SÉTIMA REDONDILHA
E POR DENTRO CRESCE
Escolha aleatoriamente um número
entre 817 e 912 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
817 - E por dentro cresce
E por dentro cresce
O passo de além
Que me tem refém
E nunca aparece.
818 - Força
Não há força maior que a nossa
inteligência:
Domina a natureza que domina o homem,
Dela o préstimo expõe onde houver mais
premência
Servindo-nos então como àqueles que a
domem.
Os engenheiros rasgam estradas e pontes,
Aviões e satélites voam no espaço...
Mas importa que em tudo o coração apontes:
Entrelaça entre nós um mais estreito
abraço!
Cientistas inventam laser, raios X
E testam, comedidos, as novas medidas:
A inteligência traça precisos perfis
Com que amanhã podemos salvar outras
vidas.
As nossas horas ganham aguilhões viris:
Breve demolirão as muralhas erguidas.
819 - Mosquitos
Mosquitos na garrafa para fora a olhar,
Vivemos na ilusão de ter ao nosso alcance
O mundo além do vidro dentro ainda do lar,
Como certo tomando o que o sonho nos
lance.
Nenhuma frustração existe que nos canse
De contra o fatal vidro incansáveis lutar:
Sistemas e teorias, místicas em transe
Acabam e renascem em todo o lugar...
E sempre de ilusão nossa garrafa enchemos,
Contrariados, sim, mas nunca convencidos
Que a proibida fronteira não a imponham
demos.
E a verdade fatal que nos veio a calhar
É que seremos só, no meio dos bramidos,
Mosquitos na garrafa para fora a olhar.
820 - Destino
Destina-nos as vidas o nosso destino
E as probabilidades marcam-no ainda mais,
Sem que nada possamos contra o desatino
Que aos coxos em atletas não muda jamais.
A pantera na pele não muda os sinais,
Mas poderá, contudo, trocar o seu tino:
Se há cancro do pulmão, por que ainda
fumais
E por que é que o obeso se não torna fino
Se os genes à diabetes o têm propenso?
O nosso coração é hereditariedade
E pode acumular derrocadas se tenso,
Porém dás-lhe, ao treinar, cartão de
sanidade.
Para ganhar na vida não nos basta o
trunfo:
Na carta bem jogada é que mora o triunfo.
821 - Escrita
Dizes que não há nada sobre que escrever,
Não viste ainda o mistério que mora na
escrita:
Recria nela o mundo, dá-lhe um novo ser,
As pontes interliga e o traçado te dita.
E com isto, discreta, como quem não quer,
Bem por dentro de ti, enquanto se medita,
Vai-te desabrochando o fogo de entender
E com a natureza entra assim em compita.
Será tão criadora que o que não existe
Pode trazer à vida na imaginação,
Já que a literatura neste além consiste.
Renova dentro e fora com mago condão.
Tão autónoma e livre, escreve até a dizer
Mesmo que não há nada sobre que escrever.
822 - Familiares
Ao tecido das relações mais familiares
A frase que entre todas mais o tece e
destece,
Conforme lhe acontece ou lhe não acontece,
É confessar "eu te amo" sem
preliminares,
É confessar que te amo como numa prece.
Tão simples e difícil é ao céu trepares!
Outras dificuldades, porém, singulares
Nos tolhem o caminho onde o passo tropece.
Duma importância igual àquela confissão
Resta-nos a segunda, no final mais rara,
Já que de nosso orgulho nos leva a abrir
mão.
Esta firma em cimento as pedras da união
Que a confissão de amor, frágil, nos
ajuntara.
Basta só confessar:"Se calhar tens
razão."
823 - Perito
Vivemos iludidos por nova euforia,
A lutar esforçados por mais tecnocratas.
Com a escolaridade aumenta, dia a dia,
A lista dos doutores e o volume de actas.
Porém, a eficiência que se esperaria
Não desliza em esferas, anda de
alpercatas,
Enquanto estes peritos bebem a alegria
Do assalto pelas costas se te não
precatas.
Tudo porque esquecemos que o que mais
importa
Não é, com toda a pressa, como nosso fito,
Abrir a quem calhar uma rasgada porta,
É talhar um caminho a quem me lança um
grito:
Porque um desmotivado nunca a si se exorta
E um leigo motivado devirá perito.
824 - Segredo
A verdade liberta porque, livre, voa:
Deste modo atentou, feroz, a tirania.
O segredo jamais fora uma escolha boa
Senão quando percorre a noite até ser dia.
O segredo é um poder que a ninguém se
confia
E secreta é a polícia que até já magoa
Na suspeita e no medo em que se refugia,
Desarmados deixando os que persegue à toa.
Na verdade ou mentira, se houver
transparência,
Tudo se clarifica, quando for seu guia
Viver o pensamento buscando a evidência
E repartindo claro quanto encontraria.
Porque a verdade vive livre por essência,
O segredo em seu antro gera a tirania.
825 - Servir
Costumava pensar servir a Humanidade
E assim me confortava minha juventude.
Mas então descobri quanta gente se ilude,
Quanto doi o caminho para a liberdade.
A ingrata Humanidade não quer, na verdade,
Que ninguém vá servi-la, ninguém se lhe
grude
E, bem pelo contrário, recusa o que pude
Trazer-lhe: a tentativa da gratuitidade.
Recusando qualquer tentame de servi-la,
Afinal me liberta, mesmo que o não queira:
Posso por fim ser eu, vivendo à minha
beira,
Portanto, viverei pacato em minha vila.
Ao encontrar, surpreso, nisto, o meu
sentido,
Afinal sirvo o mundo e o Homem sai do
olvido.
826 - Bipolar
Sou homem, sou mulher, pessoa bipolar
E a bipolaridade é força de união
Onde muitos contrários se unificarão
Pelos séculos fora, por todo o lugar.
É tal esta energia que nos anda a par
Que dela respiramos e nos molda o chão,
Dali nós proviemos e os mais que virão,
Da força propulsora de tudo o que andar.
O gesto me impele e gera-me um soneto,
Enquanto além medita uma equação vital
E traça num filósofo um caminho recto.
Porém, se alguém pensar que exagero o
sinal,
Ausculte as bibliotecas, museus e
arquivos:
Veja quanto ele próprio são vestígios
vivos.
827 - Invencível
O homem tem um campo em que é mesmo
invencível,
É o desta ingenuidade de inventar maneiras
Mais e mais eficazes de aumentar o nível
De escravizar, matar, ter espias
matreiras.
É assim que se persegue do mundo nas
feiras,
Aos demais procurando um prejuízo incível
E jamais se dá conta que as manhas
arteiras
É a si que prejudicam, nunca tal lhe é
crível.
O homem é uma chalaça que não tem piada,
Anedota sinistra de que faz bem rir
E não é por acaso que anda à gargalhada.
Mesmo que torne um dia a Terra num
torresmo,
Mesmo que se elimine de qualquer porvir,
Sempre o Homem é o único a rir de si
mesmo.
828 - Acreditar
Será o Homem o ser capaz de acreditar
Até mesmo naquilo que é o mais improvável,
Numa superstição para o que for viável
Ou numa fé num Deus sem tempo nem lugar.
Vai desde o espiritismo, ao crer telefonar
Para um mundo de Além, a nós irrespirável,
Até aqueloutra crença, muito mais
saudável,
Da superioridade de filhos sem par.
Toda a fé, se não é uma preguiça mental,
Será apenas a crença no que minhas mãos
Amanhã criarão que de mim dê sinal.
Tudo o mais será sempre tão irracional
Como crer no Universo à mão dos cidadãos
Onde uma prece à chuva atalha todo o mal.
829 - Deus
Questionas: Deus quem é? E ficas sem
resposta
Na selva emaranhada de crenças, igrejas,
Dado que cada uma às das mais contraposta
Nas demais se aniquila impedindo que a
vejas.
Nem da filosofia na tese proposta,
Sequer da teologia na fé do que almejas
Irás além da nuvem, da sombra suposta.
No final só te resta aquilo que tu sejas.
Irmão desenganado, esse Deus que procuras,
Ao qual és cego e surdo e que jamais tem
voz,
Não mora longe, não, vive no que perduras,
Em tudo o que unificas, quando atas os
nós.
É por isso que a ti, nas palavras mais
puras,
Afirmo que és tu deus quando tu somos nós.
830 - Viúva-negra
A aranha viúva-negra é um tímido animal,
Duma beleza ímpar entre os aranhiços,
De couro envernizado e sem quaisquer
postiços
Num corpo de ampulheta, limpo e sem igual.
Mas esta criatura, não sei por que
enguiços,
Tem no corpo um veneno com um poder tal
Em tão pequeno ser que lhe vai ser fatal:
Em todo o mundo é morta por seus maus
serviços.
Tal fado a viúva-negra não pode evitar
Dado que não tem meio de não ter veneno,
Tanto é o poder que tem cada seu avatar.
E assim aqui andamos, com gesto sereno,
Laboriosamente sempre a nos matar,
A ver se alguma vez limpamos o terreno.
831 - Acaso
Ninguém pode acolher a tese dum acaso,
Tão popular por vezes entre os cientistas
Que tal se denominam para terem aso
À preguiça de quem só tenta dar nas
vistas.
O acaso não fornece as procuradas pistas,
Respostas contingentes nunca em nenhum
caso,
E eis como este Universo nos tolhe as
conquistas,
Sempre aqui nos deixando num terreno raso.
O acaso jamais é razão suficientre
Para o acaso enfim nos poder explicar,
De modo que a razão se desse por contente.
Por muito que se aventem motivos a esmo,
Jamais é dum acaso esse acaso o lugar,
Que um acaso não logra explicar-se a si
mesmo.
832 - Segurança
Religião é campo que não tem direito,
Pois que todo o direito é dela que dimana,
Mesmo quando o jurista da lei ergue a cana
Sem ver o canavial onde colhe o preceito.
É que o direito tenta assentar o que abana
Com aquela firmeza com que estreito ao
peito
A crença mais profunda que do imo me
emana,
Em busca do seguro ao inseguro
atreito.
Na eterna hesitação de salvar e perder,
Entre o escravo e o liberto joga-se a
tardança
Dum tempo que se aguarda sem jamais o ser.
E aquilo que mais custa é manter a
esperança,
Será sempre inseguro persistir quenquer,
Deste lado da tumba não há segurança.
833 - Ventre
Tão importante é aquilo em que nunca
pensamos
E tanto nos importa o que importa tão
pouco!
Tanto tempo perdido com servos e amos,
Com tanta indecisão entre o sensato e o
louco!
Quantas palmas batidas ao cantor que é
mouco!
Sonho os lumes e os píncaros e a vida
dá-mos
Nos rostos e nas obras de génios que
apouco
Para logo assentar que é por eles que
vamos.
Aos tronos elevamos quanto é formosura
E será uma obra-prima o que nos maravilha,
Dessedentando breve a sede da procura.
Tudo, porém, ocorre no que é superfície,
Já que por trás se esconde quanto nos
humilha:
Do pecador o ventre é cheio de imundície!
834 - Jovem
Primeiro a juventude é uma questão de
idade,
Aqueles anos verdes em que o sonho aflora,
Em que se vive inteira a vida numa hora
E somos cidadãos de toda a humanidade.
Depois é o sonho atreito a ser realidade,
Na espera do que vem e que jamais é
agora,
Que então rejuvenesce as cãs de quem
demora
E num jovem transmuda outra qualquer
verdade.
Para além dos rituais que os deuses nos
demovem,
Para além do desejo importa mais querer
Os abismos do fundo que ali nos comovem.
Para além dos motivos que a todos nos
movem,
O que por fim importa é ser o que se quer:
Ninguém velho é demais jamais para ser
jovem.
835 - Diferentes
Todas as coisas são sempre e só
diferentes,
Em cada identidade mora o irrepetível,
E esta riqueza é tanta que a cremos
incrível,
Jamais no-la abarcamos com as nossas
mentes.
Mais as modificamos e mais são prementes,
Em todas as mudanças, quando muda o nível,
Delas as semelhanças em quanto é passível
De se tornar comum pelas comuns vertentes.
Porque, quando dizemos:"isso é
diferente!",
Dizemos muito mais do que, afinal, dizemos
E menos que a verdade do que isso
consente.
Porque o que há de comum ali nunca veremos
Nem o que tiver de único e estiver
presente,
Que as coisas, se mais mudam, mais iguais
as temos.
836 - Riso
Entender as pessoas é entender o riso,
Mas por que é que será que as pessoas se
riem?
Onde está a gargalhada, as graças que
sorriem,
Será apenas e só numa falta de siso?
Ou será de alegria, de paz um juízo
Que o riso nunca pode deixar que se adiem,
Que em lugar de palavras no íntimo se
aliem,
De festa proclamando um estridente aviso?
As pessoas se riem, afinal, daquilo
Que tanto lhes doeu que não terão palavras
E atenta cada qual contra o que vem
feri-lo.
O riso é a nossa fuga a uma dor de
quenquer:
Quando as nossas lavoiras morrem pelas
lavras,
Rimos porque isto doi e assim não vai
doer.
837 - Vencemos
Uma coisa que é boa jamais é engraçada,
Por mais que nos doa por que seja assim,
E jamais é engraçada a coisa com piada
Para a pessoa a quem isso acontece enfim.
Duma coisa engraçada se rio no fim,
Não é que seja boa, o rir é que a alvorada
Inaugura em si próprio contra este mastim
Da dor em que minha alma vive mergulhada.
Então disto a virtude está no próprio riso
Que sempre constitui um acto de bravura
Em que em mim o inimigo ataco sem aviso.
E o riso é uma partilha em que a cadeia
rota,
De novo entretecida, a mão na mão segura
E a rir então vencemos dor, pena e
derrota.
838 - Universo
O estranho do Universo é que será uma
esfera
Cuja rotundidade é aqui policentrada
E, mesmo que o não fora em nenhuma outra
era,
Na nossa, na do Homem, não tem outra
estrada.
E não é porque em nós encontre a Primavera
A pureza das neves na altura enlevada,
Inspirado poema cuja voz nos era
Pelos céus encobertos à musa emprestada.
Nem sequer porque não possamos nós medir
Senão com a medida nossa toda a coisa,
Pois muito mais profunda é a esfera de
existir.
Aponta p'ra qualquer direcção do Universo:
Não importa onde apontes, teu dedo
repoisa,
Pois a ti é que aponta no mundo disperso.
839 - Artista
Um artista verá numa jovem bonita
Uma velha mulher em que se mudará.
E, quanto melhor for, mais o artista
debita
Na velha tal qual é a jovem que não há.
A sensibilidade vai ver acolá,
Se mais longe avançar na história da
desdita,
Presa ao corpo arruinado que ainda a jovem
'stá
Bem viva e conformada como quem medita.
O artista é que fará com que eu sinta a
tragédia
Silenciosa, infinita, de não ter havido
Nunca uma rapariga a ter envelhecido
Além dos seus dezoito anos nesta comédia,
Independentemente do que lhe fizeram
As impiedosas horas que ao fim a venceram.
840 - Sereia
A sereia que em terra preferiu ficar
E cujos pés lhe sangram pela escolha feita
Olhará eternamente para ver o mar,
Para sempre sozinha no que fora deita.
Outrora a Humanidade escolhera este lar,
Uma escolha difícil, porém sem despeita
E que jamais lamenta mas tem de pagar
Porque qualquer escolha tem paga da peita.
O preço não é apenas morrer de saudade,
A infinda nostalgia do definitivo,
Custa-nos outra dor doutra profundidade:
É que jamais podemos ter inteiramente
Nossos pés adaptados ao penedo vivo
E o sangue é que nos dá o direito a estar
presente.
841 - Modernos
Os artistas modernos são masturbadores,
Desdenharam pintar o coração humano
E seus mestres de escol humilham, de
senhores,
Matam nas abstracções o que tinham de
urbano.
Pseudo-intelectuais sem aval nem penhores,
Jamais descobrirão que arte é um antigo
arcano
Para em nós despertar as paixões e os
terrores:
Que insensível ninguém viva a roda do ano!
Um artista o que quer é o coração do povo
E jamais, às mancheias, pagas do Governo
Que assim a meretriz apoia complacente.
Estoutros são abstrusus e chamam renovo
Ao que ninguém entende e nada tem de
interno:
Sempre obscuro será o antro do
incompetente.
842 - Minhoca
Por mais que o rejeitemos, somos a minhoca
Que esgravata, esgravata o solo até
encontrar
Tudo o que ali procura prò meter na boca
E assim vai furar luras por todo o lugar.
Até que um dia encontra no fundo da toca
Aqueloutra minhoca com que funde um lar.
"Que bela que és, donzela!" - e
às vénias se coloca.
"Quererás tu, minhoca, comigo
casar?"
"Não sejas parva, que eu sou a tua
outra ponta!"
- Nós sempre que encontramos qualquer
outra coisa,
Um homem ou mulher, um gato extraviado,
Se mais peso lhe dermos, melhor dermos
conta,
É que neste Universo em que nosso olhar
poisa
Andamos conhecendo só o nosso outro lado.
843 - Amor
É o amor a emoção que nos leva a fugir,
É o amor a emoção que nos leva à procura
E todo o mundo tenta encontrar-lhe a
frescura
E nele se refresca sem o descobrir.
Nós apenas sabemos que é dele o porvir,
Que nos doi dele o parto com que tudo cura
E que exalta e destroi e, se mata a
secura,
Faz pagar-nos um preço que se fica a rir.
O amor é a condição da vida tão vivida
Que prà felicidade poder ser perfeita
Requer a alienação a quem lhe dá guarida:
Para ser mais feliz eu jamais me
ensimesmo,
Já que a felicidade a sério só me espreita
Quando na de meu par me encontrar a mim
mesmo.
844 - Artísticas
As profissões artísticas são mesmo
estranhas,
Pois que, se em vida ganhas, não és mesmo
artista,
Já que ser um artista implica que não
ganhas
Nem sequer para o susto de nem dar na
vista.
E nem sequer se sonhe que alguém cá
subsista,
Dado que da conquista quanto tu apanhas
É a pequena migalha que no escravo invista
Quem de ti se alimenta a sugar-te as
entranhas.
E assim será que as obras feitas com amor
Aguardam anos, séculos, na prateleira,
Até que um dia adquirem, afinal, valor.
Eis que o melhor trabalho então irá valer,
Ao fim de tanto tempo nesta sementeira,
Quando o autor já não vive para o receber.
845 - Pena
Quantas vezes sentimos de nós próprios
pena
E vai ser com sarcasmo que os mais nos
recebem,
Por inteiro incapazes, como quem condena,
De os outros acolher de que nada concebem.
Se as aves do trabalho em nossa taça bebem
Em breve, assustadiças, o medo as depena
Quando a contradição de súbito apercebem
Duma vida vazia em vez de vida plena.
Assim é que ninguém nos compartilha o
lado,
Por mais que a nosso lado viva a sina
incerta;
Sozinhos viveremos, fatais, nosso fado.
Mesmo que já não reste alguma porta
aberta,
É verdade, porém, que quem o traz calçado
É que pode saber onde o sapato aperta.
846 - Raparigas
As raparigas são como são os rapazes,
Têm sonhos, loucuras, como toda a gente,
Sonham com um amor culposo ou inocente
E sonham mesmo até co'o que não são
capazes.
Não é que as raparigas sejam mais audazes,
Já que os rapazes são-no, mesmo que,
incoerentes,
Não saibam onde ou quando vão ferrar os
dentes
E acabem derrotados onde foram ases.
Porém, as raparigas sonham outro dia
Sem deixar de sonhá-lo neste aqui e agora
E de implantá-lo já, sem ser em fantasia.
As raparigas são, sem haver mais demora:
As raparigas são aos rapazes iguais,
Só que elas são-no mais, são mesmo muito
mais!
847 - Cariátides
Somos nós as cariátides sempre caídas,
Nossos tectos tentando nos ombros erguer,
À margem das eternas, pobres avenidas
Que nunca nos cansamos de andar a correr.
Mas jamais estes tectos cobrem as saídas
Dos raios e coriscos que atentam quenquer,
Pois sempre nossas forças nos ficam
perdidas
Antes que nós cheguemos aonde se quer.
Tentámos, não tentámos, meus pobres
irmãos?
Porém, estes penhascos sempre demasiado
Pesados nos serão para tão frágeis mãos!
Heróicos continuamos, por muito que doa,
Não nos demitiremos do trágico fado,
Mas pesa demasiado p'ra qualquer pessoa!
848 - Estrangeiros
Nós somos estrangeiros de qualquer lugar
E a vida dispendemos a gastar dinheiros
Para outros estrangeiros poder visitar
Que de novas animem nossos companheiros.
Nas trocas permanentes nem vais reparar,
Que o que menos importa não são os
primeiros
Que acaso nos descubram qualquer novo lar,
Que os lugares são um, mudam só os
viageiros.
Que é que me importaria o lugar donde
vens?
Um lugar é um lugar e são todos iguais,
Porque a beleza deles é a que tu conténs.
Não serão as paisagens que são belas,
boas,
Embora a novidade extasie demais,
- O que há de único aí são de facto
pessoas!
849 - Depressa
Como corre depressa o tempo que envelhece!
Ou toda a pressa é minha porque corre a
idade
E entretanto o que eu temo é que a
velocidade
Que tenho me não baste para o que aparece?
Se uma pessoa chega a velho também há-de
Forçosamente ver o que lento lhe esquece
E como cada inverno um pouco lhe arrefece.
Então tem certa pressa, não se vá a
cidade.
E assim terá de ser em relação a coisas
Como um nascer de sol, a jóia preciosa
Em que em provecta idade teu olhar
repoisas.
E se assim tem de ser diante do arrebol
É que esta maravilha que tanto se goza
Pode não ser seguida pelo pôr-do-sol.
850 - Impossível
Com Deus todas as coisas são possíveis?
-Não!
A única impossível é que Deus não pode
Fugir nem abdicar de ser-nos a razão,
Responsabilidade de tudo o que acode.
Também, porém, não pode largar o bordão
E deitar-se a uma sombra que, se o quer,
sacode:
Eterno deverá, na inteira submissão,
Permanecer fiel ao que a si se acomode.
Humilde em adesão à sua própria vontade,
Ei-lo que permanece, queira o que quiser,
Pois de fugir não tem a possibilidade.
Eis o veto maior que sempre o irá prender:
- Vedada por inteiro será a liberdade
De se cansar de si, de então deixar de
ser.
851 - Salutar
Salutar é aprender e mais que salutar.
Os conceitos não podem, sem a linguagem,
Jamais ser ensinados em nenhum lugar.
E a disciplina vem, depois desta viagem,
Na cornucópia cheia de bens culminar:
Como viver sem luta, eis uma aprendizagem,
Outra poderá ser como à esposa agradar...
- Da lógica provêm, de como os termos
agem.
Os conceitos acolhem quem cada qual é
E logo compreendem porque é que ele
existe,
Como é que funciona decifram-no até.
Resta só comportar-nos conforme tais
dados,
Porque a felicidade que algum dia viste
Provém de como os seres são organizados.
852 - Disciplina
A vida nos requer uma tal disciplina,
Se nós a pretendermos como plenitude,
Que mesmo a paciência é uma nova virtude,
A respeitar o ritmo em que a planta
germina.
Assim a paciência faz que mais estude
Quanto a semente quer com que se não atina
E a disciplina então nisto melhor se
afina,
Lidando mais inteira rumo à infinitude.
Tão integrante acaba a paciência, enfim,
De nossa disciplina, numa vida a sério,
Que nem é paciência, é tão parte de mim
Que quem sabe esperar conquistará um
império.
Quanto mais for eu mesmo em minha
matemática,
Mais minha paciência vai ser automática.
853 - Humanos
Temos nós, os humanos, de fazer progressos
Que são consideráveis, antes de podermos
Aceitar uma oferta que não queira
excessos,
Uma oferta de graça em seus íntegros
termos.
Ninguém consegue dar-lhe o valor que os
processos
Mais comuns repudiam, tanto são dele
ermos.
E assim é que aos demais não concedo os
ingressos
Ao melhor que entre nós algum dia
pudermos.
Aceitar uma oferta levanta dois muros.
O primeiro é o de dar. É difícil saltá-lo
Sem arrastar atrás pagamentos impuros.
O segundo, porém, provoca mais abalo:
Como aceitar gratuito, sem graças a par?
- É muito mais difícil aceitar que dar!
854 - Suficiente
A virtude não é jamais suficiente,
Uma vez que, por si, a si própria não
basta.
Requer-se sensatez bem fria
juntamente
Para que uma virtude encontre a própria
casta.
Para fazer o bem urge tornar presente
O bom senso à virtude da forma mais vasta:
Se a sensatez falhar, a virtude nos mente,
Levará sempre ao mal, o bem de vez afasta.
Por isso é que preciso de urgência de ti,
Preciso mesmo tanto quanto de ti gosto,
Dado que em ti reside a sageza por si.
Vai ser o teu saber que unido ao meu dá
força
E assim toda a virtude é nisto que eu a
aposto,
Ao conjugar-me a ti é o bem que se
reforça.
855 - Deus
Eu sou deus, tu és deus e qualquer
besta-fera
Que bem longe afastamos é deus por igual,
Tal como qualquer erva traz a Primavera
E sem mesmo o saber opera tal e qual.
É por isso que Deus repara no pardal,
Mas repara também numa inerte atmosfera
Pois em tudo na vida se encontra o sinal
Do que existir a mais do que cada qual
era.
Deus repara, afinal, se o pardal cai do
ninho
Por aquela razão doravante tão clara
De devir dele mesmo seu próprio adivinho.
Resta que atingir Deus é tão longe e tão
fundo
Que afinal se tornou naquela jóia rara
Que ninguém encontrou jamais em todo o
mundo.
856 - Pensam
Digas o que disseres, eles pensam Deus
Como alguém que está fora e que nunca são
eles.
Não importam apelos com que lhes apeles,
Terão sempre um regaço para além dos seus.
O Deus deles anseia amparar os plebeus,
Encostar ao seu peito atrasados e reles,
Confortá-los, mantê-los tais quais dentro deles:
Eles crêem em Deus só porque são ateus!
Aceitar que este esforço vem de cada um,
Que toda a salvação é o passo dado em
frente,
Que os problemas que têm são eles que os
criam,
Nunca recebe o aval entre eles de nenhum.
A tragédia é que a via que lhes fica
ausente
É a única, afinal, onde a Deus chegariam.
857 - Mundo
O mundo que tu vês depende só de ti,
Embora sempre o vejas como consistente,
E não como o mistério ante ti presente,
Que é o que para ti for, não o que for em
si.
O mundo é cada um naquilo que lhe assente,
Quando depois de o ver entra num frenesi
De agir a seu contento, sem mais alibi,
Impondo-lhe o carácter com que assim o
invente.
Porém, a admiração é tanta do infinito
Que adiante se me estende que sempre
confundo
O eco que me responde ao êxtase do grito
Com o que mo provoca e de que então me
inundo:
Toda esta imensidade na qual eu me agito,
Que é sempre o que não é e que sei lá se é
o mundo!
858 - Moeda
Uma moeda terá. de facto, duas faces,
Como acreditam todos, ou isto é mentira?
É sempre verdadeiro quando alguém se vira
Para o lado contrário a analisar-lhe os
passes.
Só numa parte, aliás, pois gera mais
impasses
O intérmino confronto que dali se tira,
Quando o que era importante era manter em
mira
Uma terceira via, de ambas com enlaces.
Joga-se a moeda ao ar, sai caras ou
coroas,
Só que qualquer das moedas, mais
inteligente,
Pode cair de pé e as crenças arrasou-as.
Teremos de aceitar que, discreta e
presente,
Há uma terceira face, além das que apregoas,
Que liga as outras duas e em pé nos
aumente.
859 - Revolução
Duma revolução o primeiro problema
É que está sempre pronta a proibir,
derrubar,
Sem uma alternativa produzir a par,
Sem nos oferecer em troca qualquer lema.
E quanto mais o sonho utópico se extrema
Mais fica sem caminho a pessoa vulgar,
Uma vez que a esperança não terá lugar
Se for o apocalipse o que vem do sistema.
Na utopia extremada restam só desgraças
E ao naufrágio geral todos se lhe
habituam.
Bom é tirar partido! Que importa o que
faças?
Enquanto for possível, vorazes, actuam.
P'ra quê sacrificar-nos, ter um gesto
terno,
Se de qualquer maneira vamos para o
inferno?
860 - Fanatismo
O fanatismo gera sempre o terrorismo,
Primeiro o terrorismo apenas das palavras,
Mas em breve as colheitas, semeadas nas
lavras
Serão os assassínios, bombas, banditismo.
Porém, nunca o fanático verá o abismo
Para o qual o encaminha o engano da
evidência,
A ilusão de incarnar a única ciência
Que além lhe quebraria o fatal solipsismo.
Quer queira, quer não queira, ao mundo
há-de salvá-lo,
Nem que para o salvar, ao fim e ao cabo à
força,
Jamais faça o balanço do custo a quanto
orça.
E assim é que, hoje em dia, tanto mais me
entalo
Quanto mais em redor estes libertadores
De ser livre me livram co'a feira de
horrores.
861 - Outono
A coisa mais alegre agora deste Outono
É uma fogueira breve acesa livre ao ar:
Nas achas e gravetos sempre a rechinar
Chilreios e trinados evocam seu dono.
É o eco dos pardais e dos piscos o entono
Que pela Primavera andaram a cantar
Nas ramagens floridas, em noites de luar,
E pelo Verão fora nem tiveram sono.
Adejaram em bandos por sobre as fruteiras,
Ante a minha janela, em lautos bacanais,
Sublinhando o Verão de imensas bebedeiras.
E nisto é que meus pássaros deixam sinais:
Em tudo ali talharam um mágico arcano
E assim em mim os tenho a cantar todo o
ano.
862 - Porta
Em minha casa a porta é porta protectora
Contra o mundo e o que passa dele através
dela.
Porém, o que me vem sempre de lá de fora,
Quase mesmo inconsciente da fronteira que
há nela,
É alguém que me busca, a fugir da procela,
E que faz ocorrer este milagre agora:
É o limiar da vida que espreito à janela
E é o espanto que me entra a porta de hora
a hora.
Minha porta está aberta ao pesar,
rejeição,
Como ao acolhimento e à inerente partilha
E amadurecimento que juntos nos dão.
Um milagre na Terra é descobrir o amigo
E levar um amigo a ver quanto sou ilha:
Inteiros repartimos a paz que consigo.
863 - Moda
Muitos artistas buscam o poder e a glória
Através das benesses vazias da fama
E por esta vanglória trocam quem os ama,
Com as palavras confundem quanto for
vitória.
Mesmo se os ouropéis numa placa marmórea
Lhes registam os nomes, a durável cama
Que esta via prepara, onde ao fim tudo
acama,
É a da campa onde esvai tudo em sombra
incorpórea.
Assim nos trai a fama quando, inteira,
toda
Nos fascina, hipnotiza como oiro de lei,
Para ao fim nos deixar sozinhos e sem
boda.
Por oiro me não vendo e o oiro a sério
sei:
- Como nunca serei a pessoa na moda,
Também passar de moda jamais poderei.
864 - Leitor
Um livro principia num gesto de amor
E depois continua na mão estendida
À procura do amante que será o leitor
A lhe corresponder com a entrega da vida.
De ambos quando a união atingir o
esplendor
É para um mundo novo que a gesta convida
Onde irá fulgurar com um outro fulgor
Quanto sol nos arranca da sombra esbatida.
É
na dor que se cria toda a criação,
Fundada na esperança de atingir além.
Jamais, porém, do risco do leitor me
livro:
Pois, quando ele me ignora, o livro perde
a unção,
Nas trevas se lhe esvai a mensagem que
tem,
É sempre o bom leitor que fará bom um
livro.
865 - Oito
O que é que um homem pode fazer dia a dia
Em oito horas inteiras? Dormir? Trabalhar?
Mas dormir é preguiça e, enquanto ela
durar,
Um homem nada faz além da fantasia.
Apenas o trabalho terá tal lugar,
É o único fazer que nos preencheria
As oito horas diárias que o tédio vigia,
A cada instante pronto a nos aniquilar.
Ninguém pode comer oito horas seguidas
E, se for a beber, por melhores entradas
Que tiver, não terá jamais quaisquer
saídas.
E nem fazer amor oito horas pejadas
A ninguém é possível. E assim, entre as
lidas,
Só o trabalho nos abre oito horas de
estradas.
866 - Trabalho
Dedica-te ao trabalho com o coração
Porque serás então milagre acontecido.
Primeiro logras doutrem ser reconhecido,
Que sempre atrai a vista o lume do vulcão.
Porém, isto não basta a ser bem sucedido,
Que o prémio de teu ganho tem mais
dimensão,
Não buscas só atingir a consideração,
Queres tanto o teu pão como fugir ao
olvido.
Com alma e coração terás a garantia
De teres uma vida sem abrir falência,
Nos bens e no respeito, em ganho e
simpatia.
E o que sempre garante disto a
procedência,
Que o passo nos comanda e o trajecto nos
guia,
É que nunca enfrentamos nisto
concorrência.
867 - Labor
O trabalho tem rosto, o rosto do trabalho
Onde se afundam traços a marcar a dor.
Porém, em paralelo, aponta o vigor
Com que da terra trepa a fronde do
carvalho.
É que tem outro rosto, um rosto
encantador,
O dos ferros em brasa a chispar sob o
malho,
O dum pé de cadeira a moldar-se dum galho,
O mundo a transformar-se à mão do domador.
O trabalho nos molda como a nós se ajeita,
Naquela intimidade em que se não vê nada
Porque nos toca dentro, no fundo mais
fundo.
E nenhuma tarefa, quando ela é bem feita,
Poderemos dizer que, em verdade, é privada,
Pois fará sempre parte do labor do Mundo.
868 - Nasceu
Nenhum homem nasceu neste mundo jamais
Sem que o trabalho nasça com ele bem
junto.
Houve sempre trabalho, mesmo sem sinais,
E com as ferramentas num todo conjunto.
Para quem as quiser, as marcas laborais
Cada qual executa e toma por assunto.
Nele mesmo e no mundo dá-se um passo mais,
Onde com os demais nosso porvir ajunto.
Quem pode trabalhar tem fundo privilégio:
De suas mãos provém mago sortilégio,
O de talhar no mundo quanto fará lei.
Quem pode trabalhar do trabalho nasceu
Com poder e patente de atingir o céu,
Nasceu num mundo novo como sendo um rei.
869 - Labora
Dignifica o trabalho quem nele labora,
Seja a partir a pedra ou a colher o chá,
Ouvir o coração, planear o que haverá,
Escavar o passado ou lavrar este agora.
Porém, há uma conversa que sempre demora
Entre as mãos e a cabeça, de cá para lá
Todo o mundo atravessa e que nunca nos dá
Um equilíbrio estável em nenhuma hora.
Entre os dois universos, sendo apenas um,
Da mente à mão não há, jamais, o firme
grampo
Que os amarre em valia, sem divórcio
algum.
Não prospera uma raça até ter aprendido
Que há tanta dignidade no lavrar dum campo
Como em criar um verso e gerar um sentido.
870 - Aparência
Tantos são os cuidados com uma aparência,
A cútis, o cabelo, os olhos, a cintura
E toda uma roupagem a talhar figura
Que a dúvida pergunta que é feito da
essência.
Será que já perdemos o que era evidência?
De nosso íntimo parte o que mais nos
apura,
É no ser que se busca que nossa procura
Poderá construir-nos de vez a excelência.
Entre um rosto amistoso que nos aparece
E um sentir que não vemos e, portanto,
esquece,
O problema é saber qual o valor maior.
Há, porém, um caminho no qual te
autentico:
Cuida o teu interior; quem tem interior
rico
Pouco nele depende a sério do exterior.
871 - Platina
Quando o silêncio é de oiro, a palavra é
platina
Onde ele se encastoa, em cujo quadro
brilha.
É apenas o contraste que nos ilumina:
De vozes e silêncios se faz a partilha.
É a comunicação que sempre maravilha,
Divulga a sapiência, a ignorância elimina,
Aponta as injustiças e em quanto for ilha
Rasga a curiosidade além do que a domina.
A palavra é que traz a luz dentro da
noite,
Depois na escuridão do silêncio fulgura,
Os monstros escorraça com secreto açoite,
O espírito ilumina enquanto o mundo
acalma,
Só a palavra é que irmana e nos oferta a
cura:
Abranda a solidão inelutável da alma.
872 - Cuida
A maioria crê que quem cuida de si,
De si próprio se ocupa, decerto também
Se irá preocupar com o labor que tem,
Irradia igualmente em todo o seu aqui.
Um físico atraente inteligente advém,
Dado que inteligência virão vê-la aí
Quantos mais não verão do que um mero
alibi
No desleixo ou feiura que marcar alguém.
Quem bem se apresentar fica mais amável,
De si vai denotar que é mesmo mais fiável
Para um olhar atento dum empregador.
Mostrar-se à melhor luz a cada qual
possível
Abre-lhe a porta à vida, só afinal visível
No decorrer da senda que lhe abre o labor.
873 - Êxito
O êxito é procurado por tantos e tanto
Que a projecto de vida vai ser elevado,
Irá mesmo durar-lhes, ao menos enquanto
O sonho não morrer, na ilusão consumado.
E todavia este êxito acarreta o pranto
Quantas vezes p'ra além do que foi
programado,
Por não corresponder ao esperado encanto
E por nunca valer de nada o resultado.
Ter êxito é a traição do que tem qualidade
Que o vulgo não pressente, na vulgaridade
Em que ele refocila, tendo-a por brilhante.
Um êxito se paga com vida alienante:
Nada obtém tão grande êxito, ante a vulgar
gente,
Que de êxito a aparência de que se
contente.
874 - Comum
Muitos dos empresários é com rapidez
Que agem cobrando o preço do que é
eficiência.
Porém, não pensarão para além da
emergência
Que vitoriosamente assim vencem de vez.
Muitos intelectuais pensam, falam na
essência,
Porém o que acontece é que a essência
talvez
Deveras lhes escape porque, mês a mês,
Adiam, nada fazem. Matam a paciência,
Quando, afinal, seria mais gratificante,
Uns com outros completos, se
entreajudarem,
Cada qual ir tentando ler ambas as coisas:
Qualquer isolamento faz que desencante
Sem porvir o caminho por que viajarem
E um comum fado traça o rumo em comuns
loisas.
875 - Aventura
No fim da adolescência fomos ensinados
A de vez ignorar quanto for aventura
E ninguém se importou de quanta desventura
Com aquilo avaliza em fados malfadados.
Nem só de pão se vive, nem aos empregados
Basta um emprego certo e uma casa segura,
Um salário com tempo, um carro com figura,
Que o seguro nos deixa a todos enfadados.
O casamento arrasta a sua própria queda
Se as nossas ousadias trata por pecados,
Se num beco fechado a cautela arremeda.
No risco e na aventura é que por mim me
adentro:
Os homens e as mulheres têm de ser ousados
Porque, se não ousarem, morrerão por
dentro.
876 - Segredo
De facto o amor é público mas é um
segredo,
Que sempre a intimidade requer o pudor,
E se a público vem, há-de vir sempre a
medo,
Tanta vergonha sente, tamanho, o rubor.
Amar e ser amado, eis a fuga ao degredo
Do não correspondido, desterrado amor.
Quem adivinharia se um amor é ledo
Ou se, incompreendido, se afunda no
horror?
Um amor é um segredo, porém o maior
É o de alguém descobrir como há-de ser
amado
Para vir a escapar do fracasso ao
estertor.
E tanto isto é segredo e tão fundo
guardado
Que poucos o descobrem, tal é o seu teor:
O amor não tem de ser, só existe
cultivado.
877 - Sempre
Se quer continuar p'ra sempre a ser amado
Cultive dentro em si um pouco de mistério,
Entregue-se ao abismo, bem sereno
espere-o,
Aguarde o murmurar com que lhe aponte o
fado.
E com reserva o guarde na mente após nado,
Também no coração acate-lhe o império,
Secreto o saboreie sem o vitupério
De o poder degradar se ele for partilhado.
Não é consigo próprio ser condescendente
Nem um truque banal dalgum conspirador:
É que à profundidade de seu imo atente.
É mais do que com outrem termos deferência,
É ser fiel ao jorro que alimenta o amor,
É o contrato vital com a nossa existência.
878 - Equilibrar
A esposa e a amante têm diferentes modos
Como encarar a vida: uma esposa devém
Com o futuro cega tanto que o desdém
A ignorar do presente a leva os doces
bodos.
Então dela os projectos adiam-se todos,
Tudo é para amanhã: filhos, casa também,
Até pela reforma adia o que hoje vem,
Nela o presente perde todos os engodos.
Uma amante talvez demais viva o presente,
Mas toda esta avareza pelo imediato
É uma estrela polar sobre o horizonte
assente.
E o bom senso nos dita que urge equilibrar
Hoje e amanhã, que a tempo possa entrar em
acto
O amor antes que seja tarde a mais p'ra
amar.
879 - Sexo
O sexo pede o amor como o amor pede o
sexo.
São duas realidades sempre em transfusão
Que, quando se desunem, provocam então
A queda do edifício e tudo o que lhe é
anexo.
Dois mundos tão diversos, tudo tão conexo
Que jamais assim ambos se unificarão
Senão se se alimentam, prestos, mão na
mão,
Dois ângulos do mesmo, o côncavo e o
convexo.
O que o sexo quer mais, desesperadamente,
A fim de que o seu fito não perca jamais
E se alimente o fogo que lhe é
conveniente,
Não é uma educação, teorias ou normas,
É uma imaginação que opere em temos tais
Que nos envolva imensos em todas as
formas.
880 - Amador
Entre amador e amante há uma distância
imensa,
Dado que um amador sempre obedece às
normas,
Conta as gotas e o grãos, talha a preceito
as formas,
Será tão previsível como quem não pensa.
Profissional, o amante busca o que
compensa,
Improvisa e recria. Quanto assim
transformas,
Traz o risco e a aventura do que a ti
conformas,
E a vida manterá pejada quanto intensa.
O que o livro nos diz nunca traz nossa
marca
E, quando esta imprimimos, a vida seduz
Prometendo um além donde a vida se abarca.
E depois é a surpresa que acompanha a luz:
Ao amante que importa o que um livro
diria?
- É sempre imprevisível porque nasce o
dia.
881 - Motivo
Uma esposa sensata cultiva, p'lo menos,
Uma prática a gosto, continuadamente,
E um marido de senso também não consente
Que a vida se lhe fique por sonhos
pequenos.
O que importa é que os dias sejam dias
plenos,
Não interessa o mais que disto se
ressente,
Que mais se atola o amor se fica
indiferente
E sempre voará se voa em seus terrenos.
Quem ama nunca mais pensará que manter
A mente a se ocupar num projecto bem vivo
Ponha em risco um amor, qualquer um de
quenquer.
Pois, bem pelo contrário, quanto disto
arquivo,
Por humilde que seja do sonho o mister,
É que é da viva viva o primordial motivo.
882 - Fundamental
Para um amor durável é fundamental
Que em ambos haja um nível que, até certo
ponto,
Permanente demonstre que, sem mais
desconto,
Haja uma actividade que é intelectual.
A imaginação vive sempre que lhe aponto
Da razão e do sonho o mais leve sinal,
Desperta o coração para o bem, para o mal,
Se acaso imaginosa uma história lhe conto.
À personalidade como ao amor tanto
Convirá sempre um lastro que há-de ser
razão
Quanto sem ela o peso se perde e o
encanto.
É que é muito difícil saltar o portão:
Pois, por muito que alguém alto eleve seu
pulo,
Como pode ele amar um ser que seja nulo?
883 - Aprendem
Se alguma coisa esposas e amantes
aprendem,
Em boa parte aprendem mesmo as mesmas
coisas:
Por caminhos diversos escrevem nas loisas
Que o destino à chegada é comum e se
rendem.
Ao amor quer a sina que ambas se
encomendem,
Em ambas tu que és homem teus sonhos
repoisas
E retiras dum lado o que após além poisas,
São as vidas rasgadas que crês se remendem.
Quando é jovem alguém e o casamento,
fresco,
Como esquecer é fácil o que é o
fundamento,
As fontes e a paisagem em que me refresco,
O último e o primeiro, eterno mandamento
Que do princípio ao fim o que de nós
requer
É dois devirmos um, no duo homem-mulher!
884 - Vida
Que me importa que a vida seja vida
ausente,
A intérmina pergunta jamais respondida?
À frente tenho sempre a rasgada avenida
Onde a minha pegada implanto bem assente.
Que me importam os cépticos se,
indiferente,
O mundo continua a convidar à ida
E, mesmo se a aventura implica a
despedida,
É pròs vindoiros rostos que aponta o
presente?
Ficai-vos pelas dúvidas, parai os passos,
Nunca mais sereis dignos dum nome de
gente!
Ser pessoa é dos riscos assumir os
compassos,
No medo e no terror, tudo o que se
pressente
Procurar com denodo antecipando os traços,
Que a vida é abrir os olhos e andar para a
frente!
885 - Aldeia
Uma aldeia pequena é um local onde há
pouco,
Pouco para fazer e pouco para ver,
Onde pouco é o tamanho e será pouco o ser,
Onde a lonjura chama até se ficar rouco.
Tão grande é a solidão que se fica louco
Se preenchê-la a tempo um homem não
souber.
Ao fim tudo é distância, de homem a mulher
Como de casa a casa tudo fica mouco.
Porém, é só na aldeia que se ouve pulsar
O coração da Terra dentro e fora quando
Em repouso deixamos que fale o lugar.
Quando sobre mim deixo que tome o comando
É uma aldeia o lugar onde perdemos o ar
Mas onde o que alguém ouve acaba
compensando.
886 - Gatos
Somos um gato à espreita às esquinas da
vida
Ou um rato espreitado para ser caçado
E assim vamos cumprindo nosso infausto
fado
Por entre o frenesim da jornada cumprida.
Em qualquer destes lados da nervosa lida,
De músculos bem tensos e olhar enviesado,
Ninguém pára senão quando é posto de lado,
Do próprio coração já nem toma a medida.
Ah! Quão inatingível a difícil alma!
E bastava parar e sentar-nos no chão,
Como um gato sentado é uma ideia de calma.
Assim nós nem do gato lemos a lição,
Já que, após a caçada, logo inteiro acalma
E nossos pés ao fim ainda correrão.
887 - Impacto
Para sentir o impacto de qualquer evento
Não é a publicidade que rompe a muralha,
Nem o faz a violência com que em mim
batalha
Algo fora de mim que quer mudar-me o
intento.
É preciso ficar fundamente envolvido
Nas redes da ocorrência p'ra sentir-lhe a
malha,
Tocar-lhe o coração com a mão que a
trabalha
Com a paixão dum fado que é lá
pressentido.
A aventura de alguém é da minha parceira:
Por isso é que ninguém faz nunca rapapés
Dum árbitro às vitórias em lista faceira.
Quem fica impressionado com o palmarés
De vitórias, recordes duma vida inteira
Senão por ser rasgado com os próprios pés?
888 - Orgulho
Ai como o orgulho torna os homens tão
ridículos!
Ali, feitos pavões de leque alçado ao
vento,
Com o peito vazio armado em condimento
Dum coração que perde o afluxo dos
ventrículos.
Como o orgulho se esventra em falaz
espavento,
Com tanta pretensão a diluir-se em fumo,
Tanta falta de aprumo em todo aquele
aprumo,
Rojando-se no pó logo do esquecimento!
Rimos então com gosto dos pretensiosos,
Balões inflados de ar, perene carnaval,
Que a contragosto servem, ao fim, nossos
gozos.
Rimos deles, é certo, enquanto,
prestimosos,
Sem querer, de palhaços armam festival
E assim impedem que outros fiquem
orgulhosos.
889 - Tempo
A medida do tempo é sempre uma mudança
E como ele nos muda sem ter de mudar!
Como sempre sou outro no mesmo lugar,
Correndo assim parado sem ter mais
parança!
Todos somos o Outono, a cara por lavar,
Vestidos de cinzento, as horas, sem
tardança,
Aceleradas sempre em frenética dança
Como alguém que, perdido, busca um novo
lar.
Outono em que o que foi já não é nunca
mais,
Contudo corre em frente a tentar ir atrás,
Para recuperar o que não volta a ser.
Homem de Outono velho, quando é que tu
vais
Acolher a mudança do que assim te faz
E descansas na calma doutro Eu qualquer?
890 - Foge!
Queres sempre a certeza, que se te afigura
A pedreira segura aonde pôr o pé.
Porém, não vês jamais que tudo aquilo que
é
Fatalmente nos foge sem haver mais cura.
E tu nem sequer penses que falta lisura
Na humana condição que nos esmaga até
Que da firme montanha só resta o sopé
Donde jamais chegamos da neve à brancura.
É que assim a procura não pára jamais
E o que importa ao pendor é do cume os
sinais
Fielmente seguir desde sempre até hoje.
Pois a nossa paragem é que é o nosso fim,
Somos os caminheiros dum destino assim:
- Não te prendas aqui - se tens dúvidas,
foge!
891 - Estragada
Quem tiver de encontrar-se a uma hora
marcada
Vai sentir um tal peso, tal obrigação
Que não vive mas morre pelo coração,
Muito embora se tenha por gente educada.
Cremos nossa cultura que é civilizada
Quando assim nos tem curtos, tem-nos tanto
à mão
Que, quanto mais se é culto, maior
possessão
Infernal suportamos desta malfadada!
Não é com hora certa que esperta a
alvorada:
Quem tiver de encontrar-se às cinco horas
em ponto,
O que deveras tem é uma tarde estragada!
Só ficará feliz quem fizer o desconto
Do que é uma expectativa que ilumina a
estrada:
É nos inesperados que em sonho desponto.
892 - Número
O número garante que a verdade é vera
Mesmo se o que é veraz é um termo
aproximado
Em que é apenas um sonho a eterna
Primavera
Dum saber que se encontra sempre do outro
lado.
Outrora uma fé cega fora o que nos dera
Da verdade inconclusa a prova do
infundado.
Hoje em dia, porém, da comprovada espera
Uma outra fé desperta, alçando-se no
estrado.
Com números enfeito os ombros nus dos
termos:
Como é arisca a verdade, com pés de
veludo,
Quando cri que a agarrei, fugiu-me para os
ermos.
No frio da incerteza, dou-lhe o sobretudo.
Não é pela verdade, é pelo que quisermos:
Se se tortura o número, confessa tudo!
893 - Grande
Tudo o que é grande atrai duma forma tão
grande
Que quem é grande sai daqui enaltecido
Mesmo quando a grandeza sofra o desmentido
Dum balão colorido em que só o vento
mande.
Porém, o mais estranho é que atrás sempre
se ande
Dum pedestal qualquer e com qualquer sentido,
O do sando e do herói tal como o do
bandido,
Dado que é uma grandeza aquilo que
comande.
Não vale nunca a pena tentar que,
converso,
Alguma vez o homem distinga, constante,
Na cara da medalha qual é seu reverso.
A grandeza é um poema que é tão bem-falante
Que encanta cada qual mesmo quando é
perverso:
Nenhum grande patife é desinteressante.
894 - Presente
Todo o presente é um dom que jamais se
recusa
Porque a quanto é gratuito não se olha o
teor
E um presente são dois, a prenda mais o
amor
Que por ela perpassa como graça infusa.
Porém, quando um conselho entre as prendas
se acusa,
Repudiá-lo ou não depende do sabor
Que o conselho tiver, de qual o seu valor,
Benéfico ou maléfico, para quem usa.
Umas vezes é sim, outras vezes é não.
Se um conselho não casa, p'lo menos
amigo-o
Com o gesto e a palavra em que lhe vir
razão.
Um conselho é um presente, mas é sempre
ambíguo:
Se um conselho recebo, é que me falha a
mão,
Qualquer conselho é um bem com este mal
contíguo.
895 - Confusão
Há aqueles que não têm na cabeça ideias
E que na opinião dos vizinhos se afogam.
Assim na confusão é que afinal se jogam,
De linhas enriçadas com as vidas cheias.
As ideias em muitos, porém, eu achei-as
Arvoradas em juiz: ante o mundo se togam
E ditam as sentenças, já não dialogam,
Como infalíveis papas, o dogma nas veias.
Mas se todos não passam dum mundo demente,
Ainda aqui a verdade nos erros tropeça,
Engana quem não quer olhar o que lhe
mente.
Há um erro mais atroz, sem um metro
que o meça:
- Nada como um discurso muito convincente
Prà confusão lançar dentro em nossa
cabeça!
896 - Soluções
Não haverá problemas mas só soluções,
Pois problematizar só se nos justifica
Enquanto é nas saídas que a mente se
aplica
Buscando contornar os muros e os portões.
Há, porém, para tal, mais fecundas razões,
Visto que cada acerto nisto pontifica
Em prol de que há caminhos que a busca
fabrica,
A nada reduzindo as tais oposições.
Assim sendo, o problema é uma questão de
dias
No cômputo das eras de que tu dispões,
Até que, com o tempo, ao fim o resolvias.
Assim tem sido sempre, desde os dois
milhões
De anos já decorridos das humanas vias:
Não haverá problemas mas só soluções.
897 - Peço
Quando peço dinheiro, dinheiro não peço
E quando é o pão que busco, não, não busco
pão
E quando te procuro é mais que a tua mão
Que espero deste encontro com que, enfim,
me aqueço.
Se luto por fortunas, terras, promoção,
No cômputo final delas sempre me esqueço,
Não sou eu que, no fundo, nelas apareço,
Sou antes um prefácio, peço conclusão.
Muitas
vezes sei lá o que é que para além
Afinal eu procuro no infindo horizonte!
Sei, porém, que é sempre outro, comigo em
alguém
Me mudando em demanda duma eterna fonte:
Em tudo o que procuro, procuro também
Encontrar eficaz para mim uma ponte.
898 - Flor
A mulher é uma flor, uma flor leviana
Que procura, ciumenta, uma prova de amor
Na prenda em que lhe deres uma mera flor:
Nela escolhe rever o que contigo a irmana.
Quantas vezes filtrada por tal persiana
Se lhe escurece a luz da paixão no
esplendor
Porque a flor, ao invés, substitui o vigor
Dum coração ausente que na flor a engana.
Se com ramos o amor às vezes se incendeia,
Com tredos ramos mais ele afinal se apaga
E ninguém conta as vítimas que nesta teia
Por detrás apunhala enquanto, à frente,
afaga.
Por muito que haja amor quando uma flor
ameia,
Não é com ramalhetes que um amor se paga.
899 - Meta
É o amor que dá vida que também nos mata.
O sol desponta a rosa e após o sol a
queima
Quando, inexperta, entrega os lábios à
toleima
Do fulgor estival de que se não precata.
É assim que murcha a jovem que em vida
pacata
O amor não encontrou em perturbada freima
E que assim enlanguesce quando a vida
teima
Em prolongar-lhe os dias que ela não
acata.
Escasseia-lhe a vida porque falta o amor,
Como ela lhe esmorece se houver dele
excesso
Ou se for comedido e perder o fulgor.
Ai, amor, como ter a medida correcta
Se sempre que contigo eu, afinal, me meço
Sem medida é que busco em ti a minha meta?
900 - Árvores
A planta é a mãe da vida que nela enraíza
As matrizes discretas com que se
alimentam,
No multiforme ramo, as cores que se
inventam
Em todas as famílias que revitaliza.
São árvores, são ervas, são animais que à
brisa
Naquela fonte bebem e, se não atentam,
Não é com isto menos que dela se alentam,
Já que à festa de ser é que tudo ao fim
visa.
Por isso é que, no longe quando busco
ouvir
As vozes de sereia com as quais me
encanto,
Me deixo então levar e aposto evoluir.
Dou sempre a volta ao mundo para descobrir
Que aqui já plantei árvores e, quando as
planto,
É para aqui ficar, jamais para partir.
901 - Sentidos
A vida quer sentidos e, se os não houver,
Nada nela nos resta que, ao fim, valha a pena,
Que tudo quanto aposto, queira o que
quiser,
Para mim é grandeza, embora em si pequena.
Um dia ao outro dia só se nos engrena
Quando ambos no horizonte buscam entrever
O sol que nos desponta e cura da gangrena
Que em tédios de cotio nos mancham o ser.
Os sentidos, porém, são os meus mais os
teus
E entre eles é tão duro conseguir
concórdia
Que uns aos outros se anulam e ninguém vê
deus.
Contrastam os sentidos, geram a discórdia
E, enquanto nos matamos, bradamos aos
céus...
- A vida quer sentidos e misericórdia.
902 - Contigo
Olho-te e não te vejo porque vejo a aurora
Que longe em ti aflora vinda dos confins,
Configurando, breve, flores e jardins
Na noite contumaz que de nós é senhora.
Vejo-te e não descubro quando foste embora
Nestas manhãs bastantes, sem alheios fins,
Quando, abrindo meus olhos, vislumbro os
jasmins
Cumprimentando azuis à janela, lá fora.
Quando vens, tu não vens, que sempre vens
demais:
É presente na ausência que de ti consigo
Vislumbrar-te no além, aqui já nos sinais.
Serás tu, não serás, aquela que lobrigo...
- O que importa é que és tu e sempre
és muito mais,
Já que trazes, sem ver, o sol sempre
contigo.
903 - Mesa
Com avidez come ele, sem notar quanto algo
Se passava em redor, com ela lá no canto,
Ignorada e servil, num mutismo fidalgo,
Princesa esfarrapada onde murchara o
encanto.
Era impossível, claro: ele nem olha
enquanto
Despeja o gordo prato e atira um osso ao
galgo.
Ela está simplesmente, sem riso e sem
pranto:
"Distâncias nem degraus, jamais sou
eu que os galgo!"
Resignada e sentindo, apática e mexendo,
Já secou dos queixumes a vã ladainha:
"Já não me preocupo: não sou nem
entendo..."
Só vê quando ela o diz, só lê se ela
escrevinha?
- Jamais ele a desvenda no que ela vai
sendo,
É só uma tábua mais na mesa da cozinha.
904 - Feminino
Saber tecnologia não é feminino,
Conduzir automóvel, só mesmo hesitando,
E a política, então, é um mundo peregrino
Para quem vive a vida mas angelicando.
Mesmo as mães lhes confirmam que a mulher
de tino,
Se um bom partido quer, não pode ir
espertando,
Que às espertas demais retraçam o destino
O desprezo nos homens, solidão no bando.
A
verdade, porém, quer que se ouçam os zurros
De quantos malcasaram porque foram burros
Que as burras procuraram onde pôr
sementes.
Porém, aqueles homens que se querem doutos
Buscam as amazonas em secretos coutos,
Serão as preferidas as inteligentes.
905 - Boneco
Cá vou indo, vou indo, boneco animado
A cumprir meu guião que jamais aprendi,
Um passo para a frente, um passo para o
lado,
Sou eu e nunca sou este que sou aqui.
Não sou o que serei, que jamais escrevi
O texto inelutável que me impõe meu fado
E, se alguém o escreveu, então cuidou de
si,
Que de mim não há traço no ignoto
traslado.
Marioneta, a mão busco que tem meu cordel
Mas as teias se enredam, fios a granel,
E, para além, da aranha não vislumbro
nada.
Só sei que assim me sinto de mim mesmo
alheio
E que, de mim vazio, doutrem ando cheio
E sem o conhecer: não, isto não me agrada!
906 - Morremos
Ser poeta é viver como aquele que morre
A cada passo dado, em cada verso feito,
Não só porque a palavra nunca toma jeito,
Eterna a marcar passo perante quem corre,
Mas porque lhe o destino traça quem
discorre
Acerca da figura, antes de prestar preito,
Acerca do sentido que lhe toca o peito,
Até que uma sentença finalmente ocorre.
Quem poderá saber a morte que se sente?
Sempre que o labor duro é lido e assim
julgado,
Como não simular fingir que se consente?
Corre o juiz a folha e é por nós que
lavra,
Rasgando em nosso peito a lançada do lado:
- Quantas vezes morremos por cada palavra!
907 - Direito
Eram algo felizes, toleravelmente,
Não só porque se amavam como bons amigos,
Porque atavam as mãos no meio dos perigos,
Porque a verdade aravam como quem
desmente.
Passeavam às vezes ao passeio rente,
Discretos a trocarem merendas de figos
E jamais mergulhavam sobre seus umbigos,
De janelas abertas ao longe presente.
Todavia, o que mais alimentava a festa
Era um acolhimento, era uma aceitação
Que iria sempre além do gosto de servirem.
É que a felicidade hauriam-na da fresta
Onde o direito acolhem com que se unirão:
- Este comum direito de ambos divergirem.
908 - Além
Acalmo e então reparo nesta palidez
Do nevonto dia que em nuvens me embala
E repentinamente não estou na sala,
Pelo espaços voo, bem pelo invés.
E deste branco baço à minha frente, à vez,
Uma fonte borbota audaz que a terra abala
E uma ideia que, lenta, por dentro me cala
E juntas inauguram nova limpidez.
O poema brotou, espalhou-se e
preencheu-me,
Inevitável, puro como maré viva.
Nem sei se me venci, se, enfim, ele
venceu-me.
E quando surge vale mais que o mundo
inteiro,
É tudo e, porque é tudo, em tudo se me
esquiva:
- É a Beleza este além que mais além
abeiro.
909 - Noite
Numa límpida noite nunca fica escuro
E bem por Junho dentro, longo, iluminado,
Nunca as aves marinhas param seu alado,
Noctívago voar nem o seu piar puro.
Antes de me deitar, lá fora é que procuro
Admirar as estrelas além no relvado,
Na cúpula sagrada a piscar ao pecado
Que inocente perdura em tudo o que
perduro.
Na abóbada a luzir lá me ficaram elas,
No cinzento metálico, fracas, brilhantes,
À parede nocturna a prometer janelas.
E são tão numerosas, tão vivas, ladinas
Que afinal me acompanham todos os
instantes:
- Quantas estrelas há nas flores das
campinas!
910 - Meia
Acabei o parágrafo que escreveria
Ou aguardo maduro que ele se me oferte?
O problema é se tenho uma atenção solerte
Para que se não perca algures a magia.
Uma ideia deixada devém fantasia
E mergulha tão longe que nada a desperte,
No coração simula que ficou inerte,
Ignorada abandona quanto a acordaria.
É que uma ideia a meio sempre tem
tendência,
Quando lá não voltar, a não deixar mais
marcas,
Desaparece então, murchará velozmente.
Por isso é que viver é mais que paciência,
Já que as horas da vida nos são sempre
parcas:
- É só uma meia ideia o que se nos
consente.
911 - Memória
Muitos anos atrás é que aqui já vivi
E guardo na memória como fui criado,
Como lento assumi os degraus deste estado
Com que hoje o mundo inteiro hegemonizo
aqui.
Memória tão profunda que dela nasci,
Arquivada na célula de que fui nado,
Tão longa mas tão ínfima que em nenhum
lado
Tenho qualquer notícia do que leva em si.
Assim me transmudei, sou um sobrevivente
De vários milhões de anos que levo de
idade
Onde outros baquearam, de outrora ao
presente.
Somos nesta aventura toda a Humanidade:
Resumindo o mistério num código assente,
Sobrevivemos órfãos duma tempestade.
912 - Beleza
Quanta beleza o mundo, mas quanta beleza
Sem nada do que o homem aqui construiu!
E que enorme feiura no tampo da mesa,
À refeição servida quanto a varre o frio!
Quanta ignorância mora atrás desta crueza
Que aos meios jamais olha ao recrescer o
rio
Do dinheiro e poder, por onde, com
certeza,
Tantos e tão mal crêem criar o apogeu!
E a beleza é tão frágil e tão fugidia,
Afinal sempre ao mundo bem no fundo
alheia,
Que a não prendo nas mãos jamais algum
dia!
É assim que mais vazia fica a vida cheia
Das orgulhosas obras de quem sonharia
Que a loucura falaz é o que a vida
premeia.