DÉCIMA QUARTA REDONDILHA
MAIS TENHO JUÍZO
Escolha aleatoriamente umnúmero
entre 1603 e 1693 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1603 - Mais tenho juízo
Mais tenho juízo
Se o riso é maior:
Do riso o esplendor
Vem repor-me o siso.
1604 - Controverso
Abordar com sensatez
Um assunto controverso
Tão raro é que dá nas vistas.
Pois há quem neste entremez
Seja perito e bem terso:
- Os chamados humoristas!
1605 - Dicionário
Dicionário é um calhamaço
Que me diz como se escrevem
As palavras que não sei.
Há, porém, este embaraço:
Como é que o consultarei
Se não sei como se devem
Escrever conforme a lei
As perguntas que lhe faço?
1606 - Amigo
Adivinho quanto és pobre,
Não tens pão de educação
E nem a morte te cobre
Nem com o pó do perdão.
Mesmo na maior miséria
Ninguém é pobre, porém,
Se recolhe a maior féria:
- O peito amigo de alguém!
E, se além dum, tu tiveres
Dois ou três, te gratifico:
- Os meus parabéns por seres
Alguém que é podre de rico!
1607 - Morte
Dizem que a morte é ilusão:
Fecha a porta, abre a janela.
- O pior, ao sê-lo ou não,
É ninguém se curar dela!
1608 - Desejos
O homem vive de desejos,
Procura e não esmorece.
Após mil e um arquejos,
Depois de obter, aborrece!
1609 - Portugal
Portugal é a grande barca
Onde Deus pôs quanto exijam,
Quanto o olhar no mundo abarca,
- Menos as mãos que a dirijam!
1610 - Automóvel
Automóvel: promoção?!
Automóvel: dignidade?!
- Ai, meu Deus, quanta ilusão
Troca por chapa a verdade!
1611 - Droga
Nossa vida habitual
É de estupefacientes:
Os drogados fazem mal,
Nós, porém, somos decentes,
Que nos guiam o jornal,
A rádio, a televisão...
E esta droga especial
Temo-la gratuita à mão.
O haxixe ou a cocaína
Sonham com o que não temos.
Mas o que a nós nos destina
Nossa droga é que julguemos
Nossa vida tão divina
Que tudo lhe escravizemos.
1612 - Construir
Que podemos construir
Que os outros nos não destruam?
- O melhor é convergir
P'ra que os prédios não aluam.
1613 - Defender
Defender é mau palpite,
Sugere logo um combate:
Toda a defesa é um convite
Para que alguém nos ataque.
1614 - Estúpido
Do homem o pior da folha
Não é de devir demente:
- Ser estúpido é uma escolha
Que só cabe ao inteligente!
1615 - Corda
Não são as feras que o deveras comem
Nem que no mundo perca seu lugar:
Se se der corda suficiente a um homem
Acabará então por se enforcar!
1616 - Rico
Convidam-me mas não fico
Neste mundo bem bebido:
É que ele é, p'ra além de rico,
Mortalmente aborrecido.
1617 - Balde
Não deites fora o teu balde
Quando em velho se converte:
Pode o novo ser debalde
Se descobres que ele verte.
1618 - Confia
Confia em Deus, mais confia
Na atadura com que apertas
Dos teus haveres a guia
E fecha as portas abertas!
1619 - Ofusca
É sábio que observe a fundo
O ditado sapientíssimo:
É na ignorância do mundo
Que ofusca o saber do Altíssimo.
1620 - Génio
Urge seduzi-lo à porta,
Ao dissidente do lado:
O que o génio não suporta
É logo não ser amado!
1621 - Inconsciente
Que importa que acorde
Se só encontro fardas?
- O inconsciente morde
Até os seus guardas!
1622 - Leitor
O que apaixona um leitor
Não é entrar doutrem na pele,
É que o génio, em seu fulgor,
Desatinava como ele.
1623 - Cairão
Nem sequer importa o amor,
A verdade é uma ilusão:
- Disfarcemo-nos de flor,
As abelhas cairão!
1624 - Segredo
O segredo dos segredos
É não ter segredo algum:
Todos passam por degredos
Sujeitos ao seu império.
É a magia do mistério:
- Não há mistério nenhum,
Só que ninguém acredita
E então matam-se à compita!
1625 - Sorte
Ter grande sucesso um dia
De obra-prima não é o porte,
Depende esta bizarria
De ser um caso de sorte.
1626 - Pesadelos
Todos gritam pela mãe,
Mas neles não há meus zelos:
- Um escritor sempre tem
Os seus próprios pesadelos.
1627 - Veneno
Três vezes a volta deste
Ao mundo que assim pequeno
Resultou de leste a oeste:
- Tens-te aí e és teu veneno!
1628 - Adormecer
O cinema e a TV
Vêm-nos adormecer
E nem um nem outra vê
Que isto é forma de morrer.
1629 - Lixeira
Pessoas cujas ideias
São lixeira em que me perco,
Se as furamos, estão cheias,
Do ventre à mente, de teias
Feitas de escória e de esterco.
1630 - Erro
A afirmação tem um erro
Que, por pequeno que seja,
De um em um aumenta o aterro
Em que por fim nos despeja.
1631 - Fome
A fome de que sofremos
É uma fome singular:
- São da abundância os extremos
Com nossa alma a gatinhar.
1632 - Rebanho
Co'a matilha teve ganho
Predando os mais e os enganos:
- Homem é ser de rebanho
Há milhões e milhões de anos.
1633 - Cio
Fica a terra em prenhidão
Pejada depois do cio
Quando o arado corta o chão
Como num queijo macio.
1634 - Católico
Não tem nada de apostólico,
Por isso todos se adoram:
É o vero mundo católico
Que os católicos ignoram.
1635 - Grito
Quando de mim vem o grito,
Em proporção é inumano:
- O zumbido dum mosquito
Mata o fragor do oceano!
1636 - Sucata
Tudo vai para a sucata.
Aqui vou, definitivo,
Um monte de lixo vivo:
- Só a lixeira ao fim me acata!
1637 - Comboio
Corre em vagões, memorável,
A procissão de meus dias:
A memória é interminável
Comboio de mercadorias.
1638 - Preguiça
Em Marx onde está o engano,
Que infantilidade o enliça?
- Ser de graça quanto é humano,
Todos darem-se à preguiça!
1639 - Discussão
O amor não é discussão,
Não por jamais discutir
Mas por discutir em vão:
- Quem ama discute a rir!
1640 - Saldo
Uma vida bem vivida
De alegrias e tristezas,
Quando no fim se liquida
É um saldo de miudezas.
1641 - Penso
Penso com minha cabeça?
- Começa o patrulhamento
Do inquisidor do convento
E crucificam-me à peça.
1642 - Alheio
Quem faz cortesia
Com chapéu alheio,
Todo o mundo um dia
Dele fica cheio.
1643 - Sobre
Se imigo lhe assalta a praça,
Então nada a amigo cobre
Quanto ao imigo mal faça,
Antes faça mal que sobre.
Se a mesa, porém, congraça
Quanto o apetite redobre,
Ao pitéu dê lauta caça:
Antes faça mal que sobre!
1644 - Lei
Lei-de-ser-obedecida?
- É bom infringir a lei
Quando, em vez de dar-me vida,
Torna a iniquidade rei.
1645 - Comunismo
Tão parecido a um farol,
Quanto iluminava o mundo!
- E, afinal, era um paiol
Que nos minava do fundo.
1646 - Dono
Não é que me tire o sono
Mas me tira a identidade:
Fanático é sempre o dono
Da seita mais da verdade.
1647 - Comunhão
Casa em comunhão de bens,
Foge à estrumeira dos porcos,
Não separes o que tens:
Casa em comunhão de corpos.
1648 - Audiência
O problema da audiência
É que aquele que tem mais,
Tem mais é gente de ausência;
De excelência, nem sinais.
1649 - Fardas
As fardas de que mais gosto
São as que o não querem ser:
- As fardas causam desgosto
Quando gostam do poder.
1650 - Lema
Há quem se meta na cama
Quando a injustiça é gritante.
Se metes os pés na lama,
Limpa os pés, segue adiante!
1651 - Inutilidades
A vida? Inutilidades
Que nem sequer dão p'ra vê-las.
E esta é a maior das verdades:
- Não posso viver sem elas!
1652 - Primeiro
Ante a luz, o pioneiro
Sozinho vale por dois:
- O sábio fará primeiro
O que o tolo faz depois.
1653 - Sair
Faz a tua entrada mansa
E vela por sair bem:
Depressa a fortuna cansa
De às costas levar alguém.
1654 - Podar
É inteligente podar,
Não só por fora de nós:
Para a mente depurar
Só a poda a torna veloz.
1655 - Financiar
Financiar é talvez arte:
O dinheiro passa, passa,
De mão em mão se reparte
E esvai-se como fumaça!
1656 - Carácter
Carácter e boa fama
Mais fácil é conservá-los
Do que perdê-los na cama
E depois recuperá-los.
1657 - Democracia
A democracia é um jeito
De virtude singular:
Democracia é o direito
De qualquer um se enganar!
1658 - Matam
É sempre que um Homem Novo
Fica logo mesmo aqui
Que os massacres sobre o povo
Matam o Homem Novo em si.
1659 - Muito
Se muito se quer amar,
Quão mais dinheiro é preciso!
Nisto se perde o juízo:
É que amor perde o lugar!
1660 - Sequela
Da razão eu me desquito
Quando é pior uma sequela:
Ninguém planifica um grito
Quando cai duma janela!
1661 - Filho
Se um filho gera quezília,
Não aguardes muito, actua:
É que um filho é da família
Só enquanto não cria a sua.
1662 - Morrer
Por mais que a vida desdobres
Juntando mais ter ou ser,
Todos nós, ricos ou pobres,
Um dia vamos morrer.
1663 - Pares
Se o dinheiro te engravida,
Pares coisa sem valor,
Que um homem não tem na vida
Mais que um verdadeiro amor.
1664 - Possibilidade
Sem a possibilidade
De fazer mal sem querer
Perde a vida a validade,
Fica sem razão de ser.
1665 - Escapa
Muito se fala e se cala
E o silêncio o melhor tapa:
- Ninguém muito tempo fala
Do que inteiro se lhe escapa.
1666 - Equilíbrio
Entre o dever e o lazer
Urge equilíbrio encontrar,
Sem deixar que num dever
Venha o lazer se mudar.
1667 - Segredo
Mantém longe, no degredo,
A nova que aqui não cabe:
- Guarda-se apenas segredo
Daquilo que se não sabe.
1668 - Solitário
Quem pratica o amor da vida,
Solitário, é muito mais
Que cinquenta mais sem brida
Que o pregam pelos quintais
...E nunca o trazem à lida!
1669 - Jamais
Nós jamais somos tão bons
Como dizem, se ganhamos,
Nem tão maus como nos sons
Das derrotas que averbamos.
1670 - Dia
Tanto de ti gostaria,
Tanto de ti, minha amada,
Que faria cada dia
Dia de não fazer nada!
1671 - Frustrações
Não te empanturres com os teus senões,
Não tenhas medo do que ali revelas.
É mais útil falar das frustrações
Do que comer, comer por causa delas!
1672 - Libertação
Dia da libertação,
O povo dança na rua.
E a verdade nua e crua
É que o povo apenas não
Reparou na falcatrua:
- Dele só muda o patrão!
1673 - Trabalho
Nunca vale muito a pena
(Justo não é o que se pensa)
Ver o que o mundo condena,
Que a verdade isto me acena:
- O trabalho não compensa.
1674 - Serradura
Quanto mais se expõe brilhante
Menos na escola se cria
A vida duma cultura:
- O produto mais constante
De qualquer marcenaria
Será sempre a serradura!
1675 - Volta
Eu daria a minha volta
Armado dum bom bastão
(Razões valem a quem valem)...
Sem este argumento à solta
Não basta a melhor razão
Para que as tricas se calem
E a vida siga tranquila
Sem que ninguém a repila.
1676 - Encontra
Na vida, se pretendes um discurso,
A um homem deves pedi-lo.
Porém, se for um acto, o teu percurso
Só na mulher encontrará o recurso
Que um bebé sempre encontra num mamilo.
1677 - Pirilampos
Os pirilampos dão luz
Sem explodir de calor
E nisto é que se traduz
Seu desafio maior:
- Quem nos dera um Parlamento
Assim, a cada momento!
1678 - Fanático
Fanático é um entusiasta
Com algo tão importante
Que sempre o leva por diante
E nem a morte lhe basta
Para ver que o frenesim
Nunca me diz nada a mim.
1679 - Aborrecer
Deus há muito se desinteressou.
O modo como a humanidade
Se conduz há-de
Gorar-lhe o voo:
Desperdiçar qualquer
Dos ancestrais apogeus
Acaba por aborrecer
Até mesmo um deus!
1680 - Êxito
Se êxito pretendes ter,
Então terás de esconder
(Esticando a paciência
Durante enorme bocado)
Toda a tua inteligência
Como se fosse um pecado!
1681 - Vacas
O mal das outras mulheres
Não é o dos punhais e facas,
É que, sempre que são minhas,
Ou me levam meus haveres
Ou as trato por rainhas
Em vez de as tratar por vacas!
1682 - Comentários
Dos outros os comentários
São nosso maior receio.
As vidas sofrem fadários
P'ra fugirem aos rosários
De tão temível enleio.
No fim, fazendo o balanço,
Medidos contras e prós,
Eis dos demais o que alcanço:
- Não são melhores que nós!
1683 - Tarefa
Sendo tosco, faz de grácil,
Sendo átomo, é sempre físsil,
Rouba, assalta, trapaceia,
Foge, acaba na cadeia...
- Levar uma vida fácil
É tarefa tão difícil!
1684 - Espera
Se as coisas nos correm mal
Reconforta-nos a ideia
De que podiam piorar.
Se pioram, afinal,
Nova espera se incendeia,
Pois só podem melhorar!
1685 - Pente
Não é preciso usar pente
Para uma pessoa ser:
Basta ser para ser belo.
Só a mulher inteligente
É que sabe envelhecer;
As mais pintam o cabelo!
1686 - Pareces
Que te importa ser perfeito
Se perfeito não pareces?
O mundo vai de tal jeito
Que, se a aparência não teces,
Se a não tomas bem a peito,
Ninguém te dá o que mereces.
1687 - Cumpridas
Os males são reparáveis,
Depende só das medidas
E dos esforços que envidas:
Obrigações agradáveis
São-no só quando cumpridas.
1688 - Apenas
Compra dos sonhos as penas,
Do passo além paga as dores.
Viver por viver, apenas
Basta aos cães e aos pensadores!
1689 - Robôs
Primeiro foram máquinas, depois robôs
Que mais nos libertaram de carência e dor
E quem os inventou e assim à mão os pôs
Jamais adivinhou o que nos veio impor.
Não foi só liberdade o que pintou a cor
Destes nossos horários como se supôs.
Foi também a frieza bem como o estupor
Que cada qual a si no final contrapôs.
E assim é que teremos de avisar, atentos,
Pelas repartições, pelo País além,
Que, à falta de robôs, embora um pouco lentos,
Alguns de seus clientes ainda se mantêm
Humanos bem inteiros dos quatro costados:
- Serão imprevisíveis quando maltratados!
1690 - Governo
O Homem jamais pode viver sem governo,
Sobretudo por ser animal social
E ter de organizar-se, para o bem ou mal,
Na busca dum oásis se calhar de inferno.
Porém, tais parasitas no intestino interno
Secretos proliferam sem que dê por tal,
Que as doenças atacam sem qualquer sinal,
Muito bem camufladas de semblante terno.
Então se é verdadeiro que o nosso intestino
É tão imprescindível que o temos de ter,
Não vamos confundir o necessário e o bom:
Por muito necessário que o queira o destino,
Governo não é um bem, são as tripas que houver
Com quantos parasitas lhes sopram o som.
1691 - Rir
Rir é bom, descontrai e é tanto das pessoas
Que nenhum outro ser o sofre como fado,
É o curativo à dor a nós predestinado,
Antes que de dor morras nem que te condoas.
O mais bizarro disto é que cantamos loas
A quem nos fizer rir, não vendo que o pecado
É que ele é um medianeiro para o nosso lado:
De nós é que nos rimos nas piadas que entoas.
Tanto se encerra em nós, tanto em nós é fechado
Este riso fagueiro cá dentro a fremir,
Que é o nosso distintivo das vivências boas.
É um carácter tão próprio que aqui nos é dado
Que, se algum dia os macacos aprendem a rir,
Pois transformar-se-ão de imediato em pessoas!
1692 - Fora
Amigo, vê se deitas de vez para fora
As tuas aventuras, histórias ou obras,
Que se as não deitares jamais te recobras
E assim te vais morrendo, perdido hora a hora.
Não julgues que me ocupo de qualquer demora
Nos desabafos teus sobre quaisquer manobras,
Dalguma confissão sobre a quem tu te dobras
Ou dos desejos teus de ir-te de vez embora.
Não é disto que trato. Se tu não deitares
Fora uma vez por todas o que for teu fado,
As obras e atitudes, os teus avatares,
As relações e amores, todo o teu traçado,
E se ao fim nisso inteiro não te projectares,
Espiritualmente ficas constipado!
1693 - Médicos
Se ao médico vais, pergunta,
Não resmungues entre dentes,
Que os resmungos se deploram.
Pergunta a pergunta junta:
- É que os médicos adoram
Dar lições aos pacientes!