13ª. Redondilha
É do saber
neste arrimo
É do saber neste arrimo
Que consiste em quanto é
riso
Que canto a falta de siso
Do siso com que redimo,
Rindo, a queda lá do cimo
Donde, sendo com juízo,
Somos a espécie que viso
Com a razão em meu imo.
Com humor, com ironia,
Com sarcasmo, o canto
enfia
A lança em nossas
costelas.
Sorrindo no desencanto
Se nos aponta o recanto
Donde nos piscam
estrelas.
O bom humor de que eu
gosto
Não vos vou pedir desculpa
É tal que me leva a
rir
Por avançar para a luta,
Por uns momentos com
gosto
Que o homem é que tem culpa
- Mas faz pensar a
seguir.
De ser um filho da puta.
Enfeito-me co'o
alfinete
O violino, bem tocado,
Invisível pròs
sensatos
Chora. oferta incenso e mirra.
Com que lhes pico o
colete,
O meu não chora. Engasgado,
Forçando-os a
desacatos.
Em vez de chorar, embirra!
Toda a vida é uma
anedota
"Um artista ou é bêbado ou falido
Quee não tem graça
nenhuma.
Ou então as coisas ambas."
Porém, quando a gente a
adopta, - Como
as não sou, vês-te perdido,
Só a rir ela se
consuma. Crítico,
e descambas.
No carnaval desta vida,
Em férias de carnaval
Máscaras e
fantasia,
Vive sempre meu País
Teu marido te
convida
Por isso é que o que ele vale
P'ra com ele ir à
folia.
Um riso de momo o diz.
"Sinto-me mal", -
dissimulas- 1761
"Vai tu, vê se te divertes."
E a máscara lhe ragulas Nacionalidade
Com os teus jeitos solertes.
Minha
nacionalidade?
Mal ele sai, logo
vestes Cada
vez mais europeu!
Tua ignota
fantasia. Português
serei sempre eu
Depois atrás dele
investes,
Mas de naturalidade.
Clandestina, na alegria
Cidadão
do mundo? Sim,
De lhe ir fazer a
surpresa Um
pouco como quem sonha...
De uma aventura
amorosa - Ninguém contra mim deponha,
Que tanto melhor se
preza Que
eu sou sempre assim-assim...
Quanto impensada se goza.
Vês a máscara entre as mais,
Vais seduzi-la e levá-la
Suiça
Para a sombra dos pinhais:
Amam-se ambos numa
vala. A cobiça há quem me atiça
Por
ser muito muito viajado;
Anónima e
fugidia, Mas
eu vou sempre à "Suiça"
Somes quando te quer
ver.
Só p'ra comer um gelado!
Em casa, no fim do dia,
Perguntas-lhe o
parecer.
1763
"Acabei não indo à festa.
Ancião
Dei a máscara a um colega.
Diz que mulher como a
desta
- Por que choras, ancião, neste banco
Jamais viu com tal
entrega!"
de jardim?
- Porque sou centenário e uma jovem
- Ai Pátria do amor trocado!
apaixonada aguarda em casa por mim.
Quanto amor vens
celebrar - Isso é motivo de choro?!
E é sempre este amor
errado - É que me esqueci de onde moro...
Que me rouba meu
lugar!
- Quem és tu, afinal?!
-
Portugal!
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Somos o País das jornadas
adiadas,
O que mais nos asfixia,
Do avanço aos
poucos:
Teia que prende o País,
- Sofremos de falta de
estradas
É mesmo a burocracia
E de
loucos...
Que em tudo mete o nariz.
1765
Ora, para quem obvia
A uma tamanha prisão,
Turismo
Não
há como mais um dia
Celebrando,
em euforia,
- Oh, Céus! Por que é que Portugal é tão
bonito? Desburocratização:
- Para, atraindo-te, superar teu
conflito. Cem mil comemorações
- Por que é que os portugueses são tão
E mil resmas de papel
encantadores, tão
hospitaleiros?! Que sobre a vida depões,
- Para poderes amá-los e não os venderes
Fora as mil deslocações
por trinta
dinheiros. Que
nos tecem novo anel
- Adoráveis! Mas também tão estúpidos, tão
De novas imprecações.
estúpidos!... Quem iria imaginar?!
- Isso é para te poderem
amar... Para, por fim, concluir
Da
urgente necessidade
1766
De mais uns mil burocratas
Que
nos possam resumir
Inveja
Como
será que a gente há-de
Acabar
com tais empatas.
No estrangeiro, se alguém
vê
Um jardim crescendo em
frente E, com a força do malho
À casa de seu
vizinho
Garantindo eficiência,
Quer saber logo como
é Vem
já um grupo de trabalho
Que outro planta, bem
virente,
E mais uma presidência.
Para si, com mais
carinho. Como
o problema é tamanho,
Urge
ter a garantia
Em Portugal, ao
invés, De
que sairemos com ganho:
Se alguém olha, de
revés, Cria-se,
com arreganho,
O jardim que alguém
plantou,
De Estado a Secretaria
De inveja lhe
praguejou Que
tem por finalidade
E, de ciúmes
roído, Vir
a pôr fim, de verdade,
Mal o apanhe
distraído,
À maldição desta teia
Sem mais figuras de
estilo,
Que tanto mais nos enleia
- Corre logo a
destruí-lo!
Quanto mais a combatemos.
O País mais suas pratas,
Para que as não afundemos
Quer muito mais burocratas
Do que antes que por tal demos:
"Abaixo a burocracia!"
- Grita com papel selado,
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Mais o carimbo e a
mania
- Cama de casal. Veja, é o primeiro!
De que um passo, p'ra ser
dado,
- E só pelo seu peito inchado
Precisa de ter a
guia
O senhor fez-me interromper o meu chuveiro?!
Assinada e
conferida.
... Que lá o resto não é
vida!
1771
1768
Ignorância
Analfabeto Muitos que se crêem
cultos
Crêem-no
por compararem
Portugal, um País
analfabeto?!
Sua ignorância aos insultos
Ao preço a que os livros
vão, Da dos demais e ganharem.
Quem for poupado e discreto
Vai-os comprando a
intervalos,
1772
Co'eles faz decoração...
... Não lê só p'ra não gastá-los!
Intelectuais
1769
Nossos
intelectuais
São provincianos, mas nossos:
Trânsito
Quando falam, damos ais;
Se escrevem, servem-nos ossos.
Portugal é o tal País
Se um ditador arsenais
Onde a estrada mais nos
mata.
Do povo explode aos pescoços,
Com olhos celestiais
Conta-me um velho
feliz:
Eles oram pelos vossos.
"Já não chego até à
mata.
Se, porém, vos revoltais
Eu oiço mal, vejo mal...
E vos servis dos punhais,
Mas pode ainda
piorar:
Estrondeiam, fazem mossas
- Por agora, é bom
sinal,
Contra a guerra que animais.
Ao menos posso
guiar!"
Tal é a paz que, racionais,
Cultivam nas suas fossas.
Chuveiro Sapateiro
Um Rolls-Royce euroamericano
Pára ao
lado
Se és um sapateiro à peça,
Do
lusitano Não
queiras ser quem não és:
Automóvel
Sado. Crês que pensas co'a cabeça
E
depois pensas co'os pés!
"Telefone?! Telefax?! Televisão?!
Bar?!..."
- E o sim do ricaço a confirmar.
-
1774
"Mas não tem cama de casal!..."
Pés
Humilhado, o magnate corre a pô-la.
À próxima em que param num
sinal Neste mundo sapateiro
Dá uma
carambola
Como vais saber quem és
No vidro a escorrer, embaciado,
torrencial Se perdes teu ano inteiro
Do mísero
Sado. Sempre
a pensar com os pés?
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Eu sou careca de
ideias,
Há uma esquerda muito esquerda
Por sobre a minha
cabeça
Que à direita se traduz:
As aranhas armam
teias:
Come tudo quanto ela herda
Como há razão que em nós cresça?
E de ver nos suga a luz.
1776
Das
ditaduras o pus
Proletário vem comer da
Sensato
Mentirosa contraluz
Democrática de esquerda:
É um homem muito sensato
E a conversa, de primeira!
Toda a mentira é verdade
Só que diz, mal me
precato: E o retrocesso é progresso;
"Sou Nuno Álvares
Pereira!" Quando é mísera uma herdade,
1777
É dos ricos
um abcesso...
- Este esgoto de processo
Sábios
Desta esquerda é a identidade.
Sábios de cá só
compensam
1781
Vagos atrasos mentais:
Sabem quanto os outros pensam Contra-Revolucionário
Eles não pensam jamais!
Contra-revolucionário,
1778
Vai sofrer a
execução,
Nem deixam que coma os bróculos...
Diabo
- Capitalista primário,
O seu crime sem perdão
O pensamento é o
diabo,
É que se atreve a usar óculos!
Mas para o diabo reinar
Só pensa em levar a
cabo
- A recusa de pensar!
1779
Idiota
Qualquer idiota
Critica, queixa-se e condena.
Porém, anota:
- Todos o fazem! E quem tem pena?
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1782
1783
Madeira
Estúpido
- Que é a Madeira, snr.
Presidente?
No meio do caminho tinha um estúpido
- A Madeira é o meu
jardim.
Tinha
um estúpido no meio do caminho.
Mente
Tinha um estúpido.
Quem o não confirme
assim.
No
meio do caminho tinha um estúpido,
- E o
futuro?
Tinha
um estúpido no meio do caminho.
- O que inauguro.
- Quem o
desata? Nunca mais posso esquecer a pedra na
consciência
- O
democrata
Que
me agrediu a meio da vida.
Que sou e que imponho que
sejamos.
No meio do caminho tinha um estúpido,
- Democracia
musculada?
Tinha
um estúpido no meio do caminho.
- Sem
amos
Ninguém puxa o autoclismo?
Ninguém chega a nada.
Que
merda de País! Que paísmo!
- O povo não aceita ter senhor...
- Ora! Foi educado com
amor!
1784
- Pela escola?
Ou por quem?
Pulhíticos
- Pela família. A família nunca o viola.
Mas
também Na
minha terra há políticos
Pelo
professor. Com
políticas de pulha,
- E o professor é bem
visto? Não
tanto por ser somíticos
- Sou eu pessoalmente que lhe
assisto Mas por falta de faúlha.
E tudo tem.
-
Tudo? Como
ela lhes não faísca,
- Desde que não
discorde. Fariscam
dúbios negócios.
- E quando ele não concorde? Lançam-nos depois a isca:
- Desde que seja no
miúdo... Trabalham
até nos ócios!
- E se for no graúdo?
- Basta que não ataque a
maioria. E
estes políticos somem
- E se reprovar o filho de Vossa
Senhoria? Milhões que o mundo nos deu
- Fica entregue a ele
mesmo. Com
pretextos bem graníticos.
- Sem casa, sem laços, sem convivas?...
- Faço dele um
torresmo! P'ra
não trairmos o Homem,
É o que está a
pedir. A
tais pulhas o labéu
- Mas isso é a democracia dos
"vivas!" Que convém é o de... pulhíticos!
- É a única que nos não deixa iludir.
- Não gosto deste
jardim. 1785
Que é feito de nós?
- Não fale assim...
Político
Repare: você, afinal, é uma voz
De
mim! Político
é fazer ondas,
-
Desisto. Pôr
a vida por um fio
Afinal eu não
existo?! Para que depois respondas:
Quem sou
eu? "Só
ele salva o navio!"
- Mas, evidentemente, um projecto meu!
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1786
1790
Começar
Paga
Começar é dar um
salto, A
escrita é sempre somítica
Tempo de início é
ruptura,
E arte tem consciência gaga.
- Por isso brada tão
alto É
por isso que a política
Tudo quanto se
inaugura!
Compra e paga, compra e paga.
1787
1791
Democracia
Homens
Se o que é duma
ditadura
Nunca os homens amam amos
É tudo calar o
bico,
Nem aos ventos flutuar como as canas.
Democracia não
dura
...Mas depois medimo-nos pelo que ganhamos
Só da voz com o
salpico.
Em lugar do teor das relações humanas!
1788
1792
Escorraçadamente
Bichas
- Fora daqui! - grita
alguém.
Ser das bichas o criado
Logo,
escorraçadamente,
É perder toda a importância:
Poderá contar que
tem
Todos dizem obrigado,
Um passo atrás toda a
gente,
Depois 'squecem, sem mais ânsia.
Que o que toda a gente
sente
É que não tem pai nem
mãe.
Mas, se às bichas sou forçado,
Tomo o comboio da infância,
E então qualquer
ditador
Nele vou arrebanhado
Nos põe o pé no
cachaço,
E perco toda a arrogância.
- O que, em hora de depor
Todos chamarão de
abraço!
Desde a infância à vida adulta
Lá vamos brincando às bichas
1789 E o que mais nos
catapulta
É sermos feitos salsichas,
Mentecapto Todos por conta e medida
Nas latinhas desta vida!
Como é bom ser mentecapto!
Primeiro, não dá
chatice
E depois torna a gente apto
A não ouvir quanto
capto:
- Do poder toda a sandice!
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1793
1796
Caridadezinha
Economia
Se deus te fez a
mercê A
economia mundial
De outrem sob ti
colocar
Dum remédio carecia
A quem a sorte não
vê,
E o remédio, por sinal,
Não o queiras
desprezar. É, afinal, economia!
Dá-lhe a esmola em que ele
crê,
1797
O pão de que precisar
Para lhe aumentar a fé
Dinheiro
Em quem tudo governar.
O
dinheiro é tudo.
Mas não caias na
tolice
Se eu tiver dinheiro
De nas tuas
recepções
E for barrigudo
O acolheres algum
dia...
Sou um grande parceiro.
É rematada sandice: E
já não me grudo
Toma gosto às
promoções, Nem ao merceeiro
Perdes a
supremacia!
Nem ao cabeludo
Que
me foge ao cheiro.
1794
Não seria asmático
Economista
Mas antes
simpático,
Não trabalharia
Doze horas por dia...
Ser um bom economista
É passar metade do
ano
Minhas sete quintas?
Planeando o que tem em
vista
- Estou-me nas tintas!
E outro meio, ante o engano,
A passar-nos em
revista
1798
Porque lhe falhou o plano!
Moeda
1795
Primeiro, troca directa;
Batalhões
Logo após,
moeda em bruto;
Veio, enfim, papel-moeda...
Dantes eram os desfiles de
batalhões,
- Homem-moeda é o produto?
Baterias de tanques, metralhadoras e canhões.
1799
Doravante é
também
O dos de fato e
gravata,
Moralidade
Com as pastas na mão:
- Ninguém imagina como
mata
Com que então, senhor doutor,
De economistas o
batalhão!
Moralidade é precisa?
Confesse
lá, sem pudor:
- Qual é a carteira que visa?
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1800
1805
Eloquência
Ladrão
Eloquência da palavra, Se
alguém condena o dinheiro,
Juízo do mundo
inteiro... O
dinheiro que ele tem
- Dentro do mundo o que
lavra Não o tem por bem, primeiro,
É a eloquência do
dinheiro!
Tem-no roubado de alguém.
1801 Porque se alguém o
respeita,
Ao
dinheiro que confere
Glacial
É
quem em luta desfeita
Suou
quanto dele aufere.
P'ra ardores do coração
Qualquer dia é
carnaval.
Do leproso a campainha
Falta-lhe é a respiração
Retumba: "Dinheiro, Não!"?
Se a algibeira é
glacial.
- Põe-te a milhas depressinha,
Que se aproxima um ladrão!
1802
1806
Progresso
Mineiro
P'ra aqueles que apanham tudo
E ao mundo trazem
maleitas:
Mineiro da mina de oiro,
- O progresso é
barrigudo,
P'ra se ver livre dos mais,
Foge das vielas
estreitas?
Aponta que o fogo é loiro,
No
inferno lança os rivais.
1803
Mas
quando não há sinais
Comércio De quem lhe traga
desdoiro,
Só, suspeita que é demais:
O homem é um
negociante.
Não estará sendo caloiro?
Quando honesto, vende aquilo que produz.
Se é ladrão, o seu jeito
rapinante Quem sabe se o seu boato,
Traz à
luz Apesar
de vir de si,
Cambalachos de influências e de
taxas Não tem algum fundamento?
Sobre quantos produzem e consomem.
... A civilização soma tanto mais
baixas E, depois do desacato
Quanto mais assim compra e vende o
homem! Que os mais pôs em frenesi,
- Joga-se inteiro ao tormento!
1804
Menor
De felicidade nunca o dinheiro é mentor
Se felicidade não houver primeiro:
- É que ninguém pode ser menor
Que seu dinheiro!
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1807
E
nunca engarrafa a gente,
Que
se conduz sem receio
A Tempo
Veloz
como lentamente
- É apenas a bicicleta
A tempo saber
calar Que,
em trânsito enlouquecido,
É um saber sempre bem
pago. É a alternativa discreta
Para
quem busque um sentido
O advogado, se
provar, Numa vida mais completa
Que, mesmo não sendo
afago, Que o porvir roube ao olvido.
O réu não foi arrancar
Doutrem a orelha dum trago 1810
E que, longe do lugar,
A testemunha nem
vago
Vegetariano
Vislumbre viu do ocorrido,
Se se põe a
questioná-la
Dantes, para comeres
Porque a depor se
perfila,
As couves, só por engano!
Pode tudo ter
perdido -
Para agora, adulto, seres
Se ela a seguir assim
fala:
Sem mais, vegetariano!
"A orelha?! Vi-o cuspi-la!"
1811
1808
Preservar
Ecologista
Preservar
na terra a vida,
Esta luta
ecologista Se
é bom para a vida em risco,
Pouco é menos que
homicida Mais depressa se elucida
Já que tanto quer que
insista Quando é p'ra nosso petisco.
Em paralisar a vida.
1812
É de balão minha ida
Cada dia prà
revista.
Droga
A energia dispendida
Poupo-a fechando a
vista.
Todas as pessoas são
Mentalmente adoentadas.
Todos estes
lutadores,
Quando nos damos a mão
Em frenesins de
delírio,
São terapêuticas dadas.
De tudo inculpam a gente.
Ao mundo não tolhem
dores,
Mesmo ter boa intenção
Buscam é nosso
martírio:
É das drogas encantadas
São quem nos mata o
ambiente! Que em clínica alcançarão
Melhor
as curas visadas.
1809
E
assim fica a vida inteira
Alternativa Como uma nova doença,
O
mundo feito hospital.
Mais ecológico meio
Que jamais é
poluente,
Chegamos então à beira
Co'o silêncio de
permeio,
De que ninguém se pertença
Sem ruídos prò
ambiente,
E é uma droga o que é vital.
Toda a energia usa em cheio
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1813
1817
Computorizado
Pinheirinho
Tudo
computorizado,
Levei minha avó à aldeia
Sem falhas e
previsível
Que há decénios abandonara
É a segurança do
fado
Pela urbana vida em colmeia
Sem o enigma do
invisível.
Que de
trás nada nela conservara.
Quando o arrabalde atingi,
Tudo sem ninguém ao
lado,
Cuidei, por
instantes:
A máquina ao nosso
nível
- Nada evoca o velho ninho...
Substitui com mais cuidado
Quanto nos for
exigível.
"Não, não pode ser aqui"
- Murmura a avó. - "É que dantes
E mesmo se lhe
pergunto,
Era ali um pinheirinho!"
Enquanto lhe canto as
loas,
Das faltas qual o
dilema,
1818
Esta é a resposta por
junto:
Cultura
"Ainda aqui andam pessoas,
Este é que é nosso
problema!"
"Quantos anos tens, avó?"
-
Pergunta a neta pequena.
1814 "Eu já nem me
lembro, só
Sei que é quase uma centena."
Comunicação
A
criança então medita
Para se ser bem
casado Da
cultura nos arcanos:
Urge é a
comunicação: "Atrás
nas calças, a fita,
- Por isso é que o tempo é
dado
Vê lá que idade tem 'scrita.
À rádio e à
televisão!
Nas minhas tem 'quatro anos'!"
1815
1819
Vovô
Lar
O vovô deu-me um
relógio
Um lar de terceira idade,
E uma caixinha onde
aloje-o.
Na pobre malga de caldo,
É dos novos, nem me
acorda,
Expõe os velhos em saldo
- Basta apenas dar-lhe corda!
À espera da eternidade.
1816
1820
Avó
Filhos
Ser avó é ser tão
sábia,
Se seus filhos não quiser
Ser avó tão sábio
é
Que ouçam quanto está a contar,
Que deixa o neto ter
lábia
Faça de conta, p'ra ver,
De pensar que ela é xexé
Que com eles 'stá a falar.
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1821
1826
Crenças
Mulheres
Com minhas crenças de
moço
Nós, os homens, às mulheres
Chego à instrução da
Marinha.
Tornamo-las no que são.
Compartilho a prece meiga,
Por isso é que certos seres
De mãos postas, ao
almoço.
Não valem nem um tostão!
P'ra eles não era
orar, 1827
Enganei-me nos sinais:
Em troca, porém, da minha
Formosa
Oração, vejo a manteiga,
À volta, a
descongelar Aquela
mulher formosa
Nas mãos postas dos
demais.
Dizem que se não vestia
P'ra
vir à rua: a donosa
1822 Ricamente se despia!
Patriotismo
1828
Entre o patriotismo e o vinho
Vestido
Não sei qual o cambalacho,
Não tenho jeito
adivinho Muito
mais do que um vestido,
E a Pátria aos copos não
acho.
O que ao despi-lo se traz
É
um desejo tão escandido
1823 Quão vai ficando p'ra trás.
Consumo
1829
Promete-nos novo
rumo
Princesa
Do bricabraque o sortido:
Sociedade de
consumo...
- É uma princesa do além,
- E eu que ando tão
consumido!
Tem um cintilar de estrela...
- Vê que focinho ela tem,
1824
Olha para as
trombas dela!
Vinho 1830
Se vem do vinho a verdade
Meninas
Não é pela bebedeira:
- É que ri de
insanidade Elas
são meninas pífias,
E depois é choradeira. Co'os
peitos cheios de empáfia,
As
vidas delas são fífias,
1825 O ouro que as cobre é de
ráfia.
Vendedor
Natal. Vou comprar
batata
Prò bacalhau da consoada.
E o vendedor tem a
lata:
- Ganho é agora, é tudo ou nada!
==========================================================================================
1831
1834
Labrego
Cama
Labrego tira o
chapéu
Quem ama vê quem ama como estrela
A quem lhe tira a
mulher
Mas não é estrela a quem ama:
Mesmo depois que
bateu
- Quem
se não divertir antes da cama
Ao rico que o fez
sofrer.
Não se vai divertir nela...
1832
1835
Fina
Vídeo
Aquela menina
fina
Dantes, o namorado cedia-lhe a passagem
É uma tão fina
menina
e tirava o chapéu.
Que seu traque é uma
buzina
Agora rouba-lhe a cassete e pergunta: "No
Que primorosa ela
afina.
teu vídeo ou no meu?"
Jamais erra: ela
ilumina
1836
Tudo com que não atina.
Tempos
Não evacua: declina
Prendas para quem se
inclina.
Entra um velho no escritório,
O que melhor a
defina
Voam do computador
É não ter vida
intestina. As
folhas do relatório.
E
ele à moça, com humor:
Por isso é que é tão
franzina:
- Aquilo em que, ante isto, penso
É um buraco duma
mina
É nas modas mais antigas:
Onde água virou a
urina.
No meu tempo, as raparigas
Deixavam cair o lenço!
Ela, aliás, não tem vagina
Mas uma lura
divina 1837
Onde o amor se não reclina:
Só p'ra admiração
bovina!... Rir
- Tão menina é que fascina
Se gargalhar se espojando
Toda a gente
pequenina!
É refocilar de bruto,
Cascalhar
escouceando
1833 É de cavalo o conduto.
Encanto
1838
Tanto encanto vai conter
Desdouro
Em tudo quanto disser
A mulher quando ela
não
"Cão!" - Chama o cristão ao mouro
Tem nada para
dizer
E chama o mouro ao cristão.
Que em breve todos lhe
vão, Ninguém lhes nota o
desdouro
Rendidos, comer à
mão. - Quando, ao lado, os olha o
cão!
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1839
1844
Excepcional
Carro
Se o problema é
excepcional
Nada dá num carro usado
Sofre quenquer co'as
misérias. De consumo economia
Mas se é questão
laboral
Como o argumento empolado
'Stá arrumada: mete
férias!... Que
a venda lhe promovia.
1840
1845
Nada
Brinquedo
Não ter nada que
fazer
Todo o Natal é um brinquedo,
Enche de tristeza o
ar:
Brinquedo que brinca tanto
Ter preguiça é não
poder
E que é tão sofisticado
Parar para
descansar!
Que ninguém pode ter medo
De que ele perca o encanto,
1841
Acabe posto
de lado:
- Seus jogos tanto se afincam
Pechincha
Que
uns com os outros já brincam!
Muita pechincha é
danada 1846
Por um veneno invisível:
Não nos serve para nada
Pai Natal
Mas o preço é irresistível!
"Menino, que prenda queres no sapatinho?"
1842
- E o Pai
Natal aconchega as abas de arminho...
Concorrência
"Essa agora!"- E o miúdo é agreste. -
"Bem eu logo imaginei!
Hoje em dia a
concorrência
Então tu não recebeste
Chegou mesmo aos
necrotérios
O fax que te mandei?!"
Para dar vida à aparência
Das campas dos
cemitérios. 1847
1843
Idades
Estado
Três idades
tem o homem:
A de crer no Pai Natal,
Vivemos no Estado
técnico,
A de descrer porque o somem
Servil e obcecado
esbirro
- E a de sê-lo, no final!
Do primitivismo étnico:
Sagrar da técnica o espirro!
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1848
Tarde vês
quanto é covarde
A sedução quando fala.
Mecânico
Tens rede, mas ela te arde:
- Não tens onde pendurá-la!
Se ao mecânico automóvel
A conta dá "mais ou menos",
1853
Contai bem que é conta imóvel
E os ganhos não são
pequenos:
Autêntica
- Ele é quem recebe "mais",
Vós com "menos" vos
ficais.
Hoje em dia a vida é feita
De
plásticos, de artifícios.
1849 Tenho minha casa afeita
A ter obras, benefícios,
Virtudes Sobrevivendo aos
decénios.
Há milénios três virtudes nos
ensinam:
Um pedreiro comentou,
Fé, esperança e
caridade.
Alheio a actuais convénios,
Na era do avião, três são as que nos dominam:
Quando a pedra lhe provou:
Fé, esperança e... gravidade!
- Isto chispa mesmo brasa!
1850 Bons tempos que já
morreram!
A vida agora é frenética.
Robô É dos tempos esta casa
Em que ainda as árvores eram
É por ir dando em robô,
Todas de madeira autêntica.
De humano perdendo o traço,
Que a vida por onde vou
Mais e mais quer nervos de aço?
1851
Atolas
Ah, quantas vezes a razão
atolas
Do dia a dia no atoleiro
móvel!
Para poupar meias
solas,
Tantas vezes que tu compras
automóvel!
1852
Rede
Tanta rede
preguiceira
Com tanta
publicidade
Te colocam mesmo à
beira
Que te espanta a
novidade.
Acorres, não vá ser tarde,
No hipermercado a comprá-la.
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1854
1856
Serra
Técnica
Como prenda de
Natal
Arte de hoje não quer prática
Veio-me uma serra
eléctrica.
Quer técnica mais que ser.
Fui ao quarto de
casal,
- Que boa máquina fotográfica! -
Levei uma fita
métrica,
- Digo ao fotógrafo, para o enaltecer.
Medi à porta um
centímetro,
P'ra não roçar na
alcatifa.
Em breve diremos ao escritor,
Tirei-a da
dobradiça,
Maravilhados com um poema de amor:
Acerto a serra e o
voltímetro
- Que bela máquina de escrever!
E eis-me lépido a
serrar.
Fantástico computador!
É qualidade de
vida
1857
Que entra num novo lugar!
Massa
A porta outra vez metida,
Ocorre um grave
mistério:
Nesta produção em massa
É que a roçar
continua! Ocorrem
mal-entendidos
Co'os
modelos uniformes.
Sem questionar meu
critério,
Quando alguém caça na praça
Trago-a de novo prà
rua
Alguém de gestos furtivos
E mais outro naco
serro. Tentando
jeitos conformes
A
forçar-lhe ao carro a porta,
Continua
roçagando! Corre
decerto a assustá-lo:
"Ei!
Esse é meu!" O outro exorta
Só então noto meu
erro: Ao
desabafo: "Ah! Que regalo!
Por cima é que a vim
serrando! Ainda bem que não é o meu!
Neste
nada conseguiu
P'ra tapar o
buracão Até
agora abrir-lhe a porta!"
Corro a pregar-lhe travessas...
E
então, meio embaraçado,
- Esta
civilização
Abre o seu, na fila ao lado.
Não anda mesmo às avessas?!
1858
1855
Escritório
Futuro
Por muito que ao trabalho se aliene,
De que não temos
futuro
Nunca conheci ninguém
A prova mais
evidente
Que no leito de morte se condene,
É que mais que os bens
perduro
Perdido todo o auditório,
Que se vendem
mundialmente.
Pelas horas que, mal ou bem,
Não passou no seu escritório!
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1859
1862
Agricultura Fraternidade
A agricultura hoje é
levada
É pela fraternidade
À
beira Que
ajudo seja quem for,
Da perfeita
rotação: Se
jura fidelidade...
Primeiro, foi a cevada, -
Senão, mato esse estupor!
Depois, a beterraba-açucareira
E, agora, o loteamento para
construção!
1863
1860
Raia
Gerações Do reino dos meus amigos
Não
sei onde fica a raia...
- Ali são duas macieiras
- ...
Senão quando herdo uns antigos
- Aponta o pai para a filha. -
Aposentos numa praia!
- Ao lado estão as ameixieiras
E os pessegueiros, entre a
ervilha... 1864
- Pai, já viste a quantidade
Amigos
De salada de fruta a sair
Quando o pomar for da idade
Ter amigos na vida é muito bom.
De todo ele
produzir?!
Se eu tiver um amigo então consigo
Que a vida não se arraste pelo chão.
1861
Tantas brechas de céu se
entreabrirão,
Que até no inferno é bom ter um amigo!
Extraterrestre
1865
Relatório extraterrestre
Da expedição da área urbana
cosmopolita:
Amar
"Esta civilização rupestre
É dum animal que ronca e
grita,
Amar outrem como a si
É o princípio-mor
Coberto de lata
abaulada,
Desta civilização:
Que corre o dia todo em quatro
rodas, - É que te vês sempre a ti
Tem olhos que à noite emitem luz
focada Como
alvo do amor
E esta estranheza maior que
todas:
Em lugar de teu irmão!
Dorme ao relento mas seus parasitas
Fogem a acolher-se em refúgios
cómodos!...
De manhã retornam às mesmas desditas
E juntos partilham dia a dia os incómodos!"
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1866
1869
Fruta
Intimidação
Se é vero que meio
mundo
O que é uma intimidação?
Anda a roubar outro
meio, Não
são de guerra gemidos:
O pior é que, no
fundo,
É uma melga nos ouvidos
Sem ninguém ficar no
meio,
Dum quarto na escuridão!
Ambos perderam a fruta,
Uns por falta de
energia 1870
Para abanar a fruteira,
Os demais porque na luta
Calado
Tanto a força os requeria
Que derrubaram
inteira
A vantagem, muitas vezes,
Tanto a fruta como a
planta.
De escolher ficar calado
É escapar aos entremezes
- E amanhã já ninguém
janta!
De engolir o já falado.
1867 1871
Tartaruga
Anos
Sempre que uma
tartaruga
Faço quarenta e nove anos
Trepa acima dum
portão,
E este conforto renovo
Não é o passo que se
estuga, Do fundo de meus arcanos:
É que alguém lhe deu a
mão. - Sou velho p'ra morrer novo!
Quando alguém trepou aos topos,
Tartaruga que não
muda, 1872
Por que não canta nos tropos
Quem p'ra tal lhe deu a
ajuda?
Advogado
1868
Um só
advogado na terra
Não
ganha para o trabalho;
Cão
Mas
se um outro ali aterra
Ambos
são reis do baralho.
Nesta sociedade de massas,
Tua fuga à
solidão 1873
Quando melhor tu a abraças
É se abraças o teu cão.
Culpas
Pior é que, se o cão sofrer
De doença
hereditária,
Cem por cento dividir
Dirás que, em teu
entender,
De culpas por dois agentes,
De teu lado é
centenária Dez
por cento é conseguir
A saúde em toda a
gente
Que em cada qual tu assentes.
E teu marido também
É de família
virente.
"Donde será que provém"
-Perguntarás tu então -
"A doença de meu cão?!"
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1874
Doravante
ele é o que for
O bólido que comanda.
Alcatifa
Nada mais terá valor,
Tornou-se a máquina que anda.
Se és chamado ao gabinete,
Vê da alcatifa a
espessura: Sem ela fica vazio,
Quanto maior lhe
compete, Perde a cara ante o vizinho.
Mais sarilho te
procura.
Frenético, em corropio,
Rouba, mata, cai no vinho.
1875
E em toda esta correria
Patrão
De
desaforos e abalos
O
que conta é uma fatia
Com nódoas negras em
cacho, Com que comprar mais cavalos.
Ligaduras, partida a mão,
Chegas ao emprego com
demora. Nas tropelias e crimes
- Que foi? - grita o
patrão.
Com que a todos atropela
- Caí da escada
abaixo. Deslaçam-se-lhe até os vimes
- E isso demorou uma
hora? Com que unira a parentela.
1876 Nas angústias que o consomem
Rincha, aos coices (e o mais calo),
Conspiração - É cada vez menos homem
E
cada vez mais cavalo!
Entre o homem e o cavalo
É estranha a
conspiração.
1877
Outrora foi a domá-lo
Que buscou a
promoção.
Apostam
Logo após foi o
tamanho A
quantos na vida apostam
De récuas,
coudelarias.
Importa afiar os dentes
Quantas mais, maior o
ganho
Porque os psiquiatras não gostam
Em proventos e
honrarias.
De pessoas mas de doentes.
Depois foram as
cocheiras
1878
E os criados de libré.
Espanejou pelas feiras
Idiotas
O que tinha em vez do que é.
Quando
os marxistas clamaram:
Chega o
cavalo-vapor,
"Os idiotas ao poder!"
Acelera o mundo
inteiro.
- Só então é que revelaram
O homem tem novo
valor,
Sempre o que entenderam ser.
Vale o que vale o dinheiro.
Com o cavalo mecânico
A roncar brusco nas
ruas
Monta um novel elo orgânico
Entre motor e mãos nuas.
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1879
1884
Epitáfio Compreensivo
Na campa do
boxer Ser
um pai compreensivo
A quem nunca se viu pranto:
É ficar muito orgulhoso
"Conte o tempo que
quiser,
Co'a parede escrita ao vivo
Desta vez não me
levanto!" (Se a escrita estiver correcta)
Pelo filho mais mimoso,
1880 Nem que essa escrita
indiscreta
Borre
a tinta, o papel novo
Fome
- Estrague
a pintura no ovo!
Gordos e magros têm
fome. 1885
Há, porém, a diferença:
Se tem fome, o magro
come;
Civilização
Gordo quer que a fome o vença.
É
tanto o nosso progresso,
1881 Tal a civilização,
Que
a nossa distância meço
Classe
Por
uma estranha inversão.
Pertencer à classe
média
Quando trepa à laranjeira
É ver se na alta se
encaixa
Meu filho tão bem se sente
Alimentando a
comédia Que
grita: "Que bem que cheira
Co'os rendimentos da
baixa. A perfumador de ambiente!"
1882 1886
Sorte
Arrependido
Se a ferradura dá
sorte Ao
filho adolescente
É tão grande a sorte
nossa
Confessa o pai arrependido:
Que o burro anda até à
morte - Vivi demasiado ausente.
Sempre a puxar à
carroça!
Viverei doravante mais contigo.
-
Óptimo, pai, é uma alegria!
1883 Mas agora já tenho outra
companhia...
Crianças
Quando dizes que as crianças
Iluminam qualquer lar
Vê lá o que com isto
alcanças:
É que, para iluminar,
Ignorantes das despesas,
Elas costumam deixar
Sempre as lâmpadas acesas!
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1887
Vendendo que
suicidar-se
É um grande acto de virtude!
Lixo
1891
Consumismo é desperdício.
Quando entras no restaurante,
Música
O que quiseres, toma e, sem bulício,
Come quanto tens
diante!
Jamais a música é incauta,
Cobra
cara a melhor fruta:
Nada deixes no
lugar,
- O melhor filho da pauta
Não há relíquias em teu
nicho É sempre um filho da luta!
Nem santos a dar sentido:
- Andamos é a
desperdiçar
1892
Montes e montes de lixo
Que devias ter
comido!
Primavera
1888 A Primavera não é um
espanto,
Espanto
é que tanto
Chato
E tão
distraidamente
Tantos
por ela passem
O chato é aquele
animal
Sem lhe notarem encanto.
Que nos não faz companhia
E à solidão faz tão
mal A
vida só nos consente,
Que a rouba a nós todo o
dia. Mesmo que cem anos a enlacem
E
não haja outros reveses,
Se presente, é tal a
ausência - Vê-la só estas cem vezes!
Que lha imponho por clemência.
1893
1889
Stradivarius
Segredo
Um turista afortunado
Dantes era o fim do
mundo Adquire
por tuta e meia
Porque os homens temiam que alguém
contasse Um stradivarius guardado
O segredo deles que ninguém
sabia. Por
um velhote da aldeia,
Tendo-o
antes afagado
Doravante a civilização vai ao
fundo
Na melodia selecta
Porque todos temem que a público
trespasse A que tal som se destina.
Aquilo que todos sabem e ninguém traz à luz do
dia! "Não foi vendido, é
rapina..."
-
Lamenta o velho, a voz seca. -
1890 "Mas o traste da
rabeca
Só toca música fina!..."
Assassinar
Mundo fora, assassinar
É o maior crime e punido.
Porém, em nenhum lugar,
Outro maior é
entendido:
O de quem o mundo
ilude,
Usando qualquer disfarce,
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1894
1899
Velho
Ano Novo
Quem é velho muito velho
O optimista pela meia-noite espera
Tem um dom
miraculoso:
Para
ver o Ano Novo chegar.
Prò menos velho é um espelho
O pessimista
pela meia-noite desespera,
Onde se vai ver
mimoso!
Não vá o ano velho não perder o lugar!
1895
1900
Jovem
Deus
Ser velho não é do
artelho
Deus
dá nozes a quem não tem dentes?
Cujos músculos não movem:
Pouco importa, a dentadura medra.
Há muito jovem que é
velho
O pior é que tu sentes
Por preguiça de ser
jovem!
Que
Deus dá nozes mas que não as quebra!
1896
1901
Faço
Pisca
O que faço, faço
bem.
Muito o
homem se arrisca,
Se o não faço bem, dum
traço A furar pela corrente,
Recuso então, com
desdém,
Até desistir de abrir o pisca
Que faço aquilo que
faço.
E
não mais passar quem corre à frente!
1897
1902
Recorde
Tolerância
Quando não puder
ganhar, Tolerância
não é incúria,
Do campeão o brio
acorde:
Muito menos demissão:
- Ao disputar-lhe o
lugar, -
A tolerância é uma fúria
Faça que bata um
recorde! Contida
pela razão!
1898
1903
Desastres
Lendo
Os desastres têm um
préstimo: Lendo
livros, eu atinjo erudição.
Queimam as nossas
asneiras! Mas
o saber verdadeiro
Depois, co'o tempo de
empréstimo, Do que é que os homens serão,
Podem-se abrir novas
leiras. Só
lendo os homens primeiro
Em
sua sucessiva reedição.
==========================================================================================
1904 - Ai, marido, que desgraça!
Ao
menos és engenheiro,
Convencido Lá na empresa tal lameiro
Em teu campo não se passa!...
De tudo saber a inconversa mania
É o que cultiva o sujeito
convencido. - Mulher, toma o travesseiro,
- Todos detestam isso! - previno-o ao
ouvido. Descansa, vá, que, em dormindo,
Responde-me, inchado: - Já
sabia! Verás que é que te esqueceste:
Ainda
acabas descobrindo
1905 Que tu é que os
escreveste!
Os
Lusíadas 1906
- Diga lá, menino
esperto
Consumição
Que "Os Lusíadas" já viu,
Sabe quem os
escreveu? Sociedade
de consumo,
Tudo
é uma consumição:
- Essa agora, professora!
Da
História o final resumo
Não acredita,
decerto,
É a mundial devastação.
Que fui eu! Pois não fui
eu!
1907
- Desculpe, minha senhora,
Seu filho nem fica
aflito
Dizer
Ao responder-me, ainda agora,
Como perante um
delito, Sei
que julgas que entendeste
Que "Os Lusíadas" - já viu! -
O que pensas que eu te disse,
Não foi ele que
escreveu! Mas não sei se percebeste
Que
quanto eu fiz que se ouvisse,
- Ah! Que alívio,
professora! Por não dizer o que quer,
Mas pode bem
confiar, -
Nunca é o que eu quero dizer!
Porque ele nunca mentiu.
Vá por outrem procurar,
Que ele, não! Não escreveu!
- Veja bem, ó senhor guarda,
Que tristeza de País!
Que futuro nos aguarda?
Filho ou mãe, tudo condiz
Na ignorância mais boçal.
Que será de Portugal?...
- Ah! Descanse, professora,
Que estou quase a ir-me embora
E, se agarro esse petiz,
Quer ele queira, quer não,
Há-de deitar cá p'ra fora
Que escreveu tal abusão.