DÉCIMA PRIMEIRA REDONDILHA

 

JAMAIS TEM IDADE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1289 e 1419 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagemparticular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1289 - Jamais tem idade

 

Jamais tem idade

Nem métrica certa

Quanto desconcerta

Na sublimidade.

 

                                   

1290 - Milagre

 

Há um milagre em que não acreditamos

Mais que andar em água sem remos:

É que quanto mais partilhamos,

Mais temos.

 

 

1291 - Basta

 

Basta um grão na roda,

Fumo de paixão,

O eclipse do senso,

Logo ao chão cai toda

A grandeza na ilusão...

- Mas jamais eu me convenço!

 

 

1292 - Fugir

 

Se eu fizer o bem

Vou atar os nós:

De mim não foge ninguém                     

Todos fugirão p'ra nós!

 

 

1293 - Dormir

 

Dormimos a sono solto,

Perdendo então nossos gados,

E depois eu me revolto?

- Ora! A quem dorme dormem-lhe os cuidados!

 

 

1294 - Lugar comum

 

Quando a fé se torna num lugar comum

Alguém pode acreditar

Que haja algum Natal nalgum lugar?

- Já não há milagre algum!

 

 

1295 - Sol

 

Quando, mulher, tu me despontas,

Caminhando minha vida fora,

És mais que o horizonte que me apontas,

És o sol a escapar dos braços da aurora.

  

 

1296 - Verdade

 

Muito sofres, que a inveja te maltrata,

Expõe-te na rua.

Mais ligeira a verdade se retrata:

Figura-se nua!

 

 

1297 - Vaidades

                                   

Das vaidades o combate

No pó talha todo o ser:

Um sopro as abate,

Outro as faz erguer!

 

 

1298 - Ideal

 

Tudo o mais, afinal,

Pode ficar sem tecto.

Porém, um ideal,

Jamais o anula um decreto.

 

 

1299 - Democracia

                     

Democracia representativa

Reduz à maioria a vida vária;

Unir minorias em trama viva

Será democracia comunitária.

 

 

1300 - Alimentar

 

O nosso ideal

Consegue alimentar o mundo novo.

O mal

É que não sabemos alimentar o nosso povo!

 

 

1301 - Traseiras

 

Da civilização ocidental

Nesta porta das traseiras

Só há escórias, fedor pestilencial,

Do bricabraque as lixeiras

- Nutrindo os sonhos onde se abocanham

Os deserdados: e assim nos apanham!

 

 

1302 - Sofredor

 

Nada retenho excepto um parco verso

Salvo do oblívio:

O sofredor tem tudo no universo

Menos alívio.

 

 

1303 - Artista

 

Um artista não é escravo,

Não é também parasita,

O artista é um homem de fé:

Planta sobre o mundo um cravo,

Di-lo ao grande sol que fita,

Germina-o logo de pé.

 

 

1304 - Fé

 

O entusiasmo não é nada,

Vem e vai.

Actua a fé pela calada

E o mundo avança:

É certo que cansa,

Mas não se esvai

A longa trança.

 

 

1305 - Criança

 

"Mais alto!" - grita a criança.

O impulso do baloiço é todo meu,

Mais alto, p'ra ver se alcança

Um dia chegar quase até ao céu!

 

 

1306 - Pouco

 

Sábio, tratam-no por louco

Quando diz:

Quem se contenta com pouco

É feliz.

 

 

1307 - Pintor

 

Um grande pintor

Não come nem bebe:

Em tudo se embebe

De cor.

 

 

1308 - Mulher

 

Nenhuma mulher dorme tão profundamente,

Abandonada e bela,

Que um toque de guitarra vibrante e dolente

Não a acorde à janela.

 

 

1309 - Representante

 

Quando nisto assenta,

A democracia não se dilui:

O representante representa,

Não substitui.

 

 

1310 - Eis

   

Da Ciência, eis a fatalidade:

Não é verdade, mas acredito.

E da Fé eis o conflito:

Não acredito mas é verdade.

 

 

1311 - Ilumine

 

A mulher não casa

Sempre que alguém fascine,

A mulher é sempre da casa

Em qualquer casa que ilumine.

 

 

1312 - Simples

 

Que importa fugir pròs lados

Se da busca não vem nada?

Os problemas complicados

Têm uma solução simples que é errada.

 

 

1313 - Moderno

                     

Prisioneiro na jaula de aço e de betão,

O homem moderno

Desespera da situação:

- Não há fugas do inferno!

 

 

1314 - Desilusão

 

O artista moderno

Não tem fé na situação,

Suas obras são o inverno

Da desilusão.

 

 

1315 - Sabor

 

Só quem saboreia o ser

Sabe o sabor de saber.

 

 

1316 - Maretas

 

Que os loucos sejam encarcerados,

Os salvadores, crucificados

E os profetas, tão apedrejados,

 

Não é do destino, que os poetas

Com todos sofrem, mas a poesia

Jamais desabrocha das maretas

Do mar de ignorantes que a assobia.

 

 

1317 - Estrada

 

Ao longo desta estrada que corremos

Ninguém vai retroceder,

É a seguir para a frente que vivemos:

Se parar, eu perco o ser.

 

 

1318 - Amor

 

O amor é ridículo,

É o sorriso nos lábios

Quando doi o coração da aurícula ao ventrículo.

O amor é o dom dos sábios.

 

Amor é secar a lágrima triste,

Criar o próximo que distante existe.

                                                                     

Amor é olhar-te nos olhos,

Ser

E dizer tudo o que se tem para dizer,

Para além dos escolhos,

Sem dizer uma única palavra:

Teu fogo que por mim lavra.

 

Amor é quanto existe ou quase tudo

E o quase é o mais além, sobretudo.

 

Amor é a tua presença mesmo ausente,

Eu e tu no futuro já presente.

 

Amor é criança que nasce:

Vida que no tempo pasce.

 

Do vinho fragrância

Nos anos cujas latadas empo,

É renovar a infância

Dos perdidos no tempo.

 

Amor é olhar e sorrir

Àquilo que queremos que seja

O porvir

Que se almeja.

 

Mar límpido e azul,

Amor é respeitar tudo e todos

Para além do véu de tule

Dos tempos e dos modos.

 

Amor é saber que me amas,

Que, sendo terra, no céu me aclamas.

 

Amor é esperar ansiosamente junto

Ao telefone a tua chamada.

Só ser em conjunto

Ou não ser nada!

 

É sentir saudades

De todas as idades.

 

É aceitar ver um jogo de futebol

Quando só em teu peito ele te bole.

 

Transparência daquilo que tu sentes,

Amor é partilhar

(Mesmo se rangem os dentes)

Teu tempo e teu lugar.

 

É o coração a bater desordenado

Quando te vejo:

És meu outro lado

Que desejo!

 

Amor sou eu em ti:

Antes não vivi!

 

Darmo-nos mutuamente

Sem pedir nada em troca:

É a festa iminente

O que nos toca.

 

O amor em nós pressente

O transcendente.

 

Sagrado tom

De quanto peco,

O amor é um som

Que reclama um eco.

 

É não ter palavras que exprimam

O que é o amor,

Que nos cimos que nos encimam,

Só o estupor!

 

Amor, renascer

Do mais fundo em nós:

- Expandir o ser

E ser Deus após!

 

Dizer com lágrimas de alegria

Que te amo?

- És meu dia,

Por ti chamo!

 

Amor é o que deveria

Entrelaçar as pessoas:

Cada vez mais a euforia

Do parto das coisas boas.

 

É saber que alguém

Pensa sempre em nós:

Mesmo a solidão tem

Dentro uma voz.

 

Amar alguém que amamos

- E o céu se enche de reclamos!

 

Dar aos mais carenciados

Nossa carência de talharmos fados.

 

Amor é um vale de rosas vermelhas,

Um passarinho a voar,

Sabor ancestral das  coisas velhas

Que mais além nos apontam um lugar.

 

É alimento,

É tentar esquecer-te e não conseguir,

Alegria e tormento

Com que em mim geras o porvir.

 

Encontrar uma carta tua

Sem selo

Na caixa do correio,

Amor é o sabor da lua

Enquanto velo

Sonhando em teu seio.

 

Sentir o coração

Bater fortemente

Fora de mão

Por dentro da gente.

 

Sentir um aperto delicioso

Que nos deixa... ai!,

A sofrer de tanto gozo

Que quem nele tropece

Até parece

Que no céu cai!

 

Amor é ficar jovem eternamente,

Acordar com um sorriso,

E, mesmo sabendo que isto mente,

Saber que só nisto é que há juízo.

 

Amor é o que mais puro temos na alma.

Luz que brilha nas trevas, 

De idade em idade

Os furacões acalma

Orientando as levas

Da Humanidade.

 

Viver com os outros a bem,

Amor é o sorriso da vida,

Por isso as romarias contém

A toda e qualquer ermida.

                     

Amor é compreensão

E força para viver,

Um ao outro dar a mão,

É mais que o fundo do ser,

                     

Amor é o fundo sem fundo:

Amor é a salvação do mundo!

 

 

1319 - Praia

 

Caminho ao longo da praia:

Areia juncada de moluscos humanos

À espera que alguém lhes descontraia

A concha do sonho e dos enganos.

 

 

1320 - Muros

 

De noite é que viajo,

De noite acordam os monturos

E, quando reajo,

Oiço a respiração dos muros.

 

 

1321 - Erma

 

Pela História adiante,

Na Terra eternamente erma,

A depravação caminha oscilante

De berma para berma.

 

 

1322 - Medir

 

Quando uma mulher pára num jardim

Não é para me acolher num amplexo,

É para medir em mim

O peso inteiro de seu sexo.

 

 

1323 - Sorrir

 

Foi quando acabaram a guerra

Que rompeu o porvir:

Os homens se apoderaram da terra

E fizeram-na sorrir!

 

 

1324 - Colheitas

 

Na festa das colheitas,

A lagarada:

Os insectos ignoram as desfeitas,

O ar marulha de alegria descuidada.

 

 

1325 - Lapidar

 

Enquanto de meu sangue tu te gozas

Do mundo no lupanar,

Aqui estou, cheio de pedras preciosas

Por lapidar.

 

 

1326 - Sol

 

O sol nado,

Abro-me inteiro ao calor do sul:

Descongelado,

Sufoco de alegria azul.

 

 

1327 - Desponta

 

Cada vez mais rápida, a Terra gira,

O céu negro chama-nos de azul.

Por que é que o alvor desponta, delira

E se nos escapule?

 

 

1328 - Desvão

 

O artista afasta-se para o desvão

Atrás das formas mortas

Para redescobrir em si as portas

Da eterna criação.

 

 

1329 - Promessa

 

Cada novo dia

Traz uma promessa:

- O almoço, na manhã fria,

Com leite quente à cabeça.

 

 

1330 - Paladar

 

Vida, paladar

De cada momento:

Ruído de mar

No sopro do vento,

Um melro a cantar

Em meu pensamento.

É todo o lugar 

No canto onde sento,

Pão a levedar,

Dos dias fermento.

E o granizo

Na paisagem

Com sorriso

De viagem.

 

 

1331 - Renasce

 

Como o pão que nós cozemos,

Bebo o vinho que pisámos

E penso

Da tarde no sol intenso,

No vento que encurva os ramos,

No rio que beija os remos.

                                     

Da noite que tudo engole

Nos renasce o dia:

- Prevalece o sol

Sobre a dor que nos feria.

 

 

1332 - Medidas

 

Não nasci para famoso

Nem das justas para as lidas,

Que a vida que me dá gozo

Não se mede em tais medidas.

Minha grandeza

É ser homem, cidadão,

Não é a beleza:

- Minha raiz é ser chão!

 

 

1333 - Some-se

 

Durante a infância

Permanentemente supus

Que só permaneceria a glória.

Porém, o comboio da História

Some-se na distância

A maior velocidade do que a da luz...

- Nada nele nos faz jus.

 

 

1334 - Libertadores

 

Os ditos libertadores

Jamais o são.

Eles e os conquistadores

Têm-se à mão

A distância tão pequena,

Que, entre ambos, nem o espaço duma pena!

 

 

1335 - Avesso

 

A realidade

É o lugar das coisas:

No avesso, em verdade,

Jamais repoisas.

 

 

1336 - Verdade

 

Juro dizer a verdade,

Só a verdade

E nada mais que a verdade:

 

- Como tudo, ao fim e ao cabo, é falsidade!

 

A chegada doutra Era,

Atingirmos outra Idade

Jamais foi, será, nem era!

Que bom que era,

Na realidade,

Que tudo um dia acontecera!

 

 

1337 - Triaga

 

No povo

A miséria embriaga:

Quando se gora o ovo,

Bebe a triaga.

 

 

1338 - Frio

     

Dum amor ficou o vazio

E a cidade não percebia,

Tudo ria como sempre ria

E corria, corria

Num corropio.

                                     

- Um coração, porém, está cheio de frio!

 

 

1339 - Murro

 

Mais longe nos convida

Que quanto nos ensina

A escola da má sina

- Um murro certeiro na cara da vida!

 

 

1340 - Anseio

 

Porque escrevo?

Porque urge imobilizar

Cada anseio fugidio

A que me atrevo,

Cada linha em seu lugar,

Onde lhe estudo o feitio.

Ali é que me revela,

Rígido contra a parede,

O tamanho da procela

Com que o íntimo me abala.

Depois vede

Que a divagação profunda,

Visando-me bala a bala,

É de paz que ao fim me inunda!

 

 

1341 - Verão

 

No Verão

O sol ilumina

O riso brusco das crianças.

No chão

É uma algazarra divina:

Dos raios do sol urdem tranças,

Jogam lestas entre si

E o céu fica

Com o sol caindo em bica

Todo inteiro em frenesi.

 

 

1342 - Amornam

 

Como os carneiros brancos na pastagem,

As casas espalhadas junto à margem

Amornam o ar,

Calmas, a pastar.

 

 

1343 - Pormenor

 

Atender ao pormenor

É o meu credo:

O segredo

De atingir sempre o melhor.

 

Pode ser a diferença

De atingir

Ou fugir

Dum objectivo que vença.

 

As pequenas coisas são

Uma chave

Que se crave

Onde todas se unirão.

 

- Em cada passo pregresso,

No final,

É o sinal

Do melhor de meu sucesso.

 

 

1344 - Ingénuos

 

Somos ingénuos, ai como, ai quanto!

Torturamos a futilidade

À procura da felicidade

E no fim só temos pranto.

 

Tanto cremos que as mãos nos damos

- E uns aos outros nos devoramos!

 

 

1345 - Universal

 

Não nos poderá irmanar

A felicidade, afinal?

- Em todo e qualquer lugar

Só a dor nos faz falar

Uma língua universal.

 

 

1346 - Sofridos

 

É mais fácil que se entendam

Dois entes muito sofridos

Porque a dor os humaniza.

Os demais os olhos vendam.

Nos felizes, os sentidos

(Já que frívolo, desliza

Por sobre todas as coisas

Quem não lê da dor as loisas)

Voam pela fantasia

E toda a noite é de dia.

 

Com medo de lhes falhar

Esta alegria falaz

Vão-se do mundo escudar,

Que dela não é capaz.

 

Fechados e defendidos

Cada qual numa tapada,

São animais protegidos,

Já não se adestram a nada.

 

 

1347 - Par

 

Uma pública opinião

E um sentimento popular

Nem sempre andarão

A par.

 

O popular sentimento

É o que faz o condimento

Da mesa em volta ao jantar:

São todos entre si a partilhar.

A quem lhes faz a sondagem,

Uma pública opinião

Será uma mensagem

Que os mesmos ali, então,

Só p'ra tal fim urdirão.

 

 

1348 - Companheiro

 

Quase todas as crianças

Descobrem um companheiro

Que as ajude nas andanças

Da vida no formigueiro.

 

Transformam-se então depois:
Cada um torna-se dois.

 

Assim, nem que o não esperem,

Da infância a melhor magia

Partilha a dor e a alegria

De crescerem.

 

 

1349 - Amigo

 

Um amigo é a sensação

De reconhecer-me em algo,

De ter ao lado um igual.

Um amigo é meio irmão,

Uma ponte donde galgo

Todo o espaço sideral.

Mais que ponte,

É meu caminho

Da família ao horizonte

Que já não trilho sozinho.

 

 

1350 - Felicidade

 

Por toda a parte a busca da felicidade...

E uma busca perdida enfim por toda a parte,

Porque a verdade

É que a felicidade se não reparte

Nem há nada em que se acarte.

A felicidade ata os nós

Daqui aos outros, mundo além até ao fim...

- Encontra-se-lhe a ponta dentro em nós:

A felicidade mora em mim!

 

 

1351 - Prazer

 

A felicidade

É um mistério a resolver,

Embora também queira a capacidade

De sentir prazer.

     

O problema é que esquecemos

O prazer que sentimos

Quando amamos e vivemos

Todo o amor que usufruimos,

Quando temos companhia,

Nossos amigos à mão,

Vivemos na moradia

Que escolheu o coração,

Esqueço mesmo a saúde

Quando a tive quanto pude.

 

Quando esqueço quanto sinto

É que, indiferente, minto

Graves infelicidades

Que enganam minhas verdades.

 

Sou feliz mas me desprezo,

Depois nada mais tem peso.

É quando tudo me falta

Que meço quanto foi alta

A ventura que perdi,

Tarde demais quando o vi.

 

No esforço de refazer-me

É que deixo de ser verme,

Meço o tamanho do salto:

- Quanto o comum ficou alto!

 

 

1352 - Outra

 

Quem quer pôr de lado a fé,

P'ra poder sobreviver

Logo uma outra põe de pé.

Não é possível viver

Sem acreditar em nada:

 

- Ser

É abrir uma estrada!

 

 

1353 - Gargalhada

 

A vida é uma gargalhada

Reprimida

A esconder a amargura passada

Em demanda da quimera

Perdida

Dum paraíso como nunca houvera

Na humanidade.

 

O riso esconde o desencanto

De nossa impotência

Para a felicidade.

Todo o canto

Engana o pranto.

Ignora a demência

De ser feliz às vezes,

Quando nenhum progresso nem invento,

Por mais que corram os meses,

Nos libertará do sofrimento.

O mais que nós conseguimos

Contra tal fatalidade

Não é a dor tirar dos cimos,

É mudar-lhe a identidade,

A ver se nos iludimos.

Mas, na hora da verdade,

- É disto no fim que rimos!

 

 

1354 - Certeza

 

"Se alguma vez tive a certeza

De alguma coisa é agora!"

- Jura o amante que se preza.

O desengano não demora:

Ninguém,

Por mais que do amor ande perto,

Por mais que seja pessoa de bem,

Dele jamais pode estar certo!

 

 

1355 - Sonhos

 

Os fracassos mais bisonhos

É que são a despedida

Sem mais chegada ou partida:

É mais difícil despertar falhados sonhos

Que trazer mortos à vida.

 

 

1356 - Engano

 

Não sei bem como dizer-te,

Nem disto sequer sei bem:

A vida é engano solerte,

Desde sempre e mais além.

A vida só nos dá a mão nesta trilha:

- Tudo, tudo é uma armadilha! 

 

 

1357 - Natureza

 

Hoje em dia

Os meios colectivos de destruição

Atingiram tal aperfeiçoamento

Que, por covardia,

Todos à guerra renunciarão.

Da paz o elemento,

Todavia, são as crianças

Que, por não terem siso,

Continuam a entrançar as tranças

De qualquer paraíso.

A criança e o louco

Ignoram quanto fórmulas, pactos, teorias

Valem tão pouco

Ante o que precisarias:

- De nenhum deles jamais dimana

A mudança da natureza humana.

 

 

1358 - Mensagem

 

Nem eu nem ninguém tem

Uma mensagem

Porque as mensagens nem

Existem

E quando existem agem

De tal modo que despistem:

Se mensagem alguma houver

Ninguém será capaz de a entender.

 

Este é o beco sem saída

Em que consiste a vida.

 

Viver

É o muro perfurar

À espera de o abater

Além do tempo e lugar...

... Sem arma para o fazer!

 

 

1359 - Jogos

 

Todas as filosofias

São meros jogos de palavras,

Só que nos criam miragens.

Tudo é absurdo, dirias,

Mas é nestas lavras

Que cultivamos viagens

Imaginárias

Rumo ao infinito.

Ter por verdadeiro o mito

É aceitar as luminárias

Da ciência:

Projectar no discurso

É o derradeiro recurso

De quem tem inteligência! 

Mas tudo segue o mesmo curso...

Ah! Que indigência!

 

 

1360 - Enganada

 

"Os amigos fiéis

Numa ilha misteriosa

Regida por uma princesa..."

- Já não há nada, sabeis?

Hoje é de tédio que goza

Qualquer homem que se preza.

Porque sempre tudo acaba

Da mesma maneira:

O amor se menoscaba,

A amizade é uma asneira,

Ambos são o egoísmo,

A mera necessidade

De alguém ter por companhia.

E o pior que há neste abismo

É que nunca a humanidade

Deu por esta fantasia

E assim vai trilhando a estrada

Perpetuamente enganada.

 

 

1361 - Cancro

 

O cancro é uma doença

De células em anarquia

Fazendo vida boémia.

Se a humanidade, um dia,

Pensa

Viver tal cacafonia,

Morreria

De leucémia.

Lento, o corpo se desfaz,

Primeiro o da pes

Soa, o da sociedade atrás:

- Viver não é mais

Que escolher entre impulsos naturais. 

 

 

1362 - Fios

 

Isolado, deixaria

Que a vida fosse escorrendo.

Ao absurdo do dia

Opõe a passividade,

E assim vive como alguém que está morrendo.

Mas que é que o invade

Quando dois namorados se acariciam?

A vida, mesmo absurda

Tem mais fios

Com que se urda:

Os namorados vazios

Viviam,

- Valiam!

E logo o céptico consente

Em viver freneticamente.

 

 

1363 - Aventura

 

A frescura da noite acaricia

As estrelas.

O universo inteiro cicia

Uma aventura suprema,

Escancaradas as janelas.

A esperança extrema

É que sempre assim será.

Talvez a morte não exista.

O que há

Talvez seja a conquista

Dum inesperado verso:

Um lado inédito a contemplar o Universo.

 

 

1364 - Apagar

 

Não se pode apagar a acção humana,

Tudo o que se fez de bem ou mal

Fica, enraiza-se e dimana.

Se do mal não se apaga o sinal,

Ele pode ser o trampolim

Com que me vou redimir

Caminhando lento até mim:

Só terei de encetar outro porvir.

 

 

1365 - Miragem

 

Tens um sonho e uma imagem,

Na imagem tens uma ilha:

Não poderás libertar-te da miragem

Tua filha!

Por muito que seja fútil,

Que te cobre com usura,

Jamais poderás abandonar tua inútil

Procura.

  

 

1366 - Elida

 

Estúpida é a vida,

Idiota, o saber

Enquanto a sabedoria não elida

O tempo a correr.

O estádio da alegria constante!

Inútil é qualquer esforço

Que adiante

Me não pinte dele o escorço.

Pior é que ao fim do corso

Nem um traço se lhe implante.

Esta ausência que me demite

É que faz que eu cante

- É que faz que eu grite!

 

 

1367 - Pessimistas

 

Os pessimistas não passam

De optimistas desenganados:

Nas grandes esperanças grassam

Depois os desesperos

Que os esmigalham aos bocados.

Para sermos sinceros:

Em si mesmos a esperança

É que feriram de desconfiança.

 

 

1368 - Lei

 

Legalidade nem sempre é justiça

E, sobre toda a lei, a lei do mais forte

Ou do mais astuto

É que domina a liça.

Questão de vida ou morte

É, afinal, ver o produto

Que grassa

Duma guerra:

A nossa desgraça

É a desgraça que dita as leis da Terra.

 

 

1369 - Emigrar

 

Que sentido tem

A história dum homem

Se se limita a emigrar do ventre da mãe

Para o dos vermes que o comem?

 

  

1370 - Culpa

                                                                                                     

Quando outrem nos incomoda

Reagimos violentos

Sem ver que da culpa toda

Partilhamos elementos.

Doutrem os modos

Fazemo-los todos.

Como desprezá-los

Sem sofrer abalos?

 

 

1371 - Liberdade

 

Liberdade é abrir asas

E voar,

É soprar as brasas

E incendiar.

 

E é também erguer casas

Para onde ir.

 

Liberdade é partir

E saber onde chegar.

 

Não é só levantar voo:

- É saber

Onde se quer

Aterrar

E saber quando o tempo chegou

Do retorno ao lar.

 

 

1372 - Medo

 

Os homens aliam-se no medo.

Os heróis, os génios e os justos

Conjuram o medo inteligente.

O pérfido não fica quedo:

O medo idiota paga os custos

Do que nele andar presente.

De facto,

A humanidade é dividida

Pelo pacto,

Pela aliança

Contra o medo duma vida

Que jamais se alcança.

 

 

1373 - Criador

 

É bom um homem sonhar ser

Um deus criador

Em certa altura da vida:

Quando a vida não tiver

Outra cor,

Ali encontrará sua medida.

 

 

1374 - Feias

 

Como nos agradaria

Que tudo fosse alegria!

E de quanta dor são cheias

As coisas feias!

Que fúria de correr e de matar

Quem no-las fabrica, se calhar,

Porque, marinheiros pobres diabos,

Nunca conseguimos dobrar os cabos!

 

 

1375 - Serralho

 

Ama-se a festa

E o grande serralho,

O sultão daquela, o emir desta,

Sempre em busca duma carta do baralho.

 

E o jogo sempre chega ao fim

Sem nunca ter chegado a mim.

 

E a mulher que então me resta

É sempre a mulher que não presta.

 

As outras são outra coisa,

Só elas têm a mão

Em que poisa

O coração,

Tão macia

Que quase a não

Sentia,

As outras têm tudo

Porque não são

Sobretudo

A realidade funesta

Desta

Que tenho à mão.

 

Porque não são!

 

Mera marca do sonho

Em que deponho

A ilusão,

Se fossem jamais seriam

O que as festas prometiam,

Mas outra vez decepção.

...E aquilo que a vida mente

É ser assim indefinidamente.

 

 

1376 - Operário

 

Se um operário adoece,

A miséria das misérias

Da espécie humana acontece.

São trinta dias de férias,

Mas sem féria não se aquece.

E se o armário comesse?

A barrigada da fome

Talvez assim não crescesse...

E o que a família lhe come

Das cadeiras não aflora

E cada dia piora.

É por isso que as crianças

Nesse entrementes não brincam:

Jogam para trás as tranças,

A dor de barriga fere-as

E até os móveis tarrincam!

Se um operário adoece

A miséria das misérias

Da espécie humana acontece.

 

 

1377 - Milagres

 

Aos sete anos

Todas as coisas são milagres.

Não há danos

Nem desenganos

Que evitem que as consagres.

No país das maravilhas

Nada nos tira as certezas:

Um papel e umas presilhas

Soltam a estrela que presas

Ao vento, pelas esferas.

É teu grito nos espaços

E o fio que se não vê

Leva o sonho que é o das eras

Alargando, infindo, os braços

Até

Que aconteça, quem sabe, um dia

Incarnar a ousadia

Da nossa incurável fé.

                                     

 

1378 - Problema

 

O problema da cultura

É que nos enriquece a mente

De saberes

Enquanto o coração perdura

Indigente

Em teres e haveres.

 

 

1379 - Feliz

 

Não são as pessoas

Que te tornam feliz.

És feliz quando te doas

De raiz:

Quando alteras as matrizes

E tornas as pessoas felizes.

 

 

1380 - Esperas

 

O homem não é mau

Nem a mulher.

Ele apenas se fincou no varapau

E deixou de correr.

A mulher, não, andou em frente

E, enquanto se adianta,

Discreta o homem suplanta

Mais e mais, presentemente.

 

É o fim do mundo,

O fim de muitas eras...

- É por isto

Que não desisto:

Por isto é que me inundo

De tantas esperas!

 

 

1381 - Eterno

 

É verdade

Que nada é eterno.

Resta uma singularidade:

- Num beijo terno

Dás-me a eternidade!

 

 

1382 - Velho

 

Terra sem água

É uma mágoa

Gretada.

Um velho se lhe equipara:

A vida mal regada

Acaba de cara

Engelhada.

 

 

1383 - Velocidade

 

Tanto corremos atrás da felicidade

Que, quando a encontramos,

Já não travamos,

Mantemos a velocidade.

                     

Passada além,

A felicidade entontece

E até nos esquece

O que ela foi para alguém.

 

Esta corrida

Sem rumo definido

É o actual sentido

Da vida:

 

- É o nada

Duma civilização perdida

Na estrada!

 

 

1384 - Medo

 

Todos temos medo,

Primeiro, de que nos julguem banais,

Depois, de que nos suspeitem loucos.

Um medo, porém, me põe quedo,

Pior que todos os mais,

Ante o qual os mais são poucos:

 

É o medo de aceitar

Que não há uma pessoa sequer

Em nenhum lugar

Que me quer.

 

 

1385 - Capa

 

As palavras nada são,

O que fazemos, também não:

Sempre o que somos nos escapa.

Tudo é apenas uma capa

Que pomos,

Que nem sequer evita

Que sejamos nesta fita

O que somos.

 

 

1386 – Sozinha

 

Uma mulher sozinha

Quer um homem.

- E os olhos a comem...

                                                                                     

Se para o café se encaminha,

É suspeita,

Se nele se senta, é atreita

A uma aventura.

 

Se é verdade que a procura,

Não a consegue:

Por mais que o homem cegue,

Para o homem é insegura.

 

Nela a poesia

É pura;

Nele a fantasia

Só na cama a depura.

 

E ela, sozinha,

Assim continua a litania

Da monótona ladainha

Do dia a dia...

 

 

1387 - Arrogância

 

A arrogância

É uma distância

Frente aos mais.

Porém, no fim,

Perdido em meus tremedais,

Distancio-me é de mim.

 

 

1388 - Devagar

 

Por que chegamos tão devagar

À conclusão de que a vida

É para se gozar?

Que a música é divertida

Para se dançar?

Que o chão

É bom para dormir

E nenhum colchão

Tem a virtude

De melhor nos fazer sentir

Nem dar saúde?

 

É tão simples a verdade!

- Só que se adia para a eternidade...

 

 

1389 - Adeus

 

Quando digo adeus a alguém,

Ao fim não lhe digo adeus,

Ou digo, mas ele nem

Sonha aquilo que contém

Cada qual dos gestos meus:

                                                                     

Se lhe disse adeus, no fim,

Disse-o a uma fatia

De mim

Que com ele se partia.

 

 

1390 - Feliz

 

O problema de quem é feliz

É que infeliz se sente

De tão feliz ser.

Não o diz

A toda a gente

Por ninguém o compreender.

 

Não é por culpa da alheia

Infelicidade.

- É por ter a vida cheia

E doravante

Só topar diante,

Eterna, a escuridade.

 

 

1391 - Basta

 

Amar e ser amado

Não basta.

Falar com os amigos um bocado

Só me arrasta

Para o vazio

E a família deixa-me fastio.

                                                                     

Falo e sai-me a palavra;

Ergo a mão e ela lavra

Minha vida obediente;

Respiro: o pulmão é também eficiente...

 

Só que em tudo que de mim sai,

Com todos com que me dou,

Não sou eu quem nisso vai:

- Nunca sou, nunca, quem sou!

 

 

1392 - Deixo

 

Deixo a voz adejar pelos espaços,

Pousar nos ombros de qualquer um

E murmurar-lhe abraços.

Meu corpo de sítio algum

 

Solto a dançar

No meio da pista

Do lugar,

Até que nem eu lhe resista.

 

Liberdade inteira

Ao todo e a cada parte,

No gesto e na maneira,

Tudo se dá e me reparte.

 

Só que aqui dentro, no fim,

Sozinho, sem ninguém,

Sou de mim próprio refém,

Fico aprisionado em mim.

 

E não há dinheiro

Que de vez resgate o prisioneiro.

 

 

1393 - Pedaços

 

A humanidade corre,

Corre como louca

A dominar os espaços,

A ver se não vê que morre,

Porque sempre a terra é pouca

A quem tem a alma em pedaços.

 

 

1394 - Arriscar

 

Arriscar a madrugada

Redunda em noite amiúdo.

Porém, nada arriscar

É desistir do luar:

- Quem não arriscar nada

Arrisca tudo!

 

 

1395 - Fantasia

 

Como nos mente

A pretensa força das verdades:

- Com sorte, uma só fantasia

Mudaria

Completamente

Um milhão de realidades!

 

 

1396 - Saudade

 

Entre a multidão, sou um monge

De saudade.

Que me invade?

- Um amor, uma amizade

Longe...

 

 

1397 - Ilhéus

 

Ilhéus,

Vivemos nesta ansiedade

Das pontes que rasguem véus,

Que abram rotas para os céus

Além do cais da cidade.

 

Numa Terra pequenina

Nada escapa desta sina,

Mesmo se somos incréus.

 

 

1398 - Adiada

 

Marinheiro da viagem inacabada,

Aqui estou na amurada.

Nem senhor, nem escravo, apenas servo,

Por enquanto apenas observo.

Eterno infante a sonhar que seria

Rei,

Quem sabe se algum dia

Desembarcarei?

 

 

1399 - Experiência

 

Como nos demora

A mórbida curiosidade

Em tudo quanto é falência:

Da guerra na crueldade,

Da fome na penhora,

Das ideologias na maledicência!

...Sem vermos quanto qualquer experiência

Na maldade ou na bondade,

É aterradora.

 

 

1400 - Quem?

 

Numa amizade

O que é ficção, o que é verdade?

- Respectivamente,

O mundo fora da cabeça

E o de dentro que me aqueça.

...Assente,

Porém,

Do ponto de vista de quem?

 

 

1401 - Olvido

 

Custa muito imaginar

Que a vida tem um sentido

Sem tê-lo por referência

A alguém a quem muito amar:

Quando a vida cai no olvido 

É por carência

De amor vivido.

 

 

1402 - Amanhã

 

Era assim outrora:

- O que é

Determina o que se faz.

E agora:

- Virá o ser de alguém atrás

Do que ele puser de pé.

Amanhã,

Ser e fazer, cada qual aspira

À verdade louçã:

- Serão, à vez, o que um do outro retira.

 

 

1403 - Adoptadas

 

As eternas crianças adoptadas

Que somos desde até três milhões de anos,

De esperanças fatais já profanadas,

Vivemos quase só de desenganos.

Jogamos toda a vida

A tentar localizar a mãe perdida

E quando a julgamos surpreender

Finge ela sempre não nos conhecer.

Desolados,

Continuamos, pela eternidade,

Órfãos adoptados,

Qualquer que seja nossa idade.

 

 

1404 - Relógio

 

Um relógio digital

Não é um relógio, é uma idade:

Cada instante é nele igual,

Não há descontinuidade.

Outrora, no mostrador,

Os ponteiros apontavam

De cada instante o pendor:

Um antes com um depois

Entre si se harmonizavam

Na roda que é deles dois.

Era então desta harmonia,

Perdida já no presente,

Que a antiguidade fruía.

Hoje, não, ficou ausente:

- Sem passado nem porvir,

Já ninguém sabe aonde ir.

 

 

1405 - Amigos

 

Para vir a ter amigos

Temos de sê-lo primeiro,

A começar nos umbigos

De nós próprios por inteiro.

 

A maior aspiração

Duma pessoa qualquer

É sentir-se necessária.

Ajuda noutrem, então,

Este voto a acontecer,

Torna-o tua lei primária.

 

A maior virtude

É a amabilidade.

O amor nos ilude:

Não se ama toda a humanidade.

Chegar a toda a gente

Só a amabilidade o consente.

                                     

Jamais

Tentes impressionar os mais:

Dá-lhes antes o prazer

De a ti o virem a fazer.

                                     

Sê entusiasta!

Nada de importante nem digno de pasmo

Jamais foi conseguido sem entusiasmo,

Qualquer que fora sua casta.

                     

Sê positivo, que avivas

Sebes contra os que distraem,

Que ao vazio nos arrastam.

As pessoas positivas

São as pessoas que atraem.

As negativas afastam.

                                     

O que a alguém lhe vai pedir

Para se me pôr a par

Será o meu gosto de ouvir,

Muito mais que o de falar.

                     

A má língua diminui

Muito mais quem a pratica

Que aquele sobre quem flui

E que com ela não fica.

                     

Trata os outros pelo nome,

Emprega-o vezes sem conta:

Todos temos muita fome

De tudo o que nos aponta.

                     

O antídoto universal

Contra a tristeza da vida

É a tua medida

De ser jovial.

 

Divergir é natural

E o conflito é resolvido

Sempre que for assumido

Com delicadeza leal.

 

Se fores tentado a esmo

A ironizar com alguém,

Assegura-te que quem

Ironizas és tu mesmo.

 

Tenta interessar-te a sério

Pelos mais, que eles então

Deles próprios falarão,

Partilharás seu mistério.

 

Um sorriso nada custa

E dá grandes dividendos:

A teu rosto então o ajusta,

Ricos tornas teus remendos.

 

Esta é a lei que enfim tu gravas

Em actos que não se esquecem:

Faz aos mais o que gostavas

Que os mais a ti te fizessem.

 

 

1406 - Oprimidos

 

Por que será que os oprimidos

Sofrem tanto?

E como é que os opressores

Não ouvem os gemidos,

O pranto,

As dores?

Porém, quem são?

Onde estão?

Do lado de cá do muro

Estamos todos bem perto;

Do lado de lá, se procuro,

Não há ninguém, é o deserto.

Os males todos atingem,

Pobre ou rico e quantos fingem

Mudar de campo algum dia.

Como os demais,

No fim tudo é fantasia

E somos todos iguais:

- Varridos pelo tufão,

Aqui vamos,

Nem servos nem amos,

Vaga poeira do chão! 

 

 

1407 - Cume

 

Chegámos ao cume

Da dor:

Por que é que a flor

Cresce do estrume?

- Tem-lhe horror

E então trepa até o lume.

...E por amor

Aí soltamos o perfume!

 

 

1408 - Nada

 

Nada

É tão bom como o pensei.

Por que é que o pensamento

Não é lei?

Por que alimento

A madrugada

De tormento?

Ou é a vida que é amputada

Em cada

Momento?

                                     

 

1409 - Poder

 

Se todo o poder é corrupto,

Porque não são serviçais

Corrompem então muito mais

Os poderes do poder absoluto.

 

 

1410 - Além

 

Se uma vida se procura

Para além das alegrias

Provisórias que há na Terra,

Deprecia-as

Na loucura

De quem até lhes faz guerra.

De costas à diversão,

Sem o sabor do recreio,

Desinteresse é o quinhão

De quem se perde no meio.

De olhos presos nas estrelas

E pés a arrastar no chão,

Esvai-se em perdidas velas

Que jamais o acordarão.

Perdendo o meio, é do fim

Que acaba perdido assim.

                                                     

 

1411 - Corrida

 

Corrida

Atrás de algum

Sonho encantado,

A vida

É cada um

Para seu lado,

Cada qual

Atrás daquilo

Que o toca.

O mal

É persegui-lo

Sempre só fora da toca:

É que longe, o real

Fatalmente se desfoca

E desemboca

No anonimato geral.

Anónima, a vida,

Desencantada,

É delida.

- E a corrida deu em nada!

                                                                                                     

 

1412 - Cidade

 

A cidade

Não tem pedras nas calçadas,

Tem a minha mocidade

Com ilusões calcetadas.

 

 

1413 - Contendores

 

Param os contendores,

Engolem a ofensa,

Esquecem os pundonores

Só para terem licença

De ser como toda a gente:

É a fuga à beliscadura

De querer ser diferente

- E sair da formatura!

 

 

1414 - Rio

 

Corre para a foz,

Sereno, o rio.

Chama por nós:

- Uma sereia de navio

É a voz

Do rio. 

 

     

1415 - Aldeia

 

É na aldeia

Que tudo se saboreia

E que as distâncias são belas:

Na cidade quem olha as estrelas?

Nem se lembram de que o céu existe!

Contudo, a aldeia não lhe resiste...

                                     

Mas é sempre a mesma fiel ânsia

De saborear a distância.

 

 

1416 - Neve

 

Não há maior felicidade

Que ao luar

Poder andar

Da noite na tranquilidade

Com a neve pelos joelhos.

Até, de novo criança,

O coração dos velhos

Outra vez o amor alcança!

                                     

 

1417 - Enfermeira

 

Duma enfermeira

O papel fundamental

É o da humana relação.

Sentada à travesseira,

Ela é o fanal

Em que bate o coração

Quando a pessoa atravessa

As marés do sofrimento

E quando já nada impeça

À morte este linimento.

Mais do que enfermeira,

Ela é a vida:

Nossa guarida

Primeira,

Até mesmo à despedida!

 

 

1418 - Infiéis

 

Os infiéis danam-se?

- Não é de seus reveses

Que o inferno se junca.

Os teólogos enganam-se

Muitas vezes.

Os bons samaritanos, nunca!

 

 

1419 - Farto

 

Da lei precisa estou farto,

É-me colete de forças!

De minha espécie me aparto,

Não se parto quando torças,

                                                                                                                     

Mas se demitido acato

Toda a regra a bom recato!

 

Sou de espécie desregrada!

É tão raro o definido,

Que nunca vou pela estrada

E, se é de único sentido,

 

Ando sempre em contramão:

Meu sentido é o da excepção!

                     

Um caso claro

É um caso raro

E, a não ser que eu reconheça

Que não há lei que me meça,

De vez serei condenado

A só ser um pau mandado!

 

A menos que me alguém ate

Desde as mãos à consciência,

Não, não sou tal disparate

E estou perdendo a paciência!