NONA REDONDILHA

 

 

POEMA EM LIBERDADE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 948 e 1136 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 948 - Poema em liberdade

 

Poema em liberdade

Com métrica e rima

Trepa vida acima

Rumo à eternidade.

 

 

949 - Partido

                                                       

Há uma falta de sentido

Dos partidos no atoleiro:

-Eu nunca tenho partido,

Bem melhor é ser inteiro!

 

Nem aceito a identidade

Duma igreja ou confissão:

- É sempre uma falsidade,

Jamais é meu coração.

 

Um bando, uma capelinha

São ainda o tribalismo

Numa cidade sozinha...

- Que é do amor com que me crismo?

 

 

950 - Presunção

 

Incha de vento, é um balão

Que comigo se intromete.

Quem me dera um alfinete

Que espetasse a presunção!

 

O meu espaço acomete,

Tira-me a respiração,

Voa sem tirar brevete

E afinal só rasa o chão.

 

Acorrenta-me à prisão

Em que o desprezo me mete,

Bate-me sem ter cacete

Co'o rosnar do coração.

 

Incha o peito e a tapete

Me reduz com gesto vão.

Quem me dera um alfinete

Que espetasse a presunção!

 

 

951 - País

 

Se a juventude é o que ris

Correndo mundos e arcanos

Sempre em busca de quanto há,

Será a velhice um país

Que então nós só visitamos

Ao termos de viver lá.

 

 

952 - Ortodoxo

 

Ser um jovem e ortodoxo

É morrer da vida à beira

E tão grande é o paradoxo

Que quem lavra nesta leira

Vai viver, heterodoxo,

Meia idade a vida inteira.

 

 

953 - Luz

 

Porque dás quando não tens,

Aos ombros ergues, profundo,

O bem de teus parcos bens:

- Tu és uma luz do mundo!

 

E quando morres ao dar

A vida para outrem ser,

Não morres, 'stás a mudar,

És a luz a acontecer.

 

Quando sobre ti carregas

Quanta dor sofre no mundo

É que as entranhas me pegas

E é de ti que me fecundo.

 

 

954 - Preocupação

 

Qualquer preocupação

Que não venha a redundar

Na angústia duma oração

É tão parca em seu penar

Que nem merece atenção.

 

 

955 - Democracia

 

Viver em democracia

É cumprir à risca a regra:

Quem governa é a maioria

Que a minoria posterga.

 

Se a minoria não ganha,

Sempre, porém, se preserva

E, ao manter-se de reserva,

Ganha uma força tamanha

 

Que acaso até logrará,

Em futuro eleitoral,

Sonhar um outro real,

Devir lei do que não há.

 

 

956 - Disciplina

 

Não eduque com brandura

Quando for em disciplina,

Que a criança, mesmo pura,

Ansiosa desatina

 

Quando as regras não existem.

Fazendo só disparates,

A razão de tais dislates

É que as dúvidas persistem:

 

Ignora como pôr fim

À constante hesitação

Que hesita entre o não e o sim

- E assim a endoida a tensão!

 

 

957 - Recato

 

Regato, esperto regato,

Vai-lhe cantar minhas mágoas

À menina de recato

Que se mira em tuas águas.

                                                                                                       

Canta-as todas porque todas

São mágoas e são meninas.

Corre esperto até às bodas

Das belezas peregrinas.

 

Corre sempre que, a correr,

Corres como tudo o mais:

O mais dói de o não saber,

Mas tu sabes que te esvais.

 

 

958 - Alma

 

Cuidei que eras minha vida,

Mas és minha alma, mulher.

Na morte a vida é perdida,

A alma não pode morrer.

 

É um sabor de eternidade

Que tua vida me traz:

Outros jazem sem idade;

Vivo é que eu repouso em paz!

 

 

959 - Corpos

 

Dentro de si cada qual

Um mundo inteiro ignorado

Arrasta em silêncio tal

Que ao corpo nos talha o fado.

 

Que solidão cada um

Retraça em velhos arcanos!

Não há solidão comum

À destes corpos humanos:

 

São máquinas isoladas

Cheias de cantos secretos.

Encantos feitos de nadas,

Corpos somos e sem tectos!

 

 

960 - Vidas

 

A vida tem duas vidas.

A vida de cativeiro

Co'as alegrias despidas,

E a do sabor verdadeiro,

Vida com fogo e calor:

- Onde nasce e cresce amor!

                       

 

961 - Árvores

 

Como as árvores nós somos:

Se as ramas olham o céu,

Na raiz a força pomos

Onde tudo estremeceu,

Invisível, sob o véu

Da terra de que dispomos.

                       

 

962 - Medos

 

Os dentes do lobo não

Deixam fugir os cordeiros:

Jamais se remediarão

Os medos de quantos são

Da fraqueza prisioneiros.

 

 

963 - Sofrimento

 

Há espécies no sofrimento,

Mistérios em seu recesso:

Se o dos pobres eu lamento,

Pior o vejo, confesso,

No coração do progresso.

 

 

964 - Quarto

 

Fechar-me aqui neste quarto,

Ir-me de mim próprio embora...

E o mundo em dores de parto,

Num esforço, a soluçar,

Com tanta gente lá fora

A pedir-me para entrar!

 

 

965 - Prisioneiro

 

Folha ao vento, sou leveiro;

Ardo, lenha, ao fogo posto;

Grito sim a quanto é não:

De mim próprio prisioneiro,

Suporto o castigo imposto

Do diabo à criação.

 

 

966 - Estranhos

                                       

Ai, meu Deus, como é romântico

Perambular entre estranhos,

Comer nacos de pão quântico

Na figueira entre os rebanhos

Dum outro lado do mundo:

- Como isto aqui torna imundo!

 

 

967 - Brinquedo

 

Por que é que um brinquedo velho,

Casca qebrada dum ovo,

Devém mágico aparelho

Muito mais que qualquer novo?

 

Abandonado num canto,

Na terra ganhou raízes.

Secreto, renova o encanto:

- Revive-me horas felizes!

 

 

968 - Árvores

 

Árvores há que são mais verdadeiras

Que as verdadeiras que nos traçam sonhos:

São árvores eternas que abrem leiras

Na cósmica consciência a que te abeiras

Quando te dão a vida em seus medronhos.

 

 

969 - Sábio

 

P'ra dia a dia mais vivo

Teu riso abrir tua cara,

Aproveito o positivo

De quanto se te depara.

 

Não lutes contra as correntes

Nem sejas delas vencido:

Às que são prevalecentes

Enxerta-lhes teu sentido.

 

Sábios não são varapaus,

Dribla o turbilhão e vence-o:

Vem gerar ordem ao caos,

Música, ao mar do silêncio!

 

 

970 - Rota

 

No meio da frustração

A vida não é mais vida.

Como é que se atingirão

Sonhos na rota perdida?

 

Nas obras de arte é preceito

Ver como de mim me livro:

O mundo deve estar feito

Para terminar num livro.

 

E num livro de mentira

É que a verdade acontece:

Que é que do avesso me vira

Sempre a ver-me se eu houvesse?

 

 

971 - Ateus

 

O equívoco dos ateus

Nao é a vida esvaziada

Nem tudo tornar entrudo.

Quem não acredita em Deus

Não é que não creia em nada,

- Acredita então em tudo.

 

 

972 - Esperança

 

Pela esperança é que somos,

Esperar é coisa boa

Quando nela é que nos pomos

Passo a passo a ser pessoa.

 

Quando, todavia, alguém

Não é o que deseja ser,

A esperança nele tem

Travor de quem vai morrer.

 

A fugir de si à frente,

Não é a vida que lhe importa:

A vida, quando ele a invente,

Parte dela já está morta.

 

 

973 - Cosmos

 

Há quem imagine a vida

Toda cheia de remendos,

Canalização rompida

Num cosmos sem dividendos.

 

Doutrem 'spera o que a valida

E a vida enche de vinagre

Quem não toma em mãos a vida...

- E assim jamais há o milagre!

 

 

974 - Dias

 

Fugimos, por inviável,

Ao que os dias nos trarão

Do signo da crueldade.

Quando a vida é insuportável,

Acolhemos a ilusão:

- Então ela é a realidade!

 

 

975 - Idade de oiro

 

A idade de oiro acabou,

A idade de oiro há-de vir...

- Ninguém vê que o que plantou

É que lhe rasga o porvir?

 

A idade de oiro está aqui,

Só espera, para ter voz

Dentro de mim e de ti,

Que eu e tu sejamos Nós!

 

 

976 - Óculos

 

Eu com óculos nasci,

Com óculos vou morrer,

Com as lentes com que aqui

Me deformaram o ser.

 

Ao nascer mas forneceram

Com a grossura e da cor

Que à cultura convieram:

Sabiam tudo de cor!

 

Nesta vida decorada

Nunca, verdadeiramente,

Vivi, pois, a consoada

Que inaugure um mundo em frente.

 

Nem certamente, por isso,

Mudarei a minha sorte:

Sempre a vida que eu cobiço

Passa por mim como a morte!

 

 

977 - Velocidade

 

Velocidade é loucura,

Do suicídio mania

A matar o dia-a-dia

E da acção quanto nos cura.

 

Não é nunca apoteose,

É incongruência de insecto

Cuja emoção em concreto

Dos desastres vem da dose.

 

Quando corro o risco em vão,

No que me atrai é que cismo:

Não é a busca da evasão,

- É que é certo o cataclismo!

 

 

978 - Transporte

 

Uma obra de arte é fundada

Em tudo quanto convida

A mais vida com transporte.

O estranho é que esta latada

Nos dá um vinho cuja vida

Vem do rumo dado à morte.

 

 

979 - Horror

 

Veneração de arte

De arte por amor

Põe o Homem de parte,

Do Homem tem horror.

 

Buscar redenção

De arte assim vivida

Põe, por danação,

Arte em vez de vida.

 

 

980 - Antolhos

 

Para quebrar meus antolhos,

Depurar a visão tosca,

Requeiro da arte os abrolhos:

E a teia se desenrosca,

Vejo o mundo pelos olhos

Pluriformes duma mosca.

 

 

981 - Casa

 

O meu melhor poema é a minha casa.

Construímo-la a pulso em terra rasa,

 

Por dentro lhe inventámos dois meninos,

Decorámo-la a sonhos dos mais finos.

 

É um poem de pedras e de lutas

Rodeado de pinheiros e de frutas.

 

Só lhe lê seu tamanho verdadeiro

Quem cá dentro o suspeita e vê primeiro.

 

 

982 - Programa

 

Na voz que este povo tem,

O que o cotio retém

Deste povo que tem voz,

A raiz de pais a avós

Eu canto: o que todos nós

Ante o amor somos e após.

 

Fizemos mais para além

Quanto ao porvir nos atém.

 

 

983 - Grande

 

Quando alguém é mesmo grande

É um polo de tirania.

Para evitar que em mim mande

Quanta dor me doeria!

 

A grandeza são algemas

Atando o pulso do mundo,

Ao pasto das alfazemas

O conduzindo infecundo.

 

Mas para cada qual ser

Na pequenez do tamanho

Tem de sozinho aprender

Que paga em perca tal ganho.

 

Pois para ganhar-se a si

Não basta seguir alguém:

É de dentro que sorri

Toda a estrela de Belém.

 

Quando a mão deito a meu fundo,

Por muito que o lodo a suje,

Dali rasgo um outro mundo

Onde sempre o porvir ruge.

 

 

984 - Revolução

 

A revolução que hoje lavra

Tem dois rostos e está nua:

Revolução da palavra

E revolução da rua.

 

Está nua porque dentro

Só tem ecos do vazio

Dum sonho em que jamais entro

Preso à morte por um fio.

 

E a alternativa é pior:

Sentado em cima dos dias

P'ra que o passado decore,

Onde irão as fantasias?

 

Vago adiante e preso atrás,

Já perdi meu nome e grei

E assim alguém de mim faz

O que de mim não farei.

 

 

985 - Recta

 

Para a avenida ser recta

Uso a minha roupa velha,

Não visto a camisa preta

Nem a camisa vermelha.

 

Sou inteiro e não partido,

Não me arregimento, enfim.

Para a luta ter sentido

Só me vestirei de mim.

 

 

986 - Verdade

 

A verdade em toda a parte

Mora como mora em tudo.

Procurá-la não faz parte

Do fado com que me iludo.

 

A verdade é como Deus,

Toda a verdade acontece

Em eleitos gineceus

E, sem esforço, aparece.

 

Quando a verdade me afaga

O manto dos céus destraça:

A verdade não se paga,

Toda a verdade é uma graça.

 

 

987 - Grande

 

Verdadeiramente grande

É o que leio e que releio

E que, em quanto me comande,

Quanto mais nele me enleio

Mais em mim faz que eu me mande.

 

 

988 - Nada

 

O tormento dos tormentos

É ver que não valho nada.

Ao menor dos pensamentos

Dou então, em tais momentos,

Uma importância infundada.

 

 

989 - Jogamos

 

Jogamos em toda a idade

Como em criança jogamos.

Jogamos contra a ansiedade,

Ao amor vergamos amos

E rendidos nós brincamos,

Que só brincar é verdade.

 

 

990 - Adiar

 

Muito o mundo se atarefa

Proibindo-se transpor

Tudo quanto o põe enfermo!

- Adiar uma tarefa

Cria um problema maior

Do que levá-la a bom termo.

 

 

991 - Apreço

 

A compensação de fora,

Um elogio bem feito,

Meu Deus, quanto nos demora

O apreço de nosso peito!

 

Porém, em última instância,

Quanta decepção após!

- O que compensa sem ânsia

É acreditarmos em nós!

 

 

992 - Filho

 

Um filho não é um mistério,

São milhares de momentos

E cada gesto refere-o

Do cotio aos elementos.

 

É uma vida lado a lado,

À chuva, ao frio e ao vento.

Por mim ele é alimentado

E dele a mim me alimento.

 

Um do outro coração,

Se o laço morre na estrada,

Ficamos co'a sensação

De ter vivido p'ra nada.

 

 

993 - Fora

 

Quando entrares na oficina

Fica o sol brincando fora

E o rio já nem atina

Com essa tua demora.

 

Tu tens um emprego a sério,

Não és mais um vagabundo,

Sob o nome tens o império

Com que reges, firme, o mundo.

 

Só que eu sou grande e nem hoje

Consigo matar a fome,

Por muito que me despoje

De poeta pobre e sem nome.

 

 

994 - Dividido

 

Seduz intelectuais,

Mobiliza a multidão.

Massas populacionais

À luta comandarão:

 

Revoltas, guerras consomem,

Dividido o mundo em dois,

Um mau hoje e um bom depois,

Tudo para o bem do Homem.

 

No fim, os ideais são falsos,

Caímos todos na armadilha:

Não são motores, são calços,

Dos grilhões soldam a anilha,

 

A liberdade é opressão,

Só de miséria há fartura.

- Definitivo, só o não

Deste século à impostura!

 

 

995 - Rico

 

Um rico gasta menos que o que tem,

Investe o que lhe rtesta por inteiro,

Lucra mais para o sonho que aí vem...

- Ser rico não é ter muito dinheiro!

 

É aprender a viver um pouco abaixo,

Sempre atento ao que resta após ter tudo:

Deste nada é que ateia o grande facho,

- E todo o incêndio vem do troco miúdo!

 

 

996 - Feliz

 

Ninguém pode ser feliz

Se adia a cada momento

Para um eterno amanhã

O momento em que se diz

Com o ser e o pensamento:

- Eu é que crio a manhã!

 

 

997 - Regato

 

A rapariga é um regato:

Corre, esperta, fraga em fraga,

Sem dar conta do recato

Do choupal que o céu lhe afaga.

 

A rapariga é um ribeiro:

Desliza alegre na vida,

Nem vê que aos peixes, primeiro,

Nela as margens dão guarida.

 

 

998 - Todos

 

Um homem jamais subsiste

Sem ser com todos os mais:

Quando o amor num só existe,

Existe, afinal, demais.

 

A morte dum é um pouco

A morte dos outros todos,

De modo que a vida é um louco

Viver de todos os modos.

 

 

999 - Revolta

 

Arte de antanho, de passado envolta,

Se for das formas culto, não terá

Motivos para ter de arte alvará.

Os temas são, porém, raiz à solta

Que do antigo o porvir nos rasgará:

É que arte será sempre uma revolta!

 

 

1000 - Liberta

 

A morte do perverso nos liberta

Mas logo a seguir torna-nos inúteis.

A liberdade livre é apenas certa

Se é vida que as amarras desaperta,

Se se vence em comum as tricas fúteis.

 

 

1001 - Dever

 

Direito, fá-lo o poder,

Não o processa a equidade.

É por isso que o dever,

Muitas vezes, em verdade,

É o dever de subverter.

 

 

1002 - Converso

 

Homem és, trazes-me a vida

Num pedaço do Universo.

Trazes sol, dás-me guarida:

 

- Homem sou de fronte erguida

Porque contigo converso.

 

 

1003 - Olhos

 

Os olhos fechados

Nem todos só dormem,

Alguns jogam dados

Que mais os informem.

                                                       

E os olhos abertos

Todos eles vêem?

- Parecem despertos

Mas sonham e crêem!

 

 

1004 - Cara

 

Ao nascermos, nossa cara

É o sol ao raiar o dia.

Talhada em carne, é uma rara

Escultura em que se ampara,

Anos mais tarde, a magia

Que tem nossa biografia.

 

 

1005 - Filhos

 

Meus filhos não são meus filhos,

São uma prenda dos céus.

Que me importam os sarilhos?

Privilégio são seus brilhos

E que, afinal, sejam meus!

 

 

1006 - Sino

 

O sino da madrugada

Toca as horas, toca o dia,

Galo, toca a matinada,

Forma a vida na parada

- E aqui eu acontecia.

                                                                       

O sino da madrugada

Toca-me aqui bem no fundo:

Toca fora e aqui na entrada

Onde principia a estrada

Que me leva a todo o mundo.

 

 

1007 - Esmaga

 

A marca que imprime

Tirano que meças

Se nele tropeças:

- Aquele regime

                                                                                                                        Esmaga cabeças!

 

 

1008 - Caridade

 

Verdadeira caridade

É a que ajuda toda a gente

A caminhar por seu pé

E assim, orgulhosamente,

Desenvolve a identidade

De cada qual no que ele é.

 

 

1009 - Sobrescritos

 

Os sobrescritos são vivos.

Rondando da guerra à beira

Não são nada inofensivos:

Espionam, são arquivos,

- Matam à sua maneira!

 

 

1010 - Erro

 

Todo os pernósticos

Acabam num berro

Por não ser pronósticos.

Afasto os prognósticos:

Não cultivo o erro.

 

 

1011 - Precisa

 

De gente para matar

É o que menos se precisa.

Doravante outro é o lugar:

- De consertar e curar

É a gente que se utiliza.

 

 

1012 - Tornados

 

A guerra é como os tornados,

Limpa das vergônteas pecas

Árvores, casas e prados.

- E varre os desamparados

Como varre as folhas secas!

 

 

1013 - Influência

 

Ter uma influência é fácil

A quem tem da fama o aval.

Mas interessante, grácil

É ter o influxo mental

Que, sem se ver, aparece

Mesmo em quem se não conhece.

 

 

1014 - Interesse

 

Por outrem por vezes há

Um interesse marcado,

Mas este interesse irá

Com marca de interesseiro

Ou de desinteressado:

- Só este é que é verdadeiro.

 

 

1015 - Compreende

 

Não se compreende ninguém

E, se alguém me compreende,

O que compreende esse alguém

É que eu moro sempre além

Da escuridão que me prende.

 

 

1016 - Medonho

 

Nada na vida é perfeito

E o vazio é mais medonho

Quando no infinito o ponho:

- Um artista é sempre feito

Daquilo que faz o sonho!

 

 

1017 - Preceito

 

Homem e mulher decente

Têm de tomar a peito

Qual vai ser o seu preceito:

Seguem uns o conveniente,

Eles seguem o direito.

 

Conveniência só é via

Se o direito a concilia.

 

 

1018 - Ideia

 

É estranha a desunião

Entre o ser e o seu fulgor

Que conservo no meu cofre:

Não há mesmo relação

Entre uma ideia da dor

E um ente que sangra e sofre!

 

 

1019 - Entravada

 

Quando a acção não é entravada,

Menos razões para agir:

Não é livre a caminhada?

- Constrangida é que a avançada

Ganha a força para ir.

 

 

1020 - Mudanças

 

As mudanças incessantes,

O desaparecimento

E a renovação do alento

De almas vivas são garantes,

- São da vida o próprio invento.

 

 

1021 - Cidade

 

A cidade a vida abrasa,

Quem quer que seja que mande.

Porém, nela há um golpe de asa:

- Toda a cidade é uma casa,

Uma casa muito grande!

 

 

1022 - Paz

 

Que será que aos homens faz

As vidas correr ilesas?

- Correr toda a vida atrás

Dehomens ávidos de paz

Muito mais que de riquezas.

 

 

1023 - Mulheres

 

A glória duma cidade

Residirá nas mulheres:

A força dos povos há-de

Inteira nascer da idade

Do regaço onde a acolheres.

 

 

1024 - Mínguas

 

Não sofras de escusas mínguas,

Busca ajuda em toda a mãe:

Fala as línguas que convêm,

Porque quem tem várias línguas

São várias pátrias que tem.

 

 

1025 - Escombros

 

É no meio dos escombros

Que convém olhar a terra:

Quer ter fruta presa aos ombros

E, quando o sol mais a ferra,

Prega então, por brincadeira,

A rosa na botoeira.

 

Quando vergamos o lombo

No desespero dos dias

O tamanho deste tombo

É o da traição das magias

Que mudas nos dão a mão

Mergulhando os pés no chão.

 

 

1026 - Caiu

 

Sobre ti, Homem, caiu

Parte da história do mundo:

De pé te manténs ao frio.

- Pois, se a força te traiu,

Mergulha teu pé mais fundo!

 

 

1027 - Vinha

 

Cuidado, não ponhas pé

No ramo verde a teu lado,

Não dissipes tua fé:

A melhor vinha é a que é

Podada com mais cuidado.

 

 

1028 - Chicotes

 

Mais os chicotes imprimem

Em nós a marca dos amos,

Mais auras que nos encimem:

- Pois quanto mais nos oprimem

Mais alto nos levantamos!

 

 

1029 - Fruir

 

Visionários do passado,

Visionários do porvir,

- Quem nos troca o passo dado

No presente ultrapassado

Sem dele nunca fruir?

 

 

1030 - Caçar

 

A vaidade duma vida

Não se mostra no tormento.

A caçada é divertida,

Só que é uma caça fingida:

- Andamos a caçar vento!

                                                                       

 

1031 - Intervalos

 

Na vida soam as horas

Com intervalos mais lentos

Ou mais breves, sem demoras,

Conforme damos de esporas

Do devaneio aos momentos.

 

 

1032 - Muda

 

No rio, a poluição;

Na encosta, secos os ramos;

No ar, a neblina enfumada.

É muda a desolação

Com que já nem contemplamos

A paisagem transtornada!

 

 

1033 - Herdeiros

 

Somos herdeiros da morte

Que a guerra tornou em festa

Do alvor das eras ao fim.

Somos quem teve mais sorte:

A esperança que me resta

É de isto acabar em mim.

 

 

1034 - Desgraça

                                                       

Na desgraça, sobretudo,

Quando por dentro se morre,

É que o sonho nos socorre:

O de nos supormos tudo,

O da vida que não morre.

 

 

1035 - Espelho

 

A vida às vezes não corre

Como a água numa encosta.

Acalmada e horizontal,

É um espelho em que dcorre,

Em paisagem outonal,

O sonho de que se gosta.

 

 

1036 - Confins

 

Num minuto se envelhece:

Os cuidados marcam fundo

Enquanto a vida acontece.

E a morte já não parece

Algo dos confins do mundo.

                                                                       

 

1037 - Ponte

 

Uma ponte sobre o rio

É uma palavra indizível,

Comunica lado a lado

Nosso abraço contra o frio:

- É o lugar mais aprazível,

Mais eterno do povoado!

 

 

1038 - Faleceu

 

Faleceu e o rumorejo

Muito em breve se finou,

Já por todo o lugarejo

A memória se apagou.

                                                                       

O morto ficou em breve

Tão longe dali do povo

Como, à falta de renovo,

Ficou do cadáver leve.

       

 

1039 - Recolher

 

O cadáver se dilui

Com as ideias e os gestos

Que fiéis o acompanharam.

A família o dom possui

De os recolher como aprestos

Que as chuvadas dispersaram,

- Como se acolhem vizinhos

Que se perderam dos ninhos!

 

 

1040 - Pastor

 

Um pastor não sente o peso

Da responsabilidade

Num estábulo coeso

Mas na charneca onde, teso,

Guarda ovelhas de verdade.

 

 

1041 - Cair

 

No carro ou na diligência,

O condutor, hora a hora,

Sacudido da demora,

Deixa cair a existência,

Aos poucos, estrada fora.

 

 

1042 - Depende

 

Se de mim depende, enfim,

Enche-me as horas e mina-me

O terreno até ao fim:

- Quanto depende de mim,

No fim de contas domina-me!

 

 

1043 - Povo

 

Este povo marinheiro

Deu novos mundos ao mundo,

No mundo foi o primeiro...

Emigrante no estrangeiro,

Hoje é um povo vagabundo!

 

 

1044 - Caminho

 

Como o bando aos ninhos

Sempre o rumo toma,

Todos os caminhos

Vão levar a Roma.

 

Porém, comezinho,

Na asserção está

Que sem um caminho

Não se chega lá!

 

 

1045 - Levantar- se

 

Sempre que um homem do chão

Quer levantar-se, minúsculo,

Não vai, não, correr em vão:

A marcha alarga o pulmão

E desenferruja o músculo,

- Faz obra do que era opúsculo!

 

 

1046 - Fim

 

Sobre os abismos desabam

Os precipícios, enfim,

Que o redondo menoscabam:

As outras coisas acabam

E a Terra, neste interim,

Porque é um globo, não tem fim.

 

E tais modelos, propondo-os,

Moldam no mundo a viagem

Que, sem termo, é uma miragem:

- Porque nós somos redondos

Criamo-la à nossa imagem!

 

 

1047 - Lar

 

Um lar nunca se reparte,

Não tem nele esquina alguma:

Monumento erecto aparte,

É a fachada em toda a parte,

O meio, em parte nenhuma.

 

 

1048 - Tempo

 

Um homem não quer a idade

Nem o tempo, ieia pura:

Quer tanta perenidade

Que é um deus cuja eternidade

É a daquilo que não dura!

 

 

1049 - Culto

 

Na raiz do desespero

Há sempre um desejo oculto

Por que luto, por que espero:

- Que seja correcto o culto

Que em mim fermenta insepulto,

Por mais que traia o que quero.

 

 

1050 - Finitude

 

Recusar a finitude

Do deslaçado presente

É a afirmação permanente

Da nostálgica virtude

Que a felicidade tem

De nos ser a sério e bem.

 

 

1051 - Gana

 

A violência e o terror

Que pautam a história humana

São o produto menor

De quanto nos dá na gana

Comunicar bem, feliz

E com paz quanto se diz.

 

 

1052 - Desejo

 

O desejo abre uma estrada,

Procura o mundo sem pejo,

É assim que a vida é agarrada:

Se houver desejo de nada

É que um nada de desejo.

 

 

1053 - Busca

 

A vida não perde o ensejo

De dar corpo à fantasia.

Não é um vazio ou um gracejo:

Todo o homem é um desejo

Que se busca na alegria.

 

 

1054 - Ninguém

 

Tu fizeste-me sonhar

Como ates ninguém houvera,

Devolveste, se calhar,

Toda a fé que nesta era

A vida anda a retirar.

 

Atados por nós além,

Somos já um feixe de vime,

Mas nada mais há também.

Por momentos esqueci-me:

- Ninguém conhece ninguém!

 

 

1055 - Contas

 

Ao inimigo perdoar

Resulta sempre mais fácil

Se com ele eu ajustar

Paga prévia, se calhar...

Jamais, porém, será grácil

A conta que há que pagar.

 

 

1056 - Primeira

 

À primeira vez que o vejo

Um quadro é sempre melhor.

Quando à segunda o cotejo,

Meu olhar perde o estupor.

 

Acolá toda a energia

Que o pintor pintou na tela

Repercute-se em magia,

Eu mesmo me torno nela.

 

Eu que jamais fui pintor,

Um instante transformado,

Tenho em meus olhos a cor

Que o pintor viu do outro lado.

 

Fundo-me em tal união,

Compreensão tal se dá

Que ambos jamais voltarão,

Nada se repetirá.

 

Depois disto o que nos pesa

De nossos encontros míticos

É que se foi a surpresa...

- Só nos resta sermos críticos.

 

Vai sempre dar-nos prazer

O quadro nalguma coisa,

Só que a entrega não vai ser

A entrega em que infindo poisa.

 

Torna-se me velho amigo

Mas não se revela mais

Aquilo com que condigo,

É o fascínio do jamais:

 

Mantém toque emocional,

Toque que a razão não tem.

Tal o amor, não tem rival:

Só o amor ali me atém.

 

 

1057 - Miúdos

 

Os miúdos infelizes,

De olhos e passos ansiosos,

Que superam cicatrizes,

Cuja vida após são gozos,

Não os mudou um castigo,

- Encontraram um amigo!

 

 

1058 - Telefone

 

O telefone coloca

Este desafio assim:

Tenho de sair da loca,

Que, se o telefone toca,

Alguém está a pensar em mim!

 

 

1059 - Solidão

 

Era outrora no deserto

Que morava a solidão.

Outrora batia certo.

Hoje em meio à multidão

É que ela nos fica perto.

 

 

1060 - Exibir

 

Todos temos de exibir

Sempre uma coisa qualquer

Se queremos coexistir

Com um homem ou mulher.

                                                                                                                       

Nada fica então gratuito:

Que é que serão acções boas

Se sempre se exige muito

Só p'ra viver co'as pessoas?

 

 

1061 - História

 

Toda a história é uma comédia

Em que se trocam amores.

Mas sempre se torna em dores

E se cobre de tragédia

Se a traçam só os vencedores.

 

 

1062 - Elo

 

Os livros e os textos esquecidos

Perdurarão como um elo

Na engrenagem dos olvidos

Por onde trepa nosso apelo.

 

Como um adubo na terra

O mais frágil pensamento

Por dentro de si encerra

As florestas que há no vento.

 

Mesmo sem rota nenhuma,

Somos um degrau na escada

Que não leva a parte alguma,

Com partida sem chegada,

 

Porém, sempre aberta em frente

Onde nos reboa o grito...

- Aberta infinitamente,

Sempre aberta ao infinito!

 

 

1063 - Grande

 

Poesia não tem história.

Se a tiver será tão grande

Que não tem voz que a comande,

Tamanha se lhe ergue a glória.

 

Romance tem aventura,

Cada episódio alicia

E maior é sua altura

Se o romance é poesia.

 

Afinal, em que ficamos?

- Na verdade comezinha

De que o infindo se avizinha

Quando em tudo as mãos nos damos.

 

 

1064 - Rainha

                                       

A mulher, para ser minha,

Não me basta a vista, o ouvido:

Videira da minha vinha,

Pelo menos num sentido

Será sempre uma rainha.

 

 

1065 - Ultrajes

 

Eu sofro e não é por mim

Ou é por mim e por mai.

Os ultrajes não têm fim,

Os do mundo são demais.

 

Quando em mim não há motivo,

É o mundo que se me abeira,

Queima o ferrete em que vivo

E dos restantes me inteira.

 

Não tenho razões de queixa?

- Os demais sofrem por todos

E o pior é que esta deixa

Me logra alterar os modos.

 

Se não sofro o que lhes dói,

Por que engano ou que magia

A dor deles sempre foi

Minha dor de qualquer dia?

 

Se agora a dor não me atinge,

Sofro amanhã desde já

Porque a dor de agora finge

A dor enquanto a não há.

 

 

1066 - Razão

 

Da verdade à fantasia

Corre um pequeno senão.

E se alguém se degladia

O senão não discernia:

- É que todos têm razão!

 

 

1067 - Abrigo

 

Quero crer ser teu amigo

Sem saber nem quem serás:

Sou apenas um abrigo

E aqui estou sempre contigo

Mesmo quando nunca estás.

 

 

1068 - Sinais

 

Na aldeia, com oito anos,

Um garoto dá sinais

De que os anos são enganos:

- Um garoto de oito anos

Tem olhos de muito mais!

 

 

1069 - Desencontros

 

É porque nos encontramos

Constantemente, demais,

Que no fim sempre acabamos,

Dado este excesso de ramos,

Com desencontros reais.

 

 

1070 - Mutilado

 

A vida trnsborda tanto,

Deriva p'ra tanto lado

Que, para agarrar-lhe o encanto,

Só indo de braço dado.

 

Uma pessoa sozinha,

Pior que uma ilha no mar,

É apenas uma adivinha

Que se não vai decifrar.

 

Bem pior que um desterrado,

Que uma vítima da guerra,

Que uma injustiça que berra,

Homem só - é um mutilado!

 

 

1071 - Asneiras

 

As asneiras que se fazem

Não se fazem por demência.

Qualquer que seja a aparência,

Se algum dia nos aprazem

É só por sobrevivência.

 

 

1072 - Sofrimento

 

Vamos todos à buate,

Que nesta vida em que não

Há nada que a desate

O que importa é a diversão!

 

Embora, todos a par,

De cada qual o intento

O que logra seja dar

Dos demais co'o sofrimento.

 

 

1073 - Cor

 

Um homem tem sempre cor,

Não a que na pele acama

De que nem pode dispor.

Tem outra que é bem melhor,

- Tem a cor de quem o ama!

 

 

1074 - Fora

 

Quando alguém alguém inculpa,

Afinal não culpa alguém:

O que anda é a pedir desculpa,

Apontando para a culpa

Que é a culpa que dentro tem.

 

 

1075 - Sozinha

 

Um homem tem muitos filhos,

Cria legiões de amigos

A livrar-se de sarilhos,

Em busca de ter abigos.

- E depois nunca adivinha

Que a vida é sempre sozinha.

 

 

1076 - Poeta

 

Num poeta o que seduz

Não são propriamente as loas

Nem uma ideia que medra.

Um poeta acende a luz

No coração das pessoas

Nascidas p'ra ser de pedra.

 

 

1077 - Entranhas

 

Sento-me para escrever.

Que é que faz de mim sair,

Como é que de mim arranco,

Às entranhas de meu ser,

O poema do porvir

Por detrás da folha em branco?

 

 

1078 - Tiranos

 

Tiranos não se demitem,

Só no tiro dos canhões!

Que faz que não acreditem

Que já foram derrotados,

Quando por todos os lados

Morreram nos corações?

 

 

1079 - Foge

 

"Não deixes para amanhã

O que podes fazer hoje"

- Pode ser máxima vã,

Já que o tempo sempre foge.

 

"Dia de Santa Luzia"

- Diz-se na máxima inversa -

"Não faças, faz noutro dia."

- Só que é cara esta conversa.

 

O importante é não largar

Os gestos que mais nos contem

Se p'ra hoje, se calhar,

Já os adiámos ontem.

 

 

1080 - Já

 

Olho a Lua e as estrelas

E o pulso me recupera,

Não tanto por serem belas

Mas p'lo que nelas se dá:

- Com a eternidade à espera

E tenho tudo isto já!

 

 

1081 - Recordação

 

Na vida, qualquer acção,

O tempo de nós a afasta,

Por isso nunca nos basta.

 

Só a boa recordação,

Usada, nunca se gasta.

 

 

1082 - Oportunidade

 

Não é que os erros não contem,

Mas, como a vida nos foge,

Importa é aquilo que apontem:

- A oportunidade de hoje

Apaga-me os erros de ontem.

 

 

1083 - Exorcisa

 

Se em África houver trabalho,

Ela não vem para a Europa.

Se andar-lhes vazia a copa

É que nem um cheiro de alho

Lhes exorcisa o destino,

Aos despojados da vida:

Correrão, num desatino,

Ao falso céu que os convida.

 

 

1084 - Moral

 

A moral é sempre amor,

Amor doutrem. Só que então,

A harmonia ao nos propor,

Eu da situação senhor,

É amor-próprio em acção.

 

 

1085 - Problema

 

Quando algo nos corre mal,

Então temos um problema.

Se o não solvo tal e qual,

Um segundo junto ao tema.

 

Se descobrem a mentira,

Terceiro vem a caminho.

E o pendor nunca mais vira

Quando disto me avizinho.

 

A mentira me persegue

Muito mais a vida inteira

Do que o erro a que se segue,

Nuvem que foi passageira.

 

 

1086 - Animais

 

Alguns decerto rejeitam

Pertencer aos animais.

São como aqueles que vencem,

Depois tanto se convencem

Que hoje em dia não aceitam

Os velhos amigos mais.

 

 

1087 - Estrelas

 

As estrelas que há no céu

Poderão já ter morrido,

Que a luz que delas desceu

Continua a vir do olvido.

 

Podem todas já estar mortas,

Que ainda prosseguem seu fito:

Continuam a ser portas

Donde espreito o infinito.

 

E as pessoas que morreram,

Estrelas do coração,

As rotas por onde vieram

Temo-las aqui à mão:

 

Em nossos gestos e crenças

Aquilo que mais seduz,

Não são actos nem sentenças,

É o brilho daquela luz.

 

 

1088 - Maneiras

 

O homem faz as maneiras,

Importa que elas se domem,

Que as boas sejam primeiras.

Mas, quando elas são inteiras,

A meta faz que nos tomem:

- As maneiras fazem o homem!

 

 

1089 - Guerra

 

Quando a guerra se desata

Maior crise, se calhar,

Com as mortes se nos ata:

- Quanto mais pessoas mata,

Mais fácil será matar!

 

 

1090 - Mudança

 

Animais de hábitos somos,

Vivendo história e mudança.

Nosso reconforto pomos

Sempre de ordem na esperança.

 

Quando a confusão aumenta

Na história que se acelera

Não é de fora a tormenta,

Em nós é que ela prospera:

 

O mundo em conformidade,

Intrincado, continua;

Eu, se não tiver idade,

É que ficarei na rua!

 

 

1091 - Nova

 

Sob a roseta do sol

Jamais há uma ideia nova,

Já que desde o arrebol

Sempre o mesmo se renova.

 

Se as ideias pouco valem,

Dizê-las, menos ainda,

Que é que faz que os génios falem

À história deles provinda?

 

Génio é aquele que tira

Duma ideia mais de mil

E assim o mundo revira,

Faz com que outro se perfile.

 

De cada ideia colhida

Colhe tais implicações

Que dali a uma outra vida

Se medem as pulsações.

 

Assim sendo, o que há de novo

É sempre esta ideia antiga

De o génio chocar o ovo

Que ao mais além nos obriga.

 

 

1092 - Criatividade

 

De nada nada se tira.

Toda a criatividade

No velho sempre se inspira

P'ra gerar nova verdade.

 

Não é uma fuga à cultura

Mas uma oportunidade

De usá-la com tal finura

Que outro mundo nos invade.

 

A cultura é trampolim

E é também constrangimento.

Saltando nela é que, enfim,

Alcanço o voo do vento,

 

Mas só serei criativo,

Alçado pelos espaços,

Se o pensamento cativo

Liberto dos cultos laços,

 

Se no fim toda a cultura

Finto em voo tresloucado

E lhe cavo a sepultura

- Por encontrar o outro lado!

 

 

1093 - Esperança

 

O que um homem sempre alcamça

Não é sempre uma verdade,

Por vezes é o que o descansa:

- Confundir uma esperança

Com fundada realidade.

 

 

1094 - Curiosidade

 

A vida são desenganos

E esta verdade comove-nos:

Quais serão os seua arcanos?

- A curiosidade move-nos

E assim torna-nos humanos.

 

 

1095 - Mar

 

O mar são naus e caminhos,

O mar são velas e sonhos

E tem naufrágios medonhos

Mas com canela e cominhos.

 

O mar sempre contradiz

Dentro em nós qualquer declínio:

O mar é minha raiz,

É a raiz de meu fascínio.

 

 

1096 - Acreditar

 

Tanto pende a humanidade

Das crenças em que apostar

Que a primeira liberdade

Não vem das leis da cidade,

Vem de nela acreditar.

 

 

1097 - Ocidental

 

Nosso mundo ocidental

É o mundo dum alpinista

Que da cumeeira avista

O abismo inteiro do vale,

 

Cujos passos sem regresso

Têm de saltar em frente,

Correndo o risco confesso        

De morrer eternamente.

 

O problema é de saber

Se o nosso passo nos chega,

Se o pára-quedas navega,

Se em tal mar há um escaler.

 

À falta de informação,

Resta a previsão e a crença:

Se a fé morde o coração,

Atirar-me-ei sem detença.

 

Depois então se verá

Se o risco valeu a pena:

Se morrermos acolá,

Nenhum porvir cá se engrena;

 

Se, porém, sobrevivermos

Além do abismo cavado,

Retomamos noutros termos

O perfil de antes traçado.

 

Contudo, se a fé baqueia

No ânimo deste alpinista,

A montanha se incendeia:

Dele, nas cinzas, à vista,

Já que ali tudo se ateia,

Nem pegada que resista!

 

- De fé, pois, uma mão cheia

Nos apaga ou põe na lista

E o risco que nos ameia

Não tem fuga nem tem pista.

                                       

 

1098 - Ou

 

O autêntico eu do escritor

É o dele próprio ou o da escrita?

Neste é que aflora o valor:

Se aquele é quem vem depor,

Só a mensagem o habilita.

 

 

1099 - Inferno

 

O inferno serei eu?

São os outros? Somos nós:

Ninguém por fora o viveu,

Dentro é que nos furta a voz.

- Só que todos, a tremer,

Fogem de o reconhecer.

 

 

1100 - Experiência

 

Todos, dum ou doutro modo,

Nós teremos de aprender,

O saber jamais é um todo,

Está sempre a acontecer.

 

Aprender com a experiência,

Mas nem tudo à própria custa,

Que dos demais a vivência

Em mim também se degusta.

 

E, com a experiência alheia

Que não pago nem suporto,

Vai ficando a minha cheia,

Conduzo o barco a bom porto.

 

O prémio da sensatez

Deste esforço ponderado

É que é mais fácil de vez

E alegra mais o meu fado.

 

 

1101 - Charme

 

Charme, poder invencível

Que cativa num relance,

Do amor elevado ao nível,

Sem força dá quanto alcance.

 

Gratuito romper do dia,

Seduz tão completamente

Que ele jamais puniria

E desarma toda a gente.

 

Atinge sem nos ferir

E sabe ganhar batalhas

Sem morto algum produzir,

Sem vítimas, sem mortalhas.

 

Quem certo sucumbiria

Derrotado na refrega,

Faça do charme seu guia,

De si lhe faça já entrega,

 

Deixe-se vencer do charme,

Que jamais será humilhado,

Não há quem se arme ou desarme,

Nem derrota em nenhum lado.

 

Tão subtil é o parecer

Que ao charme melhor convém

Que aquele que o julga ter

Provavelmente não tem.

 

E assim, se sempre convém,

Nem tudo nele é virtude:

A vida alegra; porém,

Quando engana, desilude.

 

 

1102 - Principiou

                                                       

O homem principiou

Rompendo por estes chãos

Em busca dum ar mais puro

Quando, menino, tocou

Música com suas mãos

E nela ouviu o futuro.

 

 

1103 - Felicidade

 

Agarra a felicidade

Em qualquer tempo e lugar

E qualquer que seja a idade,

Que quem assim não a invade

Não vai mais ficar-lhe a par.

 

 

1104 - Litigantes

 

Repara nas lições de antes,

Sê cordato, que primeiro

O que importa é conseguir:

Por entre dois litigantes,

Discreto, sempre um terceiro,

No fim, dos dois fica a rir.

 

 

1105 - Relativo

 

Nunca conquisto mesada

Que me tenha por meu pé,

Vivo entalado no arquivo.

É que a vida não é nada

E, contudo, a vida é:

- Sou um nada relativo!

 

 

1106 - Compro

                                                                                                       

As alegrias da vida

Pagam-se na dor sofrida

E, se compro a liberdade,

Três vezes lhe pago o preço,

Em moeda de verdade,

Com a dor que lhe mereço.

 

 

1107 - Abismo

 

Na vida, quanto é mais doce

É também o mais amargo.

Ai, amor, se tudo fosse

A janela aberta ao largo,

Sem, no cume do planalto,

O abismo opor-se ao mais alto!

 

 

1108 - Pobre

 

A chave de abrir a porta

Não é o dinheiro que temos

Que sempre nos fica à justa.

Ser pobre que nos importa

Desde que nós nos amemos?

E a beleza nada custa!

 

 

1109 - Poesia

 

Poesia não é sonho,

Que será a poesia?

Mais que o real nela ponho,

Sonho não sendo, lhe imponho

Quanto o sonho acordaria.

 

 

1110 - Brilha

 

Se na vida nada  brilha,

Se tudo é apenas desdoiro,

Resta-nos a solidão:

Por isso é que qualquer ilha,

A quem foge à multidão,

É sempre ilha do tesoiro.

 

 

1111 - Preocupação

                                                       

Um homem que quer ser homem

Tem uma preocupação:

Rasgar trilhos para além

(Antes que as teias o domem)

- Pela sua própria mão

Sem pender de mais ninguém.

 

 

1112 - À beira

 

Se alguém vive lado a lado

Com um ente de excepção

É a pessoa derradeira

Acaso a ter reparado

Na prendada condição

Da jóia que tem à beira.

       

 

1113 - Tempo

 

O tempo não é uma praça,

É um itinerário louco

Cujo fim não adivinho.

Em cada dia que passa

Fica-nos de nós um pouco

Perdido pelo caminho.

 

 

1114 - Apelo

 

Donde vem o estranho apelo

Que fundo intima quenquer?

No mundo nada há mais belo

Do que uma bela mulher

- E a mulher sempre inicia

A nova etapa da via!

 

 

1115 - Ilusão

 

A ilusão da mão humana

Sei que é apenas ilusão

E que no fim  de semana

Nos fica vazia em vão.

 

Mas é desta mão vazia,

Por muito indigno que seja,

Que eu procuro a companhia

De que vazio me veja.

 

Porque a única e perfeita

Companhia que não tenho

É aquela que ali me espreita,

Se promete e jamais ganho.

 

 

1116 - Marcos

 

Quando eu tinha meus quinze anos

Era tudo um céu aberto,

Não havia desenganos,

Via as estrelas de perto.

 

Quando rompi os arcanos,

Ficou-se-me o céu deserto:

Ao crescer, são desenganos

O custo de estar desperto.

 

Mas minhas noites de antanho,

Romanescas, recamadas,

São de saudades meu ganho,

São meus marcos nas estradas.

 

É que hoje, quando olho o céu,

Vejo lá quanto em mim via

E o céu perdido é que é o meu

Novo céu que se anuncia:

 

A quem morre no caminho,

De toda a vida ignorado,

Traz de novo o pão e o vinho

Do viandante o cajado!

 

 

1117 - Quando

                                                                                                                                       

Quando é que eu entenderei

Que não ter nada era o menos,

Visto que existo e que o sei,

Por mais que sejam pequenos

Os feitos que somarei?

 

       

1118 - Ídolo

 

Era um ídolo a seguir.

Como os ídolos, porém,

Era um homem de mentir:

- Bem pequeno, a quem o vir,

Ante a missão que detém.

 

 

1119 - Tragédia

 

Quando a tragédia nos toca,

A dor fixa-se ao passado.

Em carne viva, o que evoca

Não se lhe mexe sem dor:

Não pode então ser tocado

Nem por um gesto de amor.

 

 

1120 - Amigos

 

É o amadurar dos trigos

Aloirando um arrebol,

A pingar mel do cortiço,

A amizade dos amigos,

Um longo raio de sol

Onde me deito e espreguiço...

 

 

1121 - Serranias

 

As serranias são ternas,

Luzem no meio do escuro:

Cura de neves eternas,

De bom senso e leite puro,

- Onde até se nos esticam

Da alma as pernas que nos ficam!

 

 

1122 - Ilusão

 

De ser útil a ilusão,

Consistindo num vazio,

A sério me tira o frio:

Livra-me da solidão.

 

Não por encontrar alguém,

Que a solidão é de dentro.

É que noutrem me concentro,

No espelho que de mim tem.

 

Ser solitário é o destino

De que ninguém se liberta,

Mas com outrem quando atino

Fica a porta entreaberta.

 

 

1123 - Sou

 

Não irei ser o que sou,

Já que ser quem sou seria

Voar a vida num voo

Que me proibe o vigia.

                       

Serei eu quem joga o trunfo,

Não vá traçar-me ele a rota,

Embora assim meu triunfo

Seja afinal a derrota.

 

Bem não queria dormir,

Porém, vou adormecendo...

Mas como ir, como ir,

Se indo assim eu só me rendo?

 

 

1124 - Gosto

 

Gosto da vida, da vida

Pela vida, sem mais nada,

Romaria rumo à ermida

No alcantil alcandorada.

 

Como quem anda num jogo

Maravilhoso qualquer,

Em redor ateio o fogo

E não quero adormecer!

 

 

1125 - Pequeninos

 

Todos somos pequeninos

Com nossos baldes de praia,

Enchendo de desatinos

A maré que neles caia.

 

E afinal nem sequer vemos

Quanto estamos mergulhados

No mar de que carecemos:

Vida por todos os lados!

 

 

1126 - Adivinho

 

É mais fácil discutir

O fado de homens no mundo

Do que algo vir a cumprir

Do destino que, fecundo,

Me obriga a ser adivinho

Para acertar meu caminho.

 

 

1127 - Ano

 

Cá vamos, ano após ano,

Somando a perda e o ganho,

Engano mais desengano,

Buscando o que nunca apanho.

 

És, nesta busca, o meu braço,

A fonte de quanto é sonho,

De meu repouso o regaço,

A força de que disponho.

 

És, porém, para além disto,

Contra qualquer vitupério,

A persistência que, insisto,

Nos achega do mistério.

 

E tanto de ti dependo,

És tão eu, tanto sou tu

Que até já nem me defendo,

Sou o meu próprio tabu.

 

Se na entrega sem reservas

Em ti me perco, meu bem,

Afinal tu me preservas,

Senda aberta para além.

 

E em ti é que principia,

Na ternura contra o olvido,

A aurora do novo dia:

- Tu és já o desconhecido!

 

 

1128 - Perfume

 

Não te ofereço perfume,

Que o perfume que ofereço

Não me esqueço que é teu lume

A que em teu cume me aqueço.

 

Contigo assim compartilho,

Nesta fogueira, o calor

Mais, se houver noite, o teu brilho,

Gravetos de nosso amor.

 

 

1129 - Máquina

 

Uma máquina era um sonho

Feito carne por alguém.

Em tuas mãos o deponho

Para que sonhes também.

                                                                       

Sonho materializado,

Ao depô-lo em tua mão

Sei que irá gerar ao lado

Os mais sonhos que virão.

 

 

1130 - Pertence

 

No fundo só nos pertence

O que as pessoas e a vida

Reconhecem que nos vence:

Uma voz reconhecida.

 

Se tivermos um milhão

Debaixo do travesseiro,

Por muito que fique à mão

Fico sempre sem dinheiro

 

Se ninguém de tal souber.

É preciso que me cobres

A dor de me fazer ser,

Senão somos sempre pobres.

 

 

1131 - Margem

 

Duma margem já partimos,

À contrária não chegámos

E a ponte que assim cobrimos

Atrás deixa o que já vimos,

Para trás já nem olhamos.

 

Esperamos atingir

A margem que fica além

Escondida no porvir.

Neblina que a vens cobrir,

Que a não deixas ver também!

 

Uma vez ela varrida

Nem mesmo sabemos já,

Já que uns morrem na corrida,

Outros cansam-se da vida,

Que é que ali nos surgirá.

 

É a margem inatingida,

Essa margem da coragem!

Aqui vamos na subida

Da ponte que só tem ida:

- Ficamos pela viagem!

 

 

1132 - Chegar

 

Vamos todos na corrida

Sempre à espera de chegar,

Na corrida toda a vida,

Em todo o tempo e lugar.

       

Não sei onde nem sei quando,

Tão depressa ou devagar

Como acordado ou sonhando,

Também eu irei chegar.

 

Sei lá onde fica a meta!

Sei lá bem porque corremos!

Só sei a aposta concreta:

Um dia lá chegaremos!

 

 

1133 - Livro

 

Atrás das capas dum livro,

Quantas horas de trabalho,

Quanta dor de que me livro

Nas cartas deste baralho!

 

Aquilo não é papel,

É sangrenta carne viva,

É a paixão com que, a granel,

O autor dentro nos cativa.

 

A montra não embeleza

Se nela se contivera

A emoção que ali sofrera:

- Explodia com certeza!

 

 

1134 - Passado

 

O passado mora ao lado,

Nos caboucos da avenida.

Ninguém esquece o passado,

Sobre ele constroi-se a vida.

 

Assim, em qualquer momento,

Dele temos o sinal:

Tão discreto como o vento,

É, na verdade, imortal.

 

 

1135 - Percurso

 

Julgas que ao trocar cenários

Também a ti trocarias,

Refarias inventários

Do percurso de teus dias?

 

Tudo é possível na vida,

Na busca do que te apraz

Menos virar a corrida

Ao que vais deixando atrás.

 

Múltiplos são os caminhos,

Todos julgam que vão bem,

Mas dos anos os cadinhos

Todos enganam também.

 

Desvairado, na procela,

Sempre em frágil escaler,

Quem não vai mirando a estrela

Buscando retroceder?

 

Porém, sempre atrás de nós,

Os actos nos acompanham,

Erguem muros, atam nós,

Hoje ainda nos desenham.

 

Ninguém anula o passado

Nem lá vai poder voltar.

Inexorável, tal fado

Iguais nos tem no lugar.

 

No mais, todos diferimos.

Fica só a fraternidade

Destes passos sem arrimos

A nos impor a igualdade.

 

 

1136 - Liderar

 

Se saudável o teu filho

Pretendes, dá-lhe alimento.

No que investes o sarilho

Prevines com teu intento.

 

É no amor e na atenção

Que lhe dedicas agora

Que a força do coração

Por dentro dele melhora.

 

Aumentas-lhe a confiança

Que vai abrir o lugar

Ao que tão pouco se alcança:

A força de liderar.