DÉCIMA REDONDILHA
CADA VEZ MAIS SOLTO
Escolha aleatoriamente um número
entre 1137 e 1288 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu da de hoje.
1137 – Cada vez mais solto
Cada vez mais solto,
Mesmo em pé quebrado,
No canto exaltado
É a mim que ao fim volto.
1138 - Receio
O meu receio, mulher,
É, de repente, um par de asas
Em teus ombros florescer
E do fogo em que me abrasas
Nada mais remanescer
Que a solidão destas casas
E tu, longe, a amanhecer
Noutro mundo a que pertences...
- E assim, vencida, me vences!
1139 - Espada
Só o amor abre uma estrada
A que o coração adere.
O rei vence pela espada
Mas a espada é o que nos fere
E assim fechamos a entrada,
Jamais nos tem como quer.
A espada encurrala e aperta;
O amor solta-nos: liberta!
1140 - Jovem
Jovem, o orgulho imagina
Que os leões nos obedecem,
Que os olhos ditam a sina
A quantos nos estremecem.
São, depois, os desenganos
O que nos fica do anos...
Sábio é ter a humildade
Que os bem provados arcanos
Nos ensinam com a idade.
1141 - Controla
O destino de milhares
Controla que nunca viu,
Tão rico que não tem pares,
A terra e o céu removeu
Mas, por fados singulares,
De ansiedade se tolheu.
Por isso nem se conhece:
- Dos seus e de nós se esquece!
1142 - Gratuitamente
Com o dinheiro eu comprava
Tudo quanto desejava.
Mas em cada aquisição
Gratuitamente me dão
O que jamais eu pedira
E que dentro corroía,
E em minha alma se embaíra
Lento e lento, dia a dia.
Tanto assim me transformou
Que a compra não é, por fim,
A que comecei por mim:
- A mim é que me comprou!
1143 - Incapazes
Incapazes de fruir
Quanto vem do mundo novo,
Adiamos o porvir
Só porque ele é diferente.
Morre em mim tudo o que inovo
Por não haver quem o sente.
Porém, quando alguém explica
O que isto é, do que se trata,
Tudo então se simplifica,
Já a novidade se acata.
Não confiamos nos sentidos,
Pendemos do que outrem diz.
E assim é que de mim fiz
Mera voz de ecos perdidos.
1144 - Livros
Livros, montes de papel,
Donde vos vem tanta vida?
Vem da magia do anel
Que a folha ainda não delida
Traça desde o meu tropel
Ao repouso da guarida
Onde visto vossa pele.
Saio de mim, entro nele:
O livro abre-me a avenida
Por onde o sonho me impele
E além-mundo me convida!
1145 - Sacrifica
Não é herói quem sacrifica
A vida pelo seu povo
Se a só causa identifica
A um princípio de renovo:
Mais covarde do que herói
Normalmente é o que o pratica,
Que em rebanho sempre foi
Quanto agir o justifica.
Lutar pela vida, em norma,
Conduz a perder a vida,
Mormente se toma a forma
De crença ou bandeira erguida.
Viver a vida nas massas
Não é nunca heroicidde,
Nem se nisto a morte passas,
Que perdeste a identidade.
1146 - Luta
Sempre é a verdadeira luta
Por vida mais abundante
E jamais a vã disputa
Do traidor que hoje disfruta
Do que iludiu desde infante.
Seguem-no milhões diante?
- Os passos mostram a fruta:
Um pigmeu não é um gigante.
1147 - Permanente
Nesta luta permanente
Da vida por ser mais vida
O que se torna premente
É o alimento, a bebida,
O trabalho. E é tão banal
Que não se encontra semente
Do que nos dava o sinal
Que faria de nós gente.
1148 - Obra
Um autor escreve uma obra,
Com ela fugiu à vida.
Como a vida ali desdobra,
A uma outra vida convida.
Volta ao ponto de partida,
Que a si fugiu, não ao mais.
Inadaptado ademais,
Agora é a vida, por cima,
Comungando-lhe os sinais,
Que vive como obra-prima!
1149 - Peso
Este silêncio entre nós
É o peso que as coisas têm
À procura de ter voz.
E o peso em nós as retém.
Não conseguirão sair
Se as não tornarmos pequenas:
Vamos a fome sentir,
Do frio fremir as penas.
Readaptado ao cotio,
Sorvendo o calor do sol,
É que preencho o vazio,
De novo em mim tudo bole,
Brinca uma réstea no friso,
Por mim dentro estala um riso.
Este silêncio entre nós
É o peso que as coisas têm
À procura de ter voz,
De falar por nós além.
1150 - Medo
Desvenda o segredo,
Espreita nas luras!
Quando alguém tem medo
Não fica às escuras:
Analisa bem,
Tenta compreender.
- Só depois alguém
Podes socorrer.
1151 - Pé
O mundo não é perfeito,
Por vezes é monstruoso.
Alegrias, a despeito,
Tem e momentos de gozo.
Todos eles ali estão,
Não pedem actos de fé,
Porém, com a condição
De nos mantermos de pé.
1152 - Olhos
As coisas não são as coisas,
Nem sequer estão presentes:
Os olhos que nelas poisas
São olhos de com quem vives
Mais os dos que estão ausentes,
Tais nas coisas os cultives.
As coisas não são as coisas,
São quanto nelas revives.
1153 - Crises
A economia tem crises
E que são crises de excesso,
Ao contrário do que dizes:
É quando expansão lhe peço
Que lhe desgraço as matrizes.
Só lhe venço as cicatrizes
Se contenção lhe mereço.
1154 - Visita
Os velhos amigos têm
Tendência p'ra aparecer
Sem sequer nos avisar,
Quando embrenhados nos vêem
Numa outra coisa qualquer:
A felicidade, a par,
Como nossa velha amiga,
Só vem quando a não persiga.
1155 - Peso
Quando se afastam calados
Transportando o próprio peso
Sobre seus ombros vergados
É que, assim bem humilhados,
Ultrapassam o desprezo
Que de si mesmos merecem
- Os que do perdão se esquecem.
1156 - Somos
Somos fortes, abalamos
Montanhas com nossos braços,
Mas se uma topada damos
Ficamos logo em pedaços!
Generoso, o coração
Partilhamos com um cão
Por um pedaço de fome.
Mas, enquanto ele nos come,
A um órfão faminto e peco
Roubaremos o pão seco.
Quão grandes somos! Tocamos
Co'a cabeça nas estrelas!
E tão baixos, tocaiamos
O excremento das cadelas!
Somos antigos e vamos
Ao passado mais distante
E tão novos que nem damos
Por quem nos está diante.
Tão intrépidos, morremos
Por um pano atado a um pau!
Covardes, nem passaremos
Nosso coração a vau!
Somos tudo e somos nada,
Parasitamos o mundo,
Hesitamos na passada:
- Quem seremos nós no fundo?
1157 - Professor
Profissão de professor
A agir dentro das crianças,
A fermentar o futuro,
De quem encanta é o valor
Mesmo quando a não alcanças,
Discreta agindo no escuro.
Ausência sempre presente,
Nem dela ouvimos falar
Quando nela tudo assente:
Respiramo-la como ar!
1158 - Cumulativas
Crês que os nervos são pequenos,
Que as perdas são relativas.
As horas de sono a menos
São sempre cumulativas.
Sempre os minutos são poucos,
Da primavera ao inverno,
E fazes ouvidos moucos?...
- Acabas no sono eterno:
As horas assim perdidas
Pagam-se sempre com vidas.
1159 - Pérola
A pérola de cultura
É o que está dentro de ti
À espera que a tua altura
Mostre de vez, sem usura,
Se em ti vales o que vi.
Tua ostra é o mundo inteiro,
Cultiva-o, que o mundo assim
Será mais que o teu dinheiro,
Serás tu até ao fim.
1160 - Adestrar
Experimentar ideias
Como adestrar instrumentos,
Se nos faz perder as peias
Também nos prende nas teias
Dos levados a tormentos,
- Números sem sentimentos
Perdidos nestas colmeias!
1161 - Árvore
Árvore do bem e mal,
Como podes ser só uma?
A mesma seiva, tal qual,
E as raízes por igual
Nos mergulhando na espuma
Do sangue e do coração.
- Bem e mal um doutro, em suma,
Como se distinguirão?
1162 - Escória
O estranho da escória humana,
Como de tudo o que é fútil,
É que, quanto mais inútil,
Mais se defende e me engana.
E eu fico sem a certeza
Se é o inútil ou é o útil
Que a gente por fim despreza.
1163 - Grito
O grito da solidão
Do fundo de qualquer um,
Por mais que do mundo irmão,
Não despoleta eco algum...
É o grito a pedir perdão:
Perdão por sonhar o infindo
E falhá-lo, o prazo advindo.
1164 - Espanto
É no espanto que começa
Todo o sonho e fantasia.
Também é a primeira peça
Em que a angústia principia.
Se não me espantar de nada
Toda a dor anularia,
Mas começava a agonia
De parar a caminhada.
Entre a noite e a madrugada,
Onde escolher o meu guia?
1165 - Medida
Cultivar a vida
P'ra que se dilate
Nunca a vida abate.
Em toda a medida
A vida é combate
Em que as armas são
Arte e coração.
1166 - Disciplina
Com pensada disciplina
A arte condensa o esforço.
Com penúria nos inclina
A tudo quanto domina
A sobriedade: o escorço
Da obra que se quer divina,
Quando vivemos a sina
De só dela ter remorso.
1167 - Pobres
Todos que se julgam nobres
E não têm nobreza de alma
Desprezo-os porque são pobres
A ponto de que lhes cobres,
Sem que eles percam a calma,
O que cada qual mais ama,
Tanto o desprezam na lama!
1168 - Espada
Palpo a cabeça dorida,
Mancho os meus dedos de sangue,
Mas, se me doi a ferida,
Mais dor de alma, mais exangue
É não encontrar guarida
Entre vós que me feristes
Sem tentar compreender-me
E o sonho comum traistes
De nosso convívio inerme.
Quem, após a derrocada,
Alça a mão sem uma espada?
E quem, ante este sinal,
Fecha um punho sem punhal?
- A dor que fundo mais dói
É o possível que não foi!
1169 - Dói
O ponto mais doloroso
É que quem me proporciona
O amor mais delicioso
Logo além revela à tona
A existência da mentira
E a capa do fingimento
Mesmo que p'ra que não fira
O melhor do sentimento,
- Que ninguém é do tamanho
Do sonho com que me amanho
E assim vou agradecer
Tal traição que me faz ser.
O que doi é a maravilha
De a mentira ser verdade
E de nos abrir a trilha
Em que, rumo à imensidade,
A mentir nos construimos
E, ao tropeçar, não caímos:
Por aí mesmo é que vamos
E a verdade ao fim achamos.
Que mistério é que preside
À insensatez desta lide?
Quem me garante que ao fim
Não me perderei de mim?
Quem vou ser, ao fim e ao cabo:
Serei Deus ou o Diabo?
Que é que me mantém de pé?
Serão ocos sonhos meus?
No fundo, é uma aposta: é a fé
Que diz que ao fim serei Deus.
Na duplicidade terna,
É uma ilusão derradeira
A que em vez de vida eterna
Me pinta como moderna
A mais antiga canseira:
A de espreitar ao postigo,
Sem saber nem o que digo!
E, apesar de marcar passo
Sempre à espera dum abrigo,
O que nisto infrene faço
É riscar no tempo um traço
Pelo qual sempre me sigo:
Vergarei um dia o espaço
E terei o que persigo,
Atingirei o tamanho,
Tamanho do meu abraço,
Tamanho que hoje não ganho
Na espera deste compasso.
Ninguém disto desespera,
Corre o grito de era em era:
- Enquanto não ocorrer,
De pé estou, daqui não passo,
Morra lá quanto morrer!
1170 - Solitário
Súbito faísca o rosto
Duma alegria secreta
Mas ninguém vê o pensamento:
Solitário no seu posto,
Autoridade secreta,
Cada qual doma o elemento
Em que ele salta por vezes,
Pois cada qual é o pastor
Cujo cajado põe ordem
Nas desordenadas reses
Dos pensamentos que acordem
A promessa em nós do alvor.
1171 - Memórias
Um homem de si transborda
Na recordação de alguém
Quando aqui e além acorda
Memórias que dele têm.
Assim se espalha no mundo
Como uma alga semeada
E o solo torna fecundo
Desta presença velada.
É nisto que um homem é
Mais que a planta de seu pé.
1172 - Caminho
O que mais me deixa absorto
Quando alguém morre é o caminho
Unir-se ponta com ponta:
Conduzido pelo morto
Como um rio, o que adivinho
É ser lixo em qualquer porto,
Que qualquer um tanto monta.
1173 - Evento
Um evento assim tão grave
Não pode ser verdadeiro
Dum momento para o outro!
Ontem ainda, grácil ave,
Contava um conto brejeiro.
Como falta agora ao encontro?!
Um telegrama não chega,
Mesmo neste assunto imundo,
Só porque uma morte adrega,
Para assim mudar o mundo!
1174 - Porta
Quando alguém morre, uma porta
Durante uma vida aberta,
Aos frios constante alerta,
Fecha de vez a comporta
E onde se gera o vazio
Ergue-se, triste e tranquilo,
Como na esteira dum rio,
De saudade um brando fio
Que às aves dá um novo trilo.
1175 - Passo
Um passo à frente de alguns,
Um passo atrás dos demais,
Não seguirei com ninguém.
Nesta tarde de jejuns
Tropeçarei nos portais,
Mesmo a morrer sou alguém:
- E ninguém mais, ninguém mais,
Ninguém mais serei também!
1176 - Luz
Sonhos são iluminados
Pela luz que lhes é interna.
Quando o sol entra p'los lados,
Pelos buracos cavados,
Esvai-se a luz que era eterna
Para então, esvaziados,
Os sonhos nesta lucerna
Viverem arremedados,
Mesmo quando a luz madrasta
Os põe mais iluminados:
- É que luz só não lhes basta!
1177 - Morte
O ser trágico da morte
Só se pode compreender
Se se quer uma outra sorte:
- A vida feliz viver,
Qualquer que seja meu norte,
Sem perder meu passaporte
Nem um corte me abater.
1178 - Magia
Todo o truque de magia
Aquilo que tem de mágico
É o que não é mas seria
Se não fora a fantasia
Cometer um erro trágico.
Dista um adulto da infância
Dum simples erro a distância
E ao corrigi-lo pagamos
Por longas dezenas de anos
O que em tão poucos sonhámos
E depois são desenganos.
Só que a adultez é talhada
Deste sonho feito carne
E algum dia, revoltada,
Ainda há-de rasgar a estrada
Em que a magia se incarne.
Sem truque, mas de verdade,
Embora não adivinhe
Nem como nem com que idade
Deste Universo cozinhe,
Com que espécie de vitualhas,
Um mundo de maravilhas
Neste que é de maravalhas.
Sei que as magias são filhas
Do reino do coração:
- Um dia hão-de estar à mão!
179 - Imãos
Tu sofreste e eu sofri,
A dor fez de nós irmãos.
Nosso pensamento aqui
Se acresce por nossas mãos:
- Selou-nos com o sinal
Que exorcisa todo o mal.
1180 - Jamais
Se ouvidos der à razão,
Eu jamais namoraria,
Jamais amigos faria
E jamais me meteria
Em nenhum negocião.
Então deviria cínico
E o disparate é tamanho
Que me torno um caso clínico.
E, afinal, qual é meu ganho?
Para talhar meus inícios,
Indómito hei-de saltar
E minhas asas ganhar
Ao descer nos precipícios!
1181 - Causa
Quando por uma causa perdida lutamos
Com toda a força nós ganhá-la costumamos.
Os que refutam esta opinião
Como optimista então me apodarão.
Quem tem razão é sempre o pessimista,
Mas que prazer traz seu ponto de vista?
Ser optimista é o porvir ver incerto
E ter medidas p'ra que fique perto.
1182 - Entusiasmo
Nem o fogo na floresta
Incendeia como a festa,
Nem o prazer que há no pasmo
Corre como o entusiasmo.
Ele remove montanhas
Quando a força dele ganhas
E até cativa, entrementes,
Os menos inteligentes.
A fim de cada milénio
Ele foi nele o seu génio,
Marca de sinceridade
Sem a qual qualquer verdade,
Nem que ao vento espalhe a trunfa,
Na terra jamais triunfa.
1183 - Mais
Como o amor fica mais belo
Sempre enquanto os anos passam!
Como o encanto e a ternura
Se tornam da vida anelo!
Como juntos ultrapassam
Quer o humor, quer a finura,
Mesmo o esplendor de saber!
O maior de quanto houver
Será o riso das crianças,
A amizade dos amigos,
À lareira as falas mansas,
A flor a espreitar nos trigos:
Música que se ouvirá,
Em surdina, em tudo o que há...
1184 - Partilhado
Pode ser uma anedota,
Do trabalho um mexerico...
Um casal, quando se cota,
Se quiser devir mais rico,
Atende a si um bocado:
O que lhe importa é o sentido,
O momento partilhado,
Mais que o tema debatido.
1185 - Sua
O talento nunca basta
A garantir o sucesso.
O empenhamento que arrasta
É que é o metro do que meço,
Que a qualidade final
Provém do trabalho intenso
Em que o produto real
Sua tudo quanto penso.
1186 - Confiante
Sempre sou mais confiante
Se um momento de sucesso
Me apela a que me levante.
Quando falho é que tropeço:
Num momento de falhanço
Perco-me e já não me alcanço.
Talho, porém, minha sorte:
Basta a mim tornar presente
Todo um êxito evidente,
Que daqui saio mais forte.
1187 - Cabeça
A cabeça é um maquinismo
Do qual penso, se calhar,
Que jamais cobre o abismo
Que em nós ocupa o lugar
Entre o que penso pensar
E o vulcão muito mais denso
Que será pensar que penso.
1188 - Rio
Ao tomar conta dum rio,
Dou-lhe amor, dou-lhe carinhos.
Se a vida está por um fio,
Se os vinhedos murcham vinhos,
O rio a que me confio
Cumpre, sereno, as promessas,
Toma conta dos vizinhos,
Dá-te quanto tu lhe peças.
1189 - Fome
Sempre houve fome no mundo.
Não era o mundo da fome
Que o planeta hoje consome
Na enorme vaga de fundo.
Hoje importa é que se tome
No seu sentido profundo
Que o faminto não é imundo,
- Que cada qual é o que come!
1190 - Sentido
Para que é que serve a vida
Se a vida perde o sentido?
Já não trepo na subida,
Sem chegada nem partida
Não há lugar para a ida,
Nenhum rumo lhe é devido.
Os caminhos por onde ia
Já não têm fantasia.
Na parada a marcar passo,
Não há régua nem compasso
Que me trace uma esquadria.
No movimento perverso
Morre qualquer poesia,
Já não chego a nenhum lado,
Sou verso de pé quebrado,
Com nenhum outro converso.
Para que é que serve a vida,
Se a vida perde o sentido,
Senão p'ra, desiludida,
Regressar ao eterno olvido?
1191 - Envelhecer
Descubro-me a envelhecer
Quando sei qual é o caminho
E com todo o meu saber
Um outro além adivinho.
Não me fechando ao porvir,
Mesmo assim não quero ir,
Já que amanhã amanheço
Mais velho do que começo.
1192 - Comuns
A amizade se baseia
Nos interesses comuns.
Se é difícil vir à teia
Qualquer um por quem se anseia,
Se os laços forem nenhuns,
É bom que te não disperses:
Um interesse cultiva
Que a comunhão torne viva,
Que à amizade dê alicerces.
Verás, tudo então recresce
E um milagre te acontece.
1193 - Pressão
Sofremos tanta pressão
P'ra sermos bem sucedidos
Que a felicidade então
São só produtos sofridos,
Como um carro, um bom talher,
Coisas que temos de ter.
Felicidade é uma coisa?!
Se não olhas para ti,
Se o sentido em ti não poisa,
Nenhuma felicidade
Te pode restar aqui.
Pois ser feliz de verdade
É acolher-te e saborear
Em tua profundidade
Teu momento e teu lugar.
1194 - Selvas
Ser feliz não são os ramos
De algo que nos acontece,
É o modo como lidamos
Com as selvas que topamos
Que nos aquece e arrefece.
Encontrar o positivo
Como a humilde qualidade
De quanto for negativo
É que torna o gozo vivo.
E uma contrariedade
Tornar-se num desafio,
Eis a aventura em meu rio.
Desejar o que não temos
Nos despencará dos cimos.
Aquilo que possuimos
Melhor apreciaremos
Se soubermos, afinal,
Que isto é que nos cura o mal.
1195 - Sobreviver
P'ra sobreviver, um homem
Tem de aprender duas frases:
Pede uma o que os homens comem;
Com a mulher faz as pazes
Outra, ao confessar que a ama.
Se duma tem de abdicar,
As duas juntas acama
Na segunda, ao murmurar
Quanto o amor por dentro inflama:
- Se o sussurra a uma mulher
Irá dar-lhe ela o comer!
1196 - Deus
Se Deus não existir ou se for distraído
Não tem inventariadas as nossas acções.
Não temos de atender a quanto é
aborrecido,
Fica-nos a consciência dos actos vilões.
Na vida ocorreriam carnavais de corsos,
Já que há gente demais que nunca tem
remorsos!
Ou são mesmo sadios, ou não têm moral,
Já que esta provirá do convívio entre
gentes
Ou das superstições, preconceitos, sinal
De que a moral não vem de quaisquer sumos
entes.
Porém, se não há Deus, como é que existe
tudo?
Esbarramos aqui num fatal ponto morto.
Porém, se Deus existe, como é que me iludo
Sem saber quem o cria no vazio absorto?
Da vida assim cirandam estes alcatruzes
De tal modo enredados nesta insegurança
Que as fés trazem cegueiras, já não nos
dão luzes,
E a esperança jamais, jamais se nos
alcança.
1197 - Divindade
A ideia da divindade
É tão velha como o homem,
Não houve necessidade
De ninguém no-la ensinar.
Os homens crêem como comem
Em todo o tempo e lugar,
Sem o terem de aprender.
Nasceu com seu próprio ser,
São condições sem as quais
Não nos restam nem sinais
De poder sobreviver.
1198 - Esperas
A vida é feita de esperas.
O tempo, como pará-lo,
Recuá-lo às idas eras?
Em vão nos fascina o halo
Das velhas recordações,
Apenas dão o tamanho
Da caminhada perdida,
Das fadigas e tensões.
O nosso diário ganho
É do desgaste a medida,
Perde-se e não recupera:
- A vida é intérmina espera!
1199 - Casal
No passeio, rua abaixo,
Um casal, outro casal...
Em toda a rua o que eu acho
É uma cadeia de pares:
Distintivo mundial,
Não há rumos singulares.
Na cidade, no país,
Em todos os continentes,
Ininterrupta, condiz
Com a lei do que é feliz:
Uns aos outros ser presentes.
Mais vale mostrar os dentes
Num jeito de predador
Que não conhecer o amor,
Que de vez viver ausentes
Sem ter doutrem o sabor.
1200 - Imunizar
Quantas vezes uma vez
Chega para imunizar
Um amor que se desfez!
Quantas irão ter lugar
Para deixar de sonhar
Que com um pouco de esforço
Os cornos à sorte torço
E que assim trarei o bem
Que à humanidade convém?
O que pela história vedes
São hesitantes passadas:
São as nossas cabeçadas
Das eras contra as paredes!
1201 - Sábio
Que nada tem importância
É a sabedoria do sábio
E a nada dar relevância
É a palavra de seu lábio.
Porém, se sábio é saber
Que a vida não tem sentido,
Dar-lhe um sentido qualquer,
Mais do que saber viver
É atar o fio perdido.
Além de todas as penas,
Mesmo se a atitude mente,
Agora não sabe apenas,
Agora até o sábio sente!
1202 - Náufrago
Um náufrago no mar
Onde só existem naufrágios,
A nau de meu navegar
Sofre de eternos presságios:
Das Índias sempre em demanda,
Eternamente naufraga
Na interminável procura
E a busca inútil comanda,
Como todas, esta praga
Para a qual jamais há cura.
1203 - Mentir
Se na vida estamos sós,
Não é possível mentir:
Ninguém espera por nós,
Ninguém vamos iludir.
Se outrem não há p'ra enganar,
Não lhe posso causar dano:
- Posso a mim ludibriar
E este é que é o maior engano!
1204 - Uso
O uso da convivência
É o pior de qualquer uso:
A amizade perde a essência,
O amor é conveniência,
Tão coçados que os recuso.
Sem sabor, sem colorido
Que merece ser vivido?
1205 - Transitória
Toda a vida é transitória.
Por transitória que seja,
Conta, porém, uma história
Em que basta que se veja
Seus bastantes atractivos
P'ra nela encontrar motivos
De que vale ser vivida.
Haja ou não uma outra vida,
Qualquer que seja a promessa,
Importa que aqui se meça
Que esta etapa é inelidível,
Vale por ela e sem mais,
Só que lhe acrescem sinais
De um Além ser atingível.
Não aqui (não lhe convém),
Não agora, que a demora:
- É um eterno que não tem
Ponteiro que marque a hora!
1206 - Cegas
Dizes-me que eu ando às cegas?
É que eu vou um pouco à frente
E ao redor de toda a gente
É uma treva que não negas
Que o passo nos põe tremente.
- Só que o rumo segue a luz
Que por dentro nos conduz!
1207 - Terra
Se a terra tem tais matizes
Que nela os membros enterro,
Mergulho nela as raízes,
Não lhe tolero um aterro
Quaisquer que sejam as crises,
- Por ela então vou sentir
Que vale a pena morrer!
Não há, porém, um devir,
Em um momento qualquer,
Por mais sagrado que seja
O meu mais caro lugar
- Que funde que alguém se veja
Por ele vir a matar.
1208 - Mulheres
Ai estas nossas mulheres,
Com mãos duras de trabalho
Sem meiguice para a noite!
Mãos que ladram aos talheres
Enciumadas do malho
Onde algum homem se afoite.
Mulher cara de odalisca
Com coração de sereia
De cujas mãos não faísca
Lume que a paixão ateia.
Mulheres que tanto se ofendem
Porque suas mãos não prendem!
E o homem sempre a tender
A espreitar pelos desvãos
Só porque o não conseguem ter
Preso, preso aquelas mãos!
1209 - Coragem
Nós nunca temos coragem,
Meia coragem vivemos.
Por medo é que todos agem,
De covardes, na viagem
Que na vida mais tememos.
Medo de que nos condenem,
Medo do maior opróbrio
Por que mais culpas se penem:
- O condenar-se a si próprio.
1210 - Culpa
Ninguém aceita ter culpa
Das coisas más nem das boas.
Quando alguém pede desculpa
De se queimarem as broas
É que, afinal, não se inculpa.
Não é que pretenda loas:
- A culpa mata as pessoas!
1211 - Lavar
Ajudar uma pessoa
E depois lavar as mãos
Não é que seja acção boa.
Por muito que isto nos doa,
Se entrámos pelos desvãos
Onde se perdeu alguém
Em busca de seu confim,
Tem de se ir até ao fim.
Pior do que não mexer
Em quem perdeu seu lugar
É só de conta fazer
Que mexe p'ra o abandonar.
1212 - Viagem
Quando acaba uma viagem
A viagem não acaba:
Os sonhos todos reagem,
Repetem cada paragem,
Sobre nós sempre desaba,
Tais os meandros da mente,
Cada passo eternamente.
1213 - Convencer
Quando os pais a desaprovam,
A criança sobrevive
Mas os gestos que a renovam
(Se nada houver que a cative
Nos mais por quem ela vive)
Não a irão mais convencer
Do valor que ela tiver:
- O nada que em si cultive
A inclina sempre a não ser.
1214 - Contenta
Um homem não se contenta
Com simplesmente ser homem.
Devir deus por isso tenta,
Todos os truques inventa
P'ra que as parcas o não tomem.
- Apenas o que é impossível
Torna a vida apetecível!
1215 - Corre
Para onde corre um homem?
Vai à procura ou em fuga:
Ou de dois braços que o tomem,
Ou de predadores que o comem.
Mas, por mais que corra a esmo,
Não há nunca onde esconder-se:
- Se olha para trás vai ver-se
Perseguindo-se a si mesmo.
1216 - Crise
Uma crise é boa e má.
Má por tudo quanto mata
E por quanto impedirá.
Boa porque nos desata
Perante oportunidades:
Sou pessoa mais sensata
Se perder e as qualidades
Serão meu ganho ante a perca;
Se ganhar, joguei meu trunfo,
Pode então ser o triunfo
Que a vida de mim acerca.
1217 - Mar
Os rios correm prò mar
E o mar nunca extravasou
Na corrida milenar.
Quem clandestino o sugou
Devagar, tão devagar
Que ninguém detecta o voo
Que o mar sempre eleva ao ar?
E nós que em terra vivemos
O que afinal descobrimos
É que a manta que envolvemos
É o mar donde todos vimos.
1218 - Leiteira
Uma leiteira de litro,
Um litro de leite leva.
Que leva a leiteira humana?
Mesmo modelada in vitro,
Não tem fundo a sua treva
Nem nenhuma tampa aplana
A abertura ao infinito
Onde não sou de verdade.
- Só que aqui é que concito
Gerar minha identidade!
1219 - Solúvel
Conhecer tem vários modos,
Mais ou menos inseguros,
Mas o melhor dentre todos,
De resultados mais puros,
Consiste no da ciência
Onde tudo o que é volúvel
É sujeito a uma experiência:
É sempre uma contraprova
Que o saber firma e renova,
Nesta arte do que é solúvel.
Saber seguro, porém,
Se do mundo tem a prova,
A mim jamais me contém.
1220 - Galho
Somos um ínfimo galho
Da imensa árvore da vida,
Tão pequeno que tresmalho
Da valia atribuída.
Só que este galho é capaz
De entender a própria história
E a continuidade traz
De toda a Terra a memória.
O aflorar da consciência
Numa epiderme final
Duma intérmina existência,
Eis nosso bem, nosso mal,
Tão grandes na mesquinhez,
Nosso tamanho real:
Nossa imensa pequenez!
1221 - Grilhão
Encerrados pelo mar,
Encarcerados no ar,
No limite e na fronteira,
No isolamento e prisão
Só nos importa a maneira
De romper com o grilhão.
Por isso o que nos convence
É sempre a mesma função
Que as inimizades vence,
- Nova comunicação:
Um passo mais para além,
Rumo ao que o mistério tem.
1222 - Forte
Forte não será quem parte
Para a guerra ou a aventura.
Forte é quem fica e faz parte
Da casa, desta fundura
De húmus donde brota a vida:
- Forte é quem nos assegura,
Não quem vive em despedida.
1223 - Penélopes
As Penélopes da história,
Com as vidas adiadas
Nas teias de cada lar
Sempre à espera da vitória,
São da humanidade as fadas:
De nossos fados a par,
São quem no-los vem tecer
Nas meadas dum tear
Que ninguém logra entender.
1224 - Busca
Nossas interrogações
Não chegam a ser recusa
Nem sequer um desafio,
São as brandas pulsações
Duma busca que se acusa
Se a vida está por um fio.
O grave é que esta procura,
Suspensa entre o não e sim,
Eternamente perdura,
Nunca mais encontra fim.
1225 - Ferida
Se a ferida sangra aberta
Será tal o sofrimento
Que nele tudo acoberta,
Tanto embota o pensamento.
Então a prudência, alerta,
Cala para que não doa:
Só o silêncio não magoa.
1226 - Risco
Que me importa a ingenuidade
Se só quando corro o risco
É que espreito a eternidade,
Se só então é que este cisco
Encontra a paz que procura?
A crença, a fé não é um dom:
Eu sei que um remédio é bom
Quando é um remédio que cura.
1227 - Ilha
Habitamos nesta ilha
Tresmalhada no Universo,
Famintos de maravilha,
Procurando uma partilha
Contra um destino perverso.
Mas como matar a fome
Se os alimentos que tentam
Só do espaço se apresentam?
Cada qual os outros come,
Uns dos outros se alimentam:
- Entre si tudo comentam
A iludir a impaciência
Da falta de liberdade
P'ra atingir a saciedade
Com a mínima decência.
1228 - Sarcasmo
Violência acorda coragem,
Força moral de enfrentá-la.
Porém, os que fazem sala
E com sarcasmo reagem,
Tanto humilham e destroem
Que, se há grão que lhes suporte
A mó com que tudo moem,
É o pó que fica da morte.
1229 - Aprender
O problema de aprender
É aprender a estar aqui.
É que o homem nem sequer
Vê que é uma evidência em si
Que quando está não está.
É o não-aqui com que estamos
Que nos marca a vida cá,
Por isso nunca apreciamos,
Pelo ainda-não, nosso já.
1230 - Olhos
Os olhos falam verdade,
Deles tanta se retira
Que, se numa falsidade
Acreditar, a mentira
Meu campo apenas invade
Enquanto eu a não confira
Co'o que deles sobrenade.
1231 - Longo
A verdade é a eternidade
Deixando-me aqui, sozinho,
Do enigma lento adivinho:
Uma pequena verdade
Percorre um longo caminho
E da sua integridade,
Cansado, só me avizinho.
1232 - Amizade
Brota sem ser cultivada,
Mas por vezes, p'ra existir,
Só forçada e alimentada.
Rocha, não vai aluir;
Frágil, vai morrer inane
Sempre que a amizade emane
Dum mero deixar correr.
Sempre activa, o seu lugar
Empenhamento requer.
Depois de tudo levar,
Quantas vezes, traiçoeira,
Esvai-se em fumo no ar,
Vaga ilusão passageira!
1233 - Estertor
Um coração a bater
De raiva e de violência
É a amizade no estertor:
Esta versão nem sequer
Entrevê dela a exigência,
É um teatro de amador.
A amizade não tem pressas,
É uma representação
Dum rude quebra-cabeças:
Quer mesmo imaginação.
1234 - Rosto
Os que têm o poder
De magoar e o não farão
E quanto aparentam ser
Não diz com qualquer guião,
Os que os mais comoverão
Mantendo de pedra o ser,
Incorrupto bastião
À tentação de quenquer,
São os donos e senhores
Do rosto que nos ostentam,
Não passando os mais de actores
Cujos papéis orientam:
O outros são servidores
Da excelência que alimentam.
1235 - Viajantes
Aqui vamos, viajantes
Que não sabem o destino.
Agora e sempre, como antes,
Corremos ao desatino.
Ninguém nos disse p'ra onde,
Ninguém nos disse até quando
Nem o que este sonho esconde,
Que é jamais se ir acabando.
1236 - Educadores
O que é mais extravagante
Na mão dos educadores
É pelos textos adiante
Buscarem quanto os garante
E depois não são senhores
Do contexto em que, delidas,
Jogamos as próprias vidas.
1237 - Energia
Morte é falta de energia.
A energia é vida tal
Que o prazer que ela irradia
É a garantia final
Que a morte não cresceria
Se, todos em movimento,
Rápidos e bem felizes
Raios de luz, o momento
Furássemos nas matrizes:
O tempo, enfim, pararia,
Eterno em nossa alegria!
1238 - Choro
A vida é feita de choro:
De saudades, à partida;
De alegrias, à chegada.
E aquilo que sempre ignoro
É se penetrei na vida
Em grita desarvorada
Com pena do que deixei
Ou na alegria incontida
De encontrar a minha grei.
1239 - Felicidade
Felicidade perfeita
Em germe é infelicidade,
Já que toda a chama é atreita
A fugaz caducidade.
Tão fatal pressentimento
Anula, a todo o momento,
E quando menos se pensa,
A alegria mais intensa.
1240 - Lavados
Por que é que as pessoas choram
De alegria ou de desgosto?
É para terem no rosto
Os olhos que tanto imploram
Lavados de vez em quando.
Erguem nisto um anteparo
Enquanto vão caminhando:
- Podem assim ver mais claro!
1241 - Ponte
O erro da revolução
É que deita abaixo a ponte
Antes doutra construção.
Fica então sem horizonte,
Em vez de outra ponte erguer
Ao lado da que não quer.
Por entre as margens do rio
Escorre então o vazio,
Quando, pela outra via,
O que decerto ocorria
É que o novo homem gerado
Nenhuma ponte, se calhar,
Precisaria de usar,
Se fora bem sucedido:
Cruzaria o rio a nado,
De tão bem constituído.
...E só então caducaria
Do velho mundo a utopia.
1242 - Perdição
A perdição é vontade,
Mas muito mais danação.
No perdido o que adivinho
Só num pouco é liberdade.
A primeira condição:
A miséria é que é o caminho
Mais geral da perdição.
1243 - Passar
O que pensa um optimista:
Ser feliz quando casar.
Vai ser ele o pessimista
Quando um ano se passar:
Um amor não é um estado,
É plantar e ter cuidado!
1244 - Vida
A vida é a felicidade
Que ninguém nunca pediu
E que existe de per si,
Embora nós, na verdade,
Só lhe sintamos o fio
Quando ele já se partiu,
Quando morre o frenesi
Brotado tão simplesmente
Deste chão de toda a gente.
1245 - Nada
Nada serve para nada,
Afinal, se virmos bem.
Qualquer encontro na estrada,
Todo o sabor que isto tem,
Toda a mudança encontrada
É a vida, vida de alguém,
Mas não abre a madrugada.
- Na vida tudo o que importa
Nem sequer serve de porta!
1246 - Elevação
Como atrai a elevação
Para lá do que é vulgar,
Acima do quotidiano,
Peso da libertação
Da lama rudimentar,
Nosso fardo de ano em ano!
E depois o angelismo,
Repugnância da terra,
Do trabalho calejado:
A aldeia esconde um abismo,
Sua crueza me aterra,
Todo o campo engalanado
É o atractivo do inferno
Quando em mim já queima o eterno.
Numa imaterialidade
Impossível de alcançar
É que mora o meu lugar,
Nela busco a identidade.
Aspiro e sofro a derrota
Entre o terror e a esperança:
Perco de mim toda a nota
E o infindo não se alcança.
Como é que a fugir de mim
Me posso atingir por fim?
1247 - Irresponsável
Quanto na vida é alcançável
Persegue o passo das corças
E o artista é irresponsável:
Nada lhe supera as forças
Que o levam, num desatino,
A traçar-nos o destino
Que não há metro que meça...
- E sorte ninguém lha peça!
1248 - Vivos
Por entre a festa dos vivos
Palmilho, espantado, as ruas.
Vão alegres, agressivos,
Ramalhetes nas mãos nuas,
A celebrar os seus mortos.
Não vêem como, iludidos,
Recolheram nos seus hortos
As flores para os caídos
Quando a si é que as ofertam,
Já que um dia também morrem.
Por que tanto o passo apertam,
Para a morte tanto correm?
Vejam o que está a ocorrer,
Não olhem só lá adiante:
- Vocês estão a morrer,
A morrer a cada instante!
1249 - Rapariga
Ela é só uma rapariga
Que aprendeu o bê-á-bá
Nos três ciclos duma escola.
De amores conhece a intriga
Das telenovelas que há
Quando se pede uma esmola.
Jamais pode saber nada
Dos outros nem mesmo dela:
O mundo não é uma estrada,
Mora dentro da viela.
Pensa no corpo que tem,
Naquele que o há-de ter,
Já que ela há-de ser de alguém,
Pois de si não sabe ser.
E assim, arrastando o pé,
Trôpega, sobe a calçada,
Sem consciência de quem é...
Não serve mesmo p'ra nada!
1250 - Calo
Discretamente me calo
No refúgio do jardim.
Se me aborda, nem lhe falo,
Não estou para aturá-lo
Pelo que ele tolhe em mim.
Traz-me uma coisa qualquer,
Um qualquer brinquedo caro?...
- Nem que seja o bem mais raro,
Não, não quero adormecer!
1251 - Dormem
Todos dormem, todos dormem
E aqui ando eu acordado!
Um, no sono mais pegado,
Dos que a tudo se conformem;
Outro, porém,logo ao lado,
O sono mais agitado,
Sonha que daquilo o informem.
Os sonâmbulos, teimosos,
Gritam não estar dormindo:
Eles conhecem os gozos
Da vigília que vem vindo...
E assim caminha o destino
Pelo meu corpo acordado
Num simulacro de tino
Buscando qual o seu lado.
1252 - Condição
Triste condição a nossa,
Tão presa das coisas vis!
A fome desfeia a moça;
Mesmo sempre nos carris,
Qualquer distância faz mossa...
De todas as criaturas
As mais nobres e mais belas
E tão presos às impuras
Da vida pobres sequelas!
1253 - Invento
A que ando eu aqui no mundo?
Em meu redor todos lutam,
Torcem a dor e a alegria,
Desejam, vivem, disputam...
De lado, sempre infecundo,
Qual é minha fantasia?
Enquanto a vida desfia
As roupas de cada sonho
Tudo é como se eu não fora:
O mundo de que disponho,
Igual por dentro e por fora
Continua, calmo e lento.
O mundo é mundo sem mim!
Porém, se me acalma assim,
Não me mantém a contento.
Por isso é que sempre tento
Caminhá-lo até ao fim
Na ilusão de que o invento.
1254 - Caminho
Aqui vamos no carrinho,
Cada qual fechado em si,
Sem descobrir o caminho
Para os mais que vão ali
A correr-nos mesmo ao lado,
Cada qual em si fechado.
Falar adianta pouco
Se não há boa vontade:
O nosso ouvido anda mouco
E à fala falta verdade.
Que vai ser de nós, assim
Neste prefácio do fim?
1255 - Fecho-me
Fecho-me na austeridade
E numa torre de orgulho
Com atavismo feroz.
Como o sol na soledade,
Mui discreto, sem barulho,
O gelo de todos nós
Dilui breve em água viva,
Assim o tom do carinho,
Compreensão amistosa,
O gosto nos reactiva
Do brando calor do ninho.
E a vida tanto se goza
Neste sabor renovado
Que as portas então abrimos
Para o vizinho do lado:
Vamos juntos para os cimos,
Ao belo cume nevado
E da estreiteza nos rimos
Com o rosto afogueado.
1256 - Suicida
O caminho que escolhi
É acabar com os meus dias,
Já que a vida que vivi
Desilude de agonias.
Não vale a pena, desisto,
Vou renunciar ao mundo,
Já que o mundo é apenas isto.
De minha sorte, no fundo,
Ao menos decido eu.
Mesmo condenado à morte,
O suicida na cela
A liberdade assumiu:
- Sou eu que me talho a sorte,
O algoz não decide dela.
E assim é que ainda no fim,
Mesmo se for um fim trágico,
Me não liberto de mim
E do que em mim há de mágico.
1257 - Ocidente
Por que é que no Ocidente
O suicídio tem visco,
Prende as asas, renitente,
Às aves de que é petisco?
Colchoaria decadente,
Neste mundo não avisto
A almofada competente
Que amacie o rigor disto.
1258 - Crescem
Crescem árvores céu fora
E as fontes correm na terra.
Que quem dorme a toda a hora
E as pálpebras sempre cerra
Não nos adormeça à força
Quem nasceu com outro fado:
Que na vida há quem se esforça
Por viver sempre acordado!
E este é que aos céus vai lançar
As vergônteas que gerar.
1259 - Horas
Vida sem hora marcadas
Transmuda o tempo num mar
Com marés eternizadas
Noite e dia, devagar.
Toda a gente ali se afoga,
Cada qual se confundindo
Com quanto em redor lhe voga:
Como o mais lá se vai indo...
1260 - Multidão
No meio da multidão
Penso na incrível cegueira
Desta absurda obstinação,
Destes gestos em fileira
Há milénios repetidos,
Tão inúteis hoje em dia
Como eram em tempos idos.
Jamais cansa, jamais basta!
- E eis como se contraria
A nossa sina madrasta!
1261 - Próximo
Meu próximo formigante
De inumeráveis contactos,
Próximo mas inconstante,
Massa prenhe de artefactos,
Gelatina peganhenta
Que se cola a contragosto,
Que me absorve e que me atenta,
Que me aglutina indisposto,
Meu próximo, como amá-lo,
Multidão cega e confusa,
Surda sempre que lhe falo,
Formigueiro no intervalo
Da aceitação e recusa?
Meu próximo foi sempre isto.
Então por que há milhões de anos
Não desisto, não desisto,
Sempre a enfrentar desenganos?
1262 - Fuga
Tudo em casa a horas certas
E a vida que não tem horas!
Ou tem horas tão despertas
E com outras tais demoras
Que estas horas que inventamos
Não são horas, são a fuga
Da mãe-terra para os ramos
Quando a fera em nós madruga,
De atacar-nos ameaça,
De gente viramos caça.
E a vida que não alcanço
Sempre a acenar-me o descanso!
1263 - Morreu
Não posso clamar
A morte de Deus,
Que Deus não morreu.
Aqui, devagar,
Nestes dias meus,
Quem morreu fui eu.
Ainda não é o fim,
Que me resta a pele:
Não morri em mim,
Morri para Ele,
Deus familiar,
À minha medida,
De mim sempre a par,
Fala comedida,
Um mane do lar,
No entanto infinito,
Sempre tão distante
Que, mesmo se grito,
De nada adiante.
Tacteio no escuro,
Vasculho resquícios:
Sempre o que procuro
São os meus indícios.
E são tanto os meus
Como o não serão:
Ao fim será Deus
Numa outra versão
Em que me proponho
Os fins com que sonho.
1264 - Bom
Tudo o que na vida é bom
Nem sequer damos por ele.
O melhor é sempre um dom
E um tal dom vai ser aquele,
Tão por nós e p'ra nós feito,
Que à força de repetido
Nós lhe esquecemos o jeito
E acaba despercebido.
Até que um dia nos falta
E a perda nos faz sentir
Que, afinal, tanto o exalta
Que só então passa a existir.
1265 - Pão
Comer o pão do talento
Para ganharmos a vida
É a grandeza do momento
A cada dia devida.
É o trabalho em comunhão
No que temos de melhor,
Connosco em primeira mão
Aos demais a se propor.
1266 - Mulher
A mulher a gente insulta,
Diz mal dela, até lhe foge,
Se calhar por não poder
Vivê-la inteira, a valer.
E a mulher não fica inulta,
Pois de sempre é como de hoje:
- Se ninguém chega às estrelas,
Também não vive sem elas.
A mulher não é um sinal,
Ela é a vida tal e qual.
1267 - Levantar
Levantar a Humanidade?
É tão pesada que já
Não se anula a gravidade:
Ninguém a levantará.
Juntando as forças em resma,
Só se se erguer a si mesma.
1268 - Salada
Uma salada é alimento
Mas pode ser a alvorada
Se aquilo que nela invento
For a vida apaixonada.
Serves salada e sacias
A fome que o corpo tem,
Mas vemos então quanto ias
Servindo-te a nós também.
A salada sabe bem
Porque tem outro sabor
Além daquele que tem:
Sabe também ao amor
De amante, mulher e mãe
E aos parabéns, ao calor
Por quem nos serve tão bem.
1269 - Viagens
Viagens de quem viaja,
Por que tanto viajais?
Por que de inveja reaja
Se vos recebo os postais?
Ou pela maturidade
De partilhar o prazer
De quem já atingiu a idade
De atender mesmo ao que quer?
De quem pelos mais já não
Perderá gestos em vão?
1270 - Cansado
Se à noite fico cansado
Pode ser uma alegria
Se inteiro vivi o dia,
Se foi dia conquistado,
Se eu for, onde o tempo medra,
Canteiro que lavra a pedra.
1271 - Génio
Mora o génio numa ilha,
Cerrado em seus pensamentos,
Fora do alcance do mundo,
Do fragor de suas vozes.
Enternece a maravilha
Desta criança em tormentos,
Órfã de tudo, no fundo,
E que salva seus algozes:
- Nele que de nada sabe
É que o sonho inteiro cabe!
1272 - Dentro
No banco sentado,
Quem me vai ao lado?
Não se vê na pele
O que há dentro dele.
Sei lá se é assassino
A marca deste homem!
Na dúvida, afino
Pelo que o tomem.
Na aparência iguais,
Nada nos soletra,
Que nada penetra
(Faltam os sinais)
No poço profundo
Que nos abre ao mundo.
1273 - Fim
É triste o fim do caminho,
Cheio de insatisfação.
O vinho só sabe a vinho
Se é o do próximo Verão.
Alcançado um objectivo,
Perde ali todo o valor.
Esquece quanto foi vivo,
Quando sonho, o seu fulgor.
A vontade corta a eito
Pela terra já lavrada
Semeando o insatisfeito
Desejo de nova estrada.
E nem temos o direito
De queixar-nos, pois chegámos
À fronteira que, do peito,
Sempre outrora ambicionámos.
Só que a meta que convém
Fica sempre mais além...
1274 - Tesoiro
Se uma criança pesquisa
E o tesoiro cai na lama,
Olha o desapontamento
A que a alegria desliza
Se, em vez de louvar a trama,
Tu lhe infliges o tormento
De à lama que tudo apaga
Sacrificares o invento
Que nenhum preço lhe paga.
Água à lama lava bem
Mas à frustração, porém,
Duma descoberta inglória
Como a apagar da memória?
1275 - Falhada
Uma carreira falhada
Decorre mesmo dum nada.
Em vez de se concentrar
No modo de êxito ter,
Basta se preocupar
Com a forma de qualquer
Erro evitar ou falhanço.
É que na vida o que alcanço
Vem de visar o sucesso
E é quando nele acredito
Que as muralhas atravesso
E que atrás de mim concito
Quantos visam igual fito
E é com eles que me meço.
Assim nunca em mim tropeço,
Sigo aberto ao infinito.
A pequenez de meu grito
Verdade é que a não esqueço
Mas com ela não me canso,
Viso além de seu limite:
Na terra deste palpite
É que ao fim eu sempre danço!
1276 - Líder
O líder é uma pessoa
Que analisara um problema,
Lhe escolhe a solução boa
E propõe-na então por tema
Aos que querem resolvê-lo
Que assim se atam elo a elo,
- Cadeia que se perfila
Ante a chefia, a segui-la.
1277 - Segredo
Segredo da liderança:
Cumprimentar amigável
Até onde o olhar alcança
Torna logo mais fiável,
A quem queira uma chefia,
Ver assim reconhecido
Que é capaz do que queria...
- E o cargo é-lhe atribuído.
1278 - Manto
O manto da liderança
Pousa aos ombros do respeito,
Da responsabilidade
E dum engenho que avança:
Respeito que toma a peito
Cada qual em igualdade;
Responde pelo que faz;
E engendra quanto for novo
Nos passos de que é capaz.
Sempre e só nisto é que provo
Que a chefia tem sentido
E o caminho é prosseguido.
1279 - Manhã
P'ra qualquer criança
O mundo é um jardim.
Toda a manhã dança
A primeira manhã
Que dança na Terra.
Tudo é encanto, assim,
Frescura louçã
Onde o riso aterra.
Que excitante andar,
Correr contra o vento,
Tentar apanhar,
Em festivo intento,
Os flocos de neve
Da alegria breve!
1280 - Come
Este Ocidente não come,
Foge da sorte ao cariz:
- Como porque tenho fome
Ou porque estou infeliz?
Morro por comer demais,
Quando à fome mato os mais!
1281 - Criativo
Se queres ser criativo
Vai aprender algo novo,
Procura no teu arquivo
Um perdido qualquer ovo:
Seja um livro diferente,
Um jornal que nunca leste,
Ou, se és financeiro, investe
Na dança de que és ausente
Desde a tua juventude...
Em qualquer alternativa
Ver-lhe-ás logo a virtude:
Aumenta-te a iniciativa
E jamais te desilude
- Cresce-te mesmo a inventiva
E o mundo novo criaste
Do que antes creras um traste!
1282 - Lebre
Fica alerta à boa ideia
Porque é uma lebre a correr:
Tão depressa visionei-a,
É só uma cauda qualquer,
Tão no instante fugidia
Que ser-me-á sempre arredia.
Aquele que é criativo
É que tem um olho vivo
E, quando a lebre lhe salta,
Dispara logo certeiro.
O que aos outros sempre falta
É acertar nela primeiro,
Antes que, perdido o rumo,
Se lhes ela esvaia em fumo.
1283 - Activista
Activista não é aquele
Que diz que o rio está sujo,
Que este não arrisca a pele,
Quantas vezes é um sabujo!
O activista que aprecio
É aquele que limpa o rio.
1284 - Fruteira
Uma fruteira no Inverno
Parece o nosso destino.
Ninguém diria que, terno,
O sol ao galho mais fino
De verdura o enfeitará
E de novo o irá florir.
Mas a confiança aqui está,
Nós sabemos o porvir!
E, fiados no segredo,
No fundo não temos medo.
1285 - Espera
Se apenas ficara à espera,
Escolha de mau conselho,
Tudo o que me acontecera
Era só ficar mais velho!
Ao contrário da esperança,
A espera apenas me cansa.
1286 - Paciência
A paciência é uma chave,
Uma chave para tudo:
P'ra que um pintainho grave
Na terra o bico miúdo
Primeiro um ovo se choca
Até que nasça da toca.
Jamais parti-lo se deve,
Que se mata o sonho breve.
1287 - Grande mãe
Há quem diga que sou grande
Sem ver quanto sigo aos ombros
Duma voz que me comande
A saltar sobre os escombros.
És tu, mãe, sempre presente
Desde que nasceste à vida.
Fazes anos. Meu presente
É dizer que vivo assente
Na vida de ti haurida
Mais em quanta me convida
Dia a dia a que me aumente.
Afinal o meu tamanho
É o de quanto de ti ganho.
1288 - Anos perto
Sou tua filha pequena
A crescer com toda a pressa.
Quando uma mãe nos ordena
Não há metro que nos meça.
Fazes anos e à procura
De ti é que corro tanto
Buscando a tua lonjura
Da ternura sob o manto.
Minha prenda é o meu acerto
P'ra que o longe fique perto.