NONA REDONDILHA
POEMA EM LIBERDADE
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948 e 1136 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
948 - Poema em liberdade
Poema em liberdade
Com métrica e rima
Trepa vida acima
Rumo à eternidade.
949 - Partido
Há uma falta de sentido
Dos partidos no atoleiro:
-Eu nunca tenho partido,
Bem melhor é ser inteiro!
Nem aceito a identidade
Duma igreja ou confissão:
- É sempre uma falsidade,
Jamais é meu coração.
Um bando, uma capelinha
São ainda o tribalismo
Numa cidade sozinha...
- Que é do amor com que me crismo?
950 - Presunção
Incha de vento, é um balão
Que comigo se intromete.
Quem me dera um alfinete
Que espetasse a presunção!
O meu espaço acomete,
Tira-me a respiração,
Voa sem tirar brevete
E afinal só rasa o chão.
Acorrenta-me à prisão
Em que o desprezo me mete,
Bate-me sem ter cacete
Co'o rosnar do coração.
Incha o peito e a tapete
Me reduz com gesto vão.
Quem me dera um alfinete
Que espetasse a presunção!
951 - País
Se a juventude é o que ris
Correndo mundos e arcanos
Sempre em busca de quanto há,
Será a velhice um país
Que então nós só visitamos
Ao termos de viver lá.
952 - Ortodoxo
Ser um jovem e ortodoxo
É morrer da vida à beira
E tão grande é o paradoxo
Que quem lavra nesta leira
Vai viver, heterodoxo,
Meia idade a vida inteira.
953 - Luz
Porque dás quando não tens,
Aos ombros ergues, profundo,
O bem de teus parcos bens:
- Tu és uma luz do mundo!
E quando morres ao dar
A vida para outrem ser,
Não morres, 'stás a mudar,
És a luz a acontecer.
Quando sobre ti carregas
Quanta dor sofre no mundo
É que as entranhas me pegas
E é de ti que me fecundo.
954 - Preocupação
Qualquer preocupação
Que não venha a redundar
Na angústia duma oração
É tão parca em seu penar
Que nem merece atenção.
955 - Democracia
Viver em democracia
É cumprir à risca a regra:
Quem governa é a maioria
Que a minoria posterga.
Se a minoria não ganha,
Sempre, porém, se preserva
E, ao manter-se de reserva,
Ganha uma força tamanha
Que acaso até logrará,
Em futuro eleitoral,
Sonhar um outro real,
Devir lei do que não há.
956 - Disciplina
Não eduque com brandura
Quando for em disciplina,
Que a criança, mesmo pura,
Ansiosa desatina
Quando as regras não existem.
Fazendo só disparates,
A razão de tais dislates
É que as dúvidas persistem:
Ignora como pôr fim
À constante hesitação
Que hesita entre o não e o sim
- E assim a endoida a tensão!
957 - Recato
Regato, esperto regato,
Vai-lhe cantar minhas mágoas
À menina de recato
Que se mira em tuas águas.
Canta-as todas porque todas
São mágoas e são meninas.
Corre esperto até às bodas
Das belezas peregrinas.
Corre sempre que, a correr,
Corres como tudo o mais:
O mais dói de o não saber,
Mas tu sabes que te esvais.
958 - Alma
Cuidei que eras minha vida,
Mas és minha alma, mulher.
Na morte a vida é perdida,
A alma não pode morrer.
É um sabor de eternidade
Que tua vida me traz:
Outros jazem sem idade;
Vivo é que eu repouso em paz!
959 - Corpos
Dentro de si cada qual
Um mundo inteiro ignorado
Arrasta em silêncio tal
Que ao corpo nos talha o fado.
Que solidão cada um
Retraça em velhos arcanos!
Não há solidão comum
À destes corpos humanos:
São máquinas isoladas
Cheias de cantos secretos.
Encantos feitos de nadas,
Corpos somos e sem tectos!
960 - Vidas
A vida tem duas vidas.
A vida de cativeiro
Co'as alegrias despidas,
E a do sabor verdadeiro,
Vida com fogo e calor:
- Onde nasce e cresce amor!
961 - Árvores
Como as árvores nós somos:
Se as ramas olham o céu,
Na raiz a força pomos
Onde tudo estremeceu,
Invisível, sob o véu
Da terra de que dispomos.
962 - Medos
Os dentes do lobo não
Deixam fugir os cordeiros:
Jamais se remediarão
Os medos de quantos são
Da fraqueza prisioneiros.
963 - Sofrimento
Há espécies no sofrimento,
Mistérios em seu recesso:
Se o dos pobres eu lamento,
Pior o vejo, confesso,
No coração do progresso.
964 - Quarto
Fechar-me aqui neste quarto,
Ir-me de mim próprio embora...
E o mundo em dores de parto,
Num esforço, a soluçar,
Com tanta gente lá fora
A pedir-me para entrar!
965 - Prisioneiro
Folha ao vento, sou leveiro;
Ardo, lenha, ao fogo posto;
Grito sim a quanto é não:
De mim próprio prisioneiro,
Suporto o castigo imposto
Do diabo à criação.
966 - Estranhos
Ai, meu Deus, como é romântico
Perambular entre estranhos,
Comer nacos de pão quântico
Na figueira entre os rebanhos
Dum outro lado do mundo:
- Como isto aqui torna imundo!
967 - Brinquedo
Por que é que um brinquedo velho,
Casca qebrada dum ovo,
Devém mágico aparelho
Muito mais que qualquer novo?
Abandonado num canto,
Na terra ganhou raízes.
Secreto, renova o encanto:
- Revive-me horas felizes!
968 - Árvores
Árvores há que são mais verdadeiras
Que as verdadeiras que nos traçam sonhos:
São árvores eternas que abrem leiras
Na cósmica consciência a que te abeiras
Quando te dão a vida em seus medronhos.
969 - Sábio
P'ra dia a dia mais vivo
Teu riso abrir tua cara,
Aproveito o positivo
De quanto se te depara.
Não lutes contra as correntes
Nem sejas delas vencido:
Às que são prevalecentes
Enxerta-lhes teu sentido.
Sábios não são varapaus,
Dribla o turbilhão e vence-o:
Vem gerar ordem ao caos,
Música, ao mar do silêncio!
970 - Rota
No meio da frustração
A vida não é mais vida.
Como é que se atingirão
Sonhos na rota perdida?
Nas obras de arte é preceito
Ver como de mim me livro:
O mundo deve estar feito
Para terminar num livro.
E num livro de mentira
É que a verdade acontece:
Que é que do avesso me vira
Sempre a ver-me se eu houvesse?
971 - Ateus
O equívoco dos ateus
Nao é a vida esvaziada
Nem tudo tornar entrudo.
Quem não acredita em Deus
Não é que não creia em nada,
- Acredita então em tudo.
972 - Esperança
Pela esperança é que somos,
Esperar é coisa boa
Quando nela é que nos pomos
Passo a passo a ser pessoa.
Quando, todavia, alguém
Não é o que deseja ser,
A esperança nele tem
Travor de quem vai morrer.
A fugir de si à frente,
Não é a vida que lhe importa:
A vida, quando ele a invente,
Parte dela já está morta.
973 - Cosmos
Há quem imagine a vida
Toda cheia de remendos,
Canalização rompida
Num cosmos sem dividendos.
Doutrem 'spera o que a valida
E a vida enche de vinagre
Quem não toma em mãos a vida...
- E assim jamais há o milagre!
974 - Dias
Fugimos, por inviável,
Ao que os dias nos trarão
Do signo da crueldade.
Quando a vida é insuportável,
Acolhemos a ilusão:
- Então ela é a realidade!
975 - Idade de oiro
A idade de oiro acabou,
A idade de oiro há-de vir...
- Ninguém vê que o que plantou
É que lhe rasga o porvir?
A idade de oiro está aqui,
Só espera, para ter voz
Dentro de mim e de ti,
Que eu e tu sejamos Nós!
976 - Óculos
Eu com óculos nasci,
Com óculos vou morrer,
Com as lentes com que aqui
Me deformaram o ser.
Ao nascer mas forneceram
Com a grossura e da cor
Que à cultura convieram:
Sabiam tudo de cor!
Nesta vida decorada
Nunca, verdadeiramente,
Vivi, pois, a consoada
Que inaugure um mundo em frente.
Nem certamente, por isso,
Mudarei a minha sorte:
Sempre a vida que eu cobiço
Passa por mim como a morte!
977 - Velocidade
Velocidade é loucura,
Do suicídio mania
A matar o dia-a-dia
E da acção quanto nos cura.
Não é nunca apoteose,
É incongruência de insecto
Cuja emoção em concreto
Dos desastres vem da dose.
Quando corro o risco em vão,
No que me atrai é que cismo:
Não é a busca da evasão,
- É que é certo o cataclismo!
978 - Transporte
Uma obra de arte é fundada
Em tudo quanto convida
A mais vida com transporte.
O estranho é que esta latada
Nos dá um vinho cuja vida
Vem do rumo dado à morte.
979 - Horror
Veneração de arte
De arte por amor
Põe o Homem de parte,
Do Homem tem horror.
Buscar redenção
De arte assim vivida
Põe, por danação,
Arte em vez de vida.
980 - Antolhos
Para quebrar meus antolhos,
Depurar a visão tosca,
Requeiro da arte os abrolhos:
E a teia se desenrosca,
Vejo o mundo pelos olhos
Pluriformes duma mosca.
981 - Casa
O meu melhor poema é a minha casa.
Construímo-la a pulso em terra rasa,
Por dentro lhe inventámos dois meninos,
Decorámo-la a sonhos dos mais finos.
É um poem de pedras e de lutas
Rodeado de pinheiros e de frutas.
Só lhe lê seu tamanho verdadeiro
Quem cá dentro o suspeita e vê primeiro.
982 - Programa
Na voz que este povo tem,
O que o cotio retém
Deste povo que tem voz,
A raiz de pais a avós
Eu canto: o que todos nós
Ante o amor somos e após.
Fizemos mais para além
Quanto ao porvir nos atém.
983 - Grande
Quando alguém é mesmo grande
É um polo de tirania.
Para evitar que em mim mande
Quanta dor me doeria!
A grandeza são algemas
Atando o pulso do mundo,
Ao pasto das alfazemas
O conduzindo infecundo.
Mas para cada qual ser
Na pequenez do tamanho
Tem de sozinho aprender
Que paga em perca tal ganho.
Pois para ganhar-se a si
Não basta seguir alguém:
É de dentro que sorri
Toda a estrela de Belém.
Quando a mão deito a meu fundo,
Por muito que o lodo a suje,
Dali rasgo um outro mundo
Onde sempre o porvir ruge.
984 - Revolução
A revolução que hoje lavra
Tem dois rostos e está nua:
Revolução da palavra
E revolução da rua.
Está nua porque dentro
Só tem ecos do vazio
Dum sonho em que jamais entro
Preso à morte por um fio.
E a alternativa é pior:
Sentado em cima dos dias
P'ra que o passado decore,
Onde irão as fantasias?
Vago adiante e preso atrás,
Já perdi meu nome e grei
E assim alguém de mim faz
O que de mim não farei.
985 - Recta
Para a avenida ser recta
Uso a minha roupa velha,
Não visto a camisa preta
Nem a camisa vermelha.
Sou inteiro e não partido,
Não me arregimento, enfim.
Para a luta ter sentido
Só me vestirei de mim.
986 - Verdade
A verdade em toda a parte
Mora como mora em tudo.
Procurá-la não faz parte
Do fado com que me iludo.
A verdade é como Deus,
Toda a verdade acontece
Em eleitos gineceus
E, sem esforço, aparece.
Quando a verdade me afaga
O manto dos céus destraça:
A verdade não se paga,
Toda a verdade é uma graça.
987 - Grande
Verdadeiramente grande
É o que leio e que releio
E que, em quanto me comande,
Quanto mais nele me enleio
Mais em mim faz que eu me mande.
988 - Nada
O tormento dos tormentos
É ver que não valho nada.
Ao menor dos pensamentos
Dou então, em tais momentos,
Uma importância infundada.
989 - Jogamos
Jogamos em toda a idade
Como em criança jogamos.
Jogamos contra a ansiedade,
Ao amor vergamos amos
E rendidos nós brincamos,
Que só brincar é verdade.
990 - Adiar
Muito o mundo se atarefa
Proibindo-se transpor
Tudo quanto o põe enfermo!
- Adiar uma tarefa
Cria um problema maior
Do que levá-la a bom termo.
991 - Apreço
A compensação de fora,
Um elogio bem feito,
Meu Deus, quanto nos demora
O apreço de nosso peito!
Porém, em última instância,
Quanta decepção após!
- O que compensa sem ânsia
É acreditarmos em nós!
992 - Filho
Um filho não é um mistério,
São milhares de momentos
E cada gesto refere-o
Do cotio aos elementos.
É uma vida lado a lado,
À chuva, ao frio e ao vento.
Por mim ele é alimentado
E dele a mim me alimento.
Um do outro coração,
Se o laço morre na estrada,
Ficamos co'a sensação
De ter vivido p'ra nada.
993 - Fora
Quando entrares na oficina
Fica o sol brincando fora
E o rio já nem atina
Com essa tua demora.
Tu tens um emprego a sério,
Não és mais um vagabundo,
Sob o nome tens o império
Com que reges, firme, o mundo.
Só que eu sou grande e nem hoje
Consigo matar a fome,
Por muito que me despoje
De poeta pobre e sem nome.
994 - Dividido
Seduz intelectuais,
Mobiliza a multidão.
Massas populacionais
À luta comandarão:
Revoltas, guerras consomem,
Dividido o mundo em dois,
Um mau hoje e um bom depois,
Tudo para o bem do Homem.
No fim, os ideais são falsos,
Caímos todos na armadilha:
Não são motores, são calços,
Dos grilhões soldam a anilha,
A liberdade é opressão,
Só de miséria há fartura.
- Definitivo, só o não
Deste século à impostura!
995 - Rico
Um rico gasta menos que o que tem,
Investe o que lhe rtesta por inteiro,
Lucra mais para o sonho que aí vem...
- Ser rico não é ter muito dinheiro!
É aprender a viver um pouco abaixo,
Sempre atento ao que resta após ter tudo:
Deste nada é que ateia o grande facho,
- E todo o incêndio vem do troco miúdo!
996 - Feliz
Ninguém pode ser feliz
Se adia a cada momento
Para um eterno amanhã
O momento em que se diz
Com o ser e o pensamento:
- Eu é que crio a manhã!
997 - Regato
A rapariga é um regato:
Corre, esperta, fraga em fraga,
Sem dar conta do recato
Do choupal que o céu lhe afaga.
A rapariga é um ribeiro:
Desliza alegre na vida,
Nem vê que aos peixes, primeiro,
Nela as margens dão guarida.
998 - Todos
Um homem jamais subsiste
Sem ser com todos os mais:
Quando o amor num só existe,
Existe, afinal, demais.
A morte dum é um pouco
A morte dos outros todos,
De modo que a vida é um louco
Viver de todos os modos.
999 - Revolta
Arte de antanho, de passado envolta,
Se for das formas culto, não terá
Motivos para ter de arte alvará.
Os temas são, porém, raiz à solta
Que do antigo o porvir nos rasgará:
É que arte será sempre uma revolta!
1000 - Liberta
A morte do perverso nos liberta
Mas logo a seguir torna-nos inúteis.
A liberdade livre é apenas certa
Se é vida que as amarras desaperta,
Se se vence em comum as tricas fúteis.
1001 - Dever
Direito, fá-lo o poder,
Não o processa a equidade.
É por isso que o dever,
Muitas vezes, em verdade,
É o dever de subverter.
1002 - Converso
Homem és, trazes-me a vida
Num pedaço do Universo.
Trazes sol, dás-me guarida:
- Homem sou de fronte erguida
Porque contigo converso.
1003 - Olhos
Os olhos fechados
Nem todos só dormem,
Alguns jogam dados
Que mais os informem.
E os olhos abertos
Todos eles vêem?
- Parecem despertos
Mas sonham e crêem!
1004 - Cara
Ao nascermos, nossa cara
É o sol ao raiar o dia.
Talhada em carne, é uma rara
Escultura em que se ampara,
Anos mais tarde, a magia
Que tem nossa biografia.
1005 - Filhos
Meus filhos não são meus filhos,
São uma prenda dos céus.
Que me importam os sarilhos?
Privilégio são seus brilhos
E que, afinal, sejam meus!
1006 - Sino
O sino da madrugada
Toca as horas, toca o dia,
Galo, toca a matinada,
Forma a vida na parada
- E aqui eu acontecia.
O sino da madrugada
Toca-me aqui bem no fundo:
Toca fora e aqui na entrada
Onde principia a estrada
Que me leva a todo o mundo.
1007 - Esmaga
A marca que imprime
Tirano que meças
Se nele tropeças:
- Aquele regime
Esmaga
cabeças!
1008 - Caridade
Verdadeira caridade
É a que ajuda toda a gente
A caminhar por seu pé
E assim, orgulhosamente,
Desenvolve a identidade
De cada qual no que ele é.
1009 - Sobrescritos
Os sobrescritos são vivos.
Rondando da guerra à beira
Não são nada inofensivos:
Espionam, são arquivos,
- Matam à sua maneira!
1010 - Erro
Todo os pernósticos
Acabam num berro
Por não ser pronósticos.
Afasto os prognósticos:
Não cultivo o erro.
1011 - Precisa
De gente para matar
É o que menos se precisa.
Doravante outro é o lugar:
- De consertar e curar
É a gente que se utiliza.
1012 - Tornados
A guerra é como os tornados,
Limpa das vergônteas pecas
Árvores, casas e prados.
- E varre os desamparados
Como varre as folhas secas!
1013 - Influência
Ter uma influência é fácil
A quem tem da fama o aval.
Mas interessante, grácil
É ter o influxo mental
Que, sem se ver, aparece
Mesmo em quem se não conhece.
1014 - Interesse
Por outrem por vezes há
Um interesse marcado,
Mas este interesse irá
Com marca de interesseiro
Ou de desinteressado:
- Só este é que é verdadeiro.
1015 - Compreende
Não se compreende ninguém
E, se alguém me compreende,
O que compreende esse alguém
É que eu moro sempre além
Da escuridão que me prende.
1016 - Medonho
Nada na vida é perfeito
E o vazio é mais medonho
Quando no infinito o ponho:
- Um artista é sempre feito
Daquilo que faz o sonho!
1017 - Preceito
Homem e mulher decente
Têm de tomar a peito
Qual vai ser o seu preceito:
Seguem uns o conveniente,
Eles seguem o direito.
Conveniência só é via
Se o direito a concilia.
1018 - Ideia
É estranha a desunião
Entre o ser e o seu fulgor
Que conservo no meu cofre:
Não há mesmo relação
Entre uma ideia da dor
E um ente que sangra e sofre!
1019 - Entravada
Quando a acção não é entravada,
Menos razões para agir:
Não é livre a caminhada?
- Constrangida é que a avançada
Ganha a força para ir.
1020 - Mudanças
As mudanças incessantes,
O desaparecimento
E a renovação do alento
De almas vivas são garantes,
- São da vida o próprio invento.
1021 - Cidade
A cidade a vida abrasa,
Quem quer que seja que mande.
Porém, nela há um golpe de asa:
- Toda a cidade é uma casa,
Uma casa muito grande!
1022 - Paz
Que será que aos homens faz
As vidas correr ilesas?
- Correr toda a vida atrás
Dehomens ávidos de paz
Muito mais que de riquezas.
1023 - Mulheres
A glória duma cidade
Residirá nas mulheres:
A força dos povos há-de
Inteira nascer da idade
Do regaço onde a acolheres.
1024 - Mínguas
Não sofras de escusas mínguas,
Busca ajuda em toda a mãe:
Fala as línguas que convêm,
Porque quem tem várias línguas
São várias pátrias que tem.
1025 - Escombros
É no meio dos escombros
Que convém olhar a terra:
Quer ter fruta presa aos ombros
E, quando o sol mais a ferra,
Prega então, por brincadeira,
A rosa na botoeira.
Quando vergamos o lombo
No desespero dos dias
O tamanho deste tombo
É o da traição das magias
Que mudas nos dão a mão
Mergulhando os pés no chão.
1026 - Caiu
Sobre ti, Homem, caiu
Parte da história do mundo:
De pé te manténs ao frio.
- Pois, se a força te traiu,
Mergulha teu pé mais fundo!
1027 - Vinha
Cuidado, não ponhas pé
No ramo verde a teu lado,
Não dissipes tua fé:
A melhor vinha é a que é
Podada com mais cuidado.
1028 - Chicotes
Mais os chicotes imprimem
Em nós a marca dos amos,
Mais auras que nos encimem:
- Pois quanto mais nos oprimem
Mais alto nos levantamos!
1029 - Fruir
Visionários do passado,
Visionários do porvir,
- Quem nos troca o passo dado
No presente ultrapassado
Sem dele nunca fruir?
1030 - Caçar
A vaidade duma vida
Não se mostra no tormento.
A caçada é divertida,
Só que é uma caça fingida:
- Andamos a caçar vento!
1031 - Intervalos
Na vida soam as horas
Com intervalos mais lentos
Ou mais breves, sem demoras,
Conforme damos de esporas
Do devaneio aos momentos.
1032 - Muda
No rio, a poluição;
Na encosta, secos os ramos;
No ar, a neblina enfumada.
É muda a desolação
Com que já nem contemplamos
A paisagem transtornada!
1033 - Herdeiros
Somos herdeiros da morte
Que a guerra tornou em festa
Do alvor das eras ao fim.
Somos quem teve mais sorte:
A esperança que me resta
É de isto acabar em mim.
1034 - Desgraça
Na desgraça, sobretudo,
Quando por dentro se morre,
É que o sonho nos socorre:
O de nos supormos tudo,
O da vida que não morre.
1035 - Espelho
A vida às vezes não corre
Como a água numa encosta.
Acalmada e horizontal,
É um espelho em que dcorre,
Em paisagem outonal,
O sonho de que se gosta.
1036 - Confins
Num minuto se envelhece:
Os cuidados marcam fundo
Enquanto a vida acontece.
E a morte já não parece
Algo dos confins do mundo.
1037 - Ponte
Uma ponte sobre o rio
É uma palavra indizível,
Comunica lado a lado
Nosso abraço contra o frio:
- É o lugar mais aprazível,
Mais eterno do povoado!
1038 - Faleceu
Faleceu e o rumorejo
Muito em breve se finou,
Já por todo o lugarejo
A memória se apagou.
O morto ficou em breve
Tão longe dali do povo
Como, à falta de renovo,
Ficou do cadáver leve.
1039 - Recolher
O cadáver se dilui
Com as ideias e os gestos
Que fiéis o acompanharam.
A família o dom possui
De os recolher como aprestos
Que as chuvadas dispersaram,
- Como se acolhem vizinhos
Que se perderam dos ninhos!
1040 - Pastor
Um pastor não sente o peso
Da responsabilidade
Num estábulo coeso
Mas na charneca onde, teso,
Guarda ovelhas de verdade.
1041 - Cair
No carro ou na diligência,
O condutor, hora a hora,
Sacudido da demora,
Deixa cair a existência,
Aos poucos, estrada fora.
1042 - Depende
Se de mim depende, enfim,
Enche-me as horas e mina-me
O terreno até ao fim:
- Quanto depende de mim,
No fim de contas domina-me!
1043 - Povo
Este povo marinheiro
Deu novos mundos ao mundo,
No mundo foi o primeiro...
Emigrante no estrangeiro,
Hoje é um povo vagabundo!
1044 - Caminho
Como o bando aos ninhos
Sempre o rumo toma,
Todos os caminhos
Vão levar a Roma.
Porém, comezinho,
Na asserção está
Que sem um caminho
Não se chega lá!
1045 - Levantar- se
Sempre que um homem do chão
Quer levantar-se, minúsculo,
Não vai, não, correr em vão:
A marcha alarga o pulmão
E desenferruja o músculo,
- Faz obra do que era opúsculo!
1046 - Fim
Sobre os abismos desabam
Os precipícios, enfim,
Que o redondo menoscabam:
As outras coisas acabam
E a Terra, neste interim,
Porque é um globo, não tem fim.
E tais modelos, propondo-os,
Moldam no mundo a viagem
Que, sem termo, é uma miragem:
- Porque nós somos redondos
Criamo-la à nossa imagem!
1047 - Lar
Um lar nunca se reparte,
Não tem nele esquina alguma:
Monumento erecto aparte,
É a fachada em toda a parte,
O meio, em parte nenhuma.
1048 - Tempo
Um homem não quer a idade
Nem o tempo, ieia pura:
Quer tanta perenidade
Que é um deus cuja eternidade
É a daquilo que não dura!
1049 - Culto
Na raiz do desespero
Há sempre um desejo oculto
Por que luto, por que espero:
- Que seja correcto o culto
Que em mim fermenta insepulto,
Por mais que traia o que quero.
1050 - Finitude
Recusar a finitude
Do deslaçado presente
É a afirmação permanente
Da nostálgica virtude
Que a felicidade tem
De nos ser a sério e bem.
1051 - Gana
A violência e o terror
Que pautam a história humana
São o produto menor
De quanto nos dá na gana
Comunicar bem, feliz
E com paz quanto se diz.
1052 - Desejo
O desejo abre uma estrada,
Procura o mundo sem pejo,
É assim que a vida é agarrada:
Se houver desejo de nada
É que um nada de desejo.
1053 - Busca
A vida não perde o ensejo
De dar corpo à fantasia.
Não é um vazio ou um gracejo:
Todo o homem é um desejo
Que se busca na alegria.
1054 - Ninguém
Tu fizeste-me sonhar
Como ates ninguém houvera,
Devolveste, se calhar,
Toda a fé que nesta era
A vida anda a retirar.
Atados por nós além,
Somos já um feixe de vime,
Mas nada mais há também.
Por momentos esqueci-me:
- Ninguém conhece ninguém!
1055 - Contas
Ao inimigo perdoar
Resulta sempre mais fácil
Se com ele eu ajustar
Paga prévia, se calhar...
Jamais, porém, será grácil
A conta que há que pagar.
1056 - Primeira
À primeira vez que o vejo
Um quadro é sempre melhor.
Quando à segunda o cotejo,
Meu olhar perde o estupor.
Acolá toda a energia
Que o pintor pintou na tela
Repercute-se em magia,
Eu mesmo me torno nela.
Eu que jamais fui pintor,
Um instante transformado,
Tenho em meus olhos a cor
Que o pintor viu do outro lado.
Fundo-me em tal união,
Compreensão tal se dá
Que ambos jamais voltarão,
Nada se repetirá.
Depois disto o que nos pesa
De nossos encontros míticos
É que se foi a surpresa...
- Só nos resta sermos críticos.
Vai sempre dar-nos prazer
O quadro nalguma coisa,
Só que a entrega não vai ser
A entrega em que infindo poisa.
Torna-se me velho amigo
Mas não se revela mais
Aquilo com que condigo,
É o fascínio do jamais:
Mantém toque emocional,
Toque que a razão não tem.
Tal o amor, não tem rival:
Só o amor ali me atém.
1057 - Miúdos
Os miúdos infelizes,
De olhos e passos ansiosos,
Que superam cicatrizes,
Cuja vida após são gozos,
Não os mudou um castigo,
- Encontraram um amigo!
1058 - Telefone
O telefone coloca
Este desafio assim:
Tenho de sair da loca,
Que, se o telefone toca,
Alguém está a pensar em mim!
1059 - Solidão
Era outrora no deserto
Que morava a solidão.
Outrora batia certo.
Hoje em meio à multidão
É que ela nos fica perto.
1060 - Exibir
Todos temos de exibir
Sempre uma coisa qualquer
Se queremos coexistir
Com um homem ou mulher.
Nada fica então gratuito:
Que é que serão acções boas
Se sempre se exige muito
Só p'ra viver co'as pessoas?
1061 - História
Toda a história é uma comédia
Em que se trocam amores.
Mas sempre se torna em dores
E se cobre de tragédia
Se a traçam só os vencedores.
1062 - Elo
Os livros e os textos esquecidos
Perdurarão como um elo
Na engrenagem dos olvidos
Por onde trepa nosso apelo.
Como um adubo na terra
O mais frágil pensamento
Por dentro de si encerra
As florestas que há no vento.
Mesmo sem rota nenhuma,
Somos um degrau na escada
Que não leva a parte alguma,
Com partida sem chegada,
Porém, sempre aberta em frente
Onde nos reboa o grito...
- Aberta infinitamente,
Sempre aberta ao infinito!
1063 - Grande
Poesia não tem história.
Se a tiver será tão grande
Que não tem voz que a comande,
Tamanha se lhe ergue a glória.
Romance tem aventura,
Cada episódio alicia
E maior é sua altura
Se o romance é poesia.
Afinal, em que ficamos?
- Na verdade comezinha
De que o infindo se avizinha
Quando em tudo as mãos nos damos.
1064 - Rainha
A mulher, para ser minha,
Não me basta a vista, o ouvido:
Videira da minha vinha,
Pelo menos num sentido
Será sempre uma rainha.
1065 - Ultrajes
Eu sofro e não é por mim
Ou é por mim e por mai.
Os ultrajes não têm fim,
Os do mundo são demais.
Quando em mim não há motivo,
É o mundo que se me abeira,
Queima o ferrete em que vivo
E dos restantes me inteira.
Não tenho razões de queixa?
- Os demais sofrem por todos
E o pior é que esta deixa
Me logra alterar os modos.
Se não sofro o que lhes dói,
Por que engano ou que magia
A dor deles sempre foi
Minha dor de qualquer dia?
Se agora a dor não me atinge,
Sofro amanhã desde já
Porque a dor de agora finge
A dor enquanto a não há.
1066 - Razão
Da verdade à fantasia
Corre um pequeno senão.
E se alguém se degladia
O senão não discernia:
- É que todos têm razão!
1067 - Abrigo
Quero crer ser teu amigo
Sem saber nem quem serás:
Sou apenas um abrigo
E aqui estou sempre contigo
Mesmo quando nunca estás.
1068 - Sinais
Na aldeia, com oito anos,
Um garoto dá sinais
De que os anos são enganos:
- Um garoto de oito anos
Tem olhos de muito mais!
1069 - Desencontros
É porque nos encontramos
Constantemente, demais,
Que no fim sempre acabamos,
Dado este excesso de ramos,
Com desencontros reais.
1070 - Mutilado
A vida trnsborda tanto,
Deriva p'ra tanto lado
Que, para agarrar-lhe o encanto,
Só indo de braço dado.
Uma pessoa sozinha,
Pior que uma ilha no mar,
É apenas uma adivinha
Que se não vai decifrar.
Bem pior que um desterrado,
Que uma vítima da guerra,
Que uma injustiça que berra,
Homem só - é um mutilado!
1071 - Asneiras
As asneiras que se fazem
Não se fazem por demência.
Qualquer que seja a aparência,
Se algum dia nos aprazem
É só por sobrevivência.
1072 - Sofrimento
Vamos todos à buate,
Que nesta vida em que não
Há nada que a desate
O que importa é a diversão!
Embora, todos a par,
De cada qual o intento
O que logra seja dar
Dos demais co'o sofrimento.
1073 - Cor
Um homem tem sempre cor,
Não a que na pele acama
De que nem pode dispor.
Tem outra que é bem melhor,
- Tem a cor de quem o ama!
1074 - Fora
Quando alguém alguém inculpa,
Afinal não culpa alguém:
O que anda é a pedir desculpa,
Apontando para a culpa
Que é a culpa que dentro tem.
1075 - Sozinha
Um homem tem muitos filhos,
Cria legiões de amigos
A livrar-se de sarilhos,
Em busca de ter abigos.
- E depois nunca adivinha
Que a vida é sempre sozinha.
1076 - Poeta
Num poeta o que seduz
Não são propriamente as loas
Nem uma ideia que medra.
Um poeta acende a luz
No coração das pessoas
Nascidas p'ra ser de pedra.
1077 - Entranhas
Sento-me para escrever.
Que é que faz de mim sair,
Como é que de mim arranco,
Às entranhas de meu ser,
O poema do porvir
Por detrás da folha em branco?
1078 - Tiranos
Tiranos não se demitem,
Só no tiro dos canhões!
Que faz que não acreditem
Que já foram derrotados,
Quando por todos os lados
Morreram nos corações?
1079 - Foge
"Não deixes para amanhã
O que podes fazer hoje"
- Pode ser máxima vã,
Já que o tempo sempre foge.
"Dia de Santa Luzia"
- Diz-se na máxima inversa -
"Não faças, faz noutro dia."
- Só que é cara esta conversa.
O importante é não largar
Os gestos que mais nos contem
Se p'ra hoje, se calhar,
Já os adiámos ontem.
1080 - Já
Olho a Lua e as estrelas
E o pulso me recupera,
Não tanto por serem belas
Mas p'lo que nelas se dá:
- Com a eternidade à espera
E tenho tudo isto já!
1081 - Recordação
Na vida, qualquer acção,
O tempo de nós a afasta,
Por isso nunca nos basta.
Só a boa recordação,
Usada, nunca se gasta.
1082 - Oportunidade
Não é que os erros não contem,
Mas, como a vida nos foge,
Importa é aquilo que apontem:
- A oportunidade de hoje
Apaga-me os erros de ontem.
1083 - Exorcisa
Se em África houver trabalho,
Ela não vem para a Europa.
Se andar-lhes vazia a copa
É que nem um cheiro de alho
Lhes exorcisa o destino,
Aos despojados da vida:
Correrão, num desatino,
Ao falso céu que os convida.
1084 - Moral
A moral é sempre amor,
Amor doutrem. Só que então,
A harmonia ao nos propor,
Eu da situação senhor,
É amor-próprio em acção.
1085 - Problema
Quando algo nos corre mal,
Então temos um problema.
Se o não solvo tal e qual,
Um segundo junto ao tema.
Se descobrem a mentira,
Terceiro vem a caminho.
E o pendor nunca mais vira
Quando disto me avizinho.
A mentira me persegue
Muito mais a vida inteira
Do que o erro a que se segue,
Nuvem que foi passageira.
1086 - Animais
Alguns decerto rejeitam
Pertencer aos animais.
São como aqueles que vencem,
Depois tanto se convencem
Que hoje em dia não aceitam
Os velhos amigos mais.
1087 - Estrelas
As estrelas que há no céu
Poderão já ter morrido,
Que a luz que delas desceu
Continua a vir do olvido.
Podem todas já estar mortas,
Que ainda prosseguem seu fito:
Continuam a ser portas
Donde espreito o infinito.
E as pessoas que morreram,
Estrelas do coração,
As rotas por onde vieram
Temo-las aqui à mão:
Em nossos gestos e crenças
Aquilo que mais seduz,
Não são actos nem sentenças,
É o brilho daquela luz.
1088 - Maneiras
O homem faz as maneiras,
Importa que elas se domem,
Que as boas sejam primeiras.
Mas, quando elas são inteiras,
A meta faz que nos tomem:
- As maneiras fazem o homem!
1089 - Guerra
Quando a guerra se desata
Maior crise, se calhar,
Com as mortes se nos ata:
- Quanto mais pessoas mata,
Mais fácil será matar!
1090 - Mudança
Animais de hábitos somos,
Vivendo história e mudança.
Nosso reconforto pomos
Sempre de ordem na esperança.
Quando a confusão aumenta
Na história que se acelera
Não é de fora a tormenta,
Em nós é que ela prospera:
O mundo em conformidade,
Intrincado, continua;
Eu, se não tiver idade,
É que ficarei na rua!
1091 - Nova
Sob a roseta do sol
Jamais há uma ideia nova,
Já que desde o arrebol
Sempre o mesmo se renova.
Se as ideias pouco valem,
Dizê-las, menos ainda,
Que é que faz que os génios falem
À história deles provinda?
Génio é aquele que tira
Duma ideia mais de mil
E assim o mundo revira,
Faz com que outro se perfile.
De cada ideia colhida
Colhe tais implicações
Que dali a uma outra vida
Se medem as pulsações.
Assim sendo, o que há de novo
É sempre esta ideia antiga
De o génio chocar o ovo
Que ao mais além nos obriga.
1092 - Criatividade
De nada nada se tira.
Toda a criatividade
No velho sempre se inspira
P'ra gerar nova verdade.
Não é uma fuga à cultura
Mas uma oportunidade
De usá-la com tal finura
Que outro mundo nos invade.
A cultura é trampolim
E é também constrangimento.
Saltando nela é que, enfim,
Alcanço o voo do vento,
Mas só serei criativo,
Alçado pelos espaços,
Se o pensamento cativo
Liberto dos cultos laços,
Se no fim toda a cultura
Finto em voo tresloucado
E lhe cavo a sepultura
- Por encontrar o outro lado!
1093 - Esperança
O que um homem sempre alcamça
Não é sempre uma verdade,
Por vezes é o que o descansa:
- Confundir uma esperança
Com fundada realidade.
1094 - Curiosidade
A vida são desenganos
E esta verdade comove-nos:
Quais serão os seua arcanos?
- A curiosidade move-nos
E assim torna-nos humanos.
1095 - Mar
O mar são naus e caminhos,
O mar são velas e sonhos
E tem naufrágios medonhos
Mas com canela e cominhos.
O mar sempre contradiz
Dentro em nós qualquer declínio:
O mar é minha raiz,
É a raiz de meu fascínio.
1096 - Acreditar
Tanto pende a humanidade
Das crenças em que apostar
Que a primeira liberdade
Não vem das leis da cidade,
Vem de nela acreditar.
1097 - Ocidental
Nosso mundo ocidental
É o mundo dum alpinista
Que da cumeeira avista
O abismo inteiro do vale,
Cujos passos sem regresso
Têm de saltar em frente,
Correndo o risco confesso
De morrer eternamente.
O problema é de saber
Se o nosso passo nos chega,
Se o pára-quedas navega,
Se em tal mar há um escaler.
À falta de informação,
Resta a previsão e a crença:
Se a fé morde o coração,
Atirar-me-ei sem detença.
Depois então se verá
Se o risco valeu a pena:
Se morrermos acolá,
Nenhum porvir cá se engrena;
Se, porém, sobrevivermos
Além do abismo cavado,
Retomamos noutros termos
O perfil de antes traçado.
Contudo, se a fé baqueia
No ânimo deste alpinista,
A montanha se incendeia:
Dele, nas cinzas, à vista,
Já que ali tudo se ateia,
Nem pegada que resista!
- De fé, pois, uma mão cheia
Nos apaga ou põe na lista
E o risco que nos ameia
Não tem fuga nem tem pista.
1098 - Ou
O autêntico eu do escritor
É o dele próprio ou o da escrita?
Neste é que aflora o valor:
Se aquele é quem vem depor,
Só a mensagem o habilita.
1099 - Inferno
O inferno serei eu?
São os outros? Somos nós:
Ninguém por fora o viveu,
Dentro é que nos furta a voz.
- Só que todos, a tremer,
Fogem de o reconhecer.
1100 - Experiência
Todos, dum ou doutro modo,
Nós teremos de aprender,
O saber jamais é um todo,
Está sempre a acontecer.
Aprender com a experiência,
Mas nem tudo à própria custa,
Que dos demais a vivência
Em mim também se degusta.
E, com a experiência alheia
Que não pago nem suporto,
Vai ficando a minha cheia,
Conduzo o barco a bom porto.
O prémio da sensatez
Deste esforço ponderado
É que é mais fácil de vez
E alegra mais o meu fado.
1101 - Charme
Charme, poder invencível
Que cativa num relance,
Do amor elevado ao nível,
Sem força dá quanto alcance.
Gratuito romper do dia,
Seduz tão completamente
Que ele jamais puniria
E desarma toda a gente.
Atinge sem nos ferir
E sabe ganhar batalhas
Sem morto algum produzir,
Sem vítimas, sem mortalhas.
Quem certo sucumbiria
Derrotado na refrega,
Faça do charme seu guia,
De si lhe faça já entrega,
Deixe-se vencer do charme,
Que jamais será humilhado,
Não há quem se arme ou desarme,
Nem derrota em nenhum lado.
Tão subtil é o parecer
Que ao charme melhor convém
Que aquele que o julga ter
Provavelmente não tem.
E assim, se sempre convém,
Nem tudo nele é virtude:
A vida alegra; porém,
Quando engana, desilude.
1102 - Principiou
O homem principiou
Rompendo por estes chãos
Em busca dum ar mais puro
Quando, menino, tocou
Música com suas mãos
E nela ouviu o futuro.
1103 - Felicidade
Agarra a felicidade
Em qualquer tempo e lugar
E qualquer que seja a idade,
Que quem assim não a invade
Não vai mais ficar-lhe a par.
1104 - Litigantes
Repara nas lições de antes,
Sê cordato, que primeiro
O que importa é conseguir:
Por entre dois litigantes,
Discreto, sempre um terceiro,
No fim, dos dois fica a rir.
1105 - Relativo
Nunca conquisto mesada
Que me tenha por meu pé,
Vivo entalado no arquivo.
É que a vida não é nada
E, contudo, a vida é:
- Sou um nada relativo!
1106 - Compro
As alegrias da vida
Pagam-se na dor sofrida
E, se compro a liberdade,
Três vezes lhe pago o preço,
Em moeda de verdade,
Com a dor que lhe mereço.
1107 - Abismo
Na vida, quanto é mais doce
É também o mais amargo.
Ai, amor, se tudo fosse
A janela aberta ao largo,
Sem, no cume do planalto,
O abismo opor-se ao mais alto!
1108 - Pobre
A chave de abrir a porta
Não é o dinheiro que temos
Que sempre nos fica à justa.
Ser pobre que nos importa
Desde que nós nos amemos?
E a beleza nada custa!
1109 - Poesia
Poesia não é sonho,
Que será a poesia?
Mais que o real nela ponho,
Sonho não sendo, lhe imponho
Quanto o sonho acordaria.
1110 - Brilha
Se na vida nada brilha,
Se tudo é apenas desdoiro,
Resta-nos a solidão:
Por isso é que qualquer ilha,
A quem foge à multidão,
É sempre ilha do tesoiro.
1111 - Preocupação
Um homem que quer ser homem
Tem uma preocupação:
Rasgar trilhos para além
(Antes que as teias o domem)
- Pela sua própria mão
Sem pender de mais ninguém.
1112 - À beira
Se alguém vive lado a lado
Com um ente de excepção
É a pessoa derradeira
Acaso a ter reparado
Na prendada condição
Da jóia que tem à beira.
1113 - Tempo
O tempo não é uma praça,
É um itinerário louco
Cujo fim não adivinho.
Em cada dia que passa
Fica-nos de nós um pouco
Perdido pelo caminho.
1114 - Apelo
Donde vem o estranho apelo
Que fundo intima quenquer?
No mundo nada há mais belo
Do que uma bela mulher
- E a mulher sempre inicia
A nova etapa da via!
1115 - Ilusão
A ilusão da mão humana
Sei que é apenas ilusão
E que no fim de semana
Nos fica vazia em vão.
Mas é desta mão vazia,
Por muito indigno que seja,
Que eu procuro a companhia
De que vazio me veja.
Porque a única e perfeita
Companhia que não tenho
É aquela que ali me espreita,
Se promete e jamais ganho.
1116 - Marcos
Quando eu tinha meus quinze anos
Era tudo um céu aberto,
Não havia desenganos,
Via as estrelas de perto.
Quando rompi os arcanos,
Ficou-se-me o céu deserto:
Ao crescer, são desenganos
O custo de estar desperto.
Mas minhas noites de antanho,
Romanescas, recamadas,
São de saudades meu ganho,
São meus marcos nas estradas.
É que hoje, quando olho o céu,
Vejo lá quanto em mim via
E o céu perdido é que é o meu
Novo céu que se anuncia:
A quem morre no caminho,
De toda a vida ignorado,
Traz de novo o pão e o vinho
Do viandante o cajado!
1117 - Quando
Quando é que eu entenderei
Que não ter nada era o menos,
Visto que existo e que o sei,
Por mais que sejam pequenos
Os feitos que somarei?
1118 - Ídolo
Era um ídolo a seguir.
Como os ídolos, porém,
Era um homem de mentir:
- Bem pequeno, a quem o vir,
Ante a missão que detém.
1119 - Tragédia
Quando a tragédia nos toca,
A dor fixa-se ao passado.
Em carne viva, o que evoca
Não se lhe mexe sem dor:
Não pode então ser tocado
Nem por um gesto de amor.
1120 - Amigos
É o amadurar dos trigos
Aloirando um arrebol,
A pingar mel do cortiço,
A amizade dos amigos,
Um longo raio de sol
Onde me deito e espreguiço...
1121 - Serranias
As serranias são ternas,
Luzem no meio do escuro:
Cura de neves eternas,
De bom senso e leite puro,
- Onde até se nos esticam
Da alma as pernas que nos ficam!
1122 - Ilusão
De ser útil a ilusão,
Consistindo num vazio,
A sério me tira o frio:
Livra-me da solidão.
Não por encontrar alguém,
Que a solidão é de dentro.
É que noutrem me concentro,
No espelho que de mim tem.
Ser solitário é o destino
De que ninguém se liberta,
Mas com outrem quando atino
Fica a porta entreaberta.
1123 - Sou
Não irei ser o que sou,
Já que ser quem sou seria
Voar a vida num voo
Que me proibe o vigia.
Serei eu quem joga o trunfo,
Não vá traçar-me ele a rota,
Embora assim meu triunfo
Seja afinal a derrota.
Bem não queria dormir,
Porém, vou adormecendo...
Mas como ir, como ir,
Se indo assim eu só me rendo?
1124 - Gosto
Gosto da vida, da vida
Pela vida, sem mais nada,
Romaria rumo à ermida
No alcantil alcandorada.
Como quem anda num jogo
Maravilhoso qualquer,
Em redor ateio o fogo
E não quero adormecer!
1125 - Pequeninos
Todos somos pequeninos
Com nossos baldes de praia,
Enchendo de desatinos
A maré que neles caia.
E afinal nem sequer vemos
Quanto estamos mergulhados
No mar de que carecemos:
Vida por todos os lados!
1126 - Adivinho
É mais fácil discutir
O fado de homens no mundo
Do que algo vir a cumprir
Do destino que, fecundo,
Me obriga a ser adivinho
Para acertar meu caminho.
1127 - Ano
Cá vamos, ano após ano,
Somando a perda e o ganho,
Engano mais desengano,
Buscando o que nunca apanho.
És, nesta busca, o meu braço,
A fonte de quanto é sonho,
De meu repouso o regaço,
A força de que disponho.
És, porém, para além disto,
Contra qualquer vitupério,
A persistência que, insisto,
Nos achega do mistério.
E tanto de ti dependo,
És tão eu, tanto sou tu
Que até já nem me defendo,
Sou o meu próprio tabu.
Se na entrega sem reservas
Em ti me perco, meu bem,
Afinal tu me preservas,
Senda aberta para além.
E em ti é que principia,
Na ternura contra o olvido,
A aurora do novo dia:
- Tu és já o desconhecido!
1128 - Perfume
Não te ofereço perfume,
Que o perfume que ofereço
Não me esqueço que é teu lume
A que em teu cume me aqueço.
Contigo assim compartilho,
Nesta fogueira, o calor
Mais, se houver noite, o teu brilho,
Gravetos de nosso amor.
1129 - Máquina
Uma máquina era um sonho
Feito carne por alguém.
Em tuas mãos o deponho
Para que sonhes também.
Sonho materializado,
Ao depô-lo em tua mão
Sei que irá gerar ao lado
Os mais sonhos que virão.
1130 - Pertence
No fundo só nos pertence
O que as pessoas e a vida
Reconhecem que nos vence:
Uma voz reconhecida.
Se tivermos um milhão
Debaixo do travesseiro,
Por muito que fique à mão
Fico sempre sem dinheiro
Se ninguém de tal souber.
É preciso que me cobres
A dor de me fazer ser,
Senão somos sempre pobres.
1131 - Margem
Duma margem já partimos,
À contrária não chegámos
E a ponte que assim cobrimos
Atrás deixa o que já vimos,
Para trás já nem olhamos.
Esperamos atingir
A margem que fica além
Escondida no porvir.
Neblina que a vens cobrir,
Que a não deixas ver também!
Uma vez ela varrida
Nem mesmo sabemos já,
Já que uns morrem na corrida,
Outros cansam-se da vida,
Que é que ali nos surgirá.
É a margem inatingida,
Essa margem da coragem!
Aqui vamos na subida
Da ponte que só tem ida:
- Ficamos pela viagem!
1132 - Chegar
Vamos todos na corrida
Sempre à espera de chegar,
Na corrida toda a vida,
Em todo o tempo e lugar.
Não sei onde nem sei quando,
Tão depressa ou devagar
Como acordado ou sonhando,
Também eu irei chegar.
Sei lá onde fica a meta!
Sei lá bem porque corremos!
Só sei a aposta concreta:
Um dia lá chegaremos!
1133 - Livro
Atrás das capas dum livro,
Quantas horas de trabalho,
Quanta dor de que me livro
Nas cartas deste baralho!
Aquilo não é papel,
É sangrenta carne viva,
É a paixão com que, a granel,
O autor dentro nos cativa.
A montra não embeleza
Se nela se contivera
A emoção que ali sofrera:
- Explodia com certeza!
1134 - Passado
O passado mora ao lado,
Nos caboucos da avenida.
Ninguém esquece o passado,
Sobre ele constroi-se a vida.
Assim, em qualquer momento,
Dele temos o sinal:
Tão discreto como o vento,
É, na verdade, imortal.
1135 - Percurso
Julgas que ao trocar cenários
Também a ti trocarias,
Refarias inventários
Do percurso de teus dias?
Tudo é possível na vida,
Na busca do que te apraz
Menos virar a corrida
Ao que vais deixando atrás.
Múltiplos são os caminhos,
Todos julgam que vão bem,
Mas dos anos os cadinhos
Todos enganam também.
Desvairado, na procela,
Sempre em frágil escaler,
Quem não vai mirando a estrela
Buscando retroceder?
Porém, sempre atrás de nós,
Os actos nos acompanham,
Erguem muros, atam nós,
Hoje ainda nos desenham.
Ninguém anula o passado
Nem lá vai poder voltar.
Inexorável, tal fado
Iguais nos tem no lugar.
No mais, todos diferimos.
Fica só a fraternidade
Destes passos sem arrimos
A nos impor a igualdade.
1136 - Liderar
Se saudável o teu filho
Pretendes, dá-lhe alimento.
No que investes o sarilho
Prevines com teu intento.
É no amor e na atenção
Que lhe dedicas agora
Que a força do coração
Por dentro dele melhora.
Aumentas-lhe a confiança
Que vai abrir o lugar
Ao que tão pouco se alcança:
A força de liderar.