QUINTA REDONDILHA
DE AMOR POEMA
MAIS LONGO
Escolha um número aleatório entre
538 e 629 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
538 - De amor poema mais longo
De amor poema mais longo
Marca a regularidade
Com que o amor nos invade,
A crescer em bolha, oblongo,
Até que a totalidade
Atinge no imo do ser.
No regular verso ver
Irei quanto me persuade
E quanto o fogo que queima
Não me queima mas me apura
Tão mais quão maior a teima
Em buscar o que me cura:
Um amor é aquela freima
Que ao largar-me me segura.
539 - Papagaios |
|
Papagaios de papel, |
Estrelas, eis nossos filhos. |
Gastamos vida a granel |
Fazendo-os voar por atilhos, |
|
Corremos ao lado deles, |
Sem fôlego até ficar. |
Despenham-se, arranham peles… |
Vamos caudas aumentar, |
|
Remendamos com carinho, |
Ajustamos, ensinamos, |
Garantimos o caminho, |
Que um dia voam juramos. |
|
Ei-los, finalmente, no ar! |
Mas precisam de mais corda, |
Continuamo-la a soltar. |
No novelo quão mais morda |
|
A guita ao desenrolar, |
Mais distante o papagaio |
De nós nos fica a pairar, |
Em volteio nobre e gaio. |
|
Breve a bela criatura |
Cortará a linha virtal, |
Planará livre e segura |
Pelo espaço sideral. |
|
Apenas então sabemos, |
Nas mãos vazias da ceifa, |
Que a casa voltar podemos, |
Que cumprimos a tarefa. |
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540 - Colecção |
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A vida é uma colecção |
De muitas pequenas vidas |
E todas elas vividas, |
Tal se fora a mão na mão, |
Um dia de cada vez. |
A descobrir a beleza |
Da flor que houver cada mês, |
Do animal a ouvir a reza |
Que reza cada entremez. |
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Que um dia a viver de sonho, |
De aurora e de pôr-de-sol |
É o melhor de que disponho |
Dos dias em todo o rol. |
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Nada pode ser melhor |
Que o que o dia de hoje for. |
|
A vida é de ser passada |
À beira deste ribeiro |
Com minha mão repousada |
Na mão dela o dia inteiro. |
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541 - Milagre |
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Não mates nunca ninguém. |
Todo o homem é um frustrado |
E um frustrado és tu também |
E um milagre te retém: |
- Podes ser ressuscitado. |
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Ao menos nalgum sentido |
Ninguém nunca está perdido. |
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542 - Físico |
|
Um amor físico pode |
Arrancar ao manicómio |
O que, de pânico, explode, |
Carente de algum encómio. |
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É um refúgio como a droga, |
Como o álcool, como a guerra: |
Esquecer de si afoga |
A cobardia que aterra. |
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Então, quem for impotente, |
Ao tomar esta desforra, |
Quem de si viver ausente |
A vida terá mais forra. |
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543 - Medíocres |
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Os medíocres não deixam |
De andar nas horas sangrentas |
De revolta a que se enfeixam. |
|
E durante as horas lentas |
Em que armas figas à sorte, |
O medíocre só tentas, |
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Ele só clama por morte. |
Mais que os de hora derradeira, |
Tarde vem fazer a corte. |
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É o autómato que inteira |
Esta civilização |
Gera frenética, à beira |
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De encher, milhão a milhão, |
Um mundo sem interior, |
De monstros sem coração. |
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Dali não vem nunca amor, |
Vem a feroz perversão |
Que nos mata, horror a horror. |
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544 - Moda |
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Esta é a moda velha: |
Fora o homem quer, |
Debaixo de telha |
Quem manda é a mulher. |
|
Eis a moda nova: |
Homem ou mulher, |
Dentro e fora inova, |
Por igual, qualquer. |
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O problema é a moda: |
- Não são vida toda, |
Só pequena parte |
Que vive destarte. |
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545 - Asas |
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Todos, nas falas de amor, |
Sonham o mundo com asas |
De rouxinol cantador. |
Que culpa terão, Senhor, |
Se o mundo que lhes aprazas |
Não se deixa, ao fim, criar |
Ao sabor do que imaginam? |
Já bem lhes basta este azar |
De aquilo a que se destinam |
Nunca às mãos lhes vir parar, |
Quando a tal fatais se inclinam! |
|
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546 - Floreia |
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O amor floreia mas é melindroso |
E quanto mais ele floreia mais |
Lhe vai doer a raiz do terno gozo. |
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No fim restarão só meros sinais, |
Fio de aranha ali que se entretece |
De aparências e não já de reais |
|
Gestos do dom que a pouco e pouco esquece. |
Para que os mais não falem se mantém |
O que amizade contarão que aquece, |
|
Rebento derradeiro de cecém, |
Coisa bonita de meter em jarra. |
Assim chamamos ao que ao fim se tem |
|
De sofrimento que um ao outro amarra, |
Calado e dolorido: é que convém |
À tonteira fugir que nos agarra. |
|
Sob as cinzas, porém, se manterá |
O derradeiro grito: “quem vem lá?” |
|
|
547 - Miséria |
|
A miséria que passamos |
Vem muito da ideia errada |
De que perfeitos sejamos |
Ou ninguém nos ama nada. |
|
Deus ama-te tal qual és. |
Se ficar desiludido |
Com o que fazes talvez, |
Com o que és não faz sentido, |
|
Que te fez gente falível, |
Com a implicação lutando |
De quem sabe, impreterível, |
O bem e o mal. Talvez quando |
|
Quando partilhas o medo, |
Venhas descobrir, no espanto, |
Que os mais gostam bem mais cedo |
De ti, se tremes ao canto. |
|
Aos mais o que mais importa |
É ter certezas acerca |
Da integridade que exorta, |
Não da perfeição que perca. |
|
Quando és culpado deveras, |
Que a culpa se prenda ao acto, |
Não a ti: por que é que esperas? |
Muda a vida, já, de facto! |
|
Senão devém destrutiva, |
Rápida te paralisa. |
Fica a pessoa cativa: |
Não vale nem é precisa. |
|
Se fazes algo de errado, |
A parte boa de ti |
Fica em guerra contra o lado |
Fraco, egoísta, que anda ali. |
|
Perdes a totalidade |
De ti que é o que te permite |
Empreender de verdade |
O que apraz-nos, no limite. |
|
Duma certa, estranha forma, |
Seremos bem mais inteiros |
Se algo nos falta, por norma, |
Que voamos mais leveiros. |
|
Aquele que tudo tem |
Será sempre alguém que é pobre: |
Ânsias sabe lá de alguém, |
Esperanças de que sobre! |
|
Nunca logra alimentar |
O íntimo dele do sonho |
De algo com que melhorar, |
Devém-lhe o mundo medonho. |
|
Não conhece esta vivência |
De alguém que o ama lhe dar |
O que quis com mais premência |
Mas jamais pôde alcançar. |
|
Inteireza há na pessoa |
Que aceita as limitações, |
Que é tão corajosa e boa |
Que se livra dos papões, |
|
Dos sonhos irrealistas, |
E se não sente falhada |
Por ter riscado das listas |
A utopia de seu nada. |
|
Aceitar que a imperfeição |
É parte do ser humano, |
Continuando pelo chão |
Da vida até ao tutano, |
|
É que alcança uma inteireza |
Que ao fim é o que Deus nos pede: |
Não da perfeição beleza, |
A integridade é que o mede. |
|
|
548 - S. Pedro |
|
S. Pedro tem uma chave, |
Dizem que é de abrir o céu. |
Anda enganado o conclave: |
Abre o coração que é teu. |
|
S. João, que é menineiro, |
Levou as moças à fonte, |
Levou três cá do terreiro, |
Já seis vêm no horizonte… |
|
S.º António trava a briga |
A fazer sermões aos peixes. |
Bem me importa o que ele diga |
Se juras que me não deixes! |
|
|
549 - Alteia |
|
O homem é uma casa cheia, |
Sol da vida da mulher. |
Por ele a mulher se apeia |
E, se precisão houver, |
Rasteja no chão de areia |
Para o homem dela ter |
Como ante os mais quem se alteia. |
|
Então, pela vida fora, |
Ela é quem acende a aurora. |
|
E merece tal respeito |
Quem tão nobre talha a sorte |
Que na vida nem na morte |
Jamais é demais o preito |
Que alguém presta a tal consorte. |
|
E o homem, do mesmo jeito, |
Deverá tomá-la a peito, |
Amando-a de igual transporte. |
|
Se ela é quem acende o alvor, |
Ele é do sol o calor. |
|
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550 - Castanhas |
|
Há no Natal um perfume |
A castanhas, rabanadas, |
Resina a queimar ao lume |
Das coisas que são amadas. |
|
Voga o perfume pelo ar |
Na atmosfera renovada, |
Todo o mundo cheira a lar, |
A vida é mulher amada. |
|
Neste laço de ternura |
É que a vida partilhada |
Afinal mais nos perdura, |
Vale o que vale uma estrada. |
|
Ao trocarmos de presentes, |
Trocamos gestos e sonho, |
São presentes os ausentes… |
- É só então que aqui me ponho |
Por inteiro e consumado |
E não há lar noutro lado. |
|
|
551 - Doçura |
|
A doçura do Natal |
São doces tradicionais |
Temperados com o sal |
Dos gestos fundamentais. |
|
São bolos de bem-querer |
Nesta mesa repartida, |
No bacalhau que couber |
Às hortaliças da vida. |
|
São castanhas, rabanadas, |
Pão nosso de cada dia |
Com ternuras marinadas |
No azeite da almotolia. |
|
Ovos mexidos tão doces, |
Formigos a pingar mel!… |
- Natal é como se fosses |
Do céu roubar ao pincel, |
A integrá-la em tuas posses, |
Toda a cor que for a dele. |
|
E, depois desta vigília, |
De azul puro fica a Terra, |
Quase inteira uma família |
Paz cobrando em toda a guerra. |
|
O Natal é uma doçura |
Cá dentro como ali fora: |
- A doçura da ternura |
É que ao fim mais edulcora |
Cada doce da fartura |
Que até na pobreza mora. |
|
|
552 - Exortados |
|
Em Miqueias exortados |
A proceder com justeza, |
De misericórdia armados, |
Fomos já com singeleza. |
|
Somos no Êxodo proibidos |
De assassínio cometer. |
No Levítico os pedidos |
São de amar outrem, quenquer. |
|
|
Os Evangelhos culminam |
A amar o nosso inimigo… |
- Depois, na História, dominam |
Rios de sangue, ao abrigo |
|
Dos livros que ali contêm |
As lições que mais convêm! |
|
Afinal, que nos congraça |
Para tamanha desgraça? |
|
|
553 - Misteriosa |
|
Toda a resposta que vem |
Misteriosa ter comigo |
Na realidade provém |
Sempre doutrem que então tem |
A função de meu amigo, |
Mesmo se o não vejo bem, |
Nem ele, acaso, também. |
|
É que a meus portos de abrigo |
Muitas vezes nem lhes ligo |
E eles, como lhes convém, |
Não me espreitam ao postigo. |
|
Contudo, em frente, porém, |
Sempre afinal eu prossigo |
Com a ajuda que me advém |
Desta mão que é de ninguém, |
Onde os passos doutrem sigo. |
|
|
554 - Euforia |
|
Quando um amor principia, |
Trocam ambos energia: |
Ficam em tal euforia |
Que a vida levitaria. |
|
Quando acontece entre dois, |
São apaixonados, pois. |
|
Infelizmente, porém, |
Como ambos por fim esperam |
Que os sentimentos que têm, |
Tal se do outro provieram, |
Sejam dele alimentados, |
Desligam-se doutros lados. |
|
A energia universal |
É a fonte fundamental. |
|
Vai daí, até contarem |
Com o outro exclusivamente |
Eis um degrau que, ao saltarem, |
Verão que é insuficiente: |
Já não há mais energia |
Com que alimentar o dia. |
|
Deixam então de trocá-la, |
Tentam cenas de controlo |
No intuito de dominá-la, |
Um doutro a furtá-la ao colo: |
|
Não é amor a acontecer, |
É luta pelo poder. |
|
Quando aqui ambos chegaram |
Crêem bem que se enganaram, |
Quando só se desligaram |
Da fonte de mais além |
Onde se dessedentaram: |
Que a beleza é que convém |
Do Cosmos que abandonaram. |
Hoje um do outro é, pois, refém. |
|
Se para acolá voltaram |
Logo reencontrariam |
O Infindo ao qual ascendiam |
No encantamento que hauriam |
Quando ambos se electrizaram. |
|
|
555 - Ritmo |
|
A maneira como encaro |
Os mais é que determina |
O ritmo de minha sina, |
O menor ou maior faro |
Como a rapidez que inclina |
Ao caminho a ser corrido, |
Rumo às deixas com sentido. |
|
Se os acolho e ausculto bem, |
Se o rejeito, o pé atrás… |
- Acolá me verei bem, |
Aqui, não, que tanto faz. |
|
E, de repente, o destino |
Vem donde não pus meu tino. |
|
Mudo logo de agulhagem: |
Olho o que traz na bagagem. |
|
É meu ritmo saltitado |
Conforme quem tenha ao lado. |
556 - Juras |
|
“Aí andas tu a citar |
As juras do casamento |
Extra-contexto e lugar |
Em que fiz o juramento!” |
- E eis como anda cada qual |
A imitar que faz casal! |
|
|
557 - Selando |
|
Tudo me servirá quando |
Há verdadeira união |
Entre nós e nos selando. |
Não quero que corras, não, |
|
Atrás de mim com mais mimos. |
Só te peço, coração, |
Que não busques outros cimos, |
Que atrás não corras, em vão, |
|
De ninguém, de ninguém mais. |
E então amemos em paz. |
|
- É que há tanto que correr |
Toda a vida até… Viver! |
|
|
558 - Carência |
|
A fome do coração, |
Toda a carência de amor, |
Subjuga, submete, é tão |
Peremptória ao nos se impor |
|
Como do corpo a mais fome |
Que obriga ao jugo fecundo |
Onde o sangue se nos tome |
Mudando a face do mundo. |
|
|
559 - Floresta |
|
Entras na floresta densa |
Cheia de tojos, espinhos, |
A infância atrás morre intensa, |
Nunca mais terás carinhos… |
|
- Sempre, então, toda a adultez |
Sofre desta viuvez. |
|
|
560 - Pecados |
|
Todos temos de sofrer |
Dos outros pelos pecados, |
Tão difusa e por quenquer |
Sói a dor tecer os dados. |
|
É que até mesmo a justiça |
Vítimas em volta espalha: |
Toda a sentença se enliça |
De inocentes que atrapalha. |
|
Aqueles que o não merecem |
Sofrem a dor que os demais |
Quanta vez os mais esquecem |
Que são quem merece mais. |
|
|
561 - Mó |
|
Quem vive na mó de baixo |
O ar gelado o cerca inteiro. |
Fogem-lhe os demais em cacho |
Rumo a um mais quente quinteiro, |
|
Como quem, se o tempo esfria, |
Foge duma sala fria. |
|
|
562 - Lista |
|
Se um homem fora capaz |
De falar, desenrolava |
A longa lista que traz |
No íntimo a arder em lava |
Com as coisas de que gosta |
No casamento em que aposta. |
|
Se um homem fora capaz… |
|
|
563 - Neurose |
|
Ter liberdade demais |
É uma neurose de escolhas: |
Com infinidades tais |
De opções, quais as que recolhas? |
|
Os solteiros decidir |
Hão-de, pois, constantemente, |
Que fabuloso porvir |
Hão-de talhar a seguir, |
Um passo além do presente. |
|
Mas quem é casado sabe |
O que operar bem lhe cabe: |
- Do trabalho ir para casa |
No termo de cada dia, |
Do lar assoprar a brasa |
De abraços que repartia, |
Esposa, marido e filhos |
Atar domesticamente |
Da tarefa com cadilhos |
Que a casa tornar premente |
E, por fim, numa cadeira |
Se assentar placidamente |
A gozar nababamente |
Como cresce a vida inteira. |
|
Um quer ver telenovela, |
Um outro prefere a bola? |
- Mesmo quando há uma procela |
É onda do mar que enrola. |
|
Cresce o cacho na videira |
Mesmo se a aragem rebola |
E ao fim tudo é brincadeira |
Quando pela paz fagueira |
Cada qual a si se imola |
- E mais de si fica à beira! |
|
|
564 - Seguro |
|
Ela trata do seguro. |
Se tal fora do marido, |
Caro um consultor e duro |
Teria de ser mantido, |
|
Porque ele não saberia |
De jeito tratar de nada, |
Nem paciência teria |
De cuidar da papelada. |
|
Ela trata do seguro |
E, nas benesses do lar, |
Mais lar no lar eu auguro |
Da mulher que assim amar. |
|
|
565 - Culto |
|
O que é pior num solteiro |
É de si contínuo o culto. |
Fico feliz, que me abeiro |
De confirmar, sem insulto, |
|
Que deixei de me sentir |
Da prisão com o labéu |
Na pessoa de afligir |
Que por acaso sou eu. |
|
É a prenda de casamento |
Que não vem no rol do intento. |
|
|
566 - Importante |
|
Cada pessoa que encontras |
Terá na testa um letreiro |
Que ninguém mostra nas montras: |
“Faz que eu sinta, por inteiro, |
|
Que serei mesmo importante!” |
A vender, como na vida, |
Vai ganhar e pula avante |
Só quem por tal norma lida. |
|
|
567 - Cavalheiros |
|
Que voltem os cavalheiros |
Revestidos de ilusão, |
Que elas mirem os parceiros |
Tal se lhes faltara o chão, |
Enfeitadas de romance, |
A luzir de tal paixão |
Que o planeta inteiro dance. |
|
De novo a ver se atingimos |
Afinal qual nosso alcance, |
Se o chão rasteiro, se os cimos. |
|
|
568 - Barco |
|
Não é do fervor |
Nem de qualquer mágoa: |
O barco do amor |
Meterá sempre água. |
|
Nunca um casamento |
Contrato acabado |
Será num momento: |
Logo se há mudado. |
|
Um bebé que chega, |
Cão que teve fim, |
A briga que adrega… |
- Será sempre assim. |
|
Só que tal cansaço |
É que dá sabor |
Depois ao abraço |
Com que selo o amor. |
|
|
569 - Tímido |
|
O tímido escusa, enfim, |
De trazer flor ou presente |
Dia de S. Valentim, |
Basta não ficar ausente: |
- Para um namorado assim, |
Tal nada é uma prenda ingente. |
|
E então se lhe solto a fala |
É uma jóia tão preciosa |
Que brilha mais que uma opala |
Engastada em cada coisa. |
|
|
570 - Partida |
|
Qualquer alma, após partida, |
O corpo já nada é. |
Mas da mãe foi tão querida |
Como o corpo ali ao pé. |
|
Formou-o, ligou-se a ele, |
Lavou, vestiu e cuidou: |
Nem morto agora o repele, |
Tanto se lhe cola à pele, |
Seu próprio corpo o tornou. |
|
Quando um corpo assim mo coso, |
Torno-o num bem precioso. |
|
Por isto é que a salvação |
Nunca deveras me acalma |
Se for só salvação de alma, |
- Tem de ser ressurreição: |
Alma e corpo em união. |
|
Apenas aqui me abeiro |
De ser eu, Eu por inteiro. |
|
|
571 - Evocar |
|
A pátria como o meu lar |
Se encontram no coração, |
Sempre os consigo evocar |
Quando os queira ter à mão. |
|
Uma antiga nostalgia, |
Saudades do pátrio solo, |
Da doce vida que havia, |
Morrem sem dar mais consolo, |
|
Que o que consola, no fim, |
É o que houver dentro de mim. |
|
|
572 - Conquistador |
|
Quanto mais um homem fama |
Tiver de conquistador |
Mais a mulher que o não ama |
Conquistar-lhe tenta o amor. |
|
Subjugar aquele a quem |
Ninguém soube resistir |
Prova irrefutável tem |
De a melhor arma brandir. |
|
Assim é que a borboleta, |
De tanto rondar a chama, |
De asa queimada e bem preta |
Finda sem amor nem fama. |
|
|
573 - Floresta |
|
Dos homens o coração |
É aquela floresta escura |
Em toda a população |
Menos no que amor lhe apura. |
|
Não porque lá veja mais |
Mas porque sempre vê menos |
E os sinais nem vê jamais |
De floresta mais pequenos. |
|
Porém, em contrapartida, |
Vislumbra a luz apagada |
Que ninguém vê de seguida |
E que é da História a pegada. |
|
|
574 - Sós |
|
Ficamos sós quando amamos |
E também quando morremos. |
Na vida ninguém aos ramos |
Liga que andam nos extremos. |
|
E, por igual, importância |
Não dão eles a ninguém, |
Um, porque da morte em ânsia, |
Outro, para o amor que vem |
Porque apenas olhos tem. |
|
E assim, no circo da vida, |
As portas por igual são, |
A de entrada e a de saída, |
Um convite à solidão. |
|
A esperança que mantemos, |
Como a que do amor se arquiva, |
É que a morte transporemos |
Duma forma criativa: |
- Criativa como aquela |
Que à vida abriu a janela. |
|
|
575 - Loucamente |
|
Loucamente apaixonado, |
O homem quer o isolamento, |
Mata o tempo que lhe é dado |
Com exercício violento |
Ou num êxtase parado |
A invocar, em vão intento, |
Sempre a imagem fugidia |
Da mulher que lhe abre o dia. |
|
Na solidão é que a chama |
Se ateia daquele que ama. |
|
|
576 - Fantasmas |
|
Os fantasmas, arrastando |
Nas orlas do entardecer |
Longos dedos, planam, bando |
Dos sonhos bons de quenquer. |
|
É por fantasmas que tais, |
Com seu toque de magia, |
Que devimos cordiais |
Todo o dia, qualquer dia. |
|
|
577 - Respeito |
|
Se não há respeito ao pai, |
Somos menos camaradas: |
Ninguém vê, se o tecto cai, |
Tudo na vida são nadas. |
|
Em troca das despedidas |
que inauguram caminhadas, |
A vida rasteira as idas, |
Só levamos bofetadas. |
|
Sinceridade e fraqueza |
À renúncia nos levaram |
E os filhos são quem se lesa, |
Que os deuses abandonaram. |
|
|
578 - Piedade |
|
Piedade não é desgosto, |
É festa dissimulada, |
De alívio suspiro a gosto |
Por não ser pessoa amada. |
|
Esta é a tragédia da vida: |
Se ao lado morrer alguém |
Nem dou pela despedida |
Se me não tocar também. |
|
|
579 - Maravilhas |
|
É tão bom dançar contigo! |
Estou sempre a descobrir |
Maravilhas que consigo |
Contigo me transmitir. |
|
Não apenas por estares: |
É que tudo, à minha volta |
Se transmuda e voa à solta, |
Maravilhoso, nos ares. |
|
|
580 - Relações |
|
Já não sou tão optimista |
Sobre as relações como era. |
Quando alguém tiver em vista, |
Ponho em questão a quimera: |
|
- Do tipo é com que querias |
Que os fins-de-semana passem |
Lá, de quinze em quinze dias, |
Teus filhos, quando se embacem |
Os brilhos das fantasias? |
|
|
581 - Treino |
|
Aumenta a capacidade |
Quem tem treino emocional |
De compreender por igual |
Doutrem a necessidade. |
|
Cresce a probabilidade |
De ter sucesso na vida. |
O engenheiro de seguida, |
Maior produtividade |
|
Obterá, não do elevado |
Quociente de inteligência, |
Mas do grau de eficiência |
de interagir lado a lado. |
|
A amizade vem do facto |
De prestarmos atenção |
Aos outros, portanto, não |
De obtermos deles o pacto |
|
De no-la darem a nós. |
Um minuto de louvor |
Tem decerto mais valor |
Repetido a uma só voz |
|
Uma centena de vezes |
Que cem minutos seguidos |
Duma só vez conferidos, |
Sem mais nada os outros meses. |
|
|
582 - Padrão |
|
O filho um padrão moral |
Requer do certo e do errado |
Tanto do que é principal |
Como do gasto e fanado. |
|
O melhor padrão moral |
É o dos pais que ele tiver: |
Se a conduta não é igual, |
Se ela se contradisser, |
|
Se ela fugir à verdade, |
Doutrem não vir os direitos, |
Se a promessa é falsidade, |
- Tais exemplos são preceitos. |
|
Que é que vamos responder |
Se, ao condenar, por enguiço, |
Um filho ouvirmos dizer: |
“Mas tu também fazes isso!”? |
|
|
583 - Tarefa |
|
Ser mãe é grande tarefa, |
Não é, porém, nunca um fardo. |
Para trás deita a catrefa |
De funções, que o gabinardo |
|
Que delas te cobre os ombros |
Te envolve com tais sarilhos |
Que isso é que te enche de escombros |
E não, brincar com os filhos. |
|
Ignora um pouco exigências, |
Esquece que és responsável: |
- Joga à bola nas carências |
E teu lar é inolvidável! |
|
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584 - Zanga |
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Não se zangam com ninguém! |
Tenho pena desta gente |
Demasiado indiferente |
Ou então que se contém. |
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Privam-se até do prazer |
(Com o qual muito há quem manga) |
De a paz poder refazer |
Após toda a qualquer zanga! |
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585 - Permaneceremos |
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Não, não permaneceremos, |
Por isso é que nos amamos: |
Aquilo que não podemos |
Segurar e que queremos |
Continuar sempre a dar |
(E a dar sempre o continuamos), |
Para nós eis o que é amar. |
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- No tempo uma eternidade |
A fingir a de verdade. |
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586 - Mosto |
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Disse-lhe ele uma palavra, |
Foi como lavar-lhe o rosto, |
Por dentro o fogo lhe lavra, |
Alma lhe fermenta ao mosto. |
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De repente transmudou-se |
O mundo inteiro diante |
E ela própria, tal se fosse |
Outra pessoa: um gigante! |
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“Como és linda, criatura!” |
Foi o sol rompendo a aurora, |
Aguaceiro na secura… |
- É quase Deus desde agora! |
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587 - Casca |
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Sentir a própria beleza, |
Como não, tal como a dor? |
Da ternura a toda a reza |
Que outra causa irei propor? |
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Assim na casca rugosa |
Vão as árvores sentir |
A ternura furiosa |
Dos rebentos a bulir. |
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Assim deve estremecer |
A savana como a selva |
Quando um dia amanhecer |
Toda virente de relva. |
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Além dos cinco sentidos |
Anda estoutro, bem discreto, |
Mexendo os magmas fundidos |
De que ando a nascer secreto. |
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588 - Impoluta |
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Amar uma prostituta |
Se não se tem, como um rei, |
Dom de a tornar impoluta, |
É mesmo asneira de lei. |
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Mas ninguém nunca é o primeiro |
Que renuncia à ambição |
Para a um amor desordeiro |
Palmilhar a inclinação. |
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Será tarde quando um dia |
O coração desolado |
A contrição principia, |
Que atrás nunca volta o fado. |
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589 - Regra |
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Esta regra de latão, |
De pisar quem anda abaixo |
E de vergar-se ao chefão |
É de impiedosa que a tacho. |
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A de ferro que proclama |
Que a outrem eu vá tramar |
Antes que lhe sofra a trama |
É da crueldade o algar. |
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A de prata as ultrapassa: |
Não faças o que não queiras |
Que outrem a ti próprio faça. |
Mas da complacência abeiras. |
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A de oiro manda fazer |
Aos demais, benevolente, |
O que para mim quiser |
Que me faça toda a gente. |
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O problema é a crueldade, |
A cínica exploração, |
Sem castigo de verdade |
Que force à reconversão. |
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Vem a lei de Talião: |
O que te fazem farás |
A quem to faz, terás mão |
Em quem for um ferrabrás. |
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Começa tu pela de oiro. |
Se não és correspondido, |
Talião abre o tesoiro |
Que andar noutrem escondido. |
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590 - Interacção |
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Tanta guerra nós fizemos |
Que qualquer interacção |
Como conflito a veremos |
Ou como competição. |
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Haverá sempre quem herde |
E quem se perca de vez |
No jogo do ganha-perde, |
Ao saldar, em fim de mês. |
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Mas a guerra nuclear, |
A depressão económica, |
O ambiente a se finar |
Doutra cor é fisionómica: |
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Todo aquele que aqui joga |
Tomba no tapete verde, |
Rês no matadouro à soga, |
- É um jogo de perde-perde. |
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Porém, o amor, a amizade, |
As artes, conhecimento, |
Os dons da paternidade, |
O inverso dão elemento: |
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Quem, pois, por estes caminhos |
Um dia as vidas amanha, |
Ovos não gora nos ninhos, |
- É um jogo de ganha-ganha. |
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Quando é que conseguiremos |
Tanto treino em nós conter |
Que os jogos então ganhemos |
Todos que a vida tiver? |
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591 - Dividido |
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Lar contra si dividido |
Não se aguentará de pé. |
E uma espécie, como é que é, |
Se um matar outro partido? |
E um planeta consumido |
Quase sem ninguém dar fé? |
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Lar contra si dividido |
Nunca se aguenta de pé! |
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592 - Trama |
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Sistema familiar, |
Trama de coisas pequenas: |
Partilhas, nunca tomar |
Por garantidas, nem penas, |
Nem sorte, saber poupar |
Para os sonhos que se quer… |
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São tais nadas, se os houver, |
Que nos preparam, fecundo, |
O enfrentamento do Mundo. |
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593 - Cacto |
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O cacto em que alguém se pica |
É criado em minha estufa: |
Quando um inimigo o aplica, |
Logo em dor o clamor rufa. |
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E depois há quem lamente: |
- Que vida mais indecente! |
Como se a vida não fosse |
Mudar o amargor que existe |
Em boa compota doce |
Por mão de quem lhe resiste, |
Hora a hora um sacrifício |
Da amizade em benefício! |
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594 - Platina |
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Se for o silêncio de oiro |
Vai ser a fala platina, |
Que se espalha sem desdoiro |
E à sabedoria inclina, |
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As ignorâncias remove, |
As injustiças ventila, |
À curiosidade move, |
Nos espíritos cintila |
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E às almas fornece o pão |
Estranho que mata a fome |
De quem morre à solidão: |
Sacia quem dela come. |
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595 - Pequenas |
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Nas relações muito contam |
Atitudes bem pequenas: |
Passo a passo nos apontam |
O amor incondicional |
E da confiança as cenas |
- Basta só um terno sinal. |
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Às vezes quase nem vejo |
Mas soou cá dentro um beijo. |
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596 - Ausente |
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Conta de quem anda ausente |
Os aspectos positivos, |
Como se fora presente. |
Os fermentos construtivos |
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Não são de esquecer fraquezas |
Mas de não envergonhar |
Aquele que, afinal, prezas, |
Tal se estivera a escutar. |
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Alimenta a confiança |
E à fraqueza dá esperança. |
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597 - Cimos |
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Se perdoamos, abrimos |
Caminhos de confiar, |
Limpo ao coração os limos, |
Vamo-nos ultrapassar. |
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Ao perdoar salto o muro |
Que evita que os outros mudem: |
Não estou, é bem seguro, |
A obrigar a que se grudem, |
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Entre eles e a consciência. |
Sem obstáculos que iludem, |
Podem buscar excelência |
Naquilo em que se transmudem. |
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598 - Arrepia |
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Algo em mim se me arrepia |
À ideia de dependência. |
Dar prendas celebraria |
O laço que prenderia, |
De amor por conveniência, |
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Quem dá como quem recebe: |
É o laço da gratidão. |
Por que de frio se embebe |
quando disto se apercebe |
Nosso frágil coração? |
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599 - Peias |
|
Amor, ódio são fraquezas, |
Que nos prendem com cadeias. |
O desprezo que desprezas |
É que, afinal, quebra as peias. |
|
O desprezo é uma bancada |
De apreciar a comédia, |
Cá de fora, à balaustrada, |
A ler pela enciclopédia. |
|
Encafuar-se na toca, |
Se enrolar dentro da casca… |
- Mas que é que nisto me enfoca |
Em tudo quanto me atasca? |
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600 - Passional |
|
Criminoso passional |
Contra a mulher absolvido |
Leva a ter por ideal |
Que não amar tem sentido. |
|
Se ser bela é uma desgraça |
E à desgraça dou aval, |
Fatal à vida que passa |
Empresto o ponto final. |
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É pior que ser machista, |
Mulher ter na escravidão, |
- É já riscar-me da lista, |
Risco à vida o coração. |
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601 - Capitoso |
|
O mistério nos perturba |
Como um vinho capitoso; |
Uma auréola de pureza |
Logo a distingue da turba |
Num desafio gostoso; |
Secreto, o corpo embeleza, |
Sufoca, até nos faz mal… |
|
- Ela dá-se e, num momento, |
Completa a revelação, |
Esta mulher nada vale! |
|
Cigarro em apagamento, |
Bola de papel no chão, |
Forma apenas de alma morta, |
Vazia, desabitada, |
Casa de arrombada porta, |
Já não me oferta morada: |
Frasco vago do perfume, |
Neste lar não arde o lume. |
|
E se logo o desencanto |
Não lhe mata a intimidade |
É aguardar só, que entretanto, |
Vai fazê-lo a saciedade. |
|
- Perene vivo este inferno, |
Nem doutro hei mister eterno. |
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Como, na fatal corrida, |
Como o maravilhamento |
Sempre inovar a subida, |
Motor continuar do intento |
Sem na rotina, em seguida, |
Se ir sumindo como o vento? |
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602 - Abrigos |
|
Teus amigos mais antigos |
Ter-te-ão dado razões |
Para deles te lembrares |
E para novos abrigos, |
Como se foram senões, |
A vida além evitares. |
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Conhecer melhor o mundo |
É descobrir fundações |
Que mais o tornam fecundo |
Além de tais ilusões: |
Por benéficas que sejam, |
O bem e o mal parturejam. |
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603 - Afeição |
|
Se a mulher vê violar |
Lei de afeição natural, |
Todas juntas um colar |
Em torno a quem sofre o mal, |
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Como que de armas na mão, |
Encadeiam protector, |
Seja ao filho um pai malsão, |
Seja ao pai filho traidor. |
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O que mais honra a mulher |
É que, além das teorias, |
Sempre aqui logra acolher |
Toda a fundura dos dias. |
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604 - Sereias |
|
As sereias descobriram |
Que mais mortais que a canção |
São as armas do silêncio. |
Se muitos se escapuliram |
De seu canto à predação, |
Ao silêncio um homem vence-o |
|
Mas nunca lhe escapará. |
E o mais comum é nas teias |
Da culpabilização |
A canção perder-se já, |
Mas ficarem as ameias |
Em que as mortes correrão. |
|
E um amor que encantar vida, |
Que as novas vidas gerou, |
O que produz de seguida |
É uma tumba desmedida |
Em que um lar todo enterrou. |
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605 - Repleto |
|
Mais difícil compreender |
Um Universo é no qual |
Somos únicos a ter |
Civilização científica, |
Do que um Cosmos por igual |
Repleto de inteligente |
Vida e cultura magnífica. |
|
Mas que é feito de tal gente? |
|
Ou que cegueira é a minha |
Que a não vejo a mim vizinha? |
|
Se uma por duzentas mil |
Estrelas tem lá razão, |
Que falta para que a file |
Ao meu alcance da mão? |
|
Que espera me desespera |
Pelas eras, nesta era, |
Para encontrar um irmão? |
|
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606 - Privilégio |
|
Cultivar grandes paixões |
É o privilégio de quem |
Não tem de fazer serões, |
Ociosos malandrões |
Que qualquer povo contém. |
Para os mais são ilusões |
Dum qualquer mundo dalém. |
|
Felizmente que o amor |
Autêntico anda ao alcance |
De seja mesmo quem for, |
Quer trabalhe, quer descanse! |
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607 - Rendições |
|
As mulheres se defendem |
Exactamente atacando, |
Como a atacar surpreendem, |
Bem inesperadas, quando, |
Com estranhas rendições, |
Conquistam os corações. |
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608 - Altar |
|
Que alegria amar alguém! |
|
Melhor que ser adorado: |
O crente ao altar se atém |
Como a um deus que fez refém, |
Sempre a exigir o acordado |
Milagre que lhe convém |
E a que jura haver rezado! |
|
Este amor, mas que maçada: |
Tem só vida acorrentada! |
|
Um amor que voe além, |
Só o de alegre amar alguém. |
|
|
609 - Reforma |
|
A mulher reforma um homem |
Maçando-o completamente |
Até que ele já nem tente |
Viver horas que o consomem. |
|
e ao invés, reformaria |
Se o não tentara sequer, |
Com ser apenas mulher, |
Dum amor pela magia. |
|
E vamos lá entender |
Que quem faz nunca faria |
O que faz quem não quiser |
Fazer o que ao fim fazia! |
|
|
610 - Refundar |
|
A mulher volta a casar |
Se detestou o marido. |
Um homem, no seu lugar, |
Refundar só vai o lar |
Por demais haver querido |
À que levara ao altar. |
|
A mulher há-de tentar |
Chegar à felicidade. |
O homem vai-a arriscar, |
Que lhe dói a soledade. |
|
Os dois lados da moeda |
Têm, pois, contrária queda: |
- No rumo complementar |
É que podemos ganhar. |
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611 - Excepção |
|
O marido ou excepção |
Ou regra geral vai ser. |
E nada envelhece tão |
Rapidamente a mulher |
Do que casar, por seu mal, |
Com uma regra geral! |
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612 - Separar |
|
Podem hoje separar |
Sexo de reprodução, |
Ao amor não há lugar |
Numa e noutra ocasião. |
|
Os três, porém, conectados |
Tanto se encontram tão fundo |
Que acabamos desligados |
De nós e de todo o mundo. |
|
Então, qual a solução? |
- Como em nós tudo e na vida, |
Quão mais feixes na união, |
Maior o ser e a medida. |
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613 - Arestas |
|
Sempre tentou proteger-nos |
Em miúdos, vida fora. |
Hoje meus votos mais ternos |
Das arestas dos invernos |
São de protegê-lo agora. |
|
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614 - Mérito |
|
Choro do mérito pouco |
Que nem ouso oferecer |
A quem amo, que era louco |
Não dar-lhe o que merecer. |
|
E mais nem lhe ouso aceitar |
O amor que me mataria |
Se o não colher: meu lugar, |
Sem ele, se me esvazia. |
Escravo do sim que é não, |
Nem dando nem recebendo, |
Rastejo, verme do chão, |
Sob um céu todo esplendendo. |
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615 - Fiéis |
|
Os homens fiéis são raros: |
Quando não fora em solteiros, |
Em casados, de reparos |
Não usam ser caloteiros. |
|
Depois a felicidade, |
Tão arisca, tão arisca, |
Troca mentira e verdade |
E afunda quem tanto arrisca. |
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Será de espantar que ao fim |
O tamanho da desgraça |
Não arrase mais, enfim, |
Que a tempestade que passa. |
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616 - Batalha |
|
Será a vida uma batalha |
Onde se entre couraçado |
Para escapar à metralha |
E de audácia bem armado |
Para vencer cada malha. |
|
Será a vida uma batalha… |
- E o amor fica em que lado? |
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617 - Armadilha |
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A mulher é uma armadilha |
Habilmente construída. |
farejamo-la a uma milha: |
Logo do peito à virilha |
Nos prendeu inteira a vida. |
|
O saboroso atractivo |
exerce-se mais de longe |
Que de perto e é tão esquivo |
Que é mais forte se furtivo, |
Chega a ser mortal no monge. |
|
Inspiram tão mais desejo |
Quão menos o satisfazem: |
Presente, só porque a vejo, |
A perco; se perco o ensejo, |
Encontro-a em sonhos que aprazem. |
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A mais rude tentação |
No encontro duma mulher |
Não lhe vem da sedução, |
Vem do que promete em vão: |
Vinga ao não satisfazer. |
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618 - Desmedido |
|
Não sente esta mulher nada, |
Crê que tudo lhe é devido. |
Embora cada jornada |
Se lhe entregue, jamais cada |
Basta ao querer desmedido. |
|
Uma contrariedade |
Num instante distraído, |
E um ano de ansiedade, |
De preitos pela beldade, |
Apaga sem um gemido. |
|
Vou-me embora, vou-me embora! |
Mas ela diz: “dá-me um beijo!” |
E logo na mesma hora |
Meu querer já não me escora, |
Caio-lhe aos pés sem mais pejo! |
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619 - Desacato |
|
Da Pátria defensor nato |
Sempre me cuidei de ser, |
Mas é a Pátria um desacato, |
Piada que faz sofrer. |
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Longe de ser o ideal |
Que justifica a existência, |
É uma casa comercial |
Sempre quase a abrir falência. |
|
Se calhar, por ser assim |
Tão pequenamente humana |
É que me prende por fim |
Ao calor que dela emana. |
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620 - Próximo |
|
Neste mundo cada qual |
É o próximo dele mesmo, |
Preocupado, afinal, |
Só com ter prazer a esmo. |
|
Do mal o menos, porém: |
Sem isto para ninguém |
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Havia prazer algum |
E o mundo não era um. |
|
Afinal, amor que abrasa |
Começa na própria casa. |
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621 - Esperas |
|
Quando alguém ama deveras, |
Um ano ou mais, que é que importa? |
O tempo vive de esperas, |
Mora a vida frente à porta. |
|
Quando, porém, for casado, |
Por muito que feliz seja, |
De perca não tem cuidado, |
Tudo tem já quanto almeja. |
|
E porque já nada espera |
O fogo então se lhe esvai, |
Como morre uma quimera |
Quando à noite o dia cai. |
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|
622 - Problemas |
|
Problemas de amor |
Para mim não são? |
Só, porém, então |
Eis dela o valor: |
Então me domina |
Como minha sina. |
|
Não deixo de pensar nela, |
Respiro-a como atmosfera: |
- Como evitar uma estrela |
De quanto sou de era em era? |
|
|
623 - Amigo |
|
Um amigo é aquele em quem |
Poderei descarregar |
Trigo e joio como advêm, |
Sabendo que há-de ali estar |
|
Para ouvir, para guardar |
Tudo o que for importante |
E o resto fora deitar, |
Sem préstimo doravante. |
|
É tão bom nos encontrarmos, |
Aprofundar a amizade, |
Que isto de assim nos amarmos |
É um traço da divindade. |
|
|
624 - Peões |
|
Dispomos dos demais, tal se foram peões, |
De modo a que nenhuma casa fique vaga, |
Mas eles, em segredo, matam ilusões, |
Fazem o jogo, empurram-nos, dão-nos a paga. |
|
Podem mesmo, ao fim, pôr-nos de lado: |
A voz que diz “desculpe, mas não posso”, |
É sempre a que dos dois, o afortunado |
Que tudo pode, usa torcendo-me o pescoço. |
|
|
625 - Ralos |
|
Com eles ver os esquilos, |
Após o ralho, abraçá-los, |
Ouvir-lhes razões e estilos, |
Rir, enfim… |
- E amores di-los |
Aos filhos de amor mais ralos. |
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626 - Lucidez |
|
Esta preocupação |
Aqui só de meu destino… |
Mas ele é tão pequenino, |
Nem sequer vale um tostão! |
|
E depois a sensação |
Cá do fundo, do interior, |
Dum dever superior |
A que devo dar a mão… |
|
Pouco importa a lucidez, |
É mesmo do coração: |
- De repente o mundo é irmão |
E eu, o mártir que aqui vês! |
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|
627 - Auxílio |
|
Um auxílio é tirania |
Quando, auxiliando alguém, |
Por incapaz o teria |
Ou incapaz o faria, |
Conforme o que me convém. |
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Cá me imponho, além desprezo, |
E cerceio a liberdade: |
Como nulidade o prezo, |
Por indigno o tenho preso, |
Presumo-lhe a invalidade. |
|
O auxílio se desmascara |
Como um domínio perverso, |
Dum amor em vez da rara |
Entrega gratuita e cara |
De quem noutrem vive imerso. |
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628 - Lacaios |
|
Os nascidos para escravos |
Querem tudo à custa alheia: |
De liberdade ora uns avos |
Se doutrem numa mancheia, |
Ora um canteiro de cravos |
Se for outrem quem semeia… |
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Gritam depois contra os aios |
- E são, de escolha, lacaios! |
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629 - Secador |
|
Um secador de cabelo |
Poderá ser bem prosaico |
Mas arma jeitoso um elo |
Por onde aquilo que é belo |
Sacro torna o que era laico. |
É no fim cheiroso pão |
Que alimenta o coração: |
Todo o amor requer beleza |
Como um jantar sobre a mesa. |