SEXTA REDONDILHA
O ANTIGO ACONTECE
Escolha um número aleatório entre
714 e 816 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
714 - O antigo acontece
O antigo acontece
Na velha vasilha
Mas a maravilha
Também lá floresce.
715 -
Espelho
717
- Alturas
Sou um
desconhecido aqui no
espelho.
Alturas há nas quais tudo parece
Será meu rosto um
rosto de
idiota?
Em
nós cono ao redor subitamente
Tal é o terror
que esmaga-me a
tortura,
Estar mudando tanto que se sente
Quanto
injusto devém quanto acontece.
Concentracionarismo
já revelho
Com que o mundo
me assenta a dura
bota
Quanto foi sonho em nós então fenece
Nas costelas da
vida que
perdura.
E é como vãs crianças de repente
Que atrás olhamos quanto nos fez gente,
Ignoro quem eu
sou, nome ou
morada,
Rejeitando-lhe então a inútil messe.
Não me recordo da
aparência minha,
Ou serei uma bola
pontapeada?
Mas um homem agarra o que na vida
Quando o fim
desta infâmia se
adivinha?
A mesma vida lhe oferece, urdida
Em seus secretos, mesmo abjectos fins.
Quando, livre,
aos portões é retomada
A liberdade de
então mais
comezinha,
E com a fúria do que crê fatal
Tão perdido me
sinto que sou
nada
Ele
aproveita-o: então dá o sinal
E a fala já nem
falo, se é que a
tinha.
De quantos nãos ele assim torna em sins.
716 -
Pouco
718
- Riqueza
Para nos
separar tão pouco
basta!
O dinheiro e a riqueza muito a par
Os seres que se
querem quanto se
amam
Caminham nas menções de toda a gente,
Para não verem
quantos senões
descamam
Quando a vida de facto a todos mente:
Do amor as uvas
da mais fina
casta!
Às vezes os divide, se calhar.
Uma voz alta por
demais
arrasta,
Que ser rico, primeiro, é venerar
Um gesto desastrado,
um tique
acamam
Em família o casal que assim cimente
Quantos feitiços
num amor
desamam
Quanto futuro após o adolescente
E quanto uniu
outrora agora afasta.
Atravesse talhando seu lugar.
A gente sempre
pensa: não é
nada!
Ser rico é satisfeito ver, segundo,
Tudo o que sinto
e quero é mais profundo
A mocidade assim a abrir o mundo
Para nem
consentir disto na
entrada.
E, terceiro, é ter fé que faz sentido
Queremos ignorar
quanto há de
imundo,
E falar com o Além então querido.
Preso na berma
que margina a
estrada,
-
Ser rico, enfim, é termo-nos amado
Só que este nada
então arrasa o
mundo.
A caminhar a vida lado a lado!
719 - Maneiras
Tantas são as maneiras de viver
Que podemos até ficar confusos
Sem saber que fazer a tantos usos
De que o homem constroi seu próprio ser.
Do confronto por vezes já contusos,
O remédio bebemos à colher
Que pretende o problema resolver
A todos apertando parafusos.
Assim fundidos bem, unificados,
Em vez de livres, somos os pecados
Que vivem já o inferno sem perdão,
Quando âncoras baixar nos bastaria
Ou as velas soltar à maresia
Para as vidas enchermos de paixão.
720 - Portas
Nascemos num salão cujas paredes
Consistem nas mil portas dos possíveis
E porta a porta se escancaram níveis
Para o mundo lá fora que já vedes.
A sala está inundada, sons e sedes,
Luz e barulho quantos são vivíveis.
São todos os caminhos exequíveis
Mas nem a todos teu condão concedes.
Fechamos umas portas de propósito,
Com medo às vezes do que é seu depósito,
Às vezes firmes e, aliás, tranquilos.
Outras parecem, ao invés, fechar-se
Por si sozinhas e com tal disfarce
Que nem por trás lhes ouviremos grilos.
721 - Fala
Um homem se define porque fala
E assim se representa e o mundo fora,
Tenta visar o todo, muito embora
Haja momentos em que tudo cala.
Diz doutrem e de si e até se embala
Cantando este Universo em que se ancora
A sede de infinito que o devora,
Prisioneiro que está de estreita sala.
Contudo, para além de quanto diz,
Um outro além inelutável anda
E um certo aquém que sempre o contradiz.
Aos dois de facto a fala não comanda:
- Nada diz do que nada significa;
Se significa tudo, mudo fica.
722 - Campeonato
A vida é um permanente campeonato
Sempre a tentar devir melhor que tudo,
Melhor além dos outros sobretudo,
Palpando a sorte do mais fino tacto.
Mas disto a aprendizagem é que um acto
Apenas sobressai dentre o miúdo
Quando é de mim que me afinal desgrudo,
Quando de meus limites me desato.
Da vida o campeonato verdadeiro
Cuja vitória a nós mais nos importa
Nunca se joga a meio do terreiro.
A sério o campo que nos abre a porta
Jamais é uma arena donde alguém se vê
- É o que resulta de quem quer e é!
723 - Noite
A noite é uma planície onde as estrelas
Na escuridão acendem as fogueiras
Longínquas, misteriosas sinaleiras
De navios perdidos nas procelas.
Sobre o veludo negro, a meia-noite
Discreta estende num colar diamantes:
Luzes da rua a segredar, amantes,
Ao colo arfante em que o sonhar se acoite.
E a Lua Cheia, calma, perscrutando
Os recantos do só desfiladeiro
Com finos dedos de luar catando...
O céu cobriu-nos com lençol de negro,
Salpicou-o de estrelas, derradeiro
Leito do eterno em que por fim me integro.
724 - Aldeia
Há muitos anos, numa velha aldeia,
Pelas estradas a poeira erguia,
Eram as nuvens da infantil poesia
Fantasiando abelhas em colmeia.
A nuvem era um carro que trazia
Alguém que se cansara, a vida cheia
Das ilusões que o mundo além ameia,
Que só o remanso descansado guia.
À noite, entre os enxames das estrelas
Pululam frémitos das almas mortas.
Algumas se desprendem, soltam velas,
Tornam à terra, vêm abrir-nos portas...
- Mas se desejos voto siderais
É que eu não, não desejo nada mais!
725 - Morre
Quando África nos morre na violência,
Quando a fome destroça um continente
O que importa é sabermos de repente
Se isto é fruto ou se é causa da
assistência.
Se aos biliões os dólares dormência
Espalham entre os povos, ninguém sente
As corrupções, traições com que se mente,
Mantendo dos escois toda a opulência.
Pois um país morrer ou não de fome,
Depende, não do que aos colonos tome,
(Tão prisioneiros andam desta culpa!)
Mas sim de ter ou não imprensa livre,
Governo que dos déspotas os livre:
- Tais crimes não terão jamais desculpa!
726 - Pequeno
Quando presto atenção ao que é pequeno
Poderei até mesmo descobrir
Que nele se me vai discreto abrir
Do Universo o secreto eco terreno.
Assim foi que de fundo um vibrar pleno,
Suave e persistente fez-se ouvir
Quando uma antena apontará o porvir,
Do Universo captando o som sereno:
Que neste eco perdido nos espaços
Afinal chegam os primeiros passos
De todo o Cosmos a explodir primevo.
Reparar num pequeno som de fundo
Rasgou nova cortina frente ao mundo
E do nascer do mundo sou coevo.
727 - Nível
O pormenor em conta ter convém,
Em primeiro lugar, ao nível prático
Para apurar um agir fácil, ático,
Em que a palavra lavre para além.
Mas tê-lo em conta sugerir também
Uma atitude deverá, enfático,
Em relação à profissão, pragmático,
Porque é de nadas que ali cresce alguém.
A verdadeira chave do sucesso
No mundo dos negócios nem sempre é
A inteligência nem o mais que peço
Que alçado me enalteça da ralé.
Este é o nada em que tudo principia:
- A competência atenta dia a dia.
728 - Perfeccionismo
Demasiada atenção aos pormenores
Dar poderemos certamente às vezes:
Há do perfeccionismo espúrias teses
Que ninharias tratam bem menores
Que os objectivos principais, maiores,
Sacrificando os nossos entremezes.
Devemos perguntar todos os meses
Até que ponto são de nós senhores
Estes desvios, ao invés dos nadas
Que nos importam para os nossos fins.
Que quando nos desviam das jornadas
Convém abandoná-los como ruins.
Se não escrevem nada em nossas loisas,
Troquemo-los então por outras coisas.
729 - Demanda
Movimentarmo-nos para outra banda
No dia-a-dia nunca é diferente
De procurar, perdido, o norte ausente,
O rumo que nos leve ao que alguém anda.
Saber o que buscamos na demanda
Ajuda a decidir o que é premente
Numa tarefa que se leva em frente,
Que desde então novo rumar comanda.
Nisto é que a qualidade se não finge,
Que um objectivo por quenquer se atinge
Quando os fins visa e o pormenor se
atende.
E eis como o dia-a-dia é o importante:
- Discreto orienta o passo para diante,
Em cada nada é o todo que defende.
730 - Segredo
Dos outros o sucesso atribuimos
A algum segredo especial, por vezes,
Golpe de sorte, quando não corteses
Tráficos de influências que zurzimos.
Mas o sucesso raramente vimos
Tão misterioso assim, já que os reveses
Ferem aqueles cujos maus arneses
Expõem flancos donde os entrevimos.
Apercebemo-nos aqui e além,
Mui repetido, que quem obra bem,
Sem descurar o que puder fazer,
A recompensa receber irá
Mais breve do que pensa, desde já:
- Mais ter também provém a um melhor ser.
731 - Controlo
Onde reside sobre as nossas vidas
Melhor controlo que no agir pequeno?
Coisas pequenas são de alguém sereno
Matriz primeira de qualquer das lidas.
Não é no imenso que me a mim convidas,
Que me ultrapassa, qual letal veneno;
Sobre o rasteiro voará o sileno
E deste perto é que irão longe as idas.
O pormenor me assegurou, compensa:
Fiado em mim, já desafio além
E assim dos nadas colho a recompensa.
E, de mim mais senhor, viso também
Desta pequena ponte a mata densa
Do meu melhor onde irei ser alguém.
732 - Julgamento
O que um bom julgamento requerer
De pensar ou sentir, é de viver
Que, ao fim e ao cabo, iremos precisar
Para a sério talharmos seu lugar.
O pensamento e a experiência são
O par do julgamento, em conclusão;
Porém, experiência feita à sorte
O nosso julgamento leva à morte.
Que se um bom julgamento nos resulta
Apenas do que for a experiência,
A verdade é que para ser bem culta
Esta demonstra uma esquisita essência:
Aquilo que experiência nos faculta
É dum mau julgamento uma evidência.
733 - Corrida
A vida é uma corrida sem descanso
Que nos principiou antes do início,
Já que fomos dotados de tal vício
Da Humanidade que não tem remanso.
Desde o ventre materno que me canso
Para ser e devir até o solstício
E disto fica sempre igual resquício
Quando o fim se aproxima calmo e manso.
E o curioso do cruel destino
É que já fui assim antes de ser:
Um espermatozoide sem mais tino
Os mais bateu e então me fez viver.
Sou, portanto, este fruto da corrida
Que me antecede e me atirou na vida.
734 - Ouvir
Se quiser dar-se bem com toda a gente,
O cônjuge, a família, os mais chegados,
Quando chega o momento de ouvir, tente
Perceber, já com todos os cuidados.
Momento de escutar silentemente
Que requer gestos de atenção dobrados,
Olhos nos olhos, inclinado em frente,
Com a cabeça a inquirir os dados.
Isto fará sentir-nos à vontade.
Mas a mensagem que nos logo invade
É a de quanto o parceiro nos importa,
De quanto nos importa quanto diz
E de como ouviremos de raiz
Todo o segredo a que nos abra a porta.
735 - Amigo
Com um amigo a sério tu não vais
Precisar de fazer uma outra coisa
Que não seja poisar a tua loisa
De lado abandonada à beira-cais.
Duma amizade os mais fiéis canais
Não são tarefas onde a acção repoisas,
Desvios da ansiedade onde tu poisas
Quando sem isso vês que vos não dais.
O verdadeiro teste da amizade
Não precisa de metas nem desvios,
Senão não tem assim tanta verdade.
A sério é conseguir não fazer nada
E sentir-se tão quente em meio aos frios
Que da vida esta é a vida mais sagrada.
736 - Diferente
É difícil ousar ser diferente
Suportando a pressão dos companheiros
E mais ainda quando, a andar ligeiros,
É o peso do sistema que se aguente.
Um amigo, porém, provavelmente,
Não cairá assim pelos boeiros
A não ser que não sejam verdadeiros
Os signos da amizade que ele ostente.
Tanto mais que, se alguém tem a ousadia
De divergir da ordem implantada
No poder, no saber, no dia-a-dia,
Poderá elucidar que ela anda errada:
Maturidade nisto evidencia
E a coragem de abrir-nos nova estrada.
737 - Não
É preciso aprender a dizer não
E é tão difícil a quem ainda é jovem
Quando são companheiros que o demovem
De ser inteiro com os pés no chão!
E, contudo, negar é a condição
De vir as forças afirmar que o movem
E que fronteiras afinal removem
Para torná-lo no que os homens são.
Fragilidade que por fim se vence
Quando de que é importante se convence,
Tem auto-estima e pesa quanto faz.
Ainda mais longe vai quando ele escolhe
No cais da vida qual vai ser seu molhe:
Firma seu não no sim de que é capaz.
738 - Firmeza
"Eu sempre te amarei" - dá uma
certeza
A um adolescente já perdido,
Anónimo entre os mais, votado ao olvido,
De que algures a terra tem firmeza.
E a situação, mesmo fatal, não pesa,
Apresenta-lhe um fio de sentido,
No peito cala-lhe o mordaz gemido,
Tanto lhe empresta quem assim o preza.
Uma palavra significa mais,
Evita a crise prestes a estalar,
Quão mais na barca significa o arrais.
E assim pesará mais que se imagina,
Para um moço ir além de qualquer par,
Que de amor quem ele ama talhe a sina.
739 - Paralelos
O amor tem paralelos que o igualam,
Quer seja amor da pátria ou namorado:
Na beleza radicam nobre fado,
Miram a altura, tomam pé e alam.
Também o que seus gestos intervalam
Já por um som de passos é inflamado,
Um mero menear, cabeça ao lado,
Chispa as faíscas que mais fundo calam.
Tal é o segredo do país natal
Que se reaviva por visões comuns,
Como a neblina por sobre o nabal,
Num marmeleiro frutos bons alguns...
Será sempre através desses tais nadas
Que eternas ligações são avivadas.
740 - Ver
Aguardas que teus sonhos interprete,
Quando os teus são tão meus que nem os
vejo,
E mais te irritas por não dar-te ensejo
De rever o que em ambos se repete.
É que ao amor, aliás, sempre compete
Das manobras comuns soltar o harpejo
E dentre os desencontros o desejo
Reencontrar então que os nós encete.
Anseias por que, cega, esta visão,
Em ti perdida, em mim venha a crescer,
Já que defronte te terei à mão.
Correspondendo, corro a pôr-me ao lado,
Mas a vista não pode nunca ver
O que sobre ela mora repousado.
741 - Juventude
Se procuramos definir a vida,
Sempre ela foge, escorre dentre os dedos
E sempre foram de anciãos os medos
Que para o Além a dão por remetida.
Aqui, porém, é que será cumprida,
Por muito que o confundam velhos credos,
Que o segredo maior dos mais segredos
É que é p'la vida além, indefinida,
Que fica a porta aberta ou encerrada.
É que esta vida, enfim, mato ou renovo
Quando aos vindoiros fecho ou abro a
entrada.
Nos jovens é o porvir que nos convida:
A juventude arranjará de novo,
Alegre e sempre aqui, uma outra vida.
742 - Desgraça
Quando a desgraça nos bater à porta,
Somos iguais ao comum rol das gentes,
Ficamos pobres, todos já dementes,
E nenhum gesto pouco mais importa.
A mão erguida ou a cabeça torta,
Mudo sibilo escapando entre dentes,
No aristocrata tanto lá o pressentes
Como no mísero quenquer reporta.
E, se estrondosos devirão marulhos,
Todos acorrem a delir os tons,
Com gestos tais como quem dá mergulhos
Lentos, sofridos, que só tais são bons:
- Parecem, brandos, segurar barulhos,
Apalpam dos tamancos mesmo os sons.
743 - Desabar
A solidão solene de respeito
Se reveste somente ao desespero
Que se apodera do homem, por mais fero,
Quando vê desabar-lhe sobre o peito
A crença antiga que o lavrou a eito.
Prestes a aluir tudo o que quero,
É no silêncio que, fiel, sincero,
Ao peso vergarei do morto preito.
Mas o homem recusa-se a quebrar
A confiança que em si já depõe,
Que, ontem perdido, lhe ofertou lugar.
Só que já o coração não se lhe opõe
Ao poder dos eventos nem, a par,
À angústia com que, lento, o decompõe.
744 - Sonho
De antanho chegam marcas do passado
Cujas glórias morreram na poeira,
Vidas e sonhos, sem haver maneira
De evitar que trespassem mesmo ao lado.
Tantos projectos e fatal canseira
Para no fim não restar mais que o fado
De tudo já ficar predestinado,
Desde antes de ser algo, a ser caveira.
Entregue às feras sem ter pão nem pau,
É prisioneiro que entrevejo os fossos,
Não tenho ponte nem os passo a vau.
Como um mar coalhado de destroços,
A vida é já de si um sonho mau,
- Então por quê lá misturar os nossos?
745 - Muro
Diante de mim quando nasci nasceu
O muro que de mim me dividiu.
Quanto mais furo mais se afasta o muro
E não encontro então o que procuro.
Porém, encontro alguma coisa, enfim:
É sempre um lado que é um além de mim,
Mas que, embora além, é sempre um aquém
Deste muro que tenho e que me tem.
Como será que um dia nele passo
Se sou muro e jamais eu me ultrapasso?
Sou muro, sou e à sombra desta pedra
Sou a minhoca que no fresco medra.
À pedra, - "dá-me tempo que te
furo!"
- Diz a minhoca e cairá o muro.
746 - Delícias
Realidade? Não consigo ver-me,
Quero demais se me quiser ver gente,
Sempre aqui fico, nunca vou em frente,
Na terra condenado a ser um verme.
Assim doi mais em mim ver este germe
Dum outro ser que me porá demente.
Minha razão é uma razão doente
Que em mim só busca o que fará doer-me.
A vida em volta não me traz carícias,
Antes me aumenta incontroladas gritas,
De tanta morte em que mudou blandícias.
Na vida só contra as fatais sevícias,
Só em sonho vejo e vejo-as infinitas
Do imaginário todas as delícias.
747 - Segredos
Os mais recônditos segredos fiam
No tear dos dias o melhor da teia,
Novelos de lã fiam e desfiam
Mas quem desfia o que o segredo ameia?
Basta encontrar o fio que seguiam
As voltas da meada em que se enleia
A jornada dos homens que se viam
A perseguir, febris, a lua cheia.
O fio... Mas que fio, onde se encontra?
Onde puxar nesta enleada meada?
Da raiva humana onde encontrar a montra?
O drama é que não há fio na estrada,
Atado cada qual se desencontra
Da vida numa vida só fiada.
748 - Demasia
É na medida que me perco ou ganho,
Embora sem medida o tempo corra
E me arrebate, faz que viva ou morra,
Soltando o gonzo à porta do cardanho.
Enquanto a vida lavra, meu amanho
Empresta-me a saudade que decorra
De quanto além dos montes mago ocorra:
Nem aqui vivo nem por lá me apanho.
Todas as coisas boas são, se boas
Também são as medidas deste ingresso
Em que as tomo, as recuso ou então dou-as.
Quebrada a linha, não há mais regresso:
Comendo em demasia é que as pessoas
Se matam porque vivem em excesso.
749 - Defeito
O passado não volta nunca mais
Por maior que no sonho ele se toque,
Por mais que a vida nele se coloque
A fazer-nos negaças ou sinais.
E o presente, por cima, anda a reboque
Correndo à desfilada, por demais,
Rumo ao futuro que não é jamais,
Nada se pode misturar-lhe ad hoc.
De que me vale num pomar desfeito
Sonhar sabor a uma perdida nêspera
Senão para sofrer mais em meu peito?
Sempre padeço dum fatal defeito:
Não se pode ter sonhos para a véspera
Nem amanhã fazer um ontem feito.
750 - Pedir
Corremos sempre em busca da verdade
E as dúvidas nos saem ao caminho
Sem que as mentiras soltem no cadinho
Toda a ganga que arrasta a falsidade.
Saltamos confundidos toda a idade,
De era em era mudamos nosso ninho
Sempre em busca dum gesto que, adivinho,
Jamais dá conta da falaz vontade.
Uma certeza era a veraz medida
Definitiva a nos manter de pé;
De passageira, nem até convida...
Não há certeza mas nos basta a fé,
Pois, quando nada se pedir à vida,
Que pretendemos nós que a vida dê?
751 - Sobressai
Não é que vá julgar-me irracional,
Já que razoável é o destino nosso.
Só que a razão comemo-la ao almoço
Co'a sobremesa do etc. e tal.
A minha vida é sempre um vendaval
Desnorteado após o qual não posso
Guardar a fruta sem guardar caroço
E o peso deste é o que me faz mais mal.
Sento-me à mesa e vou querer café:
Quando mo servem, o que ali não vai
É aquilo de que logo me dou fé.
Em nossa natureza sobressai
Aquilo que não é em vez do que é:
- Por que tal maldição em nós recai?
752 - Príncipes
Para uma jovem os rapazes novos
São sempre príncipes que irá encantar
E que a encantam tal como aos renovos
Duma fruteira dum qualquer pomar.
Todos os ninhos em que chocam ovos
Se lhe revestem do mais fértil ar,
Nem as galinhas põem mais nos covos,
Basta querer, que vai-as transmudar.
E com aquele que se escolhe um dia
Vão as jovens em busca do tesoiro
Por todo o mar aberto à fantasia.
Toda a choupana então perde o desdoiro
E se converte em sol e maresia:
A casa de ambos é talhada de oiro!
753 - Refúgio
Refugiado dentro em mim eu posso
Ver tudo quanto à minha volta corre,
Na estrada ou campo, no arraial, no poço,
Apanho lenta como a vida escorre.
Em meu redor escavo tal um fosso,
Que eu além vejo mas de lá nos morre
Qualquer olhar que, atravessando o troço,
Esta distância entre nós dois percorre.
Sem por ninguém ser visto aqui me escondo
Neste âmago de mim em que vou pondo
De cada dia as contas e os adeuses.
Aqui vivo inviolável, porém noto
Que meu refúgio desafia o ignoto:
Não é refúgio meu, acolhe os deuses!
754 - Deus
Aqui na quinta, em meu terraço, avisto
Minha alma gémea pelo espaço além:
São as estrelas que este pinhal tem,
O além aqui, em tudo quanto existo.
Sou eu e Deus quando num passo insisto:
Se planto as frutas e o jardim também,
Melros e coelhos quando até cá vêm
Sou eu já neles, cada vez mais visto.
Em minha quinta passearão os gamos.
Tão pouco sei e em tanto deixo um traço,
Tão grande e diminuto é o que ignoramos!
Aqui, pequeno, o mundo inteiro abraço:
Eu pairo como um deus por sob os ramos
Quando ando meditando em meu terraço.
755 - Abismo
Assim como os caminhos da montanha
Para um abismo subitamente dão,
Assim os sonhos duma jovem são,
Por mais esperta ou por mais tacanha,
A traiçoeira rota em colisão
Que dá num precipício que a abocanha.
Abertos ao ignoto, apenas manha
Nos pode ir defendendo da ilusão.
A busca dum amor desconhecido
Que não se encontra se não for num sonho
Jamais se nos consuma, garantido,
Devém um pesadelo, o mais medonho.
Somos todos a jovem sonhadora:
Perdemos o que perde na demora.
756 - Mensageiro
Por pouco que conceba uma alegria,
Supõe um mensageiro que lha traz
Toda a imaginação, por mais que, fria,
O capricho controle que lhe apraz.
Só que, assim operando, o que nos faz,
Se nos ensaia toda a romaria
E nos arranca ao que nos prende atrás,
É que nem sempre o sonho principia.
Supor um mensageiro à fé conduz
Que do Além venha e nos acenda a luz
Que nos rasgue os caminhos da distância.
Só que a entrega será sempre ilusória
E da aventura a maior nossa glória
É que é por mim que eu ultrapasso a
infância.
757 - Viúvas
Chorar o antigo já que feneceu
É no passado alicerçar caminhos,
Embriagar-se com os velhos vinhos
Dos cascos esquecidos sob o céu.
Mas é também já colocar ao léu
Quanto ao futuro se entretêm carinhos,
Pois, se ao cadáver se retiram linhos,
É que algo dele à vida revolveu.
Somos viúvas só que sobrevivem
Semeando quantos sonhos já viveram,
Para que ao despontarem nos avivem
A presença das ausências que se esperam.
Ah! Todas as viúvas no fim vivem
Sempre com o marido que perderam.
758 - Vi
Vi muita coisa, muita coisa vi,
Foram cabelos de soalheira ao vento,
Da guerra horrores, morte a fogo lento,
E jamais sei se o terei visto aqui.
Será que vi ou o amargor senti
Que figurou as marcas do tormento?
Ou antes foi a fuga ao esquecimento
Que em mim gerou o que jamais vivi?
É constrangido pelo que é presente
Que me revolvo frente à confusão,
Em busca dum critério que argumente.
Não saberei jamais o que é evidente:
Se sou eu que me talho uma ilusão,
Se é o mundo a rir de mim e em mim
assente.
759 - Estrada
Calcorreei lonjuras pela estrada,
A tua estrada que não vens correr.
Porém, é a tua, nesta espera adiada.
Volta depressa que ela te requer,
Antes que alguma vez, toda estragada,
Já nos buracos se não logre ver
E arrependida, noiva rejeitada,
Nenhum caminho tenha a oferecer.
Não sei se viste que por cá ficaste,
Preso nas curvas tanto que os sentidos
Não são os que pregaste em qualquer haste,
Antes os que, nas pedras embutidos,
Com teu suor em sonho semeaste
E aqui teus pés aguardam combalidos.
760 - Medo
Preciso é não ter medo de ter medo
Pela primeira vez que trepo ao topo.
É preciso saber erguer o copo
Mesmo se é sobre o fim de qualquer credo.
É preciso o terror que me concedo
Para me rir de meu sagrado escopo,
Com a coragem com que o apocopo
Das ilusões que mo tornaram ledo.
Passámos noites no entrincheiramento,
Todos ali, meus pobres companheiros,
Sofrendo a fome e frio do relento,
Todos iguais: não somos os primeiros,
No amor, na guerra, a imaginar o invento
Que nos poupe os fracassos derradeiros.
761 - Anteparo
Os vivos abrigavam-se por trás
Dos mortos que lhes servem de enteparo.
Era a lei que preside ao que nos traz
A catástrofe, o mal, o qual não raro
A reboque nos põe o que é capaz
Do que, já morto, nem que seja caro,
Em nada do que é vivo é já eficaz
E assim já só merece tal reparo.
Então nos colherão fatalidades
Porque cremos virar contra a desgraça
A maior que na noite das idades
Nos promete alforria e que não passa
Do eterno enterro só das liberdades:
- A morte a comandar a nossa praça!
762 - Combate
É a vida tal combate permanente
E nós, os guerrilheiros desarmados
Que na selva, em taludes, à mão tente,
Atentos nos mantemos emboscados.
Mas na espera o inimigo não consente
E nos ataca de imprevistos lados,
Sempre a forçar-nos ao horror premente
De ser ele a talhar os nossos fados.
E assim corremos, esgotados, rotos,
Marchas forçadas sem ter mão nos actos
Que este destino contra nós nos talha.
Eis porque arfamos, descambados, botos,
Nossos pés dentro e fora dos sapatos,
Prò derradeiro posto da batalha.
763 - Resumir
Toda a vida podemos resumir
Nestes dois passos desta contradança:
O primeiro, a ilusão que nos alcança;
O segundo, o vazio que há-de vir.
No primeiro é que iremos investir
Em sonho toda a freima que nos cansa.
Do cimo da utopia então nos lança
O segundo aos abismos do nadir.
A felicidade era uma ilusão
Que breve se finou p'ra nunca mais,
Longo vazio fica em seu lugar,
Pois nisto a vida se programa então:
Pobre visão de ser feliz jamais
E, após, toda uma vida p'ra chorar.
764 - Sombra
Eu sou a sombra do que vai morrer
- Diz-me ela, sempre a perseguir meus
passos.
Por mais que eu desabroche nos espaços,
Sempre, discreta, embota o que eu fizer.
Só que é um sombra o que no fim se quer,
Já que na vida os mais fiéis abraços
Têm das quimeras luminosos traços,
É o que apaixona em quanto se quiser.
É porque busco as sombras, alumbrado,
Que na que me persegue em todo o lado
Nada me ocupa nem a alisto ao rol,
Já que é na vida, nesta vida minha
Que acabo decifrando-lhe a adivinha:
- Viver na sombra é perseguir o sol.
765 - Consciência
Se nada sou e nada venho a ser,
Que devirei neste meu dia-a-dia?
Sempre diverso, enfim me igualaria,
Tudo mudando só p'ra me manter.
Tudo o que sou terá pouca valia,
Sou desbotada mancha em rosicler,
No restaurante entrei sem ter talher
E morro à fome a ver toda a iguaria.
Se nada sou e nada já serei,
Que é que me identifica com a grei
Como enjeitado aqui da transcendência?
Que de mim se não resta mais memória,
Por quê todos os sonhos duma glória
Que sonho desde que tomei consciência?
766 - Glória
Ingénua é toda a glória e mais ainda
Se pretendemos registar memória
Do que na vida foi fugaz vitória
Duma outra vida que sonhámos linda.
Cremos, porém, que lhes será benvinda,
Em vida e aos bafejados pela glória,
A sagração de que os aureola a história,
Na solidão nesse entretanto advinda.
Foi normalmente com vontade estrénua
Que procuraram essa, a mais ingénua
Modalidade de buscar o sonho.
Pois bem falazes são triunfadores
Quando, infantis, se sonharão senhores...
- Que abandonados é no pó que os ponho!
767 - Sofrer
Sofro por ver sofrer quem é como eu,
Embora a crueldade aqui dormite
Porque, se é com a dor que o fraco fite,
Penetra fundo nele este olhar meu.
É um escalpelo, um bisturi que ergueu
Cada camada em sangue do palpite
E nem por ser da mente deixa quite
A minha dívida com quem sofreu.
Mais afiada que se for navalha,
Seu gume corta, rasga aonde calha
A inexorável ânsia de entender.
Mas em nada altera a minha atroz verdade
De que mantenho a cruel capacidade
De me doer por ver aos mais doer.
768 - Falarei
Da juventude falarei, da infância,
Indefinidamente em cada vez,
Pois é do mundo inteiro uma fragrância
Que tento descobrir neste entremez.
Só que não basta, p'ra calar minha ânsia,
Uma cronologia ali resvés,
Nem factos isolados, à distância,
Da misteriosa progressão que os fez.
O passado não há-de reviver
Por magia de histórias recontadas
À mesa, sem sabor, por um qualquer.
Ah! Só reproduzindo-lhe as entradas,
Horas, cenas onde ele nem sequer
Daria conta que eram já passadas.
769 - Solidão
Um secreto local, jardim fechado,
É um pedaço frugal de solidão,
Pequena pátria enxertada ao chão,
Com a fronteira a vir fechar-se ao lado.
É lá possível viver isolado
Do que decorre além do muro então,
Qualquer vizinho passa a ter condão
De ser herói ou príncipe encantado.
Longe, a cidade é como o vil cenário
Por onde cambaleia o mundo vário.
O tempo escorre lento como um sonho.
E só cá dentro podem penetrar
Factos de lenda de nenhum lugar
Em cuja cama o coração deponho.
770 - Vai
À nossa frente, que tens tal direito,
Vai, juventude, que herdas o futuro.
Nas cinco chagas que carrego ao peito
Paguei meu preço do melhor que auguro.
Por entre as campas segue, com preceito,
As rotas que ultrapassam o monturo.
Com altivez e digna, olha o conceito
Com que jurámos ir além do muro.
A cada passo mais te compenetra
De teu papel de nossa segurança
E além o ignoto com teus pés penetra.
Dá-nos em ti esta suprema aliança
Que a Humanidade desde sempre impetra
A um infinito que jamais se alcança.
771 - Manhã
Não é impossível continuardes tristes
Quando cada manhã que vos desponta
Consigo um novo sonho vos aponta
Iluminando como nunca vistes.
Com esperança renovada existes,
Já deslumbrado p'lo fulgor sem conta,
E às festas então tudo te remonta
Com a alegria com que ali resistes.
Novo projecto rasga a direcção
Que de futuro vais talhar à vida,
É a romaria a tua condição.
Por isso te preparas para a ida
Com o furor do que não tem perdão
E a raiva duma eterna despedida.
772 - Modas
Os semanários e as revistas são
Mais do que apenas o jardim das modas,
São sobretudo quem instiga em vão
As esperanças a nascerem todas.
Devido a eles é que é uma ilusão
Pensar que é regra que se chegue às bodas
Quando uma cinderela é uma excepção,
Carros de príncipes não têm rodas.
A vida cheia de sonhar com fadas
Que nem sequer precisarão casar
Para passear em carruagem real...
É de ilusões que abrimos as estradas
Que o sonho e a vida tentam pôr a par
E eis quanto bem nos pode vir dum mal.
773 - Depressa
Por que motivo marcar passo tanto
Quando hoje em dia tudo é tão depressa?
Foi de repente que chegou o encanto
Que nos coroa ou não nossa cabeça.
De obscuridade à glória vai um pranto
Que num momento apenas atravessa
A vida inteira de quenquer, enquanto
Nem tempo resta para que ele o meça.
Depois, porém, não é um sucessozinho,
Degrau de escada que nos vai bastar
Quando provámos o sabor do vinho.
A embriaguês inteira é, se calhar,
Única meta já por que amarinho
E assim perco meu tempo e meu lugar.
774 - Célebre
Ser célebre, hoje em dia, é ter dinheiro,
Muito dinheiro a ponto de se não
Saber que fazer dele por inteiro.
Êxito com fortuna a mão se dão
Como um amante com o seu parceiro.
Assim a qualidade morre então
Como critério do valor primeiro
E pode até constituir senão.
Por isso nem mesmo há necessidade
De pensar nem de ser p'ra celebrado
Devir em nossa negregada idade.
Como sempre, hoje o bom será ignorado
E, à margem, na pobreza, o génio há-de,
Obscuro, ir entalhando nosso fado.
775 - Preconceito
Nunca a razão humana nasce jovem,
Do preconceito terá sempre a idade.
De quantos movimentos mais nos movem
Este é o da mais voraz precariedade.
À medida que os anos nos demovem,
O corpo só nos traz fragilidade,
Mas enquanto as ossadas se removem,
O espaço é o da razão que sobrenade.
Assim é que envelheço aqui por fora
Peneirando-me dentro do farelo
Que teima em misturar-se na farinha.
Minha idade é a da vida que demora
A depurar a ideia por que velo
De antolhos com os quais se me avizinha.
776 - Êxito
Um êxito é um segundo nascimento
Para o jovem que busca outros direitos.
Só para os velhos que perderam jeitos
Convém da promoção o passo lento.
Metamorfose de instantâneo alento,
Salta a crisálida a voar dos leitos
De donde, apenas ao que é sonho afeitos,
Cantam os jovens do universo o invento.
Assim é que, instantâneos, as entradas
Basta empurrar e logo um outro mundo
Crêem que brota, as faces demudadas.
Conquistam a vitória num segundo.
Porém, estas borboletas mal asadas
Somos nós, afinal, aqui no fundo.
777 - Bomba
A bomba nuclear é destes anos
E é própria de quem anda a olhar o umbigo.
Arte de falar de arte era o castigo
Se de arte não vêm obras mas enganos.
Sem inventiva, aquilo a que eu me ligo
É a reviver os mágicos arcanos
Que antigamente já evitaram danos,
Só nisto eternos fitos me persigo.
Nem a bomba, em verdade, é o que nos marca
Em nosso século com tal tamanho
Que esta estatura não resulte parca.
Pois quem da bomba atómica tem ganho
E quem de seu invento as glórias arca
São as estrelas que jamais apanho.
778 - Glória
A glória a sério é uma longa estrada,
Difícil piso cheio de buracos,
Por onde a troco, enfim, de alguns patacos
A maioria morre de cansada.
São gerações mais gerações e nada!
Lutando sempre com a vida em cacos,
Só na velhice alguns cobram uns nacos
De êxito p'ra enganar a fome adiada.
Quem pretende ter fama com vinte anos,
Cometendo um desvio de menores,
Viola quantos filhos terá Deus.
Ao caminhá-la, a longa estrada dá-nos
As letras com que o cheque dos valores
Nós assinamos na ascensão aos céus.
779 - Peçonha
De juventude ó meus amigos, vede
Há quantos anos esperais a glória!
Só na velhice o leito da vitória
Compartilhais de amantes com a sede.
E aos que nos precederam ainda, crede,
No leito moribundo, mera escória,
Ou já no cemitério, a voz da história
Só um lugar póstumo ela então concede.
Grandes malditos pela história além,
No desespero, são nossa vergonha,
Injustiçados que não têm ninguém.
A maldição, porém, onde hoje a ponha
É nos vinte anos ricos dos que os têm,
Que este rico inça a vida de peçonha.
780 - Pobreza
É da pobreza impiedosa a lei:
A economia arrasta mais despesas.
Se poupo no calçado é porque irei
Dum autocarro alimentar as presas.
Se corto na dieta, já nem sei
Se à fome não suporto mais cruezas,
Se às mãos do boticário me entreguei,
Se às duma santa, com promessa e rezas.
Só sei que, quanto mais por cá me arrasto,
Mais pela areia se me afunda o rasto
Antes que enfim me arraste a mim de vez.
Ser pobre é ter letal sina maldita,
Que quanto mais me caso co'a desdita
Mais se me aumenta minha viuvez.
781 - Vejo
Por vezes é no inverso que se encontra
Um eco que responde ao nosso grito.
É quando atinjo o fundo, bem aflito,
É quando em lado algum, nenhuma montra
Me expõe a vida, quando a mais não fito,
Que busco o responsável, o bilontra
Que as portas nos fechou e que assim
contra
Nós lançou as portadas do infinito.
Da ganância o cavalo, à rédea solta,
Sob as patas a todos atropela
E eu vivo a vida na injustiça envolta.
Então, em desespero, abro a janela:
- Mais a noite escurece à minha volta
E mais vejo brilhar a minha estrela!
782 - Acabe
O destino dos pobres enjeitados
Pode aumentar a confiança em si.
Entre os caídos quando não caí,
Entre os esparsos por qualquer dos lados
Por onde se esvai vida aqui e ali,
Nesta excepção é que confirmo os dados
Com que me convenci dos resultados:
Invulnerável sou, sobrevivi.
Assim é que caminho, sempre aparte,
Andante cavaleiro frente à injúria,
Disponível e atento em toda a parte,
Não me lembrando mesmo, por incúria,
Que algum dia a desgraça uma outra acarte
Que então de vez me acabe a voz e a fúria.
783 - Relógio
Por mais altiva que se busque a aurora,
Por mais que o meio-dia se acalente,
Por mais que a noita já nos mande embora,
O que nos marca é que assim se vai em
frente.
Mas há momentos em que soa a hora
De o limite encontrar e, de repente,
Quando muito é o destino que nos chora,
Que a vida se nos fica na corrente.
Então de nós já nada mais restara,
Acresce o nome ao fiel martirológio,
Já que uma vida só se quer em vida.
A força de vontade fraquejara:
Relógios de luxo, somos um relógio
À partida co'a corda já partida.
784 - Lua de mel
Lua de mel, tempo de amar o sonho...
Anda o príncipe amante a passear
A princesa volátil pelo luar,
Longe das feras de rugir medonho.
Através das ruínas, o tristonho
Dum império caído, ali a par,
De deslumbrados, nem irão olhar,
Trincando o breve, sápido medronho.
Aquela terra não é a sua terra,
Sonham com um país donde forçados
Acabarão fugindo escorraçados.
Neste destino o que mais doi e aterra
É abandonarmos todos nossos paços,
Falhados príncipes, fatais palhaços!
785 - Sério
A vida a sério, a sério o que a distingue
É uma sabedoria tão discreta
Que a quem a busca às vezes é secreta
A receita que faz com que ela vingue.
Assim ocorre que ela sempre mingue
E quantas vezes nem atinja a meta
Quando de alguém uma atenção concreta
Se lhe desvie p'ra carreira pingue.
Torna-se então pessoa tão distinta
Que, se o não fora, então seria sábia,
Mesmo levando a correr menos tinta.
E assim eis como, pela rasa lábia,
Se faz obliterar toda a excelência
Que à vida traz um eco da ciência.
786 - Felicidade
Uma só noite vem às profundezas,
Além da consciência penetrando:
É paisagem ou sonho, é o outro quando
Descubro que encobriu novas belezas.
Nessa altura tão fora de mim ando,
Tão longe do cotio, que asperezas
Já sobre mim só partirão as presas,
Ardo feliz em fogo lento e brando.
Vivo o acordo
tranquilo com a vida,
Já não me sinto dominar o tédio,
Até uma ideia fixa já me olvida.
E aqui do tempo eu edifico o prédio
Em que a felicidade já demora,
Embora eu nunca lhe conheça a hora.
787 - Desapareçam
Desapareçam, vá, desapareçam
Quantos em berços de oiro principiam
E pela vida fora se iludiam,
Sempre de berço, p'ra que o não esqueçam!
É que não há medidas com que os meçam
Ou, ao invés, as braças que os mediam
Em contra mostram que por lá não iam
As pretensões com que eles nos impeçam.
Já não consigo mais nem suportar
Tanta gente pequena, o peito alçado,
Com os pés a pisar todo o lugar.
Não é de fúria, não, mas agoniado:
- Desapareça, suma sem mais guerra
Quem simula e não é o centro da terra!
788 - Força
Da vida a força, quanta maravilha!
Quanta precaridade a atinge enfim
E como se renova, ervilha a ervilha,
Eterna rejeitando cada fim.
Como tudo isto, fora ali de mim,
Tão pouco em mim me diz de quanto brilha!
Que a vida, se renova meu confim,
É quando no meu rio assenta a quilha.
Só nas pessoas que realmente os amam
É que seus ecos bem profundos bramam!
E as energias sãs que proliferam
Escolhem, amorosas, os que esperam:
- Neles arvoram, qual bandeira erguida,
Maravilhosa, a força que é ser vida!
789 - Juventude
Nunca a nós próprios confessamos, calmos,
Que aquilo a que chamamos juventude
Se transforma tão rápido, em virtude
Dos anos que por ela passam almos.
Como são poucos os mais belos salmos
Que em vida ouvimos, com que nos ilude
Do tempo o trânsito de que eu mal pude
Medir a pressa com meus curtos palmos!
Nada desaparece tão depressa
Nem se transmuda assim tão velozmente
Que nem uma ilusão ali começa!
A juventude acaba, outra é presente
Que de igual modo tão veloz tropeça
Que tudo assim vai ser eternamente.
790 - Mudança
Meu bairro muda, muda o continente,
O mundo inteiro vive na mudança.
Mudando tudo tanto e velozmente,
Sem marca alguma de lograr parança,
Nem mesmo de travar-se, de repente,
O que quenquer aqui de facto alcança
É de devir com tudo diferente,
Indiferente a quanto tudo o cansa.
São modificações os nossos dias
E, longe de devirem excepções,
Para nós serão já monotonias.
Mudar é tão igual que o que supões
É que a igualdade enfim que estranharias
Seria a de parar as mutações.
791 - Resultado
Falamos todos já num resultado
E nada além do sonho ainda buliu.
Porém, com tudo quanto se investiu,
Podia o mundo inteiro ter mudado.
Tão perto e tão distante o sonho meu,
Aqui à mão para, afinal, o dado,
Depois de me exaurir desesperado,
Em fumo se esvair, nuvem no céu!
Buscamos o poder para mudar,
Mudamos tudo, pouco nos importa,
A ver se se nos abre outro lugar
E nunca outro horizonte se recorta:
É a bomba atómica e não faz saltar,
Já não a vida, nem mesmo uma porta!
792 - Abismo
Bastam uns anos para se ir cavando
Um abismo entre os seres que se amaram.
Quando cinco ou seis anos separaram
Pessoas, não são mais do mesmo bando.
Do mesmo meio já se desligaram,
Nem os mesmos desejos, gostos quando
Reateiam de antanho o lume brando,
Nem as paixões mantêm que adoraram.
E o que consuma o abismo da distância
É que os amigos já não logram mais
Nem ao menos sequer compreender-se.
Pois quando falam, fala neles a ânsia
De quem se busca sem se ver jamais
E todos no mutismo irão perder-se.
793 - Desacordo
Motivos falsos são que em desacordo
Nos vêm colocando com a vida,
Destino em que se encontra desabrida
A multidão por entre a qual acordo:
Toma sempre o caminho em que impelida
Tomba, fatal, em meio ao pó que mordo.
E aqui vou arrastado ao que discordo,
Pagando as custas sem pagar guarida.
Sempre a vaidade ali nos justifica:
Bem atrevidos mergulhamos no erro
E jamais alguém quer retroceder.
É o modo por que a vida se autentica:
Não é com meu silêncio ou com meu berro
Que aquilo que é nos vai deixar de ser.
794 - Aprende
Espanta o que se aprende com a idade.
Primeiro o que na infância nos encanta,
Quando veloz a vida se decanta,
Aos mais velhos enchendo de verdade.
E os estádios etários em que espanta
De mudar uma tal capacidade
Que atordoa a maior velocidade
Mais do que a aprendizagem devir tanta.
Em cada mês que passa, a sensação
É muito mais do que a de que eu mudei,
Mais do que sei o que os mistérios são:
Mês a mês o que a mim se deparou
Será que inteligente me encontrei
Infindamente mais que eu próprio sou.
795 - Silêncio
Como uma pedra este silêncio cai
Na solidão. Será da guerra a morte
Que assim nos talha em desespero a sorte
Ou é nossa alma que de nós se esvai?
Antes será que a plenitude trai
A minha voz de espanto e me conforte
Com as paisagens que vão dar o norte
Ao que me busca e de mim nunca sai?
São meus limites que me assim provocam,
Seja o do nada, seja o do infinito,
Um que me mata, outro por mim que medra.
Ambos assim da raia me convocam
Quando abismal se me calou meu grito
E no silêncio talham minha pedra.
796 - Liberdade
Se juntos festejamos nossa idade,
Se brindamos ternura, todo o dom,
Mesmo o da vida, é o que nos marca o tom:
Aqui nasce o país da liberdade.
Se o desejo que fundo mais me invade
É os dias partilhar como o que é bom,
Ouvir, na dor, ainda em festa um som,
Aqui nasce o país da liberdade.
Se longe de explorar-te a mim me exploro,
Se em vez de a ti me impor, antes te
imploro
E se igual for em ti esta verdade,
Então juntos abrimos a fronteira:
- Venha o mundo morar à nossa beira,
Que aqui nasce o país da liberdade!
797 - Nada
Tudo isto olha-me bem, que é tão bonito!
Também tens o direito à madrugada,
Não sejas tolo, o troço duma estrada
É quanto basta a um coração aflito.
Entre colinas, pode ser um nada,
Um pouco de ar, de sol e me desquito
De quanto peso em mim há de granito,
Sou pedra, sou, mas uma pedra alada!
Há tudo o que se vê mas há também
Estoutro ambiente, a circunstância envolta
Na neblina do sonho que nos tem.
Não imagino o que nos fica à solta.
Só sei quanto a paisagem nos convém
A quanto grito em nós cava a revolta.
798 - Derrotados
Se somos derrotados, não é a guerra
Que havemos de perder, mas muito mais.
Ao perdermos a guerra, mais sinais
De nos perdermos é o que mais aterra.
Porém, quem aqui fique ainda mais erra,
Que o que se nos afunda em lodaçais
Com os despojos é sempre demais,
Porque ultrapassa quanto em nós se aferra.
É que, ao perdermos, perder-se-á o direito
De nós sermos o que éramos e então
Jamais os sonhos nos terão o preito.
Com eles morrerá toda a ilusão:
Entre os destroços o que irá morrer
Será o que poderia vir a ser.
799 - Guerra
A guerra são os mortos, mutilados,
Mortos-vivos que arrastam a desgraça
Entre os destroços públicos da praça,
Pessoas sem paredes nem telhados.
É o sol das explosões todos os lados,
Uma miséria que nos ventres grassa,
Que os arredonda tal a carapaça
Com que os recobre o dobre de finados.
Porém, quer seja nova ou seja velha,
Quando uma guerra estala nada encontro
Que menos a uma guerra se assemelha,
Tal é a mudança. Nada a si retorna
E, neste interminável desencontro,
Quanto mais muda mais igual se torna.
800 - Catástrofe
Toda a catástrofe era um julgamento,
Não dos antigos com a mão de Deus
A nos punir de incontroláveis céus,
O crime nos cobrando com tormento.
É nos desastres que, por um momento,
Descubro quanto valem gestos meus,
Ali nos revelamos Prometeus
E é de seu fogo enfim que me alimento.
Porém, se ali me julgo e me revelo,
Jamais explico assim que desafio
Traça de mim além estoutro elo:
As linhas dum desastre não desfio
Ao desvendar-lhe apenas este apelo
Em que comigo só me concilio.
801 - Desafio
Dum desafio a crucial faceta
Não são os meios de que disporemos,
Não é quanto fazemos, não fazemos,
Nem mesmo o que a vitória nos prometa.
É decisiva uma visão da meta,
Mesmo a eficácia de não ser blasfemos
Quando os portais sagrados nós violemos,
Se a vida pelo além nos intrometa.
Que tudo o mais importa que saibamos,
Além de os meios bem usar, querer,
Querer bem fundo, com paixão de amor,
Que o decisivo a quem não quer ter amos
É uma vontade indómita de ser,
De ser até ao fim um vencedor!
802 - Militar
Ser militar é uma faceta estranha
Que nos revela todo um lado oculto
Que me envergonha e que no fim sepulto
A uma distância que ficou tamanha
Que jamais sei quem perde nem quem ganha
Com todo o crime que ficar inulto.
Nisto se junta o ignorante e o culto,
A mesma incompreensão ambos apanha:
Ser militar é crer que o mesmo tiro
Muda a eficácia sempre consoante
O nome bom ou mau que lhe darão.
É à palavra assim que ao fim confiro,
Discriminando entre traidor e amante,
O poder da varinha de condão.
803 - Segredo
Da existência o segredo só consiste
Em aprender a convivermos tanto
Que é cada qual com os demais enquanto
Por si sozinho nunca mais subsiste.
Depois, na lógica de todo o encanto
Que, solidário, é tudo quanto existe,
Não mais defende o espaço, a lança em
riste,
Antes enxuga ao mundo inteiro o pranto.
Só que, depois, a fome insaciável
A fronteira ultrapassa da união,
Chega ao deserto onde não há mais nós.
Da existência o segredo ali viável
É o desta derradeira confissão:
- Convém saber mas é sentir-nos sós!
804 - Cínico
Ai quem me dera em cínico mudar-me!
Este momento apenas é o que conta
E, nele, o bem-estar a quanto monta,
Não o de todos, este aqui que me arme.
Cínico, porém, é o que me desarme
Das pretensões em que a vaidade aponta,
Cega a quem é perfeito, como tonta
Que em delírio soletra um velho carme.
Ser cínico é ser homem, mas perfeito,
Já que cínico é ver tudo bem claro:
Ver que nada tem forma nem tem jeito.
Nada afinal terá mais importância
Que o verdadeiro bem, único e raro:
Ser eu, aqui e agora, desde a infância.
805 - Cansado
Ai que cansaço! Como estou cansado
Deste viver que não é vida, não,
Fogo apagado já, no turbilhão
Perdendo o ritmo, o passo já trocado.
Cansa a corrida para todo o lado,
Cansa-me o sonho sempre no desvão,
Velhos fanais que a nenhum lado irão,
Corridas num deserto desolado.
Como é pior viver aqui à beira
Da fartura, faminto, salivando,
Cachorro abandonado na estrumeira!
Nenhuma trilha leva à cumeeira
E a vida cansa enormemente quando
Não é viver nem resta outra maneira.
806 - Agarra-se
Agarra-se um amante à sua amada
Como uma esposa a seu marido infiel,
Mesmo quando chegou o fim da estrada,
Mesmo quando o sofreu na própria pele.
Que será que a viver tanto me impele
Que, mesmo com a vida já acabada,
Eu lutarei pelo que ali me apele,
Além da morte aguardo a madrugada?
Porém, pergunto (e jamais há resposta)
Se há consistência no que apalpo à mão,
Se meu intento é mais que meu querer.
Vejo, afinal, que minha eterna aposta
Já não passa, por fim, desta ilusão
Que teimo eternamente em não perder.
807 - Importância
Não, não haverá nada de importância
Numa vida completa e genial,
Nem mesmo quando atinge tal fragrância
Que é um mundo sem fronteira temporal.
E menos importância, por igual,
Tem a vida apagada em relevância,
Que dela nem restou nenhum sinal
De quantos foi traçando desde a infância.
Nós não nos resignamos, porém, nunca
A nos deixar de ter por importantes
E eis que a tristeza nossos passos junca.
Por isso nos feriu tão cruelmente
Qualquer ameaça, a todos os instantes,
Que contra nossa força nos atente.
808 - Crenças
Nas relações humanas nós dizemos
Que jamais há mistério, tudo claro:
Ali jogamos porque ali sabemos
E colhemos do amor o bem mais raro.
Outras vezes, porém, que acreditemos
Depende mais das provas que comparo
E bem palpáveis nós as buscaremos
Se é uma suspeita que na prova aclaro.
Porém, ao fim, nas relações humanas,
Como nas crenças religiosas, eu
Só posso dizer "sei!" quando as
pestanas
Fechar e for guiado pela fé.
É na crença que encontro a voz do céu
Que afinal é o que não vejo ao meu pé.
809 - Filho
Criar um filho é ter a companhia
Sonhada duma vida partilhada,
É ter a minha infância perpetuada
Enquanto se aproxima o fim da via.
Porém, toda esta creça fica em nada
À medida que a vida principia:
Não há brida que, firme, a guiaria,
Que viver é soltar a cavalgada.
Ter um filho é não ter casa onde aloje
Este outro que sou eu e não é igual,
Por mais que tenha sempre a porta aberta.
Um filho é aquele ser que sempre foge:
Constantemente (a lei é natural),
De maneira insensível nos deserta.
810 - Valor
Eu sou daqueles que crerão que tudo
Tem um valor que mais que o valoriza
E que no encanto, ao sopro desta brisa,
Me jogarei com tudo a que me grudo.
A quantos são assim, viver, contudo,
É descobir que ao fim tudo desliza,
Que se perdeu em pó quanto enfatiza
O rosto do momento em que me iludo.
Assim veremos que nos chega um dia
Em que a ilusão não mais na fantasia
Nos pegará da lantejoula fútil.
Aí a vida cada qual deguste-a,
Que só lhe resta para além a angústia
De ver que, ao fim e ao cabo, tudo é
inútil.
811 - Pobre
Toda a nossa ambição é desmedida.
Um enorme valor a quanto temos,
Como mágicos, nós atribuiremos:
De ricos é a visão ali contida.
Contudo, só quem é capaz na vida
De roçar leve aqui no que encontremos
Ajuda a que de tudo disporemos
Sem esperar melhor nem mais guarida.
É porque aquele só que não ligou
Jamais nenhuma a quanto for riqueza
É capaz de viver sem pressentir
O que é que a falta dela avassalou:
Só nele esta tortura já não pesa
De pobre se encontrar e sem porvir.
812 - Feliz
Algum dia cheguei a ser feliz,
Mas a felicidade é sempre engano
Que nos fabricaremos todo o ano,
Moldando a nossos usos tal matriz.
Por que é que a máscara terá o cariz
De nos abandonar, já solto o pano,
Nas procelas do mar, a todo o dano,
Que já nada com sonho nos condiz?
Como é mais fácil nós abandonarmos
Aos devaneios quanto fim se almeja
Do que a viver, enfim, renunciarmos!
Como os sentidos jogam o porvir
Colaborando até que aqui se veja
Que deles a missão é nos trair!
813 - Significo
Para ela eu já nada significo
E assim é que de ser me tornei nada,
Em fumo se me foi toda a alvorada
E nem a fumarada certifico.
Aqui estou e já nada pontifico
E o que sobre o paul só sobrenada,
Sem luz nem sombra, vai, alma penada,
De fantasmas de mim talhar-me rico.
Ainda tremo, sinto o meu suplício,
Mas nem há carnes com que os lobos cevem
As fomes num qualquer de mim resquício.
Não há gelos iguais que à serra nevem.
Aqui estou. Não sou mais que um
desperdício:
Se houver trapeiros de homens, que me
levem.
814 - Quando?
Quando é que as odisseias, sem querer,
Deixaram de trilhar nosso porvir?
Quando é que a infinda fuga no nadir
Do Ocidente se torna no talher?
E como é que, infantis, nossa colher
O nosso cibo acaba de espargir?
Como é que na abundância prosseguir
É tão capaz de nos delir o ser?
Como é que dum tão grande bem-querer
Tanto mal nos acaba por advir?
Por que é que amor e morte hão-de ocorrer
Como fado a que não há que fugir?
- Quando é que nós deixámos de viver
Para passar apenas a existir?
815 - Carne
Mesmo se a tudo me vão crer já mouco,
Procurarão fortalecer-me um pouco.
Como quem põe um fato muito velho,
Mas que não se abandona no cortelho,
Um remendão antes que vá prò lixo,
Assim remendar-me-ão neste meu nicho.
De mim irão cuidar um tempo mais:
Engordam o seu porco nos currais.
Assim ficarei pronto prà matança,
Horizonte que o credo já me alcança.
Aqui vivo, metido entre estas talas,
Preparando meu corpo para as balas.
Aquilo p'ra que sirvo - eis a questão.
- Só me querem de carne p'ra canhão!
816 - Guerra
A guerra, como é bom! Os homens podem
Assassinar impunes toda a gente.
Pois quantas vezes cada qual, demente,
Aos vizinhos infrenes que o sacodem
Sonhou assassinar impunemente?
Agora as leis da guerra nos acodem,
Obrigam a matar enquanto rodem.
Então, como infeliz alguém se sente?
Não é matarmos, não, quanto apavora.
Nós matamos quenquer e nem sequer
É nisto que o temor se nos demora.
Nós odiamos a guerra por temer
Que a nós próprios nos chegue enfim a hora
De a morte e o sofrimento nos colher.