DÉCIMA PRIMEIRA REDONDILHA
JAMAIS TEM IDADE
Escolha aleatoriamente um número
entre 1289 e 1419 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagemparticular para o seu dia de hoje.
1289 - Jamais tem idade
Jamais tem idade
Nem métrica certa
Quanto desconcerta
Na sublimidade.
1290 - Milagre
Há um milagre em que não acreditamos
Mais que andar em água sem remos:
É que quanto mais partilhamos,
Mais temos.
1291 - Basta
Basta um grão na roda,
Fumo de paixão,
O eclipse do senso,
Logo ao chão cai toda
A grandeza na ilusão...
- Mas jamais eu me convenço!
1292 - Fugir
Se eu fizer o bem
Vou atar os nós:
De mim não foge ninguém
Todos fugirão p'ra nós!
1293 - Dormir
Dormimos a sono solto,
Perdendo então nossos gados,
E depois eu me revolto?
- Ora! A quem dorme dormem-lhe os cuidados!
1294 - Lugar comum
Quando a fé se torna num lugar comum
Alguém pode acreditar
Que haja algum Natal nalgum lugar?
- Já não há milagre algum!
1295 - Sol
Quando, mulher, tu me despontas,
Caminhando minha vida fora,
És mais que o horizonte que me apontas,
És o sol a escapar dos braços da aurora.
1296 - Verdade
Muito sofres, que a inveja te maltrata,
Expõe-te na rua.
Mais ligeira a verdade se retrata:
Figura-se nua!
1297 - Vaidades
Das vaidades o combate
No pó talha todo o ser:
Um sopro as abate,
Outro as faz erguer!
1298 - Ideal
Tudo o mais, afinal,
Pode ficar sem tecto.
Porém, um ideal,
Jamais o anula um decreto.
1299 - Democracia
Democracia representativa
Reduz à maioria a vida vária;
Unir minorias em trama viva
Será democracia comunitária.
1300 - Alimentar
O nosso ideal
Consegue alimentar o mundo novo.
O mal
É que não sabemos alimentar o nosso povo!
1301 - Traseiras
Da civilização ocidental
Nesta porta das traseiras
Só há escórias, fedor pestilencial,
Do bricabraque as lixeiras
- Nutrindo os sonhos onde se abocanham
Os deserdados: e assim nos apanham!
1302 - Sofredor
Nada retenho excepto um parco verso
Salvo do oblívio:
O sofredor tem tudo no universo
Menos alívio.
1303 - Artista
Um artista não é escravo,
Não é também parasita,
O artista é um homem de fé:
Planta sobre o mundo um cravo,
Di-lo ao grande sol que fita,
Germina-o logo de pé.
1304 - Fé
O entusiasmo não é nada,
Vem e vai.
Actua a fé pela calada
E o mundo avança:
É certo que cansa,
Mas não se esvai
A longa trança.
1305 - Criança
"Mais alto!" - grita a criança.
O impulso do baloiço é todo meu,
Mais alto, p'ra ver se alcança
Um dia chegar quase até ao céu!
1306 - Pouco
Sábio, tratam-no por louco
Quando diz:
Quem se contenta com pouco
É feliz.
1307 - Pintor
Um grande pintor
Não come nem bebe:
Em tudo se embebe
De cor.
1308 - Mulher
Nenhuma mulher dorme tão profundamente,
Abandonada e bela,
Que um toque de guitarra vibrante e dolente
Não a acorde à janela.
1309 - Representante
Quando nisto assenta,
A democracia não se dilui:
O representante representa,
Não substitui.
1310 - Eis
Da Ciência, eis a fatalidade:
Não é verdade, mas acredito.
E da Fé eis o conflito:
Não acredito mas é verdade.
1311 - Ilumine
A mulher não casa
Sempre que alguém fascine,
A mulher é sempre da casa
Em qualquer casa que ilumine.
1312 - Simples
Que importa fugir pròs lados
Se da busca não vem nada?
Os problemas complicados
Têm uma solução simples que é errada.
1313 - Moderno
Prisioneiro na jaula de aço e de betão,
O homem moderno
Desespera da situação:
- Não há fugas do inferno!
1314 - Desilusão
O artista moderno
Não tem fé na situação,
Suas obras são o inverno
Da desilusão.
1315 - Sabor
Só quem saboreia o ser
Sabe o sabor de saber.
1316 - Maretas
Que os loucos sejam encarcerados,
Os salvadores, crucificados
E os profetas, tão apedrejados,
Não é do destino, que os poetas
Com todos sofrem, mas a poesia
Jamais desabrocha das maretas
Do mar de ignorantes que a assobia.
1317 - Estrada
Ao longo desta estrada que corremos
Ninguém vai retroceder,
É a seguir para a frente que vivemos:
Se parar, eu perco o ser.
1318 - Amor
O amor é ridículo,
É o sorriso nos lábios
Quando doi o coração da aurícula ao ventrículo.
O amor é o dom dos sábios.
Amor é secar a lágrima triste,
Criar o próximo que distante existe.
Amor é olhar-te nos olhos,
Ser
E dizer tudo o que se tem para dizer,
Para além dos escolhos,
Sem dizer uma única palavra:
Teu fogo que por mim lavra.
Amor é quanto existe ou quase tudo
E o quase é o mais além, sobretudo.
Amor é a tua presença mesmo ausente,
Eu e tu no futuro já presente.
Amor é criança que nasce:
Vida que no tempo pasce.
Do vinho fragrância
Nos anos cujas latadas empo,
É renovar a infância
Dos perdidos no tempo.
Amor é olhar e sorrir
Àquilo que queremos que seja
O porvir
Que se almeja.
Mar límpido e azul,
Amor é respeitar tudo e todos
Para além do véu de tule
Dos tempos e dos modos.
Amor é saber que me amas,
Que, sendo terra, no céu me aclamas.
Amor é esperar ansiosamente junto
Ao telefone a tua chamada.
Só ser em conjunto
Ou não ser nada!
É sentir saudades
De todas as idades.
É aceitar ver um jogo de futebol
Quando só em teu peito ele te bole.
Transparência daquilo que tu sentes,
Amor é partilhar
(Mesmo se rangem os dentes)
Teu tempo e teu lugar.
É o coração a bater desordenado
Quando te vejo:
És meu outro lado
Que desejo!
Amor sou eu em ti:
Antes não vivi!
Darmo-nos mutuamente
Sem pedir nada em troca:
É a festa iminente
O que nos toca.
O amor em nós pressente
O transcendente.
Sagrado tom
De quanto peco,
O amor é um som
Que reclama um eco.
É não ter palavras que exprimam
O que é o amor,
Que nos cimos que nos encimam,
Só o estupor!
Amor, renascer
Do mais fundo em nós:
- Expandir o ser
E ser Deus após!
Dizer com lágrimas de alegria
Que te amo?
- És meu dia,
Por ti chamo!
Amor é o que deveria
Entrelaçar as pessoas:
Cada vez mais a euforia
Do parto das coisas boas.
É saber que alguém
Pensa sempre em nós:
Mesmo a solidão tem
Dentro uma voz.
Amar alguém que amamos
- E o céu se enche de reclamos!
Dar aos mais carenciados
Nossa carência de talharmos fados.
Amor é um vale de rosas vermelhas,
Um passarinho a voar,
Sabor ancestral das coisas velhas
Que mais além nos apontam um lugar.
É alimento,
É tentar esquecer-te e não conseguir,
Alegria e tormento
Com que em mim geras o porvir.
Encontrar uma carta tua
Sem selo
Na caixa do correio,
Amor é o sabor da lua
Enquanto velo
Sonhando em teu seio.
Sentir o coração
Bater fortemente
Fora de mão
Por dentro da gente.
Sentir um aperto delicioso
Que nos deixa... ai!,
A sofrer de tanto gozo
Que quem nele tropece
Até parece
Que no céu cai!
Amor é ficar jovem eternamente,
Acordar com um sorriso,
E, mesmo sabendo que isto mente,
Saber que só nisto é que há juízo.
Amor é o que mais puro temos na alma.
Luz que brilha nas trevas,
De idade em idade
Os furacões acalma
Orientando as levas
Da Humanidade.
Viver com os outros a bem,
Amor é o sorriso da vida,
Por isso as romarias contém
A toda e qualquer ermida.
Amor é compreensão
E força para viver,
Um ao outro dar a mão,
É mais que o fundo do ser,
Amor é o fundo sem fundo:
Amor é a salvação do mundo!
1319 - Praia
Caminho ao longo da praia:
Areia juncada de moluscos humanos
À espera que alguém lhes descontraia
A concha do sonho e dos enganos.
1320 - Muros
De noite é que viajo,
De noite acordam os monturos
E, quando reajo,
Oiço a respiração dos muros.
1321 - Erma
Pela História adiante,
Na Terra eternamente erma,
A depravação caminha oscilante
De berma para berma.
1322 - Medir
Quando uma mulher pára num jardim
Não é para me acolher num amplexo,
É para medir em mim
O peso inteiro de seu sexo.
1323 - Sorrir
Foi quando acabaram a guerra
Que rompeu o porvir:
Os homens se apoderaram da terra
E fizeram-na sorrir!
1324 - Colheitas
Na festa das colheitas,
A lagarada:
Os insectos ignoram as desfeitas,
O ar marulha de alegria descuidada.
1325 - Lapidar
Enquanto de meu sangue tu te gozas
Do mundo no lupanar,
Aqui estou, cheio de pedras preciosas
Por lapidar.
1326 - Sol
O sol nado,
Abro-me inteiro ao calor do sul:
Descongelado,
Sufoco de alegria azul.
1327 - Desponta
Cada vez mais rápida, a Terra gira,
O céu negro chama-nos de azul.
Por que é que o alvor desponta, delira
E se nos escapule?
1328 - Desvão
O artista afasta-se para o desvão
Atrás das formas mortas
Para redescobrir em si as portas
Da eterna criação.
1329 - Promessa
Cada novo dia
Traz uma promessa:
- O almoço, na manhã fria,
Com leite quente à cabeça.
1330 - Paladar
Vida, paladar
De cada momento:
Ruído de mar
No sopro do vento,
Um melro a cantar
Em meu pensamento.
É todo o lugar
No canto onde sento,
Pão a levedar,
Dos dias fermento.
E o granizo
Na paisagem
Com sorriso
De viagem.
1331 - Renasce
Como o pão que nós cozemos,
Bebo o vinho que pisámos
E penso
Da tarde no sol intenso,
No vento que encurva os ramos,
No rio que beija os remos.
Da noite que tudo engole
Nos renasce o dia:
- Prevalece o sol
Sobre a dor que nos feria.
1332 - Medidas
Não nasci para famoso
Nem das justas para as lidas,
Que a vida que me dá gozo
Não se mede em tais medidas.
Minha grandeza
É ser homem, cidadão,
Não é a beleza:
- Minha raiz é ser chão!
1333 - Some-se
Durante a infância
Permanentemente supus
Que só permaneceria a glória.
Porém, o comboio da História
Some-se na distância
A maior velocidade do que a da luz...
- Nada nele nos faz jus.
1334 - Libertadores
Os ditos libertadores
Jamais o são.
Eles e os conquistadores
Têm-se à mão
A distância tão pequena,
Que, entre ambos, nem o espaço duma pena!
1335 - Avesso
A realidade
É o lugar das coisas:
No avesso, em verdade,
Jamais repoisas.
1336 - Verdade
Juro dizer a verdade,
Só a verdade
E nada mais que a verdade:
- Como tudo, ao fim e ao cabo, é falsidade!
A chegada doutra Era,
Atingirmos outra Idade
Jamais foi, será, nem era!
Que bom que era,
Na realidade,
Que tudo um dia acontecera!
1337 - Triaga
No povo
A miséria embriaga:
Quando se gora o ovo,
Bebe a triaga.
1338 - Frio
Dum amor ficou o vazio
E a cidade não percebia,
Tudo ria como sempre ria
E corria, corria
Num corropio.
- Um coração, porém, está cheio de frio!
1339 - Murro
Mais longe nos convida
Que quanto nos ensina
A escola da má sina
- Um murro certeiro na cara da vida!
1340 - Anseio
Porque escrevo?
Porque urge imobilizar
Cada anseio fugidio
A que me atrevo,
Cada linha em seu lugar,
Onde lhe estudo o feitio.
Ali é que me revela,
Rígido contra a parede,
O tamanho da procela
Com que o íntimo me abala.
Depois vede
Que a divagação profunda,
Visando-me bala a bala,
É de paz que ao fim me inunda!
1341 - Verão
No Verão
O sol ilumina
O riso brusco das crianças.
No chão
É uma algazarra divina:
Dos raios do sol urdem tranças,
Jogam lestas entre si
E o céu fica
Com o sol caindo em bica
Todo inteiro em frenesi.
1342 - Amornam
Como os carneiros brancos na pastagem,
As casas espalhadas junto à margem
Amornam o ar,
Calmas, a pastar.
1343 - Pormenor
Atender ao pormenor
É o meu credo:
O segredo
De atingir sempre o melhor.
Pode ser a diferença
De atingir
Ou fugir
Dum objectivo que vença.
As pequenas coisas são
Uma chave
Que se crave
Onde todas se unirão.
- Em cada passo pregresso,
No final,
É o sinal
Do melhor de meu sucesso.
1344 - Ingénuos
Somos ingénuos, ai como, ai quanto!
Torturamos a futilidade
À procura da felicidade
E no fim só temos pranto.
Tanto cremos que as mãos nos damos
- E uns aos outros nos devoramos!
1345 - Universal
Não nos poderá irmanar
A felicidade, afinal?
- Em todo e qualquer lugar
Só a dor nos faz falar
Uma língua universal.
1346 - Sofridos
É mais fácil que se entendam
Dois entes muito sofridos
Porque a dor os humaniza.
Os demais os olhos vendam.
Nos felizes, os sentidos
(Já que frívolo, desliza
Por sobre todas as coisas
Quem não lê da dor as loisas)
Voam pela fantasia
E toda a noite é de dia.
Com medo de lhes falhar
Esta alegria falaz
Vão-se do mundo escudar,
Que dela não é capaz.
Fechados e defendidos
Cada qual numa tapada,
São animais protegidos,
Já não se adestram a nada.
1347 - Par
Uma pública opinião
E um sentimento popular
Nem sempre andarão
A par.
O popular sentimento
É o que faz o condimento
Da mesa em volta ao jantar:
São todos entre si a partilhar.
A quem lhes faz a sondagem,
Uma pública opinião
Será uma mensagem
Que os mesmos ali, então,
Só p'ra tal fim urdirão.
1348 - Companheiro
Quase todas as crianças
Descobrem um companheiro
Que as ajude nas andanças
Da vida no formigueiro.
Transformam-se então depois:
Cada um torna-se dois.
Assim, nem que o não esperem,
Da infância a melhor magia
Partilha a dor e a alegria
De crescerem.
1349 - Amigo
Um amigo é a sensação
De reconhecer-me em algo,
De ter ao lado um igual.
Um amigo é meio irmão,
Uma ponte donde galgo
Todo o espaço sideral.
Mais que ponte,
É meu caminho
Da família ao horizonte
Que já não trilho sozinho.
1350 - Felicidade
Por toda a parte a busca da felicidade...
E uma busca perdida enfim por toda a parte,
Porque a verdade
É que a felicidade se não reparte
Nem há nada em que se acarte.
A felicidade ata os nós
Daqui aos outros, mundo além até ao fim...
- Encontra-se-lhe a ponta dentro em nós:
A felicidade mora em mim!
1351 - Prazer
A felicidade
É um mistério a resolver,
Embora também queira a capacidade
De sentir prazer.
O problema é que esquecemos
O prazer que sentimos
Quando amamos e vivemos
Todo o amor que usufruimos,
Quando temos companhia,
Nossos amigos à mão,
Vivemos na moradia
Que escolheu o coração,
Esqueço mesmo a saúde
Quando a tive quanto pude.
Quando esqueço quanto sinto
É que, indiferente, minto
Graves infelicidades
Que enganam minhas verdades.
Sou feliz mas me desprezo,
Depois nada mais tem peso.
É quando tudo me falta
Que meço quanto foi alta
A ventura que perdi,
Tarde demais quando o vi.
No esforço de refazer-me
É que deixo de ser verme,
Meço o tamanho do salto:
- Quanto o comum ficou alto!
1352 - Outra
Quem quer pôr de lado a fé,
P'ra poder sobreviver
Logo uma outra põe de pé.
Não é possível viver
Sem acreditar em nada:
- Ser
É abrir uma estrada!
1353 - Gargalhada
A vida é uma gargalhada
Reprimida
A esconder a amargura passada
Em demanda da quimera
Perdida
Dum paraíso como nunca houvera
Na humanidade.
O riso esconde o desencanto
De nossa impotência
Para a felicidade.
Todo o canto
Engana o pranto.
Ignora a demência
De ser feliz às vezes,
Quando nenhum progresso nem invento,
Por mais que corram os meses,
Nos libertará do sofrimento.
O mais que nós conseguimos
Contra tal fatalidade
Não é a dor tirar dos cimos,
É mudar-lhe a identidade,
A ver se nos iludimos.
Mas, na hora da verdade,
- É disto no fim que rimos!
1354 - Certeza
"Se alguma vez tive a certeza
De alguma coisa é agora!"
- Jura o amante que se preza.
O desengano não demora:
Ninguém,
Por mais que do amor ande perto,
Por mais que seja pessoa de bem,
Dele jamais pode estar certo!
1355 - Sonhos
Os fracassos mais bisonhos
É que são a despedida
Sem mais chegada ou partida:
É mais difícil despertar falhados sonhos
Que trazer mortos à vida.
1356 - Engano
Não sei bem como dizer-te,
Nem disto sequer sei bem:
A vida é engano solerte,
Desde sempre e mais além.
A vida só nos dá a mão nesta trilha:
- Tudo, tudo é uma armadilha!
1357 - Natureza
Hoje em dia
Os meios colectivos de destruição
Atingiram tal aperfeiçoamento
Que, por covardia,
Todos à guerra renunciarão.
Da paz o elemento,
Todavia, são as crianças
Que, por não terem siso,
Continuam a entrançar as tranças
De qualquer paraíso.
A criança e o louco
Ignoram quanto fórmulas, pactos, teorias
Valem tão pouco
Ante o que precisarias:
- De nenhum deles jamais dimana
A mudança da natureza humana.
1358 - Mensagem
Nem eu nem ninguém tem
Uma mensagem
Porque as mensagens nem
Existem
E quando existem agem
De tal modo que despistem:
Se mensagem alguma houver
Ninguém será capaz de a entender.
Este é o beco sem saída
Em que consiste a vida.
Viver
É o muro perfurar
À espera de o abater
Além do tempo e lugar...
... Sem arma para o fazer!
1359 - Jogos
Todas as filosofias
São meros jogos de palavras,
Só que nos criam miragens.
Tudo é absurdo, dirias,
Mas é nestas lavras
Que cultivamos viagens
Imaginárias
Rumo ao infinito.
Ter por verdadeiro o mito
É aceitar as luminárias
Da ciência:
Projectar no discurso
É o derradeiro recurso
De quem tem inteligência!
Mas tudo segue o mesmo curso...
Ah! Que indigência!
1360 - Enganada
"Os amigos fiéis
Numa ilha misteriosa
Regida por uma princesa..."
- Já não há nada, sabeis?
Hoje é de tédio que goza
Qualquer homem que se preza.
Porque sempre tudo acaba
Da mesma maneira:
O amor se menoscaba,
A amizade é uma asneira,
Ambos são o egoísmo,
A mera necessidade
De alguém ter por companhia.
E o pior que há neste abismo
É que nunca a humanidade
Deu por esta fantasia
E assim vai trilhando a estrada
Perpetuamente enganada.
1361 - Cancro
O cancro é uma doença
De células em anarquia
Fazendo vida boémia.
Se a humanidade, um dia,
Pensa
Viver tal cacafonia,
Morreria
De leucémia.
Lento, o corpo se desfaz,
Primeiro o da pes
Soa, o da sociedade atrás:
- Viver não é mais
Que escolher entre impulsos naturais.
1362 - Fios
Isolado, deixaria
Que a vida fosse escorrendo.
Ao absurdo do dia
Opõe a passividade,
E assim vive como alguém que está morrendo.
Mas que é que o invade
Quando dois namorados se acariciam?
A vida, mesmo absurda
Tem mais fios
Com que se urda:
Os namorados vazios
Viviam,
- Valiam!
E logo o céptico consente
Em viver freneticamente.
1363 - Aventura
A frescura da noite acaricia
As estrelas.
O universo inteiro cicia
Uma aventura suprema,
Escancaradas as janelas.
A esperança extrema
É que sempre assim será.
Talvez a morte não exista.
O que há
Talvez seja a conquista
Dum inesperado verso:
Um lado inédito a contemplar o Universo.
1364 - Apagar
Não se pode apagar a acção humana,
Tudo o que se fez de bem ou mal
Fica, enraiza-se e dimana.
Se do mal não se apaga o sinal,
Ele pode ser o trampolim
Com que me vou redimir
Caminhando lento até mim:
Só terei de encetar outro porvir.
1365 - Miragem
Tens um sonho e uma imagem,
Na imagem tens uma ilha:
Não poderás libertar-te da miragem
Tua filha!
Por muito que seja fútil,
Que te cobre com usura,
Jamais poderás abandonar tua inútil
Procura.
1366 - Elida
Estúpida é a vida,
Idiota, o saber
Enquanto a sabedoria não elida
O tempo a correr.
O estádio da alegria constante!
Inútil é qualquer esforço
Que adiante
Me não pinte dele o escorço.
Pior é que ao fim do corso
Nem um traço se lhe implante.
Esta ausência que me demite
É que faz que eu cante
- É que faz que eu grite!
1367 - Pessimistas
Os pessimistas não passam
De optimistas desenganados:
Nas grandes esperanças grassam
Depois os desesperos
Que os esmigalham aos bocados.
Para sermos sinceros:
Em si mesmos a esperança
É que feriram de desconfiança.
1368 - Lei
Legalidade nem sempre é justiça
E, sobre toda a lei, a lei do mais forte
Ou do mais astuto
É que domina a liça.
Questão de vida ou morte
É, afinal, ver o produto
Que grassa
Duma guerra:
A nossa desgraça
É a desgraça que dita as leis da Terra.
1369 - Emigrar
Que sentido tem
A história dum homem
Se se limita a emigrar do ventre da mãe
Para o dos vermes que o comem?
1370 - Culpa
Quando outrem nos incomoda
Reagimos violentos
Sem ver que da culpa toda
Partilhamos elementos.
Doutrem os modos
Fazemo-los todos.
Como desprezá-los
Sem sofrer abalos?
1371 - Liberdade
Liberdade é abrir asas
E voar,
É soprar as brasas
E incendiar.
E é também erguer casas
Para onde ir.
Liberdade é partir
E saber onde chegar.
Não é só levantar voo:
- É saber
Onde se quer
Aterrar
E saber quando o tempo chegou
Do retorno ao lar.
1372 - Medo
Os homens aliam-se no medo.
Os heróis, os génios e os justos
Conjuram o medo inteligente.
O pérfido não fica quedo:
O medo idiota paga os custos
Do que nele andar presente.
De facto,
A humanidade é dividida
Pelo pacto,
Pela aliança
Contra o medo duma vida
Que jamais se alcança.
1373 - Criador
É bom um homem sonhar ser
Um deus criador
Em certa altura da vida:
Quando a vida não tiver
Outra cor,
Ali encontrará sua medida.
1374 - Feias
Como nos agradaria
Que tudo fosse alegria!
E de quanta dor são cheias
As coisas feias!
Que fúria de correr e de matar
Quem no-las fabrica, se calhar,
Porque, marinheiros pobres diabos,
Nunca conseguimos dobrar os cabos!
1375 - Serralho
Ama-se a festa
E o grande serralho,
O sultão daquela, o emir desta,
Sempre em busca duma carta do baralho.
E o jogo sempre chega ao fim
Sem nunca ter chegado a mim.
E a mulher que então me resta
É sempre a mulher que não presta.
As outras são outra coisa,
Só elas têm a mão
Em que poisa
O coração,
Tão macia
Que quase a não
Sentia,
As outras têm tudo
Porque não são
Sobretudo
A realidade funesta
Desta
Que tenho à mão.
Porque não são!
Mera marca do sonho
Em que deponho
A ilusão,
Se fossem jamais seriam
O que as festas prometiam,
Mas outra vez decepção.
...E aquilo que a vida mente
É ser assim indefinidamente.
1376 - Operário
Se um operário adoece,
A miséria das misérias
Da espécie humana acontece.
São trinta dias de férias,
Mas sem féria não se aquece.
E se o armário comesse?
A barrigada da fome
Talvez assim não crescesse...
E o que a família lhe come
Das cadeiras não aflora
E cada dia piora.
É por isso que as crianças
Nesse entrementes não brincam:
Jogam para trás as tranças,
A dor de barriga fere-as
E até os móveis tarrincam!
Se um operário adoece
A miséria das misérias
Da espécie humana acontece.
1377 - Milagres
Aos sete anos
Todas as coisas são milagres.
Não há danos
Nem desenganos
Que evitem que as consagres.
No país das maravilhas
Nada nos tira as certezas:
Um papel e umas presilhas
Soltam a estrela que presas
Ao vento, pelas esferas.
É teu grito nos espaços
E o fio que se não vê
Leva o sonho que é o das eras
Alargando, infindo, os braços
Até
Que aconteça, quem sabe, um dia
Incarnar a ousadia
Da nossa incurável fé.
1378 - Problema
O problema da cultura
É que nos enriquece a mente
De saberes
Enquanto o coração perdura
Indigente
Em teres e haveres.
1379 - Feliz
Não são as pessoas
Que te tornam feliz.
És feliz quando te doas
De raiz:
Quando alteras as matrizes
E tornas as pessoas felizes.
1380 - Esperas
O homem não é mau
Nem a mulher.
Ele apenas se fincou no varapau
E deixou de correr.
A mulher, não, andou em frente
E, enquanto se adianta,
Discreta o homem suplanta
Mais e mais, presentemente.
É o fim do mundo,
O fim de muitas eras...
- É por isto
Que não desisto:
Por isto é que me inundo
De tantas esperas!
1381 - Eterno
É verdade
Que nada é eterno.
Resta uma singularidade:
- Num beijo terno
Dás-me a eternidade!
1382 - Velho
Terra sem água
É uma mágoa
Gretada.
Um velho se lhe equipara:
A vida mal regada
Acaba de cara
Engelhada.
1383 - Velocidade
Tanto corremos atrás da felicidade
Que, quando a encontramos,
Já não travamos,
Mantemos a velocidade.
Passada além,
A felicidade entontece
E até nos esquece
O que ela foi para alguém.
Esta corrida
Sem rumo definido
É o actual sentido
Da vida:
- É o nada
Duma civilização perdida
Na estrada!
1384 - Medo
Todos temos medo,
Primeiro, de que nos julguem banais,
Depois, de que nos suspeitem loucos.
Um medo, porém, me põe quedo,
Pior que todos os mais,
Ante o qual os mais são poucos:
É o medo de aceitar
Que não há uma pessoa sequer
Em nenhum lugar
Que me quer.
1385 - Capa
As palavras nada são,
O que fazemos, também não:
Sempre o que somos nos escapa.
Tudo é apenas uma capa
Que pomos,
Que nem sequer evita
Que sejamos nesta fita
O que somos.
1386 – Sozinha
Uma mulher sozinha
Quer um homem.
- E os olhos a comem...
Se para o café se encaminha,
É suspeita,
Se nele se senta, é atreita
A uma aventura.
Se é verdade que a procura,
Não a consegue:
Por mais que o homem cegue,
Para o homem é insegura.
Nela a poesia
É pura;
Nele a fantasia
Só na cama a depura.
E ela, sozinha,
Assim continua a litania
Da monótona ladainha
Do dia a dia...
1387 - Arrogância
A arrogância
É uma distância
Frente aos mais.
Porém, no fim,
Perdido em meus tremedais,
Distancio-me é de mim.
1388 - Devagar
Por que chegamos tão devagar
À conclusão de que a vida
É para se gozar?
Que a música é divertida
Para se dançar?
Que o chão
É bom para dormir
E nenhum colchão
Tem a virtude
De melhor nos fazer sentir
Nem dar saúde?
É tão simples a verdade!
- Só que se adia para a eternidade...
1389 - Adeus
Quando digo adeus a alguém,
Ao fim não lhe digo adeus,
Ou digo, mas ele nem
Sonha aquilo que contém
Cada qual dos gestos meus:
Se lhe disse adeus, no fim,
Disse-o a uma fatia
De mim
Que com ele se partia.
1390 - Feliz
O problema de quem é feliz
É que infeliz se sente
De tão feliz ser.
Não o diz
A toda a gente
Por ninguém o compreender.
Não é por culpa da alheia
Infelicidade.
- É por ter a vida cheia
E doravante
Só topar diante,
Eterna, a escuridade.
1391 - Basta
Amar e ser amado
Não basta.
Falar com os amigos um bocado
Só me arrasta
Para o vazio
E a família deixa-me fastio.
Falo e sai-me a palavra;
Ergo a mão e ela lavra
Minha vida obediente;
Respiro: o pulmão é também eficiente...
Só que em tudo que de mim sai,
Com todos com que me dou,
Não sou eu quem nisso vai:
- Nunca sou, nunca, quem sou!
1392 - Deixo
Deixo a voz adejar pelos espaços,
Pousar nos ombros de qualquer um
E murmurar-lhe abraços.
Meu corpo de sítio algum
Solto a dançar
No meio da pista
Do lugar,
Até que nem eu lhe resista.
Liberdade inteira
Ao todo e a cada parte,
No gesto e na maneira,
Tudo se dá e me reparte.
Só que aqui dentro, no fim,
Sozinho, sem ninguém,
Sou de mim próprio refém,
Fico aprisionado em mim.
E não há dinheiro
Que de vez resgate o prisioneiro.
1393 - Pedaços
A humanidade corre,
Corre como louca
A dominar os espaços,
A ver se não vê que morre,
Porque sempre a terra é pouca
A quem tem a alma em pedaços.
1394 - Arriscar
Arriscar a madrugada
Redunda em noite amiúdo.
Porém, nada arriscar
É desistir do luar:
- Quem não arriscar nada
Arrisca tudo!
1395 - Fantasia
Como nos mente
A pretensa força das verdades:
- Com sorte, uma só fantasia
Mudaria
Completamente
Um milhão de realidades!
1396 - Saudade
Entre a multidão, sou um monge
De saudade.
Que me invade?
- Um amor, uma amizade
Longe...
1397 - Ilhéus
Ilhéus,
Vivemos nesta ansiedade
Das pontes que rasguem véus,
Que abram rotas para os céus
Além do cais da cidade.
Numa Terra pequenina
Nada escapa desta sina,
Mesmo se somos incréus.
1398 - Adiada
Marinheiro da viagem inacabada,
Aqui estou na amurada.
Nem senhor, nem escravo, apenas servo,
Por enquanto apenas observo.
Eterno infante a sonhar que seria
Rei,
Quem sabe se algum dia
Desembarcarei?
1399 - Experiência
Como nos demora
A mórbida curiosidade
Em tudo quanto é falência:
Da guerra na crueldade,
Da fome na penhora,
Das ideologias na maledicência!
...Sem vermos quanto qualquer experiência
Na maldade ou na bondade,
É aterradora.
1400 - Quem?
Numa amizade
O que é ficção, o que é verdade?
- Respectivamente,
O mundo fora da cabeça
E o de dentro que me aqueça.
...Assente,
Porém,
Do ponto de vista de quem?
1401 - Olvido
Custa muito imaginar
Que a vida tem um sentido
Sem tê-lo por referência
A alguém a quem muito amar:
Quando a vida cai no olvido
É por carência
De amor vivido.
1402 - Amanhã
Era assim outrora:
- O que é
Determina o que se faz.
E agora:
- Virá o ser de alguém atrás
Do que ele puser de pé.
Amanhã,
Ser e fazer, cada qual aspira
À verdade louçã:
- Serão, à vez, o que um do outro retira.
1403 - Adoptadas
As eternas crianças adoptadas
Que somos desde até três milhões de anos,
De esperanças fatais já profanadas,
Vivemos quase só de desenganos.
Jogamos toda a vida
A tentar localizar a mãe perdida
E quando a julgamos surpreender
Finge ela sempre não nos conhecer.
Desolados,
Continuamos, pela eternidade,
Órfãos adoptados,
Qualquer que seja nossa idade.
1404 - Relógio
Um relógio digital
Não é um relógio, é uma idade:
Cada instante é nele igual,
Não há descontinuidade.
Outrora, no mostrador,
Os ponteiros apontavam
De cada instante o pendor:
Um antes com um depois
Entre si se harmonizavam
Na roda que é deles dois.
Era então desta harmonia,
Perdida já no presente,
Que a antiguidade fruía.
Hoje, não, ficou ausente:
- Sem passado nem porvir,
Já ninguém sabe aonde ir.
1405 - Amigos
Para vir a ter amigos
Temos de sê-lo primeiro,
A começar nos umbigos
De nós próprios por inteiro.
A maior aspiração
Duma pessoa qualquer
É sentir-se necessária.
Ajuda noutrem, então,
Este voto a acontecer,
Torna-o tua lei primária.
A maior virtude
É a amabilidade.
O amor nos ilude:
Não se ama toda a humanidade.
Chegar a toda a gente
Só a amabilidade o consente.
Jamais
Tentes impressionar os mais:
Dá-lhes antes o prazer
De a ti o virem a fazer.
Sê entusiasta!
Nada de importante nem digno de pasmo
Jamais foi conseguido sem entusiasmo,
Qualquer que fora sua casta.
Sê positivo, que avivas
Sebes contra os que distraem,
Que ao vazio nos arrastam.
As pessoas positivas
São as pessoas que atraem.
As negativas afastam.
O que a alguém lhe vai pedir
Para se me pôr a par
Será o meu gosto de ouvir,
Muito mais que o de falar.
A má língua diminui
Muito mais quem a pratica
Que aquele sobre quem flui
E que com ela não fica.
Trata os outros pelo nome,
Emprega-o vezes sem conta:
Todos temos muita fome
De tudo o que nos aponta.
O antídoto universal
Contra a tristeza da vida
É a tua medida
De ser jovial.
Divergir é natural
E o conflito é resolvido
Sempre que for assumido
Com delicadeza leal.
Se fores tentado a esmo
A ironizar com alguém,
Assegura-te que quem
Ironizas és tu mesmo.
Tenta interessar-te a sério
Pelos mais, que eles então
Deles próprios falarão,
Partilharás seu mistério.
Um sorriso nada custa
E dá grandes dividendos:
A teu rosto então o ajusta,
Ricos tornas teus remendos.
Esta é a lei que enfim tu gravas
Em actos que não se esquecem:
Faz aos mais o que gostavas
Que os mais a ti te fizessem.
1406 - Oprimidos
Por que será que os oprimidos
Sofrem tanto?
E como é que os opressores
Não ouvem os gemidos,
O pranto,
As dores?
Porém, quem são?
Onde estão?
Do lado de cá do muro
Estamos todos bem perto;
Do lado de lá, se procuro,
Não há ninguém, é o deserto.
Os males todos atingem,
Pobre ou rico e quantos fingem
Mudar de campo algum dia.
Como os demais,
No fim tudo é fantasia
E somos todos iguais:
- Varridos pelo tufão,
Aqui vamos,
Nem servos nem amos,
Vaga poeira do chão!
1407 - Cume
Chegámos ao cume
Da dor:
Por que é que a flor
Cresce do estrume?
- Tem-lhe horror
E então trepa até o lume.
...E por amor
Aí soltamos o perfume!
1408 - Nada
Nada
É tão bom como o pensei.
Por que é que o pensamento
Não é lei?
Por que alimento
A madrugada
De tormento?
Ou é a vida que é amputada
Em cada
Momento?
1409 - Poder
Se todo o poder é corrupto,
Porque não são serviçais
Corrompem então muito mais
Os poderes do poder absoluto.
1410 - Além
Se uma vida se procura
Para além das alegrias
Provisórias que há na Terra,
Deprecia-as
Na loucura
De quem até lhes faz guerra.
De costas à diversão,
Sem o sabor do recreio,
Desinteresse é o quinhão
De quem se perde no meio.
De olhos presos nas estrelas
E pés a arrastar no chão,
Esvai-se em perdidas velas
Que jamais o acordarão.
Perdendo o meio, é do fim
Que acaba perdido assim.
1411 - Corrida
Corrida
Atrás de algum
Sonho encantado,
A vida
É cada um
Para seu lado,
Cada qual
Atrás daquilo
Que o toca.
O mal
É persegui-lo
Sempre só fora da toca:
É que longe, o real
Fatalmente se desfoca
E desemboca
No anonimato geral.
Anónima, a vida,
Desencantada,
É delida.
- E a corrida deu em nada!
1412 - Cidade
A cidade
Não tem pedras nas calçadas,
Tem a minha mocidade
Com ilusões calcetadas.
1413 - Contendores
Param os contendores,
Engolem a ofensa,
Esquecem os pundonores
Só para terem licença
De ser como toda a gente:
É a fuga à beliscadura
De querer ser diferente
- E sair da formatura!
1414 - Rio
Corre para a foz,
Sereno, o rio.
Chama por nós:
- Uma sereia de navio
É a voz
Do rio.
1415 - Aldeia
É na aldeia
Que tudo se saboreia
E que as distâncias são belas:
Na cidade quem olha as estrelas?
Nem se lembram de que o céu existe!
Contudo, a aldeia não lhe resiste...
Mas é sempre a mesma fiel ânsia
De saborear a distância.
1416 - Neve
Não há maior felicidade
Que ao luar
Poder andar
Da noite na tranquilidade
Com a neve pelos joelhos.
Até, de novo criança,
O coração dos velhos
Outra vez o amor alcança!
1417 - Enfermeira
Duma enfermeira
O papel fundamental
É o da humana relação.
Sentada à travesseira,
Ela é o fanal
Em que bate o coração
Quando a pessoa atravessa
As marés do sofrimento
E quando já nada impeça
À morte este linimento.
Mais do que enfermeira,
Ela é a vida:
Nossa guarida
Primeira,
Até mesmo à despedida!
1418 - Infiéis
Os infiéis danam-se?
- Não é de seus reveses
Que o inferno se junca.
Os teólogos enganam-se
Muitas vezes.
Os bons samaritanos, nunca!
1419 - Farto
Da lei precisa estou farto,
É-me colete de forças!
De minha espécie me aparto,
Não se parto quando torças,
Mas se demitido acato
Toda a regra a bom recato!
Sou de espécie desregrada!
É tão raro o definido,
Que nunca vou pela estrada
E, se é de único sentido,
Ando sempre em contramão:
Meu sentido é o da excepção!
Um caso claro
É um caso raro
E, a não ser que eu reconheça
Que não há lei que me meça,
De vez serei condenado
A só ser um pau mandado!
A menos que me alguém ate
Desde as mãos à consciência,
Não, não sou tal disparate
E estou perdendo a paciência!