteiras de nossa racionalidade.

 

1716

 

        Enganar

 

- Um mestre pode enganar?

- Pode.

- Involuntariamennte?

- Também voluntariamente.

- Como assim?

- Não pretendes vir a ser mestre?

- Quem me dera!

- Só o atingirás ao descobrires meu engano.

- Por quê?

- Aí principiaste a crescer por dentro de ti.

- Mas cresço igualmente contigo.

- Não. Se o afirmas, não pretendes devir mestre. E eu não devo alimentar em ti tal ilusão.

- Não! Não! O mestre está enganado!

- Ora aí tens! Foste capaz de denunciar meu engano. Só por aí poderás vir a ser mestre algum dia.

 

            1717

 

         Grande

 

- Mestre, devo tentar ser um grande homem?

- Deves.

- Serei feliz então?

- Serás infeliz.

- Mesmo que me torne o maior?

- Serás o mais desgraçado.

- Mas então...

- O grande homem é sempre mártir e o maior é quem mais sofre.

- Nesse caso, não vale a pena.

- Vale.

- Como?

- Só estraçalhando-te emergirás em tamanho autêntico. Só nesta tragédia encontrarás plenitude à tua medida.

 

            1718

 

      Isolamento

 

- Mestre, é uma maravilha ser o maior!

- Para ti, é.

- Não é para quem for tamanho?

- Nunca.

- Porque ninguém chega a compreendê-lo?

- Não. Pelo isolamento.

- Mas todos o admiram!

- Todos o invejam ou adulam: isolam-no, portanto.

- Mas ele sabe que atingiu o cume. Não é bom?

- É bom ter atingido o cume; é o inferno viver aí.

- Como?!

- Quem é grande só encontra alegria enquanto puder olhar para quem é maior que ele.

- Mas é gostoso verificar que ficaram todos para trás!

- É o sentir de quem é medíocre.

- Então...

- O maior sofrimento de quem subiu às estrelas é olhar à volta e ver a Terra tão lá em baixo. É tanta a fome de um igual para poder olhar em frente, ver para cima!

- Bastaria olhar para ele próprio...

- Não. Só o infinito o satisfaria. E o infinito continua-lhe indefinidamente fora de alcance.

 

            1719

 

           Subir

 

- Mestre, quando alguém nos quer, elevamo-nos a nossos próprios olhos.

- Quando somos medíocres.

- Essa agora! Então quem é grande...

- Grande mesmo é quem sente que quem o estima nisto se eleva.

 

            1720

 

           Ideias

 

- Mestre, é o homem que tem as ideias?

- Tanto quanto as ideias têm o homem.

- Por ser por elas conduzido?

- Por ser por elas ultrapassado.

- Não as consegue abarcar?

- Abarca mas não domina.

- Por não as esgotar?

- Não. Por esgotá-las e elas nunca se esgotarem.

- Mas fora do homem...

- Fora do homem que as manifestou as ideias caminham por seu pé, com força e determinação próprias.

- Força e determinação que o autor lhes deu.

- Não. As que o autor lhe emprestou são uma história. Outra é a da realidade delas.

- Não são a mesma?

- Jamais.

- Como?

- A intenção consciente do autor vai num sentido.

- A ideia não o segue?

- A ideia tem seu próprio itinerário. Ora converge, ora diverge do autor que a gerou.

- Mestre, sem uma pessoa que a pense, uma ideia não é nada.

- A ideia talha sua própria história através das consciências que se lhe permeabilizam.

- E o autor?

- É impotente para controlá-la a partir do momento em que lhe deu vida.

- A ideia não é fiel a quem a gerou?

- Nunca. Só é fiel a si própria e à sua própria lógica.

- Então a história duma ideia...

- São sempre duas histórias, quantas vezes antagónicas:a dos intuitos do autor dela e a da realidade em que aquela toma corpo e sentido.

 

1721

 

           Papel

 

- Mestre, como saber o que deveras penso?

- Passando as ideias ao papel.

- Mas então não penso dentro de mim...

- Pensas.

- Mas o papel...

- O papel, mais do que a fala, é o teu espelho. Só captas teu rosto vendo-o diante de ti.

- O pensamento é íntimo...

- É.

- Então?

- O rosto dele revela-se maximamente na escrita. É o lado de fora dele.

- Sem o lado de fora não existe?

- Jamais.

- Nesse caso, a escrita é o corpo do raciocínio?

- É o próprio raciocínio. Ao tomar corpo.

 

            1722

 

           Jogo

 

- Mestre, como aprender a pensar?

- Como um jogo.

- Jogo?!

- Com persistência.

- Treinando e repetindo?

- Treinando para não repetir.

- Como?

- Quando tudo esquece, então o treino automatiza-te.

- Mas pensar automatizado...

- Não te robotiza...

- Não?!

- Liberta-te o pensamento para a criatividade.

 

            1723

 

       Aprender

 

- Mestre, como aprender?

- Primeiro, compreendendo as fórmulas,

- E depois?

- Fugindo delas.

- Então para que serviram?

- Para experimentares deveras a realidade.

- Mas se as tenho de abandonar...

- É que então descobrirás uma fórmula tua. Será tua forma nova de vida.

 

            1724

 

     Professores

 

- Mestre, como aprendeste o silêncio?

- Com os tagarelas.

- E a tolerância?

- Com os fanáticos.

- E a ser atencioso?

- Com os indelicados.

- Mas como pudeste ter tais mestres?

- Pelo espanto.

- Espanto?! Admira-los?!

- Não. É o espanto da repugnância.

 

            1725

 

      Transitória

 

- Mestre, a verdade está fora de moda?

- A verdade do saber, jamais, já que jamais se atingiu. Buscamo-la eternamente.

- E há outra?

- A do ser. É perene.

- Porque o ser existe em si?

- Não. Isso é a realidade cuja verdade procuramos sem jamais a abarcarmos.

- Então que outra?

- A do ser que podemos ser.

- E que ainda não somos?

- Não. Quando o somos. Aqui e agora.

- Que verdade é essa?

- Que desde sempre e para sempre honestidade, respeito pelos outros, integridade e ideal nos desafiam. Prevalecerão para além de toda a morte.

 

            1726

 

         Criança

 

- Mestre, a receita para uma adultez feliz é uma infância feliz?

- Jamais.

- Então uma criança desgraçada dará um adulto realizado?

- Jamais.

- Qual a alternativa?

- A criança que sofre, que fica por vezes frustrada, mas aprende connosco a ir superando tudo.

- Isso dói muito.

- Mas é muito gratificante.

- No futuro.

- Não. Desde o presente: apenas assim a criança é desde logo feliz a sério.

- Então uma infância que tem tudo...

- ...É a via directa para uma adultez falhada.

 

            1727

 

   Consumismo

 

- Mestre, fiz tudo por meu filho e ele é intratável.

- Deste-lhe demais em vez de o amar.

- Mas foi por amor...

- O consumismo não dá felicidade. É uma ilusão.

- Enganei-me?

- Amaste mal.

- Por quê? Devo deixar de dar?

- Pára a avalanche de dádivas. Para poderes dar-te quando deres.

- Como?

- Teu filho deve receber para ser criativo, não para ficar asfixiado.

- E onde vou ver isso?

- Ele não pode sentir que a felicidade é uma torrente de coisas.

- Então de quê?

- Da ternura que lhe dás nelas...

- Só?

- ...E da com que te corresponde saboreando-as imaginosamente.

 

            1728

 

         Opinião

 

- Mestre, é tão fácil viver segundo a opinião alheia!

- Enganas-te. É muito difícil.

- Difícil?! Mas toda a gente vive assim...

- Pois. Mas fácil deveras é viver, na solidão, segundo a própria opinião.

- E viver com a multidão não é?

- Não.

- Por quê?

- Porque, para ir com els, é preciso trair-se. Dói sempre e jamais pára.

- Então por que todos cedem?

- Porque são pequenos.

- Como é que seriam grandes?

- Vivendo, em plena multidão, a autenticidade em solidão.

 

            1729

 

        Coração

 

- Mestre, por que tantos fracassam em instruir-se?

- Ninguém se instrui a sério sem se educar.

- Qual a diferença?

- Instruimo-nos pela cabeça, educamo-nos pelo coração.

- São dois caminhos separados?

- São um caminho e sua perversão.

- Perversão?

- Só instruir é soltar o génio do mal.

- Mas acontece?

- Quando o fito de quem se instrui é vir a atear o inferno.

- Como impedi-lo?

- Quem não quer soltar o diabo não instrui.

- Mas então...

- Chega à cabeça do educando através do coração.Aí cada qual se encontra a si próprio e em si encontra todos.

- Mas o génio do mal...

- ...Jamais vergará o saber do amor!

 

            1730

 

       Essência

 

- Mestre, qual a essência da educação?

- Desencadear o mundo novo.

- Mas isso é uma utopia!

- Evidentemente.

- Então não se pode realizar.

- Ao contrário. É a única coisa que deveras realizamos.

- Como assim?

- Não é verdade que ultimas a educação quando o educando usa a informação aplicando-a a novas questões e situações?

- Isso, sim.

- E nisso só vês isso?

- Claro.

- És cego!

- Que mais há?

- Um mundo outro que principia.

- Por quê complicar tanto?

- Porque simplificas demais e assim nos matas.

- Mato?!

- Evidentemente.

- Essa agora!

- Se eu não vir o porvir que principia nos meus passos, para quê dá-los?

- Para resolver as novas questões e situações.

- E acabar exactamente aí.

- E daí?

- Se tudo acabar aí, tudo acaba. Nada valeu, de facto, a pena. Já estamos mortos e ainda não o descobrimos.

- Então...

- Só vale a sério aquilo em que começa um mundo novo.

- Não é querer demais?

- Jamais. Ou a plenitude se abre diante ou a passada não tem a nossa medida. Urge reconhecê-lo em cada palmo que avançamos ou nunca entrevemos o horizonte a alcançar.

- Ele não é daqui visível.

- É, sim . Os cegos é que no-lo anulam. Impedem-no de acontecer.

- Como?

- Aprisionando-nos no imediato. Escravos aqui, jamais nos abalançarenmos ao além. E assim ele nos escapa indefinidamente longínquo.

- Não terá de ser sempre fatalmente assim?

- Claro.

- Então é o mesmo!

- Nunca! Porque se nos abre diante indefinidamente. A aproximação termina quando fechamos o horizonte.

- Então quando educamos para novas situações...

- Estamos a semear o infinito. A semear-nos no infinito.

 

            1731

 

     Progresso

 

- Mestre, que é o progresso?

- Subverter as ideias feitas.

- É subversivo?

- Principalmente quando é pacífico.

- É perigoso?

- Para os velhos de qualquer idade.

- Por quê?

- Porque ser homem é questionar por que tudo é como sempre foi.

- À maneira dos jovens?

- Ser homem é buscar a juventude eterna.

- Para jamais morrer?

- Não. Para vir a ser Vida em plenitude.

 

            1732

 

           Verde

 

- Mestre, o progresso vem matando a Terra.

- O progresso vai salvá-la.

- Mas o ambiente degrada-se, as espécies extinguem-se, as florestas ardem, o ar é irrespirável, há cada vez mais rios e mares mortos...

- É a Vida a declinar.

- Os verdes nem nos salvam a esperança nem a verdura.

- Salvam ambas.

- Mas como, se tudo se esboroa perante nós?

- Só lucrará quem for ecológico.

- Por ora só acumula prejuízos.

- Também lucra.

- Moralmente?

- E monetariamente. E competitivamente.

- Como assim?

- O consumidor prefere-o.

- O consumidor?!

- Hoje o verde vende. Amanhã só o verde venderá.

- Se houver verde ainda...

- Não. Se acreditarmos em corpo inteiro.

- Só com a fé!...

- Só, não. Com a fé que revolve a vida até aos fundamentos.

 

            1733

 

           Correr

 

- Mestre, todo o mundo anda a correr hoje em dia.

- Sempre correu.

- Mas hoje mudamos em dez anos quanto antes demorava um século a mudar.

- Arranjámos meio de ir mais depressa.

- Outrora ninguém tinha pressa nenhuma...

- Era a mesma, só que de passo travado.

- É tudo igual?

- É tudo diferente.

- Mas...

- Dantes sabíamos onde íamos, hoje fugimos de medo.

- Medo?!

- Dantes impelia-nos um sonho, doravante é o temor.

- Temor de quê?!...

- Dantes íamos a algum lado, hoje escapulimo-nos.

- De quem?!

- Ninguém o sabe.

- Ninguém?!

- Assim parece.

- E não é?

- Não.

- Então?

- Fugimo uns dos outros.

- Uns dos outros?!

- Ninguém olha ninguém olhos nos olhos.

- Ora! Todos nos sorrimos imenso, cheios de vénias...

- Pois é. Morreu aí toda a alegria. Só mendigamos doravante mútua piedade.

 

            1734

 

          Melhor

 

- Mestre, quando dou o melhor de mim?

- Quando amas tua imagem.

- Por quê?

- Porque acreditas em ti.

- Poderia tornar-me sobranceiro...

- Ao invés, libertas-te para poderes ser tu próprio.

- Então porque não me enclausuro em mim?

- Porque jamais chegarás ao fim de ti quando te puseste a caminho.

- E se me envergonhar de mim?

- Tenderás a esconder-te.

- Fechar-me-ei?

- Num covil de fera.

- Como assim?

- Hostil a todos. Conviverás agredindo.

- Mas sairei também então de mim.

- Não. Obrigarás todos a enclausurar-se, como tu, em seu interior esvaziado.

- Nesse caso, quando gosto de mim...

- Fazes um milagre: abres tuas portas à imensidão.

 

            1735

 

           Iguais

 

- Mestre, os homens são todos iguais?

- Embora os povos divirjam.

- Nos usos e costumes?

- Mais ainda no modo de se darem.

- De se darem?!

- Sim. Quando dois amigos ingleses conversam, quantas vezes se tocam numa hora?

- Ignoro.

- Provavelmente nenhuma. E se forem americanos?

- Sei lá!

- Talvez duas vezes. E se forem franceses?

- Muitas mais?

- Cento e dez vezes por hora. E tu?

- Nunca reparei.

- Nem quando teu amigo estiver aflito?

- Ia lá reparar, numa situação dessas!

- Uma vez só!...

- Uma ?! Então...

- Só que dura a hora inteira!

 

            1736

 

   Oportunidade

 

- Mestre, quando terei na vida minha oportunidade?

- Vem sempre ter contigo...

- Vem?!

- ...Quando não desistes de a procurar!

 

            1737

 

          Franco

 

- Mestre, não consigo enfrentar uma assembleia.

- Consegues, sim.

- Como?

- Sê franco.

- Ora! Digo-lhes que estou nervoso e não consigo?!

- Exactamente.

- Mas então não irei fazer nada.

- Já fizeste.

- Falta avançar para diante.

- Já avançaste.

- Só com aquilo?!

- É que já andaste muito mais.

- Quê?

- Aproximaste-os de ti, aproximaste-te deles.

- E daí?

- A franqueza quebrou as barreiras.

- Perco o medo?

- Temes os teus familiares?

- Não.

- Tu e os teus participantes já não serão estranhos. Eles devieram teus familiares.

- Engolir-me-ão vivo...

- Não, que te tornaste um familiar deles também. Doravante defendem-te.

- Por quê?

- Porque te querem.

 

1738

 

          Centro

 

- Mestre, que digo quando fico sem ideias?

- Torna teu ouvinte o centro da conversa.

- E se ele quiser o que tenho para comunicar-lhe?

- Ele quer acima de tudo que o acolhas em tua comunicação, de modo a ouvir-se pela tua voz.

- Sempre?

- Todos requeremos o reconhecimento de nós próprios. Sem isto não somos.

- Só aquilo basta?

- Não. Precisas de saber ouvir.

- Por quê?

- Todos queremos que nos prestem atenção. Aí valemos algo, pelo menos para alguém.

- Então...

- Um aceno de cabeça e farás milagres!

 

            1739

 

       Aceitar-se

 

- Mestre, há um segredo para sentir-se bem perante os outros?

- Aceita-te a ti próprio.

 

            1740

 

     Vencedores

 

- Mestre, os vencedores têm medo?

- Tanto quanto os perdedores.

- E não ficam inibidos?

- Pelo medo, não.

- Como o conseguem?

- Não pensando nele.

- Então os perdedores...

- ...Deixam-se aprisionar dos receios até entrarem em pânico.

- Qual é o segredo da vitória?

- Ignorar os medos.

- Mas o temor impõe-se contra vontade.

- Não, se te concentras no que tens de fazer.

- Quando penso nisso ainda fico mais aterrado.

- Porque o encaras em bloco.

- Há outro modo?

- Divide-o em pequenas tarefas e enfrenta cada uma. Executa-a.

- Para quê?

- Confirma como é fácil, como podes dominar. Os receios esvaziam-se como um balão oco.

- De certeza?

- É que todos os medos da vida são apenas isso.

 

            1741

 

        Começar

 

- Mestre, o meu problema é começar.

- É-o para todos.

- Dar o primeiro passo, escrever a primeira frase, iniciar uma comunicação...

- A humanidade vive no prefácio dela própria. Sempre.

- Como desemperrar-me?

- Avançando sem hesitar.

- É temível.

- Depois descobres que não.

- E se errar?

- Consegues, por fim, muito melhor do que imaginaste.

- Por quê?

- Inauguras a vida.

 

            1742

 

       Problema

 

- Mestre, como enfrentar um problema?

- Vendo-o como bom em vez de mau.

- Que adianta? Ele não muda...

- Mudas tu.

- Como?

- Afirmas-te, afirmas o que sentes, acreditas em ti próprio.

- E daí?

- Eliminas a ansiedade, começas a ser tu.

- Eu?!

- E principia um mundo outro. O problema desata a fugir diante de ti.

 

            1743

 

            Mais

 

- Mestre. Como conseguir que todos gostem de nós?

- De modo nenhum.

- Então?

- Sempre uns te amarão enquanto outros te detestam.

- É indiferente o que façamos?

- Não.

- Como assim?

- Quanto mais te acolheres como és, mais e mais se interessarão por ti.

 

            1744

 

        Ridícula

 

- Mestre, a Humanidade é um problema muito sério!

- Sério? Ela é ridícula!

- Ora!

- Vê-a tal qual é.

- Então?

- Um nada abaixo dos anjos...

- Isso é ridículo?!

- ...Um nada acima dos macacos!

 

1745

 

           Brasa

 

- Mestre, a humanidade é fria.

- Não. Só se morrer.

- Mas é tão odienta!

- Nem tanto. Apesar de tudo continua pensando.

- E daí?

- Quando um homem pensa, pensa no que sente.

- Então e se só sentir ódio?

- Quando um homem pensa, chispam-lhe brasas na mente.

- E depois?

- Em breve ateará um incêndio.

- De morte?

- E de vida.

- De vida?

- Nunca haverá uma sem a outra.

- Essa agora!

- Uma da outra se gerarão, irremediáveis, até à consumação dos tempos.

 

            1746

 

       Absorver

 

- Mestre, estás a desmantelar a carcaça dum automóvel?

- Não.

- Mestre, uma pessoa da tua categoria não devia misturar-se com a ralé deste bairro de lata!

- E misturo-me?

- Mestre, com tua responsabilidade não devias perder tempo a reparar esse computador.

- Será que perco?

- Devias empregar as horas livres nas bibliotecas, a absorver a cultura do mundo.

- Mas que crês tu que ando fazendo?

 

            1747

 

        Dinheiro

 

- Mestre, o homem não pensa na morte?

- Pensa.

- E não se prepara para pagar-lhe o preço?

- Prepara.

- Como, se a virtude é o preço da passagem?

- Procurando a maior das virtudes de hoje.

- Ora! Só pensam no dinheiro...

- Justamente!

- Mas ganhar dinheiro não é virtude, qualquer um ganha...

- Decerto.

- Então?!

- Hoje o melhor é quem mais ganhar.

- Mas essa ambição desmedida acaba matando-nos...

- Vem-nos matando planetariamente.

- Assim, como se preparam para a morte?

- Vivendo desde já no inferno.

 

1748

 

     Investigação

 

- Mestre, a investigação científica deve ser condicionada?

- Deve ser investigação científica.

- Então deve ser livre.

- Livre?! Investigação científica livre é redundância.

- Por quê?

- Porque, se não for livre, não é científica. E se não for científica não será libertadora nunca.

 

            1749

 

           Motor

 

- Mestre, a vida tornou-se mecânica e pouco falta para sermos autómatos.

- Não. Qualquer motor é um código moral cristalizado em metal.

- Essa agora!

- Responde eficazmente ao nosso porquê e para quê.

- Mas subjuga-nos.

- Ao contrário. Liberta-nos.

- Como?

- Materializa, passo a passo, um itinerário que a mente talhou. Realiza-nos um sonho.

- Logo, a técnica não ameaça?

- Ameaça.

- Mas então?!

- Quando ignoramos que o âmago dela não são engrenagens, circuitos, conexões, programas...

- Mas é nisso que ela consiste!

- Não. Os nexos racionais da mente humana é que lhe talharam cada peça e função desde o primeiro passo. O coração dela é  nosso sonho.

 

1750

 

        Esquina

 

- Mestre, qual é a melhor forma de encarar o mundo?

- Como se o mundo escondesse um segredo excitante atrás de cada esquina.

 

            1751

 

            Nada

 

- Mestre, que dizer a tanta gente apostada em demonstrar que nada é coisa nenhuma?

- Que dizer? Que até nisso mostram que, afinal, tudo é alguma coisa.

- Como?

- É que, senão, também a demonstração deles seria nada.