SEXTA REDONDILHA

 

 

O ANTIGO ACONTECE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 714 e 816 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

714 -  O antigo acontece

 

O antigo acontece

Na velha vasilha

Mas a maravilha

Também lá floresce.

 

 

715 - Espelho                                                                                            717 - Alturas

 

Sou um desconhecido aqui no espelho.                                              Alturas há nas quais tudo parece

Será meu rosto um rosto de idiota?                                                      Em nós cono ao redor subitamente

Tal é o terror que esmaga-me a tortura,                                                Estar mudando tanto que se sente

                                                                                                                    Quanto injusto devém quanto acontece.

Concentracionarismo já revelho

Com que o mundo me assenta a dura bota                                          Quanto foi sonho em nós então fenece

Nas costelas da vida que perdura.                                                        E é como vãs crianças de repente

                                                                                                                    Que atrás olhamos quanto nos fez gente,

Ignoro quem eu sou, nome ou morada,                                                Rejeitando-lhe então a inútil messe.

Não me recordo da aparência minha,

Ou serei uma bola pontapeada?                                                             Mas um homem agarra o que na vida

Quando o fim desta infâmia se adivinha?                                             A mesma vida lhe oferece, urdida

                                                                                                                     Em seus secretos, mesmo abjectos fins.

Quando, livre, aos portões é retomada

A liberdade de então mais comezinha,                                                  E com a fúria do que crê fatal

Tão perdido me sinto que sou nada                                                      Ele aproveita-o: então dá o sinal

E a fala já nem falo, se é que a tinha.                                                     De quantos nãos ele assim torna em sins.

 

 

716 - Pouco                                                                                               718 - Riqueza

 

 Para nos separar tão pouco basta!                                                       O dinheiro e a riqueza muito a par

Os seres que se querem quanto se amam                                            Caminham nas menções de toda a gente,

Para não verem quantos senões descamam                                        Quando a vida de facto a todos mente:

Do amor as uvas da mais fina casta!                                                    Às vezes os divide, se calhar.

 

Uma voz alta por demais arrasta,                                                          Que ser rico, primeiro, é venerar

Um gesto desastrado, um tique acamam                                             Em família o casal que assim cimente

Quantos feitiços num amor desamam                                                  Quanto futuro após o adolescente

E quanto uniu outrora agora afasta.                                                    Atravesse talhando seu lugar.

 

A gente sempre pensa: não é nada!                                                     Ser rico é satisfeito ver, segundo,

Tudo o que sinto e quero é mais profundo                                         A mocidade assim a abrir o mundo

Para nem consentir disto na entrada.                                                   E, terceiro, é ter fé que faz sentido

 

Queremos ignorar quanto há de imundo,                                            E falar com o Além então querido.

Preso na berma que margina a estrada,                                                - Ser rico, enfim, é termo-nos amado

Só que este nada então arrasa o mundo.                                             A caminhar a vida lado a lado!

 

 

719 - Maneiras

 

Tantas são as maneiras de viver

Que podemos até ficar confusos

Sem saber que fazer a tantos usos

De que o homem constroi seu próprio ser.

 

Do confronto por vezes já contusos,

O remédio bebemos à colher

Que pretende o problema resolver

A todos apertando parafusos.

 

Assim fundidos bem, unificados,

Em vez de livres, somos os pecados

Que vivem já o inferno sem perdão,

 

Quando âncoras baixar nos bastaria

Ou as velas soltar à maresia

Para as vidas enchermos de paixão.

 

 

720 - Portas

 

Nascemos num salão cujas paredes

Consistem nas mil portas dos possíveis

E porta a porta se escancaram níveis

Para o mundo lá fora que já vedes.

 

A sala está inundada, sons e sedes,

Luz e barulho quantos são vivíveis.

São todos os caminhos exequíveis

Mas nem a todos teu condão concedes.

 

Fechamos umas portas de propósito,

Com medo às vezes do que é seu depósito,

Às vezes firmes e, aliás, tranquilos.

 

Outras parecem, ao invés, fechar-se

Por si sozinhas e com tal disfarce

Que nem por trás lhes ouviremos grilos.

 

 

721 - Fala

 

Um homem se define porque fala

E assim se representa e o mundo fora,

Tenta visar o todo, muito embora

Haja momentos em que tudo cala.

 

Diz doutrem e de si e até se embala

Cantando este Universo em que se ancora

A sede de infinito que o devora,

Prisioneiro que está de estreita sala.

 

Contudo, para além de quanto diz,

Um outro além inelutável anda

E um certo aquém que sempre o contradiz.

                                                                                               

Aos dois de facto a fala não comanda:

- Nada diz do que nada significa;

Se significa tudo, mudo fica.

 

 

722 - Campeonato

 

A vida é um permanente campeonato

Sempre a tentar devir melhor que tudo,

Melhor além dos outros sobretudo,

Palpando a sorte do mais fino tacto.

 

Mas disto a aprendizagem é que um acto

Apenas sobressai dentre o miúdo

Quando é de mim que me afinal desgrudo,

Quando de meus limites me desato.

 

Da vida o campeonato verdadeiro

Cuja vitória a nós mais nos importa

Nunca se joga a meio do terreiro.

 

A sério o campo que nos abre a porta

Jamais é uma arena donde alguém se vê

- É o que resulta de quem quer e é!

 

 

723 - Noite

 

A noite é uma planície onde as estrelas

Na escuridão acendem as fogueiras

Longínquas, misteriosas sinaleiras

De navios perdidos nas procelas.

 

Sobre o veludo negro, a meia-noite

Discreta estende num colar diamantes:

Luzes da rua a segredar, amantes,

Ao colo arfante em que o sonhar se acoite.

 

E a Lua Cheia, calma, perscrutando

Os recantos do só desfiladeiro

Com finos dedos de luar catando...

 

O céu cobriu-nos com lençol de negro,

Salpicou-o de estrelas, derradeiro

Leito do eterno em que por fim me integro.

 

 

724 - Aldeia

 

Há muitos anos, numa velha aldeia,

Pelas estradas a poeira erguia,

Eram as nuvens da infantil poesia

Fantasiando abelhas em colmeia.

 

A nuvem era um carro que trazia

Alguém que se cansara, a vida cheia

Das ilusões que o mundo além ameia,

Que só o remanso descansado guia.

 

À noite, entre os enxames das estrelas

Pululam frémitos das almas mortas.

Algumas se desprendem, soltam velas,

                                                               

Tornam à terra, vêm abrir-nos portas...

- Mas se desejos voto siderais

É que eu não, não desejo nada mais!

 

 

725 - Morre

 

Quando África nos morre na violência,

Quando a fome destroça um continente

O que importa é sabermos de repente

Se isto é fruto ou se é causa da assistência.

 

Se aos biliões os dólares dormência

Espalham entre os povos, ninguém sente

As corrupções, traições com que se mente,

Mantendo dos escois toda a opulência.

 

Pois um país morrer ou não de fome,

Depende, não do que aos colonos tome,

(Tão prisioneiros andam desta culpa!)

                                                                                               

Mas sim de ter ou não imprensa livre,

Governo que dos déspotas os livre:

- Tais crimes não terão jamais desculpa!

 

 

726 - Pequeno

 

Quando presto atenção ao que é pequeno

Poderei até mesmo descobrir

Que nele se me vai discreto abrir

Do Universo o secreto eco terreno.

 

Assim foi que de fundo um vibrar pleno,

Suave e persistente fez-se ouvir

Quando uma antena apontará o porvir,

Do Universo captando o som sereno:

 

Que neste eco perdido nos espaços

Afinal chegam os primeiros passos

De todo o Cosmos a explodir primevo.

 

Reparar num pequeno som de fundo

Rasgou nova cortina frente ao mundo

E do nascer do mundo sou coevo.

 

 

727 - Nível

 

O pormenor em conta ter convém,

Em primeiro lugar, ao nível prático

Para apurar um agir fácil, ático,

Em que a palavra lavre para além.

 

Mas tê-lo em conta sugerir também

Uma atitude deverá, enfático,

Em relação à profissão, pragmático,

Porque é de nadas que ali cresce alguém.

 

A verdadeira chave do sucesso

No mundo dos negócios nem sempre é

A inteligência nem o mais que peço

 

Que alçado me enalteça da ralé.

Este é o nada em que tudo principia:

- A competência atenta dia a dia.

 

 

728 - Perfeccionismo

 

Demasiada atenção aos pormenores

Dar poderemos certamente às vezes:

Há do perfeccionismo espúrias teses

Que ninharias tratam bem menores

 

Que os objectivos principais, maiores,

Sacrificando os nossos entremezes.

Devemos perguntar todos os meses

Até que ponto são de nós senhores

 

Estes desvios, ao invés dos nadas

Que nos importam para os nossos fins.

Que quando nos desviam das jornadas

 

Convém abandoná-los como ruins.

Se não escrevem nada em nossas loisas,

Troquemo-los então por outras coisas.

 

 

729 - Demanda

 

Movimentarmo-nos para outra banda

No dia-a-dia nunca é diferente

De procurar, perdido, o norte ausente,

O rumo que nos leve ao que alguém anda.

 

Saber o que buscamos na demanda

Ajuda a decidir o que é premente

Numa tarefa que se leva em frente,

Que desde então novo rumar comanda.

 

Nisto é que a qualidade se não finge,

Que um objectivo por quenquer se atinge

Quando os fins visa e o pormenor se atende.

 

E eis como o dia-a-dia é o importante:

- Discreto orienta o passo para diante,

Em cada nada é o todo que defende.

 

 

730 - Segredo

 

Dos outros o sucesso atribuimos

A algum segredo especial, por vezes,

Golpe de sorte, quando não corteses

Tráficos de influências que zurzimos.

 

Mas o sucesso raramente vimos

Tão misterioso assim, já que os reveses

Ferem aqueles cujos maus arneses

Expõem flancos donde os entrevimos.

 

Apercebemo-nos aqui e além,

Mui repetido, que quem obra bem,

Sem descurar o que puder fazer,

                                                                                                               

A recompensa receber irá

Mais breve do que pensa, desde já:

- Mais ter também provém a um melhor ser.

 

 

731 - Controlo

 

Onde reside sobre as nossas vidas

Melhor controlo que no agir pequeno?

Coisas pequenas são de alguém sereno

Matriz primeira de qualquer das lidas.

 

Não é no imenso que me a mim convidas,

Que me ultrapassa, qual letal veneno;

Sobre o rasteiro voará o sileno

E deste perto é que irão longe as idas.

 

O pormenor me assegurou, compensa:

Fiado em mim, já desafio além

E assim dos nadas colho a recompensa.

 

E, de mim mais senhor, viso também

Desta pequena ponte a mata densa

Do meu melhor onde irei ser alguém.

 

 

732 - Julgamento

 

O que um bom julgamento requerer

De pensar ou sentir, é de viver

Que, ao fim e ao cabo, iremos precisar

Para a sério talharmos seu lugar.

 

O pensamento e a experiência são

O par do julgamento, em conclusão;

Porém, experiência feita à sorte

O nosso julgamento leva à morte.

 

Que se um bom julgamento nos resulta

Apenas do que for a experiência,

A verdade é que para ser bem culta

 

Esta demonstra uma esquisita essência:

Aquilo que experiência nos faculta

É dum mau julgamento uma evidência.

 

 

733 - Corrida

 

A vida é uma corrida sem descanso

Que nos principiou antes do início,

Já que fomos dotados de tal vício

Da Humanidade que não tem remanso.

 

Desde o ventre materno que me canso

Para ser e devir até o solstício

E disto fica sempre igual resquício

Quando o fim se aproxima calmo e manso.

 

E o curioso do cruel destino

É que já fui assim antes de ser:

Um espermatozoide sem mais tino

 

Os mais bateu e então me fez viver.

Sou, portanto, este fruto da corrida

Que me antecede e me atirou na vida.

 

 

734 - Ouvir

 

Se quiser dar-se bem com toda a gente,

O cônjuge, a família, os mais chegados,

Quando chega o momento de ouvir, tente

Perceber, já com todos os cuidados.

 

Momento de escutar silentemente

Que requer gestos de atenção dobrados,

Olhos nos olhos, inclinado em frente,

Com a cabeça a inquirir os dados.

 

Isto fará sentir-nos à vontade.

Mas a mensagem que nos logo invade

É a de quanto o parceiro nos importa,

 

De quanto nos importa quanto diz

E de como ouviremos de raiz

Todo o segredo a que nos abra a porta.

 

 

735 - Amigo

 

Com um amigo a sério tu não vais

Precisar de fazer uma outra coisa

Que não seja poisar a tua loisa

De lado abandonada à beira-cais.

 

Duma amizade os mais fiéis canais

Não são tarefas onde a acção repoisas,

Desvios da ansiedade onde tu poisas

Quando sem isso vês que vos não dais.

 

O verdadeiro teste da amizade

Não precisa de metas nem desvios,

Senão não tem assim tanta verdade.

 

A sério é conseguir não fazer nada

E sentir-se tão quente em meio aos frios

Que da vida esta é a vida mais sagrada.

 

 

736 - Diferente

 

É difícil ousar ser diferente

Suportando a pressão dos companheiros

E mais ainda quando, a andar ligeiros,

É o peso do sistema que se aguente.

 

Um amigo, porém, provavelmente,

Não cairá assim pelos boeiros

A não ser que não sejam verdadeiros

Os signos da amizade que ele ostente.

 

Tanto mais que, se alguém tem a ousadia

De divergir da ordem implantada

No poder, no saber, no dia-a-dia,

 

Poderá elucidar que ela anda errada:

Maturidade nisto evidencia

E a coragem de abrir-nos nova estrada.

 

 

737 - Não

 

É preciso aprender a dizer não

E é tão difícil a quem ainda é jovem

Quando são companheiros que o demovem

De ser inteiro com os pés no chão!

 

E, contudo, negar é a condição

De vir as forças afirmar que o movem

E que fronteiras afinal removem

Para torná-lo no que os homens são.

 

Fragilidade que por fim se vence

Quando de que é importante se convence,

Tem auto-estima e pesa quanto faz.

 

Ainda mais longe vai quando ele escolhe

No cais da vida qual vai ser seu molhe:

Firma seu não no sim de que é capaz.

 

 

738 - Firmeza

 

"Eu sempre te amarei" - dá uma certeza

A um adolescente já perdido,

Anónimo entre os mais, votado ao olvido,

De que algures a terra tem firmeza.

 

E a situação, mesmo fatal, não pesa,

Apresenta-lhe um fio de sentido,

No peito cala-lhe o mordaz gemido,

Tanto lhe empresta quem assim o preza.

 

Uma palavra significa mais,

Evita a crise prestes a estalar,

Quão mais na barca significa o arrais.

 

E assim pesará mais que se imagina,

Para um moço ir além de qualquer par,

Que de amor quem ele ama talhe a sina.

 

 

739 - Paralelos

 

O amor tem paralelos que o igualam,

Quer seja amor da pátria ou namorado:

Na beleza radicam nobre fado,

Miram a altura, tomam pé e alam.

 

Também o que seus gestos intervalam

Já por um som de passos é inflamado,

Um mero menear, cabeça ao lado,

Chispa as faíscas que mais fundo calam.

 

Tal é o segredo do país natal

Que se reaviva por visões comuns,

Como a neblina por sobre o nabal,

 

Num marmeleiro frutos bons alguns...

Será sempre através desses tais nadas

Que eternas ligações são avivadas.

 

 

740 - Ver

 

Aguardas que teus sonhos interprete,

Quando os teus são tão meus que nem os vejo,

E mais te irritas por não dar-te ensejo

De rever o que em ambos se repete.

 

É que ao amor, aliás, sempre compete

Das manobras comuns soltar o harpejo

E dentre os desencontros o desejo

Reencontrar então que os nós encete.

 

Anseias por que, cega, esta visão,

Em ti perdida, em mim venha a crescer,

Já que defronte te terei à mão.

 

Correspondendo, corro a pôr-me ao lado,

Mas a vista não pode nunca ver

O que sobre ela mora repousado.

 

 

741 - Juventude

 

Se procuramos definir a vida,

Sempre ela foge, escorre dentre os dedos

E sempre foram de anciãos os medos

Que para o Além a dão por remetida.

 

Aqui, porém, é que será cumprida,

Por muito que o confundam velhos credos,

Que o segredo maior dos mais segredos

É que é p'la vida além, indefinida,

 

Que fica a porta aberta ou encerrada.

É que esta vida, enfim, mato ou renovo

Quando aos vindoiros fecho ou abro a entrada.

 

Nos jovens é o porvir que nos convida:

A juventude arranjará de novo,

Alegre e sempre aqui, uma outra vida.

 

 

742 - Desgraça

 

Quando a desgraça nos bater à porta,

Somos iguais ao comum rol das gentes,

Ficamos pobres, todos já dementes,

E nenhum gesto pouco mais importa.

 

A mão erguida ou a cabeça torta,

Mudo sibilo escapando entre dentes,

No aristocrata tanto lá o pressentes

Como no mísero quenquer reporta.

 

E, se estrondosos devirão marulhos,

Todos acorrem a delir os tons,

Com gestos tais como quem dá mergulhos

 

Lentos, sofridos, que só tais são bons:

- Parecem, brandos, segurar barulhos,

Apalpam dos tamancos mesmo os sons.

 

 

743 - Desabar

 

A solidão solene de respeito

Se reveste somente ao desespero

Que se apodera do homem, por mais fero,

Quando vê desabar-lhe sobre o peito

 

A crença antiga que o lavrou a eito.

Prestes a aluir tudo o que quero,

É no silêncio que, fiel, sincero,

Ao peso vergarei do morto preito.

 

Mas o homem recusa-se a quebrar

A confiança que em si já depõe,

Que, ontem perdido, lhe ofertou lugar.

 

Só que já o coração não se lhe opõe

Ao poder dos eventos nem, a par,

À angústia com que, lento, o decompõe.

 

 

744 - Sonho

 

De antanho chegam marcas do passado

Cujas glórias morreram na poeira,

Vidas e sonhos, sem haver maneira

De evitar que trespassem mesmo ao lado.

 

Tantos projectos e fatal canseira

Para no fim não restar mais que o fado

De tudo já ficar predestinado,

Desde antes de ser algo, a ser caveira.

 

Entregue às feras sem ter pão nem pau,

É prisioneiro que entrevejo os fossos,

Não tenho ponte nem os passo a vau.

 

Como um mar coalhado de destroços,

A vida é já de si um sonho mau,

- Então por quê lá misturar os nossos?

 

 

745 - Muro

 

Diante de mim quando nasci nasceu

O muro que de mim me dividiu.

Quanto mais furo mais se afasta o muro

E não encontro então o que procuro.

 

Porém, encontro alguma coisa, enfim:

É sempre um lado que é um além de mim,

Mas que, embora além, é sempre um aquém

Deste muro que tenho e que me tem.

 

Como será que um dia nele passo

Se sou muro e jamais eu me ultrapasso?

Sou muro, sou e à sombra desta pedra

 

Sou a minhoca que no fresco medra.

À pedra, - "dá-me tempo que te furo!"

- Diz a minhoca e cairá o muro.

 

 

746 - Delícias

 

Realidade? Não consigo ver-me,

Quero demais se me quiser ver gente,

Sempre aqui fico, nunca vou em frente,

Na terra condenado a ser um verme.

 

Assim doi mais em mim ver este germe

Dum outro ser que me porá demente.

Minha razão é uma razão doente

Que em mim só busca o que fará doer-me.

 

A vida em volta não me traz carícias,

Antes me aumenta incontroladas gritas,

De tanta morte em que mudou blandícias.

 

Na vida só contra as fatais sevícias,

Só em sonho vejo e vejo-as infinitas

Do imaginário todas as delícias.

 

 

747 - Segredos

 

Os mais recônditos segredos fiam

No tear dos dias o melhor da teia,

Novelos de lã fiam e desfiam

Mas quem desfia o que o segredo ameia?

 

Basta encontrar o fio que seguiam

As voltas da meada em que se enleia

A jornada dos homens que se viam

A perseguir, febris, a lua cheia.

 

O fio... Mas que fio, onde se encontra?

Onde puxar nesta enleada meada?

Da raiva humana onde encontrar a montra?

 

O drama é que não há fio na estrada,

Atado cada qual se desencontra

Da vida numa vida só fiada.

 

 

748 - Demasia

 

É na medida que me perco ou ganho,

Embora sem medida o tempo corra

E me arrebate, faz que viva ou morra,

Soltando o gonzo à porta do cardanho.

 

Enquanto a vida lavra, meu amanho

Empresta-me a saudade que decorra

De quanto além dos montes mago ocorra:

Nem aqui vivo nem por lá me apanho.

 

Todas as coisas boas são, se boas

Também são as medidas deste ingresso

Em que as tomo, as recuso ou então dou-as.

 

Quebrada a linha, não há mais regresso:

Comendo em demasia é que as pessoas

Se matam porque vivem em excesso.

 

 

749 - Defeito

 

O passado não volta nunca mais

Por maior que no sonho ele se toque,

Por mais que a vida nele se coloque

A fazer-nos negaças ou sinais.

 

E o presente, por cima, anda a reboque

Correndo à desfilada, por demais,

Rumo ao futuro que não é jamais,

Nada se pode misturar-lhe ad hoc.

 

De que me vale num pomar desfeito

Sonhar sabor a uma perdida nêspera

Senão para sofrer mais em meu peito?

 

Sempre padeço dum fatal defeito:

Não se pode ter sonhos para a véspera

Nem amanhã fazer um ontem feito.

 

 

 

750 - Pedir

 

Corremos sempre em busca da verdade

E as dúvidas nos saem ao caminho

Sem que as mentiras soltem no cadinho

Toda a ganga que arrasta a falsidade.

 

Saltamos confundidos toda a idade,

De era em era mudamos nosso ninho

Sempre em busca dum gesto que, adivinho,

Jamais dá conta da falaz vontade.

 

Uma certeza era a veraz medida

Definitiva a nos manter de pé;

De passageira, nem até convida...

 

Não há certeza mas nos basta a fé,

Pois, quando nada se pedir à vida,

Que pretendemos nós que a vida dê?

 

 

751 - Sobressai

 

Não é que vá julgar-me irracional,

Já que razoável é o destino nosso.

Só que a razão comemo-la ao almoço

Co'a sobremesa do etc. e tal.

 

A minha vida é sempre um vendaval

Desnorteado após o qual não posso

Guardar a fruta sem guardar caroço

E o peso deste é o que me faz mais mal.

 

Sento-me à mesa e vou querer café:

Quando mo servem, o que ali não vai

É aquilo de que logo me dou fé.

 

Em nossa natureza sobressai

Aquilo que não é em vez do que é:

- Por que tal maldição em nós recai?

 

 

752 - Príncipes

 

Para uma jovem os rapazes novos

São sempre príncipes que irá encantar

E que a encantam tal como aos renovos

Duma fruteira dum qualquer pomar.

 

Todos os ninhos em que chocam ovos

Se lhe revestem do mais fértil ar,

Nem as galinhas põem mais nos covos,

Basta querer, que vai-as transmudar.

 

E com aquele que se escolhe um dia

Vão as jovens em busca do tesoiro

Por todo o mar aberto à fantasia.

 

Toda a choupana então perde o desdoiro

E se converte em sol e maresia:

A casa de ambos é talhada de oiro!

 

 

753 - Refúgio

 

Refugiado dentro em mim eu posso

Ver tudo quanto à minha volta corre,

Na estrada ou campo, no arraial, no poço,

Apanho lenta como a vida escorre.

 

Em meu redor escavo tal um fosso,

Que eu além vejo mas de lá nos morre

Qualquer olhar que, atravessando o troço,

Esta distância entre nós dois percorre.

 

Sem por ninguém ser visto aqui me escondo

Neste âmago de mim em que vou pondo

De cada dia as contas e os adeuses.

 

Aqui vivo inviolável, porém noto

Que meu refúgio desafia o ignoto:

Não é refúgio meu, acolhe os deuses!

 

 

754 - Deus

 

Aqui na quinta, em meu terraço, avisto

Minha alma gémea pelo espaço além:

São as estrelas que este pinhal tem,

O além aqui, em tudo quanto existo.

 

Sou eu e Deus quando num passo insisto:

Se planto as frutas e o jardim também,

Melros e coelhos quando até cá vêm

Sou eu já neles, cada vez mais visto.

 

Em minha quinta passearão os gamos.

Tão pouco sei e em tanto deixo um traço,

Tão grande e diminuto é o que ignoramos!

 

Aqui, pequeno, o mundo inteiro abraço:

Eu pairo como um deus por sob os ramos

Quando ando meditando em meu terraço.

 

 

755 - Abismo

 

Assim como os caminhos da montanha

Para um abismo subitamente dão,

Assim os sonhos duma jovem são,

Por mais esperta ou por mais tacanha,

 

A traiçoeira rota em colisão

Que dá num precipício que a abocanha.

Abertos ao ignoto, apenas manha

Nos pode ir defendendo da ilusão.

                                               

A busca dum amor desconhecido

Que não se encontra se não for num sonho

Jamais se nos consuma, garantido,

 

Devém um pesadelo, o mais medonho.

Somos todos a jovem sonhadora:

Perdemos o que perde na demora.

 

 

756 - Mensageiro

 

Por pouco que conceba uma alegria,

Supõe um mensageiro que lha traz

Toda a imaginação, por mais que, fria,

O capricho controle que lhe apraz.

 

Só que, assim operando, o que nos faz,

Se nos ensaia toda a romaria

E nos arranca ao que nos prende atrás,

É que nem sempre o sonho principia.

 

Supor um mensageiro à fé conduz

Que do Além venha e nos acenda a luz

Que nos rasgue os caminhos da distância.

 

Só que a entrega será sempre ilusória

E da aventura a maior nossa glória

É que é por mim que eu ultrapasso a infância.

 

 

757 - Viúvas

 

Chorar o antigo já que feneceu

É no passado alicerçar caminhos,

Embriagar-se com os velhos vinhos

Dos cascos esquecidos sob o céu.

 

Mas é também já colocar ao léu

Quanto ao futuro se entretêm carinhos,

Pois, se ao cadáver se retiram linhos,

É que algo dele à vida revolveu.

 

Somos viúvas só que sobrevivem

Semeando quantos sonhos já viveram,

Para que ao despontarem nos avivem

 

A presença das ausências que se esperam.

Ah! Todas as viúvas no fim vivem

Sempre com o marido que perderam.

 

 

758 - Vi

 

Vi muita coisa, muita coisa vi,

Foram cabelos de soalheira ao vento,

Da guerra horrores, morte a fogo lento,

E jamais sei se o terei visto aqui.

 

Será que vi ou o amargor senti

Que figurou as marcas do tormento?

Ou antes foi a fuga ao esquecimento

Que em mim gerou o que jamais vivi?

 

É constrangido pelo que é presente

Que me revolvo frente à confusão,

Em busca dum critério que argumente.

 

Não saberei jamais o que é evidente:

Se sou eu que me talho uma ilusão,

Se é o mundo a rir de mim e em mim assente.

 

 

759 - Estrada

 

Calcorreei lonjuras pela estrada,

A tua estrada que não vens correr.

Porém, é a tua, nesta espera adiada.

Volta depressa que ela te requer,

 

Antes que alguma vez, toda estragada,

Já nos buracos se não logre ver

E arrependida, noiva rejeitada,

Nenhum caminho tenha a oferecer.

 

Não sei se viste que por cá ficaste,

Preso nas curvas tanto que os sentidos

Não são os que pregaste em qualquer haste,

 

Antes os que, nas pedras embutidos,

Com teu suor em sonho semeaste

E aqui teus pés aguardam combalidos.

 

 

760 - Medo

 

Preciso é não ter medo de ter medo

Pela primeira vez que trepo ao topo.

É preciso saber erguer o copo

Mesmo se é sobre o fim de qualquer credo.

 

É preciso o terror que me concedo

Para me rir de meu sagrado escopo,

Com a coragem com que o apocopo

Das ilusões que mo tornaram ledo.

 

Passámos noites no entrincheiramento,

Todos ali, meus pobres companheiros,

Sofrendo a fome e frio do relento,

 

Todos iguais: não somos os primeiros,

No amor, na guerra, a imaginar o invento

Que nos poupe os fracassos derradeiros.

 

 

761 - Anteparo

 

Os vivos abrigavam-se por trás

Dos mortos que lhes servem de enteparo.

Era a lei que preside ao que nos traz

A catástrofe, o mal, o qual não raro

 

A reboque nos põe o que é capaz

Do que, já morto, nem que seja caro,

Em nada do que é vivo é já eficaz

E assim já só merece tal reparo.

 

Então nos colherão fatalidades

Porque cremos virar contra a desgraça

A maior que na noite das idades

 

Nos promete alforria e que não passa

Do eterno enterro só das liberdades:

- A morte a comandar a nossa praça!

 

 

762 - Combate

 

É a vida tal combate permanente

E nós, os guerrilheiros desarmados

Que na selva, em taludes, à mão tente,

Atentos nos mantemos emboscados.

 

Mas na espera o inimigo não consente

E nos ataca de imprevistos lados,

Sempre a forçar-nos ao horror premente

De ser ele a talhar os nossos fados.

 

E assim corremos, esgotados, rotos,

Marchas forçadas sem ter mão nos actos

Que este destino contra nós nos talha.

 

Eis porque arfamos, descambados, botos,

Nossos pés dentro e fora dos sapatos,

Prò derradeiro posto da batalha.

 

 

763 - Resumir

 

Toda a vida podemos resumir

Nestes dois passos desta contradança:

O primeiro, a ilusão que nos alcança;

O segundo, o vazio que há-de vir.

 

No primeiro é que iremos investir

Em sonho toda a freima que nos cansa.

Do cimo da utopia então nos lança

O segundo aos abismos do nadir.

 

A felicidade era uma ilusão

Que breve se finou p'ra nunca mais,

Longo vazio fica em seu lugar,

 

Pois nisto a vida se programa então:

Pobre visão de ser feliz jamais

E, após, toda uma vida p'ra chorar.

 

 

764 - Sombra

 

Eu sou a sombra do que vai morrer

- Diz-me ela, sempre a perseguir meus passos.

Por mais que eu desabroche nos espaços,

Sempre, discreta, embota o que eu fizer.

 

Só que é um sombra o que no fim se quer,

Já que na vida os mais fiéis abraços

Têm das quimeras luminosos traços,

É o que apaixona em quanto se quiser.

 

É porque busco as sombras, alumbrado,

Que na que me persegue em todo o lado

Nada me ocupa nem a alisto ao rol,

 

Já que é na vida, nesta vida minha

Que acabo decifrando-lhe a adivinha:

- Viver na sombra é perseguir o sol.

 

 

765 - Consciência

 

Se nada sou e nada venho a ser,

Que devirei neste meu dia-a-dia?

Sempre diverso, enfim me igualaria,

Tudo mudando só p'ra me manter.

 

Tudo o que sou terá pouca valia,

Sou desbotada mancha em rosicler,

No restaurante entrei sem ter talher

E morro à fome a ver toda a iguaria.

 

Se nada sou e nada já serei,

Que é que me identifica com a grei

Como enjeitado aqui da transcendência?

 

Que de mim se não resta mais memória,

Por quê todos os sonhos duma glória

Que sonho desde que tomei consciência?

 

 

766 - Glória

 

Ingénua é toda a glória e mais ainda

Se pretendemos registar memória

Do que na vida foi fugaz vitória

Duma outra vida que sonhámos linda.

                                                                                               

Cremos, porém, que lhes será benvinda,

Em vida e aos bafejados pela glória,

A sagração de que os aureola a história,

Na solidão nesse entretanto advinda.

 

Foi normalmente com vontade estrénua

Que procuraram essa, a mais ingénua

Modalidade de buscar o sonho.

 

Pois bem falazes são triunfadores

Quando, infantis, se sonharão senhores...

- Que abandonados é no pó que os ponho!

 

 

767 - Sofrer

 

Sofro por ver sofrer quem é como eu,

Embora a crueldade aqui dormite

Porque, se é com a dor que o fraco fite,

Penetra fundo nele este olhar meu.

 

É um escalpelo, um bisturi que ergueu

Cada camada em sangue do palpite

E nem por ser da mente deixa quite

A minha dívida com quem sofreu.

 

Mais afiada que se for navalha,

Seu gume corta, rasga aonde calha

A inexorável ânsia de entender.

 

Mas em nada altera a minha atroz verdade

De que mantenho a cruel capacidade

De me doer por ver aos mais doer.

 

 

768 - Falarei

 

Da juventude falarei, da infância,

Indefinidamente em cada vez,

Pois é do mundo inteiro uma fragrância

Que tento descobrir neste entremez.

 

Só que não basta, p'ra calar minha ânsia,

Uma cronologia ali resvés,

Nem factos isolados, à distância,

Da misteriosa progressão que os fez.

 

O passado não há-de reviver

Por magia de histórias recontadas

À mesa, sem sabor, por um qualquer.

 

Ah! Só reproduzindo-lhe as entradas,

Horas, cenas onde ele nem sequer

Daria conta que eram já passadas.

 

 

769 - Solidão

 

Um secreto local, jardim fechado,

É um pedaço frugal de solidão,

Pequena pátria enxertada ao chão,

Com a fronteira a vir fechar-se ao lado.

                                                                               

É lá possível viver isolado

Do que decorre além do muro então,

Qualquer vizinho passa a ter condão

De ser herói ou príncipe encantado.

 

Longe, a cidade é como o vil cenário

Por onde cambaleia o mundo vário.

O tempo escorre lento como um sonho.

 

E só cá dentro podem penetrar

Factos de lenda de nenhum lugar

Em cuja cama o coração deponho.

 

 

770 - Vai

 

À nossa frente, que tens tal direito,

Vai, juventude, que herdas o futuro.

Nas cinco chagas que carrego ao peito

Paguei meu preço do melhor que auguro.

 

Por entre as campas segue, com preceito,

As rotas que ultrapassam o monturo.

Com altivez e digna, olha o conceito

Com que jurámos ir além do muro.

 

A cada passo mais te compenetra

De teu papel de nossa segurança

E além o ignoto com teus pés penetra.

 

Dá-nos em ti esta suprema aliança

Que a Humanidade desde sempre impetra

A um infinito que jamais se alcança.

 

 

771 - Manhã

 

Não é impossível continuardes tristes

Quando cada manhã que vos desponta

Consigo um novo sonho vos aponta

Iluminando como nunca vistes.

 

Com esperança renovada existes,

Já deslumbrado p'lo fulgor sem conta,

E às festas então tudo te remonta

Com a alegria com que ali resistes.

 

Novo projecto rasga a direcção

Que de futuro vais talhar à vida,

É a romaria a tua condição.

 

Por isso te preparas para a ida

Com o furor do que não tem perdão

E a raiva duma eterna despedida.

 

 

772 - Modas

 

Os semanários e as revistas são

Mais do que apenas o jardim das modas,

São sobretudo quem instiga em vão

As esperanças a nascerem todas.

 

Devido a eles é que é uma ilusão

Pensar que é regra que se chegue às bodas

Quando uma cinderela é uma excepção,

Carros de príncipes não têm rodas.

 

A vida cheia de sonhar com fadas

Que nem sequer precisarão casar

Para passear em carruagem real...

               

É de ilusões que abrimos as estradas

Que o sonho e a vida tentam pôr a par

E eis quanto bem nos pode vir dum mal.

 

 

773 - Depressa

 

Por que motivo marcar passo tanto

Quando hoje em dia tudo é tão depressa?

Foi de repente que chegou o encanto

Que nos coroa ou não nossa cabeça.

 

De obscuridade à glória vai um pranto

Que num momento apenas atravessa

A vida inteira de quenquer, enquanto

Nem tempo resta para que ele o meça.

 

Depois, porém, não é um sucessozinho,

Degrau de escada que nos vai bastar

Quando provámos o sabor do vinho.

 

A embriaguês inteira é, se calhar,

Única meta já por que amarinho

E assim perco meu tempo e meu lugar.

 

 

774 - Célebre

 

Ser célebre, hoje em dia, é ter dinheiro,

Muito dinheiro a ponto de se não

Saber que fazer dele por inteiro.

Êxito com fortuna a mão se dão

 

Como um amante com o seu parceiro.

Assim a qualidade morre então

Como critério do valor primeiro

E pode até constituir senão.

 

Por isso nem mesmo há necessidade

De pensar nem de ser p'ra celebrado

Devir em nossa negregada idade.

 

Como sempre, hoje o bom será ignorado

E, à margem, na pobreza, o génio há-de,

Obscuro, ir entalhando nosso fado.

 

 

775 - Preconceito

 

Nunca a razão humana nasce jovem,

Do preconceito terá sempre a idade.

De quantos movimentos mais nos movem

Este é o da mais voraz precariedade.

 

À medida que os anos nos demovem,

O corpo só nos traz fragilidade,

Mas enquanto as ossadas se removem,

O espaço é o da razão que sobrenade.

 

Assim é que envelheço aqui por fora

Peneirando-me dentro do farelo

Que teima em misturar-se na farinha.

 

Minha idade é a da vida que demora

A depurar a ideia por que velo

De antolhos com os quais se me avizinha.

 

 

776 - Êxito

 

Um êxito é um segundo nascimento

Para o jovem que busca outros direitos.

Só para os velhos que perderam jeitos

Convém da promoção o passo lento.

 

Metamorfose de instantâneo alento,

Salta a crisálida a voar dos leitos

De donde, apenas ao que é sonho afeitos,

Cantam os jovens do universo o invento.

 

Assim é que, instantâneos, as entradas

Basta empurrar e logo um outro mundo

Crêem que brota, as faces demudadas.

 

Conquistam a vitória num segundo.

Porém, estas borboletas mal asadas

Somos nós, afinal, aqui no fundo.

 

 

777 - Bomba

 

A bomba nuclear é destes anos

E é própria de quem anda a olhar o umbigo.

Arte de falar de arte era o castigo

Se de arte não vêm obras mas enganos.

 

Sem inventiva, aquilo a que eu me ligo

É a reviver os mágicos arcanos

Que antigamente já evitaram danos,

Só nisto eternos fitos me persigo.

 

Nem a bomba, em verdade, é o que nos marca

Em nosso século com tal tamanho

Que esta estatura não resulte parca.

 

Pois quem da bomba atómica tem ganho

E quem de seu invento as glórias arca

São as estrelas que jamais apanho.

 

 

778 - Glória

 

A glória a sério é uma longa estrada,

Difícil piso cheio de buracos,

Por onde a troco, enfim, de alguns patacos

A maioria morre de cansada.

 

São gerações mais gerações e nada!

Lutando sempre com a vida em cacos,

Só na velhice alguns cobram uns nacos

De êxito p'ra enganar a fome adiada.

 

Quem pretende ter fama com vinte anos,

Cometendo um desvio de menores,

Viola quantos filhos terá Deus.

                                                                               

Ao caminhá-la, a longa estrada dá-nos

As letras com que o cheque dos valores

Nós assinamos na ascensão aos céus.

 

 

779 - Peçonha

 

De juventude ó meus amigos, vede

Há quantos anos esperais a glória!

Só na velhice o leito da vitória

Compartilhais de amantes com a sede.

 

E aos que nos precederam ainda, crede,

No leito moribundo, mera escória,

Ou já no cemitério, a voz da história

Só um lugar póstumo ela então concede.

 

Grandes malditos pela história além,

No desespero, são nossa vergonha,

Injustiçados que não têm ninguém.

                                               

A maldição, porém, onde hoje a ponha

É nos vinte anos ricos dos que os têm,

Que este rico inça a vida de peçonha.

 

 

780 - Pobreza

 

É da pobreza impiedosa a lei:

A economia arrasta mais despesas.

Se poupo no calçado é porque irei

Dum autocarro alimentar as presas.

 

Se corto na dieta, já nem sei

Se à fome não suporto mais cruezas,

Se às mãos do boticário me entreguei,

Se às duma santa, com promessa e rezas.

 

Só sei que, quanto mais por cá me arrasto,

Mais pela areia se me afunda o rasto

Antes que enfim me arraste a mim de vez.

 

Ser pobre é ter letal sina maldita,

Que quanto mais me caso co'a desdita

Mais se me aumenta minha viuvez.

 

 

781 - Vejo

 

Por vezes é no inverso que se encontra

Um eco que responde ao nosso grito.

É quando atinjo o fundo, bem aflito,

É quando em lado algum, nenhuma montra

 

Me expõe a vida, quando a mais não fito,

Que busco o responsável, o bilontra

Que as portas nos fechou e que assim contra

Nós lançou as portadas do infinito.

 

Da ganância o cavalo, à rédea solta,

Sob as patas a todos atropela

E eu vivo a vida na injustiça envolta.

                                               

Então, em desespero, abro a janela:

- Mais a noite escurece à minha volta

E mais vejo brilhar a minha estrela!

 

 

782 - Acabe

 

O destino dos pobres enjeitados

Pode aumentar a confiança em si.

Entre os caídos quando não caí,

Entre os esparsos por qualquer dos lados

 

Por onde se esvai vida aqui e ali,

Nesta excepção é que confirmo os dados

Com que me convenci dos resultados:

Invulnerável sou, sobrevivi.

 

Assim é que caminho, sempre aparte,

Andante cavaleiro frente à injúria,

Disponível e atento em toda a parte,

 

Não me lembrando mesmo, por incúria,

Que algum dia a desgraça uma outra acarte

Que então de vez me acabe a voz e a fúria.

 

 

783 - Relógio

 

Por mais altiva que se busque a aurora,

Por mais que o meio-dia se acalente,

Por mais que a noita já nos mande embora,

O que nos marca é que assim se vai em frente.

 

Mas há momentos em que soa a hora

De o limite encontrar e, de repente,

Quando muito é o destino que nos chora,

Que a vida se nos fica na corrente.

 

Então de nós já nada mais restara,

Acresce o nome ao fiel martirológio,

Já que uma vida só se quer em vida.

 

A força de vontade fraquejara:

Relógios de luxo, somos um relógio

À partida co'a corda já partida.

 

 

784 - Lua de mel

 

Lua de mel, tempo de amar o sonho...

Anda o príncipe amante a passear

A princesa volátil pelo luar,

Longe das feras de rugir medonho.

 

Através das ruínas, o tristonho

Dum império caído, ali a par,

De deslumbrados, nem irão olhar,

Trincando o breve, sápido medronho.

 

Aquela terra não é a sua terra,

Sonham com um país donde forçados

Acabarão fugindo escorraçados.

 

Neste destino o que mais doi e aterra

É abandonarmos todos nossos paços,

Falhados príncipes, fatais palhaços!

 

 

785 - Sério

 

A vida a sério, a sério o que a distingue

É uma sabedoria tão discreta

Que a quem a busca às vezes é secreta

A receita que faz com que ela vingue.

 

Assim ocorre que ela sempre mingue

E quantas vezes nem atinja a meta

Quando de alguém uma atenção concreta

Se lhe desvie p'ra carreira pingue.

 

Torna-se então pessoa tão distinta

Que, se o não fora, então seria sábia,

Mesmo levando a correr menos tinta.

 

E assim eis como, pela rasa lábia,

Se faz obliterar toda a excelência

Que à vida traz um eco da ciência.

 

                                               

786 - Felicidade

                               

Uma só noite vem às profundezas,

Além da consciência penetrando:

É paisagem ou sonho, é o outro quando

Descubro que encobriu novas belezas.

 

Nessa altura tão fora de mim ando,

Tão longe do cotio, que asperezas

Já sobre mim só partirão as presas,

Ardo feliz em fogo lento e brando.

 

                Vivo o acordo tranquilo com a vida,

Já não me sinto dominar o tédio,

Até uma ideia fixa já me olvida.

 

E aqui do tempo eu edifico o prédio

Em que a felicidade já demora,

Embora eu nunca lhe conheça a hora.

 

 

787 - Desapareçam

 

Desapareçam, vá, desapareçam

Quantos em berços de oiro principiam

E pela vida fora se iludiam,

Sempre de berço, p'ra que o não esqueçam!

 

É que não há medidas com que os meçam

Ou, ao invés, as braças que os mediam

Em contra mostram que por lá não iam

As pretensões com que eles nos impeçam.

 

Já não consigo mais nem suportar

Tanta gente pequena, o peito alçado,

Com os pés a pisar todo o lugar.

 

Não é de fúria, não, mas agoniado:

- Desapareça, suma sem mais guerra

Quem simula e não é o centro da terra!

 

 

788 - Força

 

Da vida a força, quanta maravilha!

Quanta precaridade a atinge enfim

E como se renova, ervilha a ervilha,

Eterna rejeitando cada fim.

 

Como tudo isto, fora ali de mim,

Tão pouco em mim me diz de quanto brilha!

Que a vida, se renova meu confim,

É quando no meu rio assenta a quilha.

 

Só nas pessoas que realmente os amam

É que seus ecos bem profundos bramam!

E as energias sãs que proliferam

 

Escolhem, amorosas, os que esperam:

- Neles arvoram, qual bandeira erguida,

Maravilhosa, a força que é ser vida!

 

 

789 - Juventude

 

Nunca a nós próprios confessamos, calmos,

Que aquilo a que chamamos juventude

Se transforma tão rápido, em virtude

Dos anos que por ela passam almos.

 

Como são poucos os mais belos salmos

Que em vida ouvimos, com que nos ilude

Do tempo o trânsito de que eu mal pude

Medir a pressa com meus curtos palmos!

 

Nada desaparece tão depressa

Nem se transmuda assim tão velozmente

Que nem uma ilusão ali começa!

               

A juventude acaba, outra é presente

Que de igual modo tão veloz tropeça

Que tudo assim vai ser eternamente.

 

 

790 - Mudança

 

Meu bairro muda, muda o continente,

O mundo inteiro vive na mudança.

Mudando tudo tanto e velozmente,

Sem marca alguma de lograr parança,

 

Nem mesmo de travar-se, de repente,

O que quenquer aqui de facto alcança

É de devir com tudo diferente,

Indiferente a quanto tudo o cansa.

 

São modificações os nossos dias

E, longe de devirem excepções,

Para nós serão já monotonias.

 

Mudar é tão igual que o que supões

É que a igualdade enfim que estranharias

Seria a de parar as mutações.

 

 

791 - Resultado

 

Falamos todos já num resultado

E nada além do sonho ainda buliu.

Porém, com tudo quanto se investiu,

Podia o mundo inteiro ter mudado.

 

Tão perto e tão distante o sonho meu,

Aqui à mão para, afinal, o dado,

Depois de me exaurir desesperado,

Em fumo se esvair, nuvem no céu!

 

Buscamos o poder para mudar,

Mudamos tudo, pouco nos importa,

A ver se se nos abre outro lugar

 

E nunca outro horizonte se recorta:

É a bomba atómica e não faz saltar,

Já não a vida, nem mesmo uma porta!

 

 

792 - Abismo

 

Bastam uns anos para se ir cavando

Um abismo entre os seres que se amaram.

Quando cinco ou seis anos separaram

Pessoas, não são mais do mesmo bando.

 

Do mesmo meio já se desligaram,

Nem os mesmos desejos, gostos quando

Reateiam de antanho o lume brando,

Nem as paixões mantêm que adoraram.

 

E o que consuma o abismo da distância

É que os amigos já não logram mais

Nem ao menos sequer compreender-se.

 

Pois quando falam, fala neles a ânsia

De quem se busca sem se ver jamais

E todos no mutismo irão perder-se.

 

 

793 - Desacordo

 

Motivos falsos são que em desacordo

Nos vêm colocando com a vida,

Destino em que se encontra desabrida

A multidão por entre a qual acordo:

 

Toma sempre o caminho em que impelida

Tomba, fatal, em meio ao pó que mordo.

E aqui vou arrastado ao que discordo,

Pagando as custas sem pagar guarida.

 

Sempre a vaidade ali nos justifica:

Bem atrevidos mergulhamos no erro

E jamais alguém quer retroceder.

 

É o modo por que a vida se autentica:

Não é com meu silêncio ou com meu berro

Que aquilo que é nos vai deixar de ser.

 

 

794 - Aprende

 

Espanta o que se aprende com a idade.

Primeiro o que na infância nos encanta,

Quando veloz a vida se decanta,

Aos mais velhos enchendo de verdade.

 

E os estádios etários em que espanta

De mudar uma tal capacidade

Que atordoa a maior velocidade

Mais do que a aprendizagem devir tanta.

 

Em cada mês que passa, a sensação

É muito mais do que a de que eu mudei,

Mais do que sei o que os mistérios são:

 

Mês a mês o que a mim se deparou

Será que inteligente me encontrei

Infindamente mais que eu próprio sou.

 

 

795 - Silêncio

 

Como uma pedra este silêncio cai

Na solidão. Será da guerra a morte

Que assim nos talha em desespero a sorte

Ou é nossa alma que de nós se esvai?

 

Antes será que a plenitude trai

A minha voz de espanto e me conforte

Com as paisagens que vão dar o norte

Ao que me busca e de mim nunca sai?

 

São meus limites que me assim provocam,

Seja o do nada, seja o do infinito,

Um que me mata, outro por mim que medra.

 

Ambos assim da raia me convocam

Quando abismal se me calou meu grito

E no silêncio talham minha pedra.

 

                               

796 - Liberdade

 

Se juntos festejamos nossa idade,

Se brindamos ternura, todo o dom,

Mesmo o da vida, é o que nos marca o tom:

Aqui nasce o país da liberdade.

 

Se o desejo que fundo mais me invade

É os dias partilhar como o que é bom,

Ouvir, na dor, ainda em festa um som,

Aqui nasce o país da liberdade.

 

Se longe de explorar-te a mim me exploro,

Se em vez de a ti me impor, antes te imploro

E se igual for em ti esta verdade,

 

Então juntos abrimos a fronteira:

- Venha o mundo morar à nossa beira,

Que aqui nasce o país da liberdade!

 

 

797 - Nada

 

Tudo isto olha-me bem, que é tão bonito!

Também tens o direito à madrugada,

Não sejas tolo, o troço duma estrada

É quanto basta a um coração aflito.

 

Entre colinas, pode ser um nada,

Um pouco de ar, de sol e me desquito

De quanto peso em mim há de granito,

Sou pedra, sou, mas uma pedra alada!

 

Há tudo o que se vê mas há também

Estoutro ambiente, a circunstância envolta

Na neblina do sonho que nos tem.

 

Não imagino o que nos fica à solta.

Só sei quanto a paisagem nos convém

A quanto grito em nós cava a revolta.

 

 

798 - Derrotados

 

Se somos derrotados, não é a guerra

Que havemos de perder, mas muito mais.

Ao perdermos a guerra, mais sinais

De nos perdermos é o que mais aterra.

 

Porém, quem aqui fique ainda mais erra,

Que o que se nos afunda em lodaçais

Com os despojos é sempre demais,

Porque ultrapassa quanto em nós se aferra.

 

É que, ao perdermos, perder-se-á o direito

De nós sermos o que éramos e então

Jamais os sonhos nos terão o preito.

 

Com eles morrerá toda a ilusão:

Entre os destroços o que irá morrer

Será o que poderia vir a ser.

 

 

799 - Guerra

 

A guerra são os mortos, mutilados,

Mortos-vivos que arrastam a desgraça

Entre os destroços públicos da praça,

Pessoas sem paredes nem telhados.

 

É o sol das explosões todos os lados,

Uma miséria que nos ventres grassa,

Que os arredonda tal a carapaça

Com que os recobre o dobre de finados.

 

Porém, quer seja nova ou seja velha,

Quando uma guerra estala nada encontro

Que menos a uma guerra se assemelha,

 

Tal é a mudança. Nada a si retorna

E, neste interminável desencontro,

Quanto mais muda mais igual se torna.

 

 

800 - Catástrofe

 

Toda a catástrofe era um julgamento,

Não dos antigos com a mão de Deus

A nos punir de incontroláveis céus,

O crime nos cobrando com tormento.

                                                               

É nos desastres que, por um momento,

Descubro quanto valem gestos meus,

Ali nos revelamos Prometeus

E é de seu fogo enfim que me alimento.

 

Porém, se ali me julgo e me revelo,

Jamais explico assim que desafio

Traça de mim além estoutro elo:

 

As linhas dum desastre não desfio

Ao desvendar-lhe apenas este apelo

Em que comigo só me concilio.

 

 

801 - Desafio

 

Dum desafio a crucial faceta

Não são os meios de que disporemos,

Não é quanto fazemos, não fazemos,

Nem mesmo o que a vitória nos prometa.

 

É decisiva uma visão da meta,

Mesmo a eficácia de não ser blasfemos

Quando os portais sagrados nós violemos,

Se a vida pelo além nos intrometa.

 

Que tudo o mais importa que saibamos,

Além de os meios bem usar, querer,

Querer bem fundo, com paixão de amor,

 

Que o decisivo a quem não quer ter amos

É uma vontade indómita de ser,

De ser até ao fim um vencedor!

 

 

802 - Militar

 

Ser militar é uma faceta estranha

Que nos revela todo um lado oculto

Que me envergonha e que no fim sepulto

A uma distância que ficou tamanha

 

Que jamais sei quem perde nem quem ganha

Com todo o crime que ficar inulto.

Nisto se junta o ignorante e o culto,

A mesma incompreensão ambos apanha:

 

Ser militar é crer que o mesmo tiro

Muda a eficácia sempre consoante

O nome bom ou mau que lhe darão.

 

É à palavra assim que ao fim confiro,

Discriminando entre traidor e amante,

O poder da varinha de condão.

 

 

803 - Segredo

 

Da existência o segredo só consiste

Em aprender a convivermos tanto

Que é cada qual com os demais enquanto

Por si sozinho nunca mais subsiste.

 

Depois, na lógica de todo o encanto

Que, solidário, é tudo quanto existe,

Não mais defende o espaço, a lança em riste,

Antes enxuga ao mundo inteiro o pranto.

 

Só que, depois, a fome insaciável

A fronteira ultrapassa da união,

Chega ao deserto onde não há mais nós.

 

Da existência o segredo ali viável

É o desta derradeira confissão:

- Convém saber mas é sentir-nos sós!

 

 

804 - Cínico

 

Ai quem me dera em cínico mudar-me!

Este momento apenas é o que conta

E, nele, o bem-estar a quanto monta,

Não o de todos, este aqui que me arme.

 

Cínico, porém, é o que me desarme

Das pretensões em que a vaidade aponta,

Cega a quem é perfeito, como tonta

Que em delírio soletra um velho carme.

 

Ser cínico é ser homem, mas perfeito,

Já que cínico é ver tudo bem claro:

Ver que nada tem forma nem tem jeito.

                                                                               

Nada afinal terá mais importância

Que o verdadeiro bem, único e raro:

Ser eu, aqui e agora, desde a infância.

 

 

805 - Cansado

 

Ai que cansaço! Como estou cansado

Deste viver que não é vida, não,

Fogo apagado já, no turbilhão

Perdendo o ritmo, o passo já trocado.

 

Cansa a corrida para todo o lado,

Cansa-me o sonho sempre no desvão,

Velhos fanais que a nenhum lado irão,

Corridas num deserto desolado.

 

Como é pior viver aqui à beira

Da fartura, faminto, salivando,

Cachorro abandonado na estrumeira!

 

Nenhuma trilha leva à cumeeira

E a vida cansa enormemente quando

Não é viver nem resta outra maneira.

 

 

806 - Agarra-se

 

Agarra-se um amante à sua amada

Como uma esposa a seu marido infiel,

Mesmo quando chegou o fim da estrada,

Mesmo quando o sofreu na própria pele.

 

Que será que a viver tanto me impele

Que, mesmo com a vida já acabada,

Eu lutarei pelo que ali me apele,

Além da morte aguardo a madrugada?

 

Porém, pergunto (e jamais há resposta)

Se há consistência no que apalpo à mão,

Se meu intento é mais que meu querer.

 

Vejo, afinal, que minha eterna aposta

Já não passa, por fim, desta ilusão

Que teimo eternamente em não perder.

 

 

807 - Importância

 

Não, não haverá nada de importância

Numa vida completa e genial,

Nem mesmo quando atinge tal fragrância

Que é um mundo sem fronteira temporal.

 

E menos importância, por igual,

Tem a vida apagada em relevância,

Que dela nem restou nenhum sinal

De quantos foi traçando desde a infância.

 

Nós não nos resignamos, porém, nunca

A nos deixar de ter por importantes

E eis que a tristeza nossos passos junca.

 

Por isso nos feriu tão cruelmente

Qualquer ameaça, a todos os instantes,

Que contra nossa força nos atente.

 

 

808 - Crenças

 

Nas relações humanas nós dizemos

Que jamais há mistério, tudo claro:

Ali jogamos porque ali sabemos

E colhemos do amor o bem mais raro.

 

Outras vezes, porém, que acreditemos

Depende mais das provas que comparo

E bem palpáveis nós as buscaremos

Se é uma suspeita que na prova aclaro.

 

Porém, ao fim, nas relações humanas,

Como nas crenças religiosas, eu

Só posso dizer "sei!" quando as pestanas

 

Fechar e for guiado pela fé.

É na crença que encontro a voz do céu

Que afinal é o que não vejo ao meu pé.

 

 

809 - Filho

 

Criar um filho é ter a companhia

Sonhada duma vida partilhada,

É ter a minha infância perpetuada

Enquanto se aproxima o fim da via.

 

Porém, toda esta creça fica em nada

À medida que a vida principia:

Não há brida que, firme, a guiaria,

Que viver é soltar a cavalgada.

 

Ter um filho é não ter casa onde aloje

Este outro que sou eu e não é igual,

Por mais que tenha sempre a porta aberta.

 

Um filho é aquele ser que sempre foge:

Constantemente (a lei é natural),

De maneira insensível nos deserta.

 

 

810 - Valor

 

Eu sou daqueles que crerão que tudo

Tem um valor que mais que o valoriza

E que no encanto, ao sopro desta brisa,

Me jogarei com tudo a que me grudo.

 

A quantos são assim, viver, contudo,

É descobir que ao fim tudo desliza,

Que se perdeu em pó quanto enfatiza

O rosto do momento em que me iludo.

 

Assim veremos que nos chega um dia

Em que a ilusão não mais na fantasia

Nos pegará da lantejoula fútil.

 

Aí a vida cada qual deguste-a,

Que só lhe resta para além a angústia

De ver que, ao fim e ao cabo, tudo é inútil.

 

 

811 - Pobre

 

Toda a nossa ambição é desmedida.

Um enorme valor a quanto temos,

Como mágicos, nós atribuiremos:

De ricos é a visão ali contida.

 

Contudo, só quem é capaz na vida

De roçar leve aqui no que encontremos

Ajuda a que de tudo disporemos

Sem esperar melhor nem mais guarida.

 

É porque aquele só que não ligou

Jamais nenhuma a quanto for riqueza

É capaz de viver sem pressentir

 

O que é que a falta dela avassalou:

Só nele esta tortura já não pesa

De pobre se encontrar e sem porvir.

 

 

812 - Feliz

 

Algum dia cheguei a ser feliz,

Mas a felicidade é sempre engano

Que nos fabricaremos todo o ano,

Moldando a nossos usos tal matriz.

 

Por que é que a máscara terá o cariz

De nos abandonar, já solto o pano,

Nas procelas do mar, a todo o dano,

Que já nada com sonho nos condiz?

 

Como é mais fácil nós abandonarmos

Aos devaneios quanto fim se almeja

Do que a viver, enfim, renunciarmos!

 

Como os sentidos jogam o porvir

Colaborando até que aqui se veja

Que deles a missão é nos trair!

 

 

813 - Significo

 

Para ela eu já nada significo

E assim é que de ser me tornei nada,

Em fumo se me foi toda a alvorada

E nem a fumarada certifico.

 

Aqui estou e já nada pontifico

E o que sobre o paul só sobrenada,

Sem luz nem sombra, vai, alma penada,

De fantasmas de mim talhar-me rico.

 

Ainda tremo, sinto o meu suplício,

Mas nem há carnes com que os lobos cevem

As fomes num qualquer de mim resquício.

 

Não há gelos iguais que à serra nevem.

Aqui estou. Não sou mais que um desperdício:

Se houver trapeiros de homens, que me levem.

 

 

814 - Quando?

 

Quando é que as odisseias, sem querer,

Deixaram de trilhar nosso porvir?

Quando é que a infinda fuga no nadir

Do Ocidente se torna no talher?

 

E como é que, infantis, nossa colher

O nosso cibo acaba de espargir?

Como é que na abundância prosseguir

É tão capaz de nos delir o ser?

 

Como é que dum tão grande bem-querer

Tanto mal nos acaba por advir?

Por que é que amor e morte hão-de ocorrer

 

Como fado a que não há que fugir?

- Quando é que nós deixámos de viver

Para passar apenas a existir?

 

 

815 - Carne

 

Mesmo se a tudo me vão crer já mouco,

Procurarão fortalecer-me um pouco.

Como quem põe um fato muito velho,

Mas que não se abandona no cortelho,

 

Um remendão antes que vá prò lixo,

Assim remendar-me-ão neste meu nicho.

De mim irão cuidar um tempo mais:

Engordam o seu porco nos currais.

 

Assim ficarei pronto prà matança,

Horizonte que o credo já me alcança.

Aqui vivo, metido entre estas talas,

 

Preparando meu corpo para as balas.

Aquilo p'ra que sirvo - eis a questão.

- Só me querem de carne p'ra canhão!

 

 

816 - Guerra

 

A guerra, como é bom! Os homens podem

Assassinar impunes toda a gente.

Pois quantas vezes cada qual, demente,

Aos vizinhos infrenes que o sacodem

 

Sonhou assassinar impunemente?

Agora as leis da guerra nos acodem,

Obrigam a matar enquanto rodem.

Então, como infeliz alguém se sente?

 

Não é matarmos, não, quanto apavora.

Nós matamos quenquer e nem sequer

É nisto que o temor se nos demora.

 

Nós odiamos a guerra por temer

Que a nós próprios nos chegue enfim a hora

De a morte e o sofrimento nos colher.