QUINTA  REDONDILHA

 

 

 

DE  AMOR  POEMA  MAIS LONGO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 538 e 629 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                538 - De amor poema mais longo

 

                                                                De amor poema mais longo

                                                                Marca a regularidade

                                                                Com que o amor nos invade,

                                                                A crescer em bolha, oblongo,

 

                                                                Até que a totalidade

                                                                Atinge no imo do ser.

                                                                No regular verso ver

                                                                Irei quanto me persuade

 

                                                                E quanto o fogo que queima

                                                                Não me queima mas me apura

                                                                Tão mais quão maior a teima

 

                                                                Em buscar o que me cura:

                                                                Um amor é aquela freima

                                                                Que ao largar-me me segura.

 

539 - Papagaios

 

Papagaios de papel,

Estrelas, eis nossos filhos.

Gastamos vida a granel

Fazendo-os voar por atilhos,

 

Corremos ao lado deles,

Sem fôlego até ficar.

Despenham-se, arranham peles…

Vamos caudas aumentar,

 

Remendamos com carinho,

Ajustamos, ensinamos,

Garantimos o caminho,

Que um dia voam juramos.

 

Ei-los, finalmente, no ar!

Mas precisam de mais corda,

Continuamo-la a soltar.

No novelo quão mais morda

 

A guita ao desenrolar,

Mais distante o papagaio

De nós nos fica a pairar,

Em volteio nobre e gaio.

 

Breve a bela criatura

Cortará a linha virtal,

Planará livre e segura

Pelo espaço sideral.

 

Apenas então sabemos,

Nas mãos vazias da ceifa,

Que a casa voltar podemos,

Que cumprimos a tarefa.

 

 

540 - Colecção    

 

A vida é uma colecção

De muitas pequenas vidas

E todas elas vividas,

Tal se fora a mão na mão,

Um dia de cada vez.

A descobrir a beleza

Da flor que houver cada mês,

Do animal a ouvir a reza

Que reza cada entremez.

 

Que um dia a viver de sonho,

De aurora e de pôr-de-sol

É o melhor de que disponho

Dos dias em todo o rol.

 

Nada pode ser melhor

Que o que o dia de hoje for.

 

A vida é de ser passada

À beira deste ribeiro

Com minha mão repousada

Na mão dela o dia inteiro.

 

 

541 - Milagre

 

Não mates nunca ninguém.

Todo o homem é um frustrado

E um frustrado és tu também

E um milagre te retém:

- Podes ser ressuscitado.

 

Ao menos nalgum sentido

Ninguém nunca está perdido.

 

 

542 - Físico

 

Um amor físico pode

Arrancar ao manicómio

O que, de pânico, explode,

Carente de algum encómio.

 

É um refúgio como a droga,

Como o álcool, como a guerra:

Esquecer de si afoga

A cobardia que aterra.

 

Então, quem for impotente,

Ao tomar esta desforra,

Quem de si viver ausente

A vida terá mais forra.

 

 

543 - Medíocres

 

Os medíocres não deixam

De andar nas horas sangrentas

De revolta a que se enfeixam.

 

E durante as horas lentas

Em que armas figas à sorte,

O medíocre só tentas,

 

Ele só clama por morte.

Mais que os de hora derradeira,

Tarde vem fazer a corte.

 

É o autómato que inteira

Esta civilização

Gera frenética, à beira

 

De encher, milhão a milhão,

Um mundo sem interior,

De monstros sem coração.

 

Dali não vem nunca amor,

Vem a feroz perversão

Que nos mata, horror a horror.

 

 

544 - Moda

 

Esta é a moda velha:

Fora o homem  quer,

Debaixo de telha

Quem manda é a mulher.

 

Eis a moda nova:

Homem ou mulher,

Dentro e fora inova,

Por igual, qualquer.

 

O problema é a moda:

- Não são vida toda,

Só pequena parte

Que vive destarte.

 

 

545 - Asas

 

Todos, nas falas de amor,

Sonham o mundo com asas

De rouxinol cantador.

Que culpa terão, Senhor,

Se o mundo que lhes aprazas

Não se deixa, ao fim, criar

Ao sabor do que imaginam?

Já bem lhes basta este azar

De aquilo a que se destinam

Nunca às mãos lhes vir parar,

Quando a tal fatais se inclinam!

 

 

546 - Floreia

 

O amor floreia mas é melindroso

E quanto mais ele floreia mais

Lhe vai doer a raiz do terno gozo.

 

No fim restarão só meros sinais,

Fio de aranha ali que se entretece

De aparências e não já de reais

 

Gestos do dom que a pouco e pouco esquece.

Para que os mais não falem se mantém

O que amizade contarão que aquece,

 

Rebento derradeiro de cecém,

Coisa bonita de meter em jarra.

Assim chamamos ao que ao fim se tem

 

De sofrimento que um ao outro amarra,

Calado e dolorido: é que convém

À tonteira fugir que nos agarra.

 

Sob as cinzas, porém, se manterá

O derradeiro grito: “quem vem lá?”

 

 

547 - Miséria

 

A miséria que passamos

Vem muito da ideia errada

De que perfeitos sejamos

Ou ninguém nos ama nada.

 

Deus ama-te tal qual és.

Se ficar desiludido

Com o que fazes talvez,

Com o que és não faz sentido,

 

Que te fez gente falível,

Com a implicação lutando

De quem sabe, impreterível,

O bem e o mal. Talvez quando

 

Quando partilhas o medo,

Venhas descobrir, no espanto,

Que os mais gostam bem mais cedo

De ti, se tremes ao canto.

 

Aos mais o que mais importa

É ter certezas acerca

Da integridade que exorta,

Não da perfeição que perca.

 

Quando és culpado deveras,

Que a culpa se prenda ao acto,

Não a ti: por que é que esperas?

Muda a vida, já, de facto!

 

Senão devém destrutiva,

Rápida te paralisa.

Fica a pessoa cativa:

Não vale nem é precisa.

 

Se fazes algo de errado,

A parte boa de ti

Fica em guerra contra o lado

Fraco, egoísta, que anda ali.

 

Perdes a totalidade

De ti que é o que te permite

Empreender de verdade

O que apraz-nos, no limite.

 

Duma certa, estranha forma,

Seremos bem mais inteiros

Se algo nos falta, por norma,

Que voamos mais leveiros.

 

Aquele que tudo tem

Será sempre alguém que é pobre:

Ânsias sabe lá de alguém,

Esperanças de que sobre!

 

Nunca logra alimentar

O íntimo dele do sonho

De algo com que melhorar,

Devém-lhe o mundo medonho.

 

Não conhece esta vivência

De alguém que o ama lhe dar

O que quis com mais premência

Mas jamais pôde alcançar.

 

Inteireza há na pessoa

Que aceita as limitações,

Que é tão corajosa e boa

Que se livra dos papões,

 

Dos sonhos irrealistas,

E se não sente falhada

Por ter riscado das listas

A utopia de seu nada.

 

Aceitar que a imperfeição

É parte do ser humano,

Continuando pelo chão

Da vida até ao tutano,

 

É que alcança uma inteireza

Que ao fim é o que Deus nos pede:

Não da perfeição beleza,

A integridade é que o mede.

 

 

548 - S. Pedro

 

S. Pedro tem uma chave,

Dizem que é de abrir o céu.

Anda enganado o conclave:

Abre o coração que é teu.

 

S. João, que é menineiro,

Levou as moças à fonte,

Levou três cá do terreiro,

Já seis vêm no horizonte…

 

S.º António trava a briga

A fazer sermões aos peixes.

Bem me importa o que ele diga

Se juras que me não deixes!

 

 

549 - Alteia

 

O homem é uma casa cheia,

Sol da vida da mulher.

Por ele a mulher se apeia

E, se precisão houver,

Rasteja no chão de areia

Para o homem dela ter

Como ante os mais quem se alteia.

 

Então, pela vida fora,

Ela é quem acende a aurora.

 

E merece tal respeito

Quem tão nobre talha a sorte

Que na vida nem na morte

Jamais é demais o preito

Que alguém presta a tal consorte.

 

E o homem, do mesmo jeito,

Deverá tomá-la a peito,

Amando-a de igual transporte.

 

Se ela é quem acende o alvor,

Ele é do sol o calor.

 

 

550 - Castanhas

 

Há no Natal um perfume

A castanhas, rabanadas,

Resina a queimar ao lume

Das coisas que são amadas.

 

Voga o perfume pelo ar

Na atmosfera renovada,

Todo o mundo cheira a lar,

A vida é mulher amada.

 

Neste laço de ternura

É que a vida partilhada

Afinal mais nos perdura,

Vale o que vale uma estrada.

 

Ao trocarmos de presentes,

Trocamos gestos e sonho,

São presentes os ausentes…

- É só então que aqui me ponho

Por inteiro e consumado

E não há lar noutro lado.

 

 

551 - Doçura

 

A doçura do Natal

São doces tradicionais

Temperados com o sal

Dos gestos fundamentais.

 

São bolos de bem-querer

Nesta mesa repartida,

No bacalhau que couber

Às hortaliças da vida.

 

São castanhas, rabanadas,

Pão nosso de cada dia

Com ternuras marinadas

No azeite da almotolia.

 

Ovos mexidos tão doces,

Formigos a pingar mel!…

- Natal é como se fosses

Do céu roubar ao pincel,

A integrá-la em tuas posses,

Toda a cor que for a dele.

 

E, depois desta vigília,

De azul puro fica a Terra,

Quase inteira uma família

Paz cobrando em toda a guerra.

 

O Natal é uma doçura

Cá dentro como ali fora:

- A doçura da ternura

É que ao fim mais edulcora

Cada doce da fartura

Que até na pobreza mora.

 

 

552 - Exortados

 

Em Miqueias exortados

A proceder com justeza,

De misericórdia armados,

Fomos já com singeleza.

 

Somos no Êxodo proibidos

De assassínio cometer.

No Levítico os pedidos

São de amar outrem, quenquer.

 

 

Os Evangelhos culminam

A amar o nosso inimigo…

- Depois, na História, dominam

Rios de sangue, ao abrigo

 

Dos livros que ali contêm

As lições que mais convêm!

 

Afinal, que nos congraça

Para tamanha desgraça?

 

 

553 - Misteriosa

 

Toda a resposta que vem

Misteriosa ter comigo

Na realidade provém

Sempre doutrem que então tem

A função de meu amigo,

Mesmo se o não vejo bem,

Nem ele, acaso, também.

 

É que a meus portos de abrigo

Muitas vezes nem lhes ligo

E eles, como lhes convém,

Não me espreitam ao postigo.

 

Contudo, em frente, porém,

Sempre afinal eu prossigo

Com a ajuda que me advém

Desta mão que é de ninguém,

Onde os passos doutrem sigo.

 

 

554 - Euforia

 

Quando um amor principia,

Trocam ambos energia:

Ficam em tal euforia

Que a vida levitaria.

 

Quando acontece entre dois,

São apaixonados, pois.

 

Infelizmente, porém,

Como ambos por fim esperam

Que os sentimentos que têm,

Tal se do outro provieram,

Sejam dele alimentados,

Desligam-se doutros lados.

 

A energia universal

É a fonte fundamental.

 

Vai daí, até contarem

Com o outro exclusivamente

Eis um degrau que, ao saltarem,

Verão que é insuficiente:

Já não há mais energia

Com que alimentar o dia.

 

Deixam então de trocá-la,

Tentam cenas de controlo

No intuito de dominá-la,

Um doutro a furtá-la ao colo:

 

Não é amor a acontecer,

É luta pelo poder.

 

Quando aqui ambos chegaram

Crêem bem que se enganaram,

Quando só se desligaram

Da fonte de mais além

Onde se dessedentaram:

Que a beleza é que convém

Do Cosmos que abandonaram.

Hoje um do outro é, pois, refém.

 

Se para acolá voltaram

Logo reencontrariam

O Infindo ao qual ascendiam

No encantamento que hauriam

Quando ambos se electrizaram.

 

 

555 - Ritmo

 

A maneira como encaro

Os mais é que determina

O ritmo de minha sina,

O menor ou maior faro

Como a rapidez que inclina

Ao caminho a ser corrido,

Rumo às deixas com sentido.

 

Se os acolho e ausculto bem,

Se o rejeito, o pé atrás…

- Acolá me verei bem,

Aqui, não, que tanto faz.

 

E, de repente, o destino

Vem donde não pus meu tino.

 

Mudo logo de agulhagem:

Olho o que traz na bagagem.

 

É meu ritmo saltitado

Conforme quem tenha ao lado.

 

 

556 - Juras

 

“Aí andas tu a citar

As juras do casamento

Extra-contexto e lugar

Em que fiz o juramento!”

- E eis como anda cada qual

A imitar que faz casal!

 

 

557 - Selando

 

Tudo me servirá quando

Há verdadeira união

Entre nós e nos selando.

Não quero que corras, não,

 

Atrás de mim com mais mimos.

Só te peço, coração,

Que não busques outros cimos,

Que atrás não corras, em vão,

 

De ninguém, de ninguém mais.

E então amemos em paz.

 

- É que há tanto que correr

Toda a vida até… Viver!

 

 

558 - Carência

 

A fome do coração,

Toda a carência de amor,

Subjuga, submete, é tão

Peremptória ao nos se impor

 

Como do corpo a mais fome

Que obriga ao jugo fecundo

Onde o sangue se nos tome

Mudando a face do mundo.

 

 

559 - Floresta

 

Entras na floresta densa

Cheia de tojos, espinhos,

A infância atrás morre intensa,

Nunca mais terás carinhos…

 

- Sempre, então, toda a adultez

Sofre desta viuvez.

 

 

560 - Pecados

 

Todos temos de sofrer

Dos outros pelos pecados,

Tão difusa e por quenquer

Sói a dor tecer os dados.

 

É que até mesmo a justiça

Vítimas em volta espalha:

Toda a sentença se enliça

De inocentes que atrapalha.

 

Aqueles que o não merecem

Sofrem a dor que os demais

Quanta vez os mais esquecem

Que são quem merece mais.

 

 

561 - Mó

 

Quem vive na mó de baixo

O ar gelado o cerca inteiro.

Fogem-lhe os demais em cacho

Rumo a um mais quente quinteiro,

 

Como quem, se o tempo esfria,

Foge duma sala fria.

 

 

562 - Lista

 

Se um homem fora capaz

De falar, desenrolava

A longa lista que traz

No íntimo a arder em lava

Com as coisas de que gosta

No casamento em que aposta.

 

Se um homem fora capaz…

 

 

563 - Neurose

 

Ter liberdade demais

É uma neurose de escolhas:

Com infinidades tais

De opções, quais as que recolhas?

 

Os solteiros decidir

Hão-de, pois, constantemente,

Que fabuloso porvir

Hão-de talhar a seguir,

Um passo além do presente.

 

Mas quem é casado sabe

O que operar bem lhe cabe:

- Do trabalho ir para casa

No termo de cada dia,

Do lar assoprar a brasa

De abraços que repartia,

Esposa, marido e filhos

Atar domesticamente

Da tarefa com cadilhos

Que a casa tornar premente

E, por fim, numa cadeira

Se assentar placidamente

A gozar nababamente

Como cresce a vida inteira.

 

Um quer ver telenovela,

Um outro prefere a bola?

- Mesmo quando há uma procela

É onda do mar que enrola.

 

Cresce o cacho na videira

Mesmo se a aragem rebola

E ao fim tudo é brincadeira

Quando pela paz fagueira

Cada qual a si se imola

- E mais de si fica à beira!

 

 

564 - Seguro

 

Ela trata do seguro.

Se tal fora do marido,

Caro um consultor e duro

Teria de ser mantido,

 

Porque ele não saberia

De jeito tratar de nada,

Nem paciência teria

De cuidar da papelada.

 

Ela trata do seguro

E, nas benesses do lar,

Mais lar no lar eu auguro

Da mulher que assim amar.

 

 

565 - Culto

 

O que é pior num solteiro

É de si contínuo o culto.

Fico feliz, que me abeiro

De confirmar, sem insulto,

 

Que deixei de me sentir

Da prisão com o labéu

Na pessoa de afligir

Que por acaso sou eu.

 

É a prenda de casamento

Que não vem no rol do intento.

 

 

566 - Importante

 

Cada pessoa que encontras

Terá na testa um letreiro

Que ninguém mostra nas montras:

“Faz que eu sinta, por inteiro,

 

Que serei mesmo importante!”

A vender, como na vida,

Vai ganhar e pula avante

Só quem por tal norma lida.

 

 

567 - Cavalheiros

 

Que voltem os cavalheiros

Revestidos de ilusão,

Que elas mirem os parceiros

Tal se lhes faltara o chão,

Enfeitadas de romance,

A luzir de tal paixão

Que o planeta inteiro dance.

 

De novo a ver se atingimos

Afinal qual nosso alcance,

Se o chão rasteiro, se os cimos.

 

 

568 - Barco

 

Não é do fervor

Nem de qualquer mágoa:

O barco do amor

Meterá sempre água.

 

Nunca um casamento

Contrato acabado

Será num momento:

Logo se há mudado.

 

Um bebé que chega,

Cão que teve fim,

A briga que adrega…

- Será sempre assim.

 

Só que tal cansaço

É que dá sabor

Depois ao abraço

Com que selo o amor.

 

 

569 - Tímido

 

O tímido escusa, enfim,

De trazer flor ou presente

Dia de S. Valentim,

Basta não ficar ausente:

- Para um namorado assim,

Tal nada é uma prenda ingente.

 

E então se lhe solto a fala

É uma jóia tão preciosa

Que brilha mais que uma opala

Engastada em cada coisa.

 

 

570 - Partida

 

Qualquer alma, após partida,

O corpo já nada é.

Mas da mãe foi tão querida

Como o corpo ali ao pé.

 

Formou-o, ligou-se a ele,

Lavou, vestiu e cuidou:

Nem morto agora o repele,

Tanto se lhe cola à pele,

Seu próprio corpo o tornou.

 

Quando um corpo assim mo coso,

Torno-o num bem precioso.

 

Por isto é que a salvação

Nunca deveras me acalma

Se for só salvação de alma,

- Tem de ser ressurreição:

Alma e corpo em união.

 

Apenas aqui me abeiro

De ser eu, Eu por inteiro.

 

 

571 - Evocar

 

A pátria como o meu lar

Se encontram no coração,

Sempre os consigo evocar

Quando os queira ter à mão.

 

Uma antiga nostalgia,

Saudades do pátrio solo,

Da doce vida que havia,

Morrem sem dar mais consolo,

 

Que o que consola, no fim,

É o que houver dentro de mim.

 

 

572 - Conquistador

 

Quanto mais um homem fama

Tiver de conquistador

Mais a mulher que o não ama

Conquistar-lhe tenta o amor.

 

Subjugar aquele a quem

Ninguém soube resistir

Prova irrefutável tem

De a melhor arma brandir.

 

Assim é que a borboleta,

De tanto rondar a chama,

De asa queimada e bem preta

Finda sem amor nem fama.

 

 

573 - Floresta

 

Dos homens o coração

É aquela floresta escura

Em toda a população

Menos no que amor lhe apura.

 

Não porque lá veja mais

Mas porque sempre vê menos

E os sinais nem vê jamais

De floresta mais pequenos.

 

Porém, em contrapartida,

Vislumbra a luz apagada

Que ninguém vê de seguida

E que é da História a pegada.

 

 

574 - Sós

 

Ficamos sós quando amamos

E também quando morremos.

Na vida ninguém aos ramos

Liga que andam nos extremos.

 

E, por igual, importância

Não dão eles a ninguém,

Um, porque da morte em ânsia,

Outro, para o amor que vem

Porque apenas olhos tem.

 

E assim, no circo da vida,

As portas por igual são,

A de entrada e a de saída,

Um convite à solidão.

 

A esperança que mantemos,

Como a que do amor se arquiva,

É que a morte transporemos

Duma forma criativa:

- Criativa como aquela

Que à vida abriu a janela.

 

 

575 - Loucamente

 

Loucamente apaixonado,

O homem quer o isolamento,

Mata o tempo que lhe é dado

Com exercício violento

Ou num êxtase parado

A invocar, em vão intento,

Sempre a imagem fugidia

Da mulher que lhe abre o dia.

 

Na solidão é que a chama

Se ateia daquele que ama.

 

 

576 - Fantasmas

 

Os fantasmas, arrastando

Nas orlas do entardecer

Longos dedos, planam, bando

Dos sonhos bons de quenquer.

 

É por fantasmas que tais,

Com seu toque de magia,

Que devimos cordiais

Todo o dia, qualquer dia.

 

 

577 - Respeito

 

Se não há respeito ao pai,

Somos menos camaradas:

Ninguém vê, se o tecto cai,

Tudo na vida são nadas.

 

Em troca das despedidas

que inauguram caminhadas,

A vida rasteira as idas,

Só levamos bofetadas.

 

Sinceridade e fraqueza

À renúncia nos levaram

E os filhos são quem se lesa,

Que os deuses abandonaram.

 

 

578 - Piedade

 

Piedade não é desgosto,

É festa dissimulada,

De alívio suspiro a gosto

Por não ser pessoa amada.

 

Esta é a tragédia da vida:

Se ao lado morrer alguém

Nem dou pela despedida

Se me não tocar também.

 

 

579 - Maravilhas

 

É tão bom dançar contigo!

Estou sempre a descobrir

Maravilhas que consigo

Contigo me transmitir.

 

Não apenas por estares:

É que tudo, à minha volta

Se transmuda e voa à solta,

Maravilhoso, nos ares.

 

 

580 - Relações

 

Já não sou tão optimista

Sobre as relações como era.

Quando alguém tiver em vista,

Ponho em questão a quimera:

 

- Do tipo é com que querias

Que os fins-de-semana passem

Lá, de quinze em quinze dias,

Teus filhos, quando se embacem

Os brilhos das fantasias?

 

 

581 - Treino

 

Aumenta a capacidade

Quem tem treino emocional

De compreender por igual

Doutrem a necessidade.

 

Cresce a probabilidade

De ter sucesso na vida.

O engenheiro de seguida,

Maior produtividade

 

Obterá, não do elevado

Quociente de inteligência,

Mas do grau de eficiência

de interagir lado a lado.

 

A amizade vem do facto

De prestarmos atenção

Aos outros, portanto, não

De obtermos deles o pacto

 

De no-la darem a nós.

Um minuto de louvor

Tem decerto mais valor

Repetido a uma só voz

 

Uma centena de vezes

Que cem minutos seguidos

Duma só vez conferidos,

Sem mais nada os outros meses.

 

 

582 - Padrão

 

O filho um padrão moral

Requer do certo e do errado

Tanto do que é principal

Como do gasto e fanado.

 

O melhor padrão moral

É o dos pais que ele tiver:

Se a conduta não é igual,

Se ela se contradisser,

 

Se ela fugir à verdade,

Doutrem não vir os direitos,

Se a promessa é falsidade,

- Tais exemplos são preceitos.

 

Que é que vamos responder

Se, ao condenar, por enguiço,

Um filho ouvirmos dizer:

“Mas tu também fazes isso!”?

 

 

583 - Tarefa

 

Ser mãe é grande tarefa,

Não é, porém, nunca um fardo.

Para trás deita a catrefa

De funções, que o gabinardo

 

Que delas te cobre os ombros

Te envolve com tais sarilhos

Que isso é que te enche de escombros

E não, brincar com os filhos.

 

Ignora um pouco exigências,

Esquece que és responsável:

- Joga à bola nas carências

E teu lar é inolvidável!

 

 

584 - Zanga

 

Não se zangam com ninguém!

Tenho pena desta gente

Demasiado indiferente

Ou então que se contém.

 

Privam-se até do prazer

(Com o qual muito há quem manga)

De a paz poder refazer

Após toda a qualquer zanga!

 

 

585 - Permaneceremos

 

Não, não permaneceremos,

Por isso é que nos amamos:

Aquilo que não podemos

Segurar e que queremos

Continuar sempre a dar

(E a dar sempre o continuamos),

Para nós eis o que é amar.

 

- No tempo uma eternidade

A fingir a de verdade.

 

 

586 - Mosto

 

Disse-lhe ele uma palavra,

Foi como lavar-lhe o rosto,

Por dentro o fogo lhe lavra,

Alma lhe fermenta ao mosto.

 

De repente transmudou-se

O mundo inteiro diante

E ela própria, tal se fosse

Outra pessoa: um gigante!

 

“Como és linda, criatura!”

Foi o sol rompendo a aurora,

Aguaceiro na secura…

- É quase Deus desde agora!

 

 

587 - Casca

 

Sentir a própria beleza,

Como não, tal como a dor?

Da ternura a toda a reza

Que outra causa irei propor?

 

Assim na casca rugosa

Vão as árvores sentir

A ternura furiosa

Dos rebentos a bulir.

 

Assim deve estremecer

A savana como a selva

Quando um dia amanhecer

Toda virente de relva.

 

Além dos cinco sentidos

Anda estoutro, bem discreto,

Mexendo os magmas fundidos

De que ando a nascer secreto.

 

 

588 - Impoluta

 

Amar uma prostituta

Se não se tem, como um rei,

Dom de a tornar impoluta,

É mesmo asneira de lei.

 

Mas ninguém nunca é o primeiro

Que renuncia à ambição

Para a um amor desordeiro

Palmilhar a inclinação.

 

Será tarde quando um dia

O coração desolado

A contrição principia,

Que atrás nunca volta o fado.

 

 

589 - Regra

 

Esta regra de latão,

De pisar quem anda abaixo

E de vergar-se ao chefão

É de impiedosa que a tacho.

 

A de ferro que proclama

Que a outrem eu vá tramar

Antes que lhe sofra a trama

É da crueldade o algar.

 

A de prata as ultrapassa:

Não faças o que não queiras

Que outrem a ti próprio faça.

Mas da complacência abeiras.

 

A de oiro manda fazer

Aos demais, benevolente,

O que para mim quiser

Que me faça toda a gente.

 

O problema é a crueldade,

A cínica exploração,

Sem castigo de verdade

Que force à reconversão.

 

Vem a lei de Talião:

O que te fazem farás

A quem to faz, terás mão

Em quem for um ferrabrás.

 

Começa tu pela de oiro.

Se não és correspondido,

Talião abre o tesoiro

Que andar noutrem escondido.

 

 

590 - Interacção

 

Tanta guerra nós fizemos

Que qualquer interacção

Como conflito a veremos

Ou como competição.

 

Haverá sempre quem herde

E quem se perca de vez

No jogo do ganha-perde,

Ao saldar, em fim de mês.

 

Mas a guerra nuclear,

A depressão económica,

O ambiente a se finar

Doutra cor é fisionómica:

 

Todo aquele que aqui joga

Tomba no tapete verde,

Rês no matadouro à soga,

- É um jogo de perde-perde.

 

Porém, o amor, a amizade,

As artes, conhecimento,

Os dons da paternidade,

O inverso dão elemento:

 

Quem, pois, por estes caminhos

Um dia as vidas amanha,

Ovos não gora nos ninhos,

- É um jogo de ganha-ganha.

 

Quando é que conseguiremos

Tanto treino em nós conter

Que os jogos então ganhemos

Todos que a vida tiver?

 

 

591 - Dividido

 

Lar contra si dividido

Não se aguentará de pé.

E uma espécie, como é que é,

Se um matar outro partido?

E um planeta consumido

Quase sem ninguém dar fé?

 

Lar contra si dividido

Nunca se aguenta de pé!

 

 

592 - Trama

 

Sistema familiar,

Trama de coisas pequenas:

Partilhas, nunca tomar

Por garantidas, nem penas,

Nem sorte, saber poupar

Para os sonhos que se quer…

 

São tais nadas, se os houver,

Que nos preparam, fecundo,

O enfrentamento do Mundo.

 

 

593 - Cacto

 

O cacto em que alguém se pica

É criado em minha estufa:

Quando um inimigo o aplica,

Logo em dor o clamor rufa.

 

E depois há quem lamente:

- Que vida mais indecente!

Como se a vida não fosse

Mudar o amargor que existe

Em boa compota doce

Por mão de quem lhe resiste,

Hora a hora um sacrifício

Da amizade em benefício!

 

 

594 - Platina

 

Se for o silêncio de oiro

Vai ser a fala platina,

Que se espalha sem desdoiro

E à sabedoria inclina,

 

As ignorâncias remove,

As injustiças ventila,

À curiosidade move,

Nos espíritos cintila

 

E às almas fornece o pão

Estranho que mata a fome

De quem morre à solidão:

Sacia quem dela come.

 

 

595 - Pequenas

 

Nas relações muito contam

Atitudes bem pequenas:

Passo a passo nos apontam

O amor incondicional

E da confiança as cenas

- Basta só um terno sinal.

 

Às vezes quase nem vejo

Mas soou cá dentro um beijo.

 

 

596 - Ausente

 

Conta de quem anda ausente

Os aspectos positivos,

Como se fora presente.

Os fermentos construtivos

 

Não são de esquecer fraquezas

Mas de não envergonhar

Aquele que, afinal, prezas,

Tal se estivera a escutar.

 

Alimenta a confiança

E à fraqueza dá esperança.

 

597 - Cimos

 

Se perdoamos, abrimos

Caminhos de confiar,

Limpo ao coração os limos,

Vamo-nos ultrapassar.

 

Ao perdoar salto o muro

Que evita que os outros mudem:

Não estou, é bem seguro,

A obrigar a que se grudem,

 

Entre eles e a consciência.

Sem obstáculos que iludem,

Podem buscar excelência

Naquilo em que se transmudem.

 

 

598 - Arrepia

 

Algo em mim se me arrepia

À ideia de dependência.

Dar prendas celebraria

O laço que prenderia,

De amor por conveniência,

 

Quem dá como quem recebe:

É o laço da gratidão.

Por que de frio se embebe

quando disto se apercebe

Nosso frágil coração?

 

 

599 - Peias

 

Amor, ódio são fraquezas,

Que nos prendem com cadeias.

O desprezo que desprezas

É que, afinal, quebra as peias.

 

O desprezo é uma bancada

De apreciar a comédia,

Cá de fora, à balaustrada,

A ler pela enciclopédia.

 

Encafuar-se na toca,

Se enrolar dentro da casca…

- Mas que é que nisto me enfoca

Em tudo quanto me atasca?

 

 

600 - Passional

 

Criminoso passional

Contra a mulher absolvido

Leva a ter por ideal

Que não amar tem sentido.

 

Se ser bela é uma desgraça

E à desgraça dou aval,

Fatal à vida que passa

Empresto o ponto final.

 

É pior que ser machista,

Mulher ter na escravidão,

- É já riscar-me da lista,

Risco à vida o coração.

 

 

601 - Capitoso

 

O mistério nos perturba

Como um vinho capitoso;

Uma auréola de pureza

Logo a distingue da turba

Num desafio gostoso;

Secreto, o corpo embeleza,

Sufoca, até nos faz mal…

 

- Ela dá-se e, num momento,

Completa a revelação,

Esta mulher nada vale!

 

Cigarro em apagamento,

Bola de papel no chão,

Forma apenas de alma morta,

Vazia, desabitada,

Casa de arrombada porta,

Já não me oferta morada:

Frasco vago do perfume,

Neste lar não arde o lume.

 

E se logo o desencanto

Não lhe mata a intimidade

É aguardar só, que entretanto,

Vai fazê-lo a saciedade.

 

- Perene vivo este inferno,

Nem doutro hei mister eterno.

 

Como, na fatal corrida,

Como o maravilhamento

Sempre inovar a subida,

Motor continuar do intento

Sem na rotina, em seguida,

Se ir sumindo como o vento?

 

 

602 - Abrigos

 

Teus amigos mais antigos

Ter-te-ão dado razões

Para deles te lembrares

E para novos abrigos,

Como se foram senões,

A vida além evitares.

 

Conhecer melhor o mundo

É descobrir fundações

Que mais o tornam fecundo

Além de tais ilusões:

Por benéficas que sejam,

O bem e o mal parturejam.

 

 

603 - Afeição

 

Se a mulher vê violar

Lei de afeição natural,

Todas juntas um colar

Em torno a quem sofre o mal,

 

Como que de armas na mão,

Encadeiam protector,

Seja ao filho um pai malsão,

Seja ao pai filho traidor.

 

O que mais honra a mulher

É que, além das teorias,

Sempre aqui logra acolher

Toda a fundura dos dias.

 

 

604 - Sereias

 

As sereias descobriram

Que mais mortais que a canção

São as armas do silêncio.

Se muitos se escapuliram

De seu canto à predação,

Ao silêncio um homem vence-o

 

Mas nunca lhe escapará.

E o mais comum é nas teias

Da culpabilização

A canção perder-se já,

Mas ficarem as ameias

Em que as mortes correrão.

 

E um amor que encantar vida,

Que as novas vidas gerou,

O que produz de seguida

É uma tumba desmedida

Em que um lar todo enterrou.

 

 

605 - Repleto

 

Mais difícil compreender

Um Universo é no qual

Somos únicos a ter

Civilização científica,

Do que um Cosmos por igual

Repleto de inteligente

Vida e cultura magnífica.

 

Mas que é feito de tal gente?

 

Ou que cegueira é a minha

Que a não vejo a mim vizinha?

 

Se uma por duzentas mil

Estrelas tem lá razão,

Que falta para que a file

Ao meu alcance da mão?

 

Que espera me desespera

Pelas eras, nesta era,

Para encontrar um irmão?

 

 

606 - Privilégio

 

Cultivar grandes paixões

É o privilégio de quem

Não tem de fazer serões,

Ociosos malandrões

Que qualquer povo contém.

Para os mais são ilusões

Dum qualquer mundo dalém.

 

Felizmente que o amor

Autêntico anda ao alcance

De seja mesmo quem for,

Quer trabalhe, quer descanse!

 

 

607 - Rendições

 

As mulheres se defendem

Exactamente atacando,

Como a atacar surpreendem,

Bem inesperadas, quando,

Com estranhas rendições,

Conquistam os corações.

 

 

608 - Altar

 

Que alegria amar alguém!

 

Melhor que ser adorado:

O crente ao altar se atém

Como a um deus que fez refém,

Sempre a exigir o acordado

Milagre que lhe convém

E a que jura haver rezado!

 

Este amor, mas que maçada:

Tem só vida acorrentada!

 

Um amor que voe além,

Só o de alegre amar alguém.

 

 

609 - Reforma

 

A mulher reforma um homem

Maçando-o completamente

Até que ele já nem tente

Viver horas que o consomem.

 

e ao invés, reformaria

Se o não tentara sequer,

Com ser apenas mulher,

Dum amor pela magia.

 

E vamos lá entender

Que quem faz nunca faria

O que faz quem não quiser

Fazer o que ao fim fazia!

 

 

610 - Refundar

 

A  mulher volta a casar

Se detestou o marido.

Um homem, no seu lugar,

Refundar só vai o lar

Por demais haver querido

À que levara ao altar.

 

A mulher há-de tentar

Chegar à felicidade.

O homem vai-a arriscar,

Que lhe dói a soledade.

 

Os dois lados da moeda

Têm, pois, contrária queda:

- No rumo complementar

É que podemos ganhar.

 

 

611 - Excepção

 

O marido ou excepção

Ou regra geral vai ser.

E nada envelhece tão

Rapidamente a mulher

Do que casar, por seu mal,

Com uma regra geral!

 

 

612 - Separar

 

Podem hoje separar

Sexo de reprodução,

Ao amor não há lugar

Numa e noutra ocasião.

 

Os três, porém, conectados

Tanto se encontram tão fundo

Que acabamos desligados

De nós e de todo o mundo.

 

Então, qual a solução?

- Como em nós tudo e na vida,

Quão mais feixes na união,

Maior o ser e a medida.

 

 

613 - Arestas

 

Sempre tentou proteger-nos

Em miúdos, vida fora.

Hoje meus votos mais ternos

Das arestas dos invernos

São de protegê-lo agora.

 

 

614 - Mérito

 

Choro do mérito pouco

Que nem ouso oferecer

A quem amo, que era louco

Não dar-lhe o que merecer.

 

E mais nem lhe ouso aceitar

O amor que me mataria

Se o não colher: meu lugar,

Sem ele, se me esvazia.

Escravo do sim que é não,

Nem dando nem recebendo,

Rastejo, verme do chão,

Sob um céu todo esplendendo.

 

 

615 - Fiéis

 

Os homens fiéis são raros:

Quando não fora em solteiros,

Em casados, de reparos

Não usam ser caloteiros.

 

Depois a felicidade,

Tão arisca, tão arisca,

Troca mentira e verdade

E afunda quem tanto arrisca.

 

Será de espantar que ao fim

O tamanho da desgraça

Não arrase mais, enfim,

Que a tempestade que passa.

 

 

616 - Batalha

 

Será a vida uma batalha

Onde se entre couraçado

Para escapar à metralha

E de audácia bem armado

Para vencer cada malha.

 

Será a vida uma batalha…

- E o amor fica em que lado?

 

 

617 - Armadilha

 

A mulher é uma armadilha

Habilmente construída.

farejamo-la a uma milha:

Logo do peito à virilha

Nos prendeu inteira a vida.

 

O saboroso atractivo

exerce-se mais de longe

Que de perto e é tão esquivo

Que é mais forte se furtivo,

Chega a ser mortal no monge.

 

Inspiram tão mais desejo

Quão menos o satisfazem:

Presente, só porque a vejo,

A perco; se perco o ensejo,

Encontro-a em sonhos que aprazem.

 

A mais rude tentação

No encontro duma mulher

Não lhe vem da sedução,

Vem do que promete em vão:

Vinga ao não satisfazer.

 

 

618 - Desmedido

 

Não sente esta mulher nada,

Crê que tudo lhe é devido.

Embora cada jornada

Se lhe entregue, jamais cada

Basta ao querer desmedido.

 

Uma contrariedade

Num instante distraído,

E um ano de ansiedade,

De preitos pela beldade,

Apaga sem um gemido.

 

Vou-me embora, vou-me embora!

Mas ela diz: “dá-me um beijo!”

E logo na mesma hora

Meu querer já não me escora,

Caio-lhe aos pés sem mais pejo!

 

 

619 - Desacato

 

Da Pátria defensor nato

Sempre me cuidei de ser,

Mas é a Pátria um desacato,

Piada que faz sofrer.

 

Longe de ser o ideal

Que justifica a existência,

É uma casa comercial

Sempre quase a abrir falência.

 

Se calhar, por ser assim

Tão pequenamente humana

É que me prende por fim

Ao calor que dela emana.

 

 

620 - Próximo

 

Neste mundo cada qual

É o próximo dele mesmo,

Preocupado, afinal,

Só com ter prazer a esmo.

 

Do mal o menos, porém:

Sem isto para ninguém

 

Havia prazer algum

E o mundo não era um.

 

Afinal, amor que abrasa

Começa na própria casa.

 

 

621 - Esperas

 

Quando alguém ama deveras,

Um ano ou mais, que é que importa?

O tempo vive de esperas,

Mora a vida frente à porta.

 

Quando, porém, for casado,

Por muito que feliz seja,

De perca não tem cuidado,

Tudo tem já quanto almeja.

 

E porque já nada espera

O fogo então se lhe esvai,

Como morre uma quimera

Quando à noite o dia cai.

 

 

622 - Problemas

 

Problemas de amor

Para mim não são?

Só, porém, então

Eis dela o valor:

Então me domina

Como minha sina.

 

Não deixo de pensar nela,

Respiro-a como atmosfera:

- Como evitar uma estrela

De quanto sou de era em era?

 

 

623 - Amigo

 

Um amigo é aquele em quem

Poderei descarregar

Trigo e joio como advêm,

Sabendo que há-de ali estar

 

Para ouvir, para guardar

Tudo o que for importante

E o resto fora deitar,

Sem préstimo doravante.

 

É tão bom nos encontrarmos,

Aprofundar a amizade,

Que isto de assim nos amarmos

É um traço da divindade.

 

 

624 - Peões

 

Dispomos dos demais, tal se foram peões,

De modo a que nenhuma casa fique vaga,

Mas eles, em segredo, matam ilusões,

Fazem o jogo, empurram-nos, dão-nos a paga.

 

Podem mesmo, ao fim, pôr-nos de lado:

A voz que diz “desculpe, mas não posso”,

É sempre a que dos dois, o afortunado

Que tudo pode, usa torcendo-me o pescoço.

 

 

625 - Ralos

 

Com eles ver os esquilos,

Após o ralho, abraçá-los,

Ouvir-lhes razões e estilos,

Rir, enfim…

- E amores di-los

Aos filhos de amor mais ralos.

 

 

626 - Lucidez

 

Esta preocupação

Aqui só de meu destino…

Mas ele é tão pequenino,

Nem sequer vale um tostão!

 

E depois a sensação

Cá do fundo, do interior,

Dum dever superior

A que devo dar a mão…

 

Pouco importa a lucidez,

É mesmo do coração:

- De repente o mundo é irmão

E eu, o mártir que aqui vês!

 

 

627 - Auxílio

 

Um auxílio é tirania

Quando, auxiliando alguém,

Por incapaz o teria

Ou incapaz o faria,

Conforme o que me convém.

 

Cá me imponho, além desprezo,

E cerceio a liberdade:

Como nulidade o prezo,

Por indigno o tenho preso,

Presumo-lhe a invalidade.

 

O auxílio se desmascara

Como um domínio perverso,

Dum amor em vez da rara

Entrega gratuita e cara

De quem noutrem vive imerso.

 

 

628 - Lacaios

 

Os nascidos para escravos

Querem tudo à custa alheia:

De liberdade ora uns avos

Se doutrem numa mancheia,

Ora um canteiro de cravos

Se for outrem quem semeia…

 

Gritam depois contra os aios

- E são, de escolha, lacaios!

 

 

629 - Secador

 

Um secador de cabelo

Poderá ser bem prosaico

Mas arma jeitoso um elo

Por onde aquilo que é belo

Sacro torna o que era laico.

É no fim cheiroso pão

Que alimenta o coração:

Todo o amor requer beleza

Como um jantar sobre a mesa.