OITAVA REDONDILHA

 

 

O SABOR QUE PROVO

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 913 e 947 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

913 - O sabor que provo

 

O sabor que provo

Tem sempre a raiz

De minha matriz:

- Sou eterno povo.

 

 

914 - Jamais

 

                                                                                                                    A educação jamais pode

Dar-nos a sabedoria.

E às igrejas não acode

Da religião a magia.

 

Aos crentes em seu pagode,

Felicidade dum dia

Dia a dia lhes sacode

A riqueza que os traía.

 

Segurança não dá paz

E a paz é quanto procuro

Em quanto abandono atrás.

 

Tão de mim próprio inseguro,

Como ver que o que me faz

É o que em mim próprio inauguro?

 

 

915 - Bandeiras

 

Duas são nossas bandeiras:

As dos ricos e as dos pobres.

Quando hasteias as primeiras

É p'ra que o sangue me cobres.

 

Se às dos pobres enfileiras

É p'ra que, rico, te dobres

Ante as dores e as canseiras,

Para que em justiça sobres.

                                                                   

Isto, porém, tem perigo,

Pode ser revolução

E então a isto te obrigo:

 

Tens de ter-me tente e à mão.

- Mas cada dia prossigo

A reclamar-te o meu pão!

 

 

916 - Civilizado

 

Este homem civilizado,

Apresado no intelecto,

A símbolos algemado,

Que acoberta no seu tecto?

 

Crê glorificar a vida,

Acredita que tem sorte

E o que venera, à partida

É só decadência e morte!

 

Doente ludibriado,

Vê saúde em todo o lado,

Vive cego, surdo e mudo

 

Ante o tecido infectado

Que a custo já sobrenado,

Que no mundo afecta tudo.

                                                   

 

917 - Dúvida

 

Quando a dúvida anda à solta,

Anda o amor derrotado,

O coração, na revolta,

Foge p'la chaga do lado.

 

A alma dá a reviravolta:

Flébil, bocado a bocado

Se esfarrapa à nossa volta,

São os vermes nosso fado.

 

Nos ciúmes sou demónio

Ou serei anjo talvez:

Perco a mulher, possidónio,

 

Dela incerto toda a vez;

Largue meu sonho ou abone-o,

Mato-a no que de mim fez.

 

 

918 - Tela

 

O cientista estende a tela

Do saber cujo sentido

Como enigma se protela

Até que o tirem do olvido.

 

Vem o artista e ali pincela

Um traço do sonho ouvido

Nos macaréus da procela

Do porvir com o vagido.

 

O mundo já se esqueceu

Do fim que o saber visava

E com isto se perdeu.

 

E a luta que hoje se trava

É o que já se pressentiu

Da vindoira festa brava.

 

 

919 - Mortos

 

Há mortos que não nasceram,

Subviveram muitos anos,

Porque a vida que viveram

Apenas são desenganos.

 

Se as vidas se não quiseram,

Vividas por entre enganos,

Os que tais vidas sofreram

Não vivem, provocam danos.

 

Se a vida não é querida,

Não conta o tempo que passa,

Fica-lhe a conta delida.

 

Da duração nos arcanos,

Dia de anos só tem graça

Se é de amor que se faz anos.

                                                                                   

 

920 - Socialismo

 

Não é o fim do socialismo

Dar voz à democracia,

É recolhê-lo do abismo

Que a ditadura tolhia.

 

Só então o capitalismo

Já tem o que merecia:

Entre ambos pondero e cismo

Qual melhor me serviria.

 

Ditadura é sectarismo

Que, fascista ou comunista,

Ambos pode apodrecer.

                                                                   

É sempre ignaro cinismo

Só dum lado a ver na lista:

Nos dois poderá ocorrer.

 

 

921 - Cavaleiros

 

Três dos quatro cavaleiros,

Os da Fome, Peste e Guerra,

Foram estes os primeiros

Com que fomos dando em terra.

 

Restam pequenas sequelas

De que se reerguem em vão,

Domadas p'las sentinelas

De acordos e de invenção.

 

Para apurar o requinte

Resta-nos domar a Morte

Em fins do século vinte.

 

É a derradeira vontade

De que nos depende a sorte:

- Ter aqui a eternidade!

 

 

922 - Estranheza

 

Quando entramos numa aldeia

A gente da redondeza

Falará de boca cheia

Enquanto dura a estranheza.

 

Nada de novo planeia,

É talvez sua riqueza,

Enquanto a vida passeia,

Deixar ir a correnteza.

 

Passam três ou quatro dias,

Já ninguém se lembra mais

De quem gerou as folias.

 

Mudou-se entretanto a imagem:

- Entrámos por seus quintais,

Somos parte da paisagem.

 

 

923 - Desespero

 

Manipanço de pé torto,

Cai-lhe a iniciativa a zero:

Se alguém cai no desespero

É pior que cair morto.

 

Marioneta comandada,

Dele ninguém diz que viva,

Dos outros já não se esquiva,

Nele próprio não é nada.

 

Alguém comanda e ele faz:

Um diz não, outro diz sim,

Para a frente e para trás...

 

Ele por si chega ao fim:

Vazio de sonho e ser,

É o robô de quem quiser.

 

 

924 - Soldado

                                                   

Soldado que vais à guerra,

Sabes que vais mas não sabes

Se virás de volta à terra

Ou da volta em que te acabes.

 

Aquilo que mais te aterra

Não é a morte em que te gabes,

É a vida que se te aferra

Tal qual nela já nem cabes.

 

Matas em nome da vida,

Em nome da vida morres,

É a tua bandeira erguida.

 

Estranho é que disto aforres,

Não mais vida repartida,

Mas mais caixões de que a forres.

 

 

925 - Dedos

 

Quando os teus dedos me tocam

Tudo são choques eléctricos

Que em meu corpo me provocam

E na vida aumentos métricos,

 

Crescimentos volumétricos

Que em meus projectos evocam

Todos os fantasmas tétricos

Que agora já nos não chocam.

 

As tuas mãos são obreiras,

Atam refeições e vestes,

Entretecem gesto e vida.

 

São as marcas derradeiras

Do que, antes matas agrestes,

Hoje é pão de nossa lida.

 

 

926 - Chorar

 

Admiro as pessoas

Que sabem chorar.

As razões são boas,

Não vão arriscar:

 

Com choros e loas

Ninguém ergue ao ar

Um prédio nem broas

Se cozem no lar;

 

A empresa não anda

Nem vence o inimigo

Se a lágrima manda;

 

- Mas é o jeito antigo

De quem não comanda

Mandar no que digo!

 

 

927 - Bem

 

Mal é não fazer aquilo

Para que se foi criado,

Venha exposto ao peristilo

Ou cresça em jardim selado.

 

Porém, o que há de daninho

No destino malfadado

É nunca o mesmo caminho

Ser um Bem em todo o lado.

 

É tudo tão relativo!

O absoluto não existe

E o que aqui me torna vivo

 

Mata além quem lhe resiste:

- Se a Humanidade cultivo,

É o Mundo que não resiste!

 

 

928 - Ausência

 

Tristeza da ausência amada!

O mundo fica vazio

E da vida esvaziada

Já não flui mais nenhum rio.

 

Projectos não concilio

E na angústia assim tramada

É nos vestígios que fio

Os sinais da antiga estrada,

 

Rastos da doce passagem,

Objectos que evocam dias

Onde tudo era viagem.

 

As horas assim vazias,

Pejadas de tua aragem,

Morrem quanto em mim vivias.

 

 

929 - Abismo

 

É um abismo aberto aos pés,

Inclinamo-nos sobre ele,

A vertigem nos impele

E caímos de través:

 

Vida com morte de viés,

A ausência nos rasga a pele,

Imitação que repele

À distância do resvés.

 

Na ausência se assiste em vida

Ao esgotamento lento

Da memória mais querida.

 

No coração é o tormento.

E a treva voraz me olvida

Neste nada que me invento.

 

 

930 - Escravidões

 

Das escravidões da dor

Escapa o artista que escapa

Com o ceptro de senhor,

Da ciação sob a capa.

 

Dele a alegria maior

Que o sofrimento lhe tapa

É que aqui é um domador

E à vontade tudo alapa.

 

Breves instantes depois,

Quando finda a criação,

O mundo se rasga em dois

 

E as cadeias da prisão,

Mais férvidas que crisois,

Mais fundo o cravam no chão.

 

 

931 - Pôr-do-sol

 

O pôr-do-sol sobre o mar,

Primeira estrela a nascer:

Cada dia a principiar

Esta hora de morrer...

 

Morte do tempo e lugar

E nós nisto a acontecer:

Sol posto dentro do lar

Mais que fora a escurecer.

 

Extingue-se lenta a luz

E a vida se nos reduz

Dentro ao que nos alumia.

 

Então maga reproduz

O que a memória seduz:

A noite traz dentro o dia.

 

 

932 - Obstinado

 

Obstinado como um cão

Que retorna, a orelha baixa,

Aonde enxotado o terão,

Beirando tímido a faixa

 

Por onde fez o desvio,

Assim te atrai o monturo

Onde te agrediu o frio

Que te enxotou do futuro.

 

Pica-te a dor e o fastio

Da ameaça indefinida

De te secarem o rio

 

Por onde navega a vida.

Humilhado e preterido,

Gritas não ao sem sentido.

 

 

933 - Acaba

 

Se alguém morre, não acaba

Porque não acaba tudo.

A gente dá por miúdo

O que sobre nós desaba.

 

Comenta alguém: "foi sortudo!",

Pregamos o fumo na aba

E julgamos que este entrudo

Ante ninguém menoscaba.

 

Mas não se morre sem mais:

É a família, são as flores,

São condolências formais...

 

Quando vivo, tais amores

Não os teve ele jamais,

- Hoje não vê tais penhores!

 

 

934 - Segredo

 

Ele não sabe da morte,

Eu é que tenho o segredo.

Os demais pensam, à sorte,

Que ele mexe ou que está quedo.

 

A verdade é que houve o corte,

Morte não é de arremedo:

Desprendeu-se do suporte

O sopro sustido a medo.

 

Parte o fio da meada

E o rumo, enfim, se perdeu

Por onde ia aquela estrada.

 

O morto ali está, morreu.

Ele não sabe de nada.

Só eu é que sei, só eu.

 

 

935 - Casulos

 

Porque um morto se finou,

Vizinhos que se não sabem

Em seus casulos não cabem,

Abrem portas, alçam voo,

 

P'ra que nos patins acabem

Confundindo o que abalou

No abalo do que soou

Quando as enxadas se encabem.

                                   

É assim que, no vão da escada,

Da indefinível desdita

Se semeia um novo pão:

 

A morte rasga uma entrada,

Cada casa ali palpita

Uma à outra em direcção.

 

 

936 - Casas

 

Durante o dia é que as casas

Abrem os olhos à rua

E os pensamentos são brasas

A aquecer quem nela actua.

 

À noite é a rua que vê

As casas a lucilar,

Lança o pensamento até

À luz que brilha no lar.

 

Neste vaivém se respira

Quanto amor nos tece os passos,

Quanto rumo nos inspira.

 

Aqui se acendem os traços

Que da noite geram dia:

- Aqui tudo principia.

 

 

937 - Prédio

 

Este prédio na cidade

Que primeiro nos espanta

Por ter tanta enormidade

Só depois nos desencanta.

 

Um homem decerto que há-de

Nele perecer de quanta

Pressa do cotio o invade

Desatento a quanto encanta.

 

Não admira que a pele

Ensaque por dentro um morto.

Mas como é que encontrou porto

 

Em tal prédio qualquer ser?

Como pode viver nele,

Antes de nele morrer?

 

 

938 - Filho

 

Tudo continua,

Mesmo morto o filho.

Fora o sol tem brilho

E de noite há lua.

 

Rígido no trilho,

Perdeu ele a rua,

Já da pele nua

Lhe não cresce o milho.

 

Como um deus falhado,

Mora em nenhum lado,

Não chora nem ri.

 

Imóvel e absorto,

Resta o filho morto

Adentro de si.

 

 

939 - Modela

 

A morte modela o prédio,

Empresta-lhe novas asas,

Dela nascerá mais nédio,

Engravidadas as casas.

 

Ao calor das velhas brasas

Fundem-se as marcas do tédio

E o que com outros aprazas

É de amigos um assédio.

 

A incompatibilidade

Mesmo velha aqui cedeu,

Todos se querem melhores.

 

Todos perdem a vontade,

Já que a morte lhes morreu,

De ora cuidar de rancores.

 

 

940 - Rasto

 

Quando o espírito dum homem

Se evolou em estilhaços,

Os outros, para que o domem,

Seguem-lhe o rasto dos traços.

 

No rumo da sua morte

Se põem a caminhar

Em formação de tal sorte

Que são tropas no lugar

 

Do vazio que restou,

Marchando rumo ao cachão

Em cerrada procissão.

 

Evocam quem se finou

E assim como que se adensa

Do ausente a fatal presença.

 

 

941 - Preservar

 

Toda a gente comprimida

Que parte do morto pode

Preservar ao fim e ao cabo?

                                                   

Quando qualquer um acode

A uma garrafa partida

Agarrando-a pelo rabo,

                                                                   

Todo o vinho derramado,

Apesar do gesto brusco,

Se esparge num leque fusco,

Resta um cheiro a vomitado.

                                                                   

Assim o luto agrupado

Em qualquer túmulo etrusco

Não me dá o morto que busco,

Já não resta em nenhum lado.

 

 

942 - Devagar

 

"Morreu e tudo acabou"

- Diz-se logo à boca cheia

Sem reparar que na aldeia

Em que o mundo se tornou

 

A quem fica o morto ameia

Com quanto trilho rasgou,

Co'as pegadas que traçou

Da vida impressas na areia.

 

Depois de morto ainda corre

Por qualquer tempo e lugar,

Ao mundo inteiro ele acorre,

 

Seu lar novo, se calhar...

- Porque, quando um homem morre,

Morre, sim, mas devagar!

 

 

 

943 - Mira

 

A pobreza numa aldeia

Vale afinal o infinito:

É que a fraqueza acalmei-a

Quando às solidões a grito.

 

Todo o espaço se entremeia

Dos silêncios que concito:

Estendo o braço e a cadeia

Prende os longes que suscito.

 

A riqueza da cidade

Morre na promiscuidade,

No desleixo conformado.

 

A cidade é o longo mito

Onde a mira do infinito

Jamais cabe em nenhum lado.

 

 

944 - Sabor

                                                                   

O Verão é toda a vida

Contida numa explosão,

É um dom que os novos convida

A nova vida, o Verão.

 

Para os velhos fica o Inverno,

Sentado terno à lareira,

À beira do fogo eterno

Que ao lume interno emparceira.

 

Num e noutro somos nossos,

Somos poços plenos de água,

Não há mágoa nem destroços

 

Nos troços que ardem na frágua...

E assim se forja o sabor

Quente e frio do que é amor.

 

 

945 - Morte

 

Encarar a morte

É o meu dia-a-dia,

Que não tenho a sorte

De quem fugiria

 

Ao fatal transporte.

Nem prolongo a via

Simulando um porte

Que não pagaria.

 

Morro devagar,

Cada dia um pouco

Mais regresso ao lar,

 

Às sereias mouco.

E não há vertigem

Nesta volta à origem.

 

 

946 - Janela

 

O amor é sempre a janela

Aberta ao desconhecido

E a planta para além dela

Que, se a fecho, cai no olvido.

 

Porém, cerrando as portadas,

Ainda ali se fincará,

Planta à margem das estradas

Mirando o lado de lá.

 

Por isso é que se cultiva:

Sempre à mão, sempre presente,

Mantém-se na expectativa

 

Mesmo até quando me ausente.

Mas logo o espanto me aviva

Se ao amor deixo que invente.

 

 

947 - Anos

                                   

Eu nem sei se é fazer anos,

Se desfazê-los também.

Se a vida são desenganos,

Como a enganas tu tão bem?

 

Se mais os anos te têm,

Tem-los tu com tais enganos

Que quão mais anos te vêm

Menos te atingem seus danos.

 

E eu fico sem compreender

Como vem tua frescura

Sempre a rejuvenescer.

 

Pois que o tempo em ti se cura,

- Amarmo-nos é viver

Quanto o tempo em nós depura!