SÉTIMA  REDONDILHA

 

 

 

APROFUNDA  A  REFLEXÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 727 e 821 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                727 - Aprofunda a reflexão

 

                                                                Aprofunda a reflexão

                                                                Cada joeira da crítica

                                                                Desbravando a teia mítica,

                                                                Luz trazendo à escuridão.

 

                                                                Num verso é boa política

                                                                Sabedoria em filão

                                                                Nele entrosar como um dom

                                                                De resistência granítica,

 

                                                                Não vá perder-se de vez

                                                                Nos desencontros dos dias,

                                                                Das paixões nas contrafés.

 

                                                                Ao gravá-las na palavra

                                                                Todas as sabedorias

                                                                Semeio no chão da lavra.

 

 

728 - Capital

 

A estupidez não se cura

Com dinheiro, educação,

Nem por lei ou com procura,

E não é pecado, não.

 

Mas é o crime capital

De castigo universal:

- A sentença dele é a morte

Imposta na evolução

Quando a estupidez condão

For da espécie que a transporte.

 

 

729 - Dialogar

 

Há quem, ao dialogar,

Ultrapasse minhas frases

Como quem fora, em lugar,

No acelerador pisar,

Para o amarelo capazes

Os pneus serem de passar.

 

Apertam-me contra a berma,

Tiram faixa de rodagem,

De raspão batem na enferma

Minha opinião já erma,

Precipitam-se em voragem

(Minha ideia não vão ler-ma!)

 

Para o estacionamento

 

Habitual e relaxado

De seu próprio pensamento.

Nunca vivem um aumento

Nem vislumbram o outro lado:

- São carros sem movimento!

 

 

730 - Culpado

 

Na maioria dos casos,

Alguém sentir-se culpado

Pode ser, findos os prazos,

Construtivo em todo o lado.

 

É a voz civilizadora

Que evita que se magoem,

Perturbem, se vão embora,

Desiludam (que se doem)

 

Os demais com que lidamos.

Porém, se não abrandar

A culpa de que inculpamos

Nossos actos, ao azar,

 

Após havermos tentado

Corrigi-los, caso a caso,

Ou se tal é derivado

Ao que à mão nos não deu azo,

 

Então é uma falsa culpa

A que põe-me em carne viva.

Torna-a quem se não desculpa

De vez autodestrutiva.

 

 

731 - Aceitemos

 

É preciso que aceitemos

Que não somos poderosos

A ponto que controlemos

Tudo o que ocorre e que vemos

Que nos traz dores e gozos.

 

O mundo era antes de nós

E depois de nós será,

Não somos quem ata os nós

Nem quem os desatará.

 

 

732 - Falha

 

Esperar a perfeição

De nós próprios, benefícios

não nos traz tal situação,

Mata-lhes mesmo os resquícios.

 

Quem de culpa já sofrer

Colha a falibilidade

que todos temos de ter:

- Falha é ser da Humanidade!

 

 

733 - Manipular-nos

 

Muitos de nós temos gente

Que pode manipular-nos

Para, ao fim, vir a inculpar-nos:

Um suspiro deprimente

 

Por parte da mãe mergulha

A muitos num sentimento

De culpa cujo tormento

Atiça qualquer faúlha.

 

Identifique primeiro

O detonador da culpa,

A coisa que não desculpa,

Que inseguro o põe inteiro,

 

Que pode ser o trabalho,

Os filhos ou a mulher,

A dádiva por quenquer

A esmagá-lo como um malho.

 

Quem é que pode accionar

qualquer dos detonadores?

Todo o poder dos mentores

Trate de lho retirar.

 

Veja após quem você é:

Não é nenhuma criança!

E o outro que não alcança

Não é um deus ali de pé:

 

Decerto que tal pessoa

Nem sempre terá razão…

- Sua vida tenha à mão,

Não viva mais vida à toa!

 

 

734 - Tempo

 

O tempo não nos ajuda

A manter-nos no caminho:

Nada há nele que me aluda

A que ele vai sempre em frente,

Mas agora, sem carinho,

São pedras, são pedregulhos

De cada dia o presente,

Da vida inteira os engulhos

A tropeçar em meus passos,

Mais e mais só de cansaços.

 

Há poucos anos ainda,

Como eu os ignoraria!

Mas com a velhice advinda

Sou balão de fantasia:

Esponjoso, indiferente

E cada dia mais mole…

Aquilo em que sou frequente

É a buscar o que não bole.

 

- Até que o tempo virá

E mais nada bulirá.

 

 

735 - Melancólico

 

Melancólico, por certo,

Depois de haver-me entregado,

Pelo mundo então negado

Da vida no desconcerto:

 

No gosto de discutir,

Na liberdade de escolha,

Nos véus que haja a descobrir

Para poder discernir

O caminho a que me acolha.

 

Meteram-me aqui num mundo

De infindas pequenas cercas:

Isto, não; aquilo é imundo;

Olha além, que te não percas…

 

É uma vida clandestina,

Deveio recalcamento,

Juízo que não atina

A interrogar um momento.

 

Uma razão que não age

Enrola-se num novelo,

Estéril, já não reage,

Com o mundo perde o elo.

 

Revirado para dentro,

Cada qual descobre em si

Paisagens até ao centro

Ignorado que haja ali.

 

Mas, esgotada a substância,

Parado no pessimismo

Pela descrença, com ânsia,

Morre o poema da infância,

Dele próprio é um mimetismo.

 

Nova máscara do medo,

Nunca dirá que é cobarde

E assim degrada seu credo

No sofisma onde se tarde.

 

 

736 - Irracionalismo

 

É sempre o irracionalismo

Que espalha sementes de ódio,

Dos choques o cataclismo

São deformações em bródio

E a verdade é que a verdade

Daqui sempre ela se evade.

De ódios espalha as sementes

A desrazão entre as gentes.

 

 

737 - Juiz

 

Juiz do tempo é o escritor

E o tempo é dele o juiz,

Se é testemunho de amor

Ou só,de aspirações vis.

 

A um tempo juiz e réu,

Que infernos lhe custa o céu!

 

738 - Requisitos

 

A lista de requisitos

Na escolha dum funcionário

Requer técnicos quesitos,

Mas poucos, em leque vário.

 

Tudo o mais, que é quase tudo,

É com dele a honestidade

E confiança, sobretudo,

Mais a maneira de ser

Com que inteiro persuade

Ou dissuade quenquer.

 

O académico saber

Não leva a vencer ninguém:

Se tem alguma valia,

A valia que ele tem

 

É de ao mais trazer mestria

Para o mal ou para o bem.

 

 

739 - Primeiro

 

O pragmático até cá

Foi o primeiro escolhido

E o santo só rezará

Por ele a um canto escondido.

 

O santo é que doravante

Deve ter a primazia

E o pragmático, prestante,

Servi-lo então deveria.

 

 

740 - Direito

 

Para viver a criança

Precisa de saber onde:

Onde seu direito alcança,

Onde é que o dos mais se esconde,

 

Decida então desenhar

Linhas de separação

Entre um e outro lugar,

Mostre-lhas sem confusão.

 

Hoje e sempre, seja firme.

Mas fuja a um erro comum:

Com rigidez não afirme,

Mata o excesso qualquer um.

 

 

741 - Sorte

 

O que nós temos é sorte

Por não ter o que queríamos

E antes termos o que temos.

Vendo-lhe bem o recorte

(Aquilo que não sabíamos),

Se espertos formos, havemos

De confessá-lo ao ouvido:

- Se o soubéramos, teríamos

Antes isto preferido!

 

 

742 - Barco

 

A nossa Terra parece

Um barco sempre encalhado

À borda do mar bravio.

E o mar a bater, refece,

Desfazendo-o, descuidado…

E a gente neste navio!

 

Não há nunca quebra-mar

Que garanta eternamente,

Ao menos, algum presente,

Que nos reserve um lugar.

 

Lá vamos, neste navio,

Por um fio, por um fio…

 

 

743 - Mesmo

 

Religião e política

A viajar no mesmo carro:

Logo vem a crença mítica

De que com nada me esbarro,

Não há muros no caminho.

É avançar e bem depressa

Sempre em frente da cabeça!

Que importa ser adivinho?

 

Os obstáculos aparte,

Esquecemos desde início

Que, a quem corre de tal arte,

Se mostrará o precipício,

Sem indícios nem sinais,

- Quando for tarde demais!

 

 

744 - Patamar

 

Se me não preocupar

Com o que é verdade ou não,

Tão imoral patamar,

Onde há só o que é meu quinhão,

Será como o de não ver

Donde me vem o dinheiro

Desde que eu o venha a ter,

Nem que mate meu parceiro!

 

 

745 - Jeito

 

A ciência é um instrumento

Que não é nada perfeito

Para obter conhecimento,

Mas é o melhor que anda a jeito.

 

É como a democracia:

Não nos dita as actuações,

Mas esclarece o que agia

Por trás de quaisquer senões.

 

Por muito que seja mau,

Se a verdade ao fim lhe escapa,

Serve-lhe de varapau

Com que os buracos lhe ataca.

 

 

746 - Aparência

 

Procurar uma aparência

A favor de meu desejo

E não ligar à evidência

Do que se opõe ao que almejo,

Eis a grande tentação.

Agradar ao que concorda,

Dar ao desagrado um não

É que me roeu a corda,

Precipitou na ilusão:

Da verdade a caminhada

É o invés desta pegada.

 

 

747 - Teorizar

 

É um erro teorizar

Antes de os factos colher,

Que, para a ideia vingar,

Vão-se todos distorcer.

 

E então, de verdade alguma

Ninguém dá conta que existe,

Pois que realidade, em suma,

Contra uma ideia subsiste?

 

Já nada então se amerceia

Com que nós façamos pacto.

Um facto vai contra a ideia?

- Tanto pior para o facto!

 

 

748 - Contraditório

 

Invalidar a razão

Tem algo contraditório:

Ou se faz com ela, ou não.

Se for com ela, é ilusório,

 

Que desmente o que comprova

Neste acto de o comprovar.

Se é sem ela, qual é a prova

Em que o vou fundamentar?

 

Não há, portanto, saída:

É sempre fuga iludida.

 

 

749 - Engrenagem

 

A engrenagem da pobreza,

Da ignorância e desespero,

De auto-estima que não preza,

Se misturam no tempero

 

Para a máquina criar

Do que é perpétuo fracasso,

Que aqui vai a triturar

Sonho humano passo a passo.

 

Pagamos todos um preço

Desta máquina e bem grave:

No analfabetismo o meço,

Dele é sempre a peça-chave.

 

 

750 - Custo

 

O custo da educação

É muito insignificante,

Se posto em comparação

Com o custo exorbitante

 

Que nos custar a ignorância:

Não é que fiquemos bobos,

É que largamos, na instância,

O nosso governo aos lobos.

 

De cada qual bom apuro

É que quebrará o azar:

- Um país só está seguro

Quando é o povo a governar.

 

 

751 - Adiante

 

Se uma nação pretender

Ser livre e ser ignorante,

Espera o que não houver

Nem vai haver adiante.

 

Um pouco de liberdade

Trocar de ordem por um pouco,

Ambas perde de verdade

E um país, mais do que louco,

 

Fará com que se resuma

Em não merecer nenhuma.

 

 

752 - Gramática

 

A sabedoria prática

Que atende ao quotidiano

É a que permite viver.

Não tem, porém, a gramática

Que leia naquele plano

Que é que me fará correr.

 

A romântica visão

De quem por princípios vive,

Que os sonhos não sonha em vão

E não tolera a quenquer

Que vida fora os arquive,

- Esta é que me põe à mão,

Seja homem ou mulher,

A razão para viver.

 

 

753 - Avesso

 

Que importam coisas credíveis

Se delas não há sinais?

Tão lindos os impossíveis

E tão tristes os reais!

 

Começo sempre o começo

E, na hora de o findar,

Virado fica do avesso,

Não há como o culminar.

 

 

754 - Encomendo

 

Há quem creia que nasceu

De alguém o pensar nascendo,

Que na vida o meu e o teu

É dali que os encomendo.

 

É verdade que é verdade

Mas só no fundo do fundo:

Quando só o fundo me invade,

Nada é doutro, é deste mundo.

 

E, depois, é deste mundo

Que o de além sempre me fala:

Outro nem é, mas inundo

Minha rega de tal vala.

 

 

755 - Astronómico

 

Nem crescimento económico

Nem progresso tecnológico

Um inimigo autonómico

Do ambiente serão lógico.

 

Dele os melhores amigos

Ao invés serão talvez:

Dos humanos nos abrigos

Reduzem marcas dos pés.

 

Agricultura de ponta

Gera produtividade:

Baixa do alimento a conta

E há mais terra em liberdade.

 

Esgotos com melhor trato

Serão rios e ribeiros

Despoluídos que acato

Nas praias e nos balseiros.

 

Catalíticos nos carros

Conversores reduziram

Fumo e fuligem nos sarros

Que do ar sujo descaíram.

 

Os filtros nas chaminés

Das unidades fabris

Eliminam muitos pés

Das poeiradas mais vis.

 

- Tudo pesado, o melhor

Dos programas ambientais

Prosperidade é maior,

Rica economia mais.

 

 

756 - Humor

 

Julgamos que o mau humor

Vem daquilo que acontece,

Quando mais é de supor

Que natural se processe:

 

Aquilo que nós comemos,

Meu estado de saúde,

Que actividade tivemos,

A que hora do dia eu mude…

 

Determinado problema

Que não me toca na altura

Toma gravidade extrema

Se a energia mais não dura.

 

Sentimo-nos mais felizes

Do corpo à temperatura

Mais elevada: os matizes

que a energia nos apura!

 

Horas de sono inferiores

Às precisas podem ser

Um desastre nos factores

Emocionais que eu tiver.

 

Se o frustrante acontecer,

Controlar o desagrado

Difícil me há-de correr

Como a um menino cansado.

 

 

757 - Convido

 

De espírito o meu estado

Transmudo quando a beleza

Convido para o meu lado:

- Mergulho na Natureza.

 

Se de casa não puder

Sair, vou junto às janelas

Donde um pouco possa ver

Pardais, plantas, filomelas…

 

Quando um local de trabalho

Abre à natural paisagem

Tende menos para o ralho,

Entusiasma os que nele agem.

 

E de doença os sintomas

Menos aqui sempre são

Que os que nos lugares somas

Que derem para um desvão.

É que a Natureza é mãe

Que o corpo nos alimenta

Bem como as almas também

De quem nela se apresenta.

 

 

758 - Neutro

 

Aquilo que nos rodeia

é neutro por natureza.

Um valor a que se ameia,

Positivo ou negativo,

Seremos nós quem o preza,

Quem o torna morto ou vivo.

 

O peso do que valer

Vem do que eu queira escolher.

 

 

759 - Bondade

 

Toda a bondade do mundo

Não passa de fingimento

Se não é Deus que aprofundo.

 

Só que resta o pensamento:

Toda a bondade do mundo

É quando de Deus me inundo.

 

Não houve, pois, fingimento,

Apenas a distracção

De quem não vê sob a planta

A raiz em que se implanta

E de que é mera função.

 

760 - Interposta

 

Deus mais próximo parece

Se nenhuma dor humana

Interposta me aparece

Entre Ele e quem se lhe irmana.

 

Todavia, o que acontece

É que é na dor imprevista

Que Ele afinal nunca esquece

De impor-se ao que lhe resista.

 

Não é um sadomasoquista:

Sou eu que não quero ver

Que faço parte da lista

Desde nado até morrer.

 

Sou eu que não quero ver

Que, ou serei Deus-a-caminho

Ou não serei nenhum ser,

Já que nada sou sozinho.

 

 

761 - Seixo

 

Entre este seixo e meu punho,

Entre este pau e meu dedo,

O igual com que me acabrunho

E o diverso de meu credo:

 

Tão iguais pela função,

Diversos na morte e vida,

Eis o que sou e eles são

Na distância desmedida.

 

Na contínua semelhança

Se me firma o que descansa.

 

É, porém, a diferença,

A da força com que eu vença.

 

 

762 - Geografia

 

A geografia, em política,

Acabará, tarde ou cedo,

Por muito que pese a crítica,

Contra o sonho e a fantasia,

Pela força ou pelo medo,

- Por vencer a ideologia.

 

 

763 - Entre

 

Sou vencedor e vencido

E contente por viver,

Mas na angústia de não ver

Por que afinal hei nascido.

 

Esta é a minha condição:

Estar entre o sim e o não,

 

Viver entre céu e inferno

- E só nisto ser eterno.

 

 

764 - Primitivo

 

O homem mais primitivo

Sempre se julga o melhor:

É o dogma cego, de arquivo,

À força em roda a se impor.

 

A dúvida, a tolerância

Debilitam quem é grado:

Serão marca ainda de infância,

Doença de civilizado,

 

Fragilizam, quando em acto.

Mas, se bem no alvo se atrema,

É o que nos põe a recato

E tal é a força suprema.

 

 

765 - Arrependimento

 

Uma absolvição não basta

Sem um arrependimento.

Consciência não é da casta

De ir, de momento a momento,

 

À máquina de lavar

Da igreja umas voltas dar

 

Dentro do confessionário

E sair enxuta e pura

Do detergente perdão,

Pronta a arrumar num armário

Ou a receber, segura,

Novas nódoas pelo chão.

 

Uma consciência apenas

É o que temos e, lavada

Vezes demais, estas cenas

De buracos perfurada

 

A findarão por deixar:

Máquinas não os remendam.

De arrepender-se em lugar,

Que tiras tenho que a emendam

 

Quando se puir de vez

Dos rasgões que sempre fez?

 

 

766 - Cruz

 

Aqueles sempre O prenderam,

Já não pode mais sair:

Bem o quer (eles ponderam),

Mas na Cruz é que tem de ir.

 

Os padres O crucificam,

Já que os mesmos sempre são:

Há dois mil anos O aplicam

A sangrar passos no chão.

 

Guardam-nO severamente,

Prisões de alta segurança.

Dão-Lhe incenso de presente,

Liturgia que O descansa.

 

Deixá-Lo ir, isso não,

Que Ele é mesmo muito rico:

Não se tem fortuna em vão

E eles moram lá no pico.

 

Se Ele foge, voltaria

Logo a apoderar-se dela:

E da noite para o dia

Fica o padre sem gamela.

 

Como o louco enclausurado

De que outrem gere a fortuna,

Como será libertado

Sem que contra a seita se una?

 

 

767 - Fome

 

Um homem com muita fome

Sonha com empanturrar-se.

O sonho realiza: come

E logo, sem mais disfarce,

Ficará de ideias seco.

Demais o estômago cheio

O dia lhe torna peco,

Com vómitos de permeio.

 

O sonho que houvera um dia

Pesadelo é de agonia.

 

- E sempre a vida é tal fome

que nos come, que nos come…

 

 

768 - Salvo

 

Quando escapou são e salvo,

Devém-lhe a guerra aventura:

E quanto menos se apura

Que a aventura fora um alvo,

 

Quanto menos graça tinha,

Mais lhe cresce na memória!

Apenas ao morto a glória

Duma opinião convinha,

 

Que apenas ele viveu

Horrores até ao fim.

Ao morto e a quem dele é afim,

Que com saudade o perdeu.

 

Serão sempre minoria.

A memória é um coador:

Ao sobreviver propor,

Tudo muda em fantasia.

 

 

769 - Verdadeiras

 

Coisas que são verdadeiras

De várias maneiras são:

Deveras o são inteiras

Só na primeira versão.

 

Quando à gente lhe convém,

Lhe convém acreditar

São verdadeiras também,

Por mais que andem a enganar.

 

Se aparenta que acredita

Alguém que algo é verdadeiro,

Por verdadeiro o concita,

Tal devém por derradeiro.

 

Coisas que são verdadeiras,

De várias maneiras são

E ao fim todas, se te abeiras,

São mera aproximação.

 

 

770 - Planícies

 

Nas planícies, nos planaltos

Mais amplos, mais imponentes,

À besta domina aos saltos

O Homem rangendo os dentes.

 

Domina a besta de fora

E ao mesmo tempo a de dentro.

E se esta mais nos demora

É o custo de que em mim entro.

 

Porém, ao ir dominando,

Devém a terra formosa

Das bestas que se amansando

Amansam o homem que as goza.

 

 

771 - Espinhas

 

Posso livrar-me das leis

Alheias e acidentais,

Não das que me são fiéis,

Minhas espinhas dorsais.

 

Um triângulo liberto

Da prisão de seus três lados,

Por muito que seja esperto,

É mais um entre os finados.

 

Minha margem de manobra

Estreita-se entre varais:

Quem a estes os não dobra

Nem de si dará sinais.

 

 

772 - Frágil

 

Frágil é a voz do intelecto

Mas, até ser escutada,

Não se cala, até que a afecto

Aos socalcos da escalada.

 

Mas são desaires primeiro

Que intérminos sofro inteiro.

 

 

773 - Quantitativamente

 

Um saber qualitativo

É mais de mim um saber

Que das coisas com que vivo,

Que um metro hão-de ter qualquer.

 

Quantitativamente é que então

Agarro profundamente

Delas a interrogação

Na porta que me não mente.

 

Quando a abrir, logo a beleza

Delas se me revelara

Mais a escadaria presa

Ao poder que me doara.

 

 

774 - Sol

 

Eis o Sol que tudo afaga

Quanto lhe mora diante,

Olhar de Deus: bênção-praga

Das vidas equidistante.

 

Compreendo-o bem melhor,

Todavia, quando o olhar

Das ondas como o tremor

Duma torneira a pingar.

 

Ondas de luz propagadas

Duma explosão permanente

E para trás postergadas

Pelas margens da corrente.

 

Ou cachoeira de gotas

De tal modo bombeadas

Que de mar atingem quotas,

De tantas tão irmanadas.

 

- E no fundo é olhar de Deus

Que, por tudo o que é lugar,

Em tempos apenas meus,

Escondido anda a espreitar.

 

 

775 - Defesa

 

O problema da defesa

É o de avaliar até

Onde trepar a despesa

Para ficarmos de pé,

 

Sem por dentro destruir

O que andamos, toda a hora,

A defender a seguir

Da destruição por fora.

 

 

776 - Roce

 

Talvez, suceda, talvez,

Que o homem roce a verdade

Por uma ou por outra vez.

 

Porventura, ao calhar, há-de

Acaso tocá-la em cheio

Sem saber-lhe a identidade.

 

Sabe-a tanto, de permeio,

Como quando julga inteira

Tê-la à mão dentro do seio

 

E tem-no a ele a cegueira!

 

 

777 - Desgraçados

 

Somos todos desgraçados,

Porém nem sempre as desgraças

Que andam à vista os traslados

Maiores são do que passas:

 

 

É na fundura escondida

Que chora a funda ferida.

 

 

778 - Borboleta

 

Insensata borboleta

Que da chama salva as asas

E, para as queimar, decreta

Voltar ao meio das brasas,

Em lugar de contentar-se

Na meia obscuridade

Onde podia salvar-se!

 

Só que é uma fatalidade

Do amor, da vida e da morte

E aqui nada muda a sorte.

 

 

779 - Mérito

 

Mérito nenhuma ideia,

Nenhuma ideia terá,

Ou de igual mérito cheia

Qualquer uma se nos dá?

 

Outra é a questão da valia

Onde o homem põe à prova

Cada ideia que nos guia,

A ver se mente ou se aprova.

 

Mas a todas por igual,

Sem qualquer prévia censura,

Terá de abrir o portal

Ou a prova nada apura.

 

 

780 - Acervo

 

Mais um modo de pensar

É a ciência que um acervo

De saber a sopesar.

 

Seu fim é captar o nervo

Com que o mundo funciona,

O lume que arde onde eu fervo,

 

O regular pôr à tona,

Caminhar nas relações

Que o todo condiciona:

 

Do átomo nas uniões

Constituintes da matéria,

Do ser vivo nas funções…

Na humanidade o que fere-a

São no cosmo os turbilhões

Da imensidade sidérea

 

Em que um só são triliões.

A ciência os busca, séria:

- Dá-nos o espanto e os bordões.

 

 

781 - Regularidades

 

O ser humano procura

Notar regularidades,

Leis naturais, as verdades

Que, pobre, tão mal apura,

 

Num Universo tão vasto

De infinitamente grande,

Que não há como o demande

No tão pequeno ou tão basto

 

Que nenhum olhar penetra.

E quem o creia confuso

Moribundo está de obtuso,

- Tal é só do que o soletra.

 

 

782 - Raia

 

Incómoda é toda a raia,

Também a raia da luz:

Da liberdade é uma baia

Que eu mais para além não caia

Que o limite que traduz.

 

Mas a fronteira que prende

É donde me compreendo

Pelo que me surpreende:

O limite que me estende

É o escrito onde me aprendo.

 

Tem isto a escrita de estranho:

É que naquilo que escrevo

Outro sou no meu tamanho

E o diverso que me ganho

Diz que, enfim, outrem ser devo.

 

 

783 - Libérrima

 

Não há uma religião

Com sistema doutrinal

Que acaso a investigação

Aberta e sem coacção

Não tenha por mau sinal.

 

Então, numa ou noutra altura,

Perseguiram, denodadas,

A libérrima figura

De quem nos rasgou estradas.

 

Este deveras é o mal

Que jamais reconheceram,

 Pecado a sério mortal:

- Os cemitérios se encheram!

 

Nenhum outro os encheria

Como esta perversa via,

 

A do fanatismo extremo

Que na pesquisa vê o Demo.

 

 

784 - Resistência

 

Por que razão é tão forte

Dentro da religião

A resistência à razão

E às razões que ela transporte?

 

Vivências perinatais

Comuns e autênticas são

Mas resistem como tais

Ao rigor da evocação.

 

Depois, o medo da morte

Que nos garantiu a vida

Como abandoná-lo à sorte

E descansar de seguida?

 

Ao menos nestas raízes

Mergulha a religião.

Que pode nestas matrizes

Então tecer a razão?

 

 

785 - Parvas

 

O ser humano em geral,

Criativo, inteligente,

Tem capacidade real

De entender o que haja em frente.

 

Ora, se as religiões

São, no fundamento, parvas,

Por que é que tantos milhões

Lhes alimentam as larvas?

 

Religiões burocráticas

Aliam-se, seculares,

Às mais criminosas práticas

Dos poderes e avatares.

 

Quando os Brâmanes manter

Querem pela escravatura

Os intocáveis que houver

Com Deus cobrem a conjura.

 

Quando o Branco de cristão

A si próprio se apodava,

Para o Negro ter à mão

Era a Deus que ele apelava.

 

Obram antigos Hebreus

Assassínios e pilhagens

Com a aguilhada de Deus

Que abençoa tais voragens.

 

Em tempos medievais

A Igreja oferta esperança

Aos míseros com sinais

Que a resignação entrança.

 

Todas as religiões,

Uma vez bem implantadas,

Cultivam nossos senões,

Apagam as alvoradas.

 

Uma oligarquia assente

Favorece a religião

Se esta frequentemente

Lhe justifica a opressão.

 

Por que razão o oprimido

Então, fervorosamente,

Apoia descomedido

Tal doutrina que lhe mente?

 

 

786 - Deslizes

 

Cuidado, ao buscar o pico,

Com traiçoeiros deslizes:

Ser duas vezes mais rico

Não nos torna mais felizes.

 

Ao invés, é natural,

Se não aprendo a viver,

Que fique, ao fim, tal e qual,

E nem entenda sequer.

 

 

Tudo porque ser feliz

Não me vem nada de fora,

Mas dentro funda a raiz

E todo dentro se escora.

 

 

787 - Religião

 

Praticar religião

Tornar-nos-á mais felizes

Do que aqueles em que não

Tenha a esperança raízes.

 

Tudo embora seja falso

Nesta viagem sem tréguas,

Melhores botas não calço

Para as minhas sete léguas.

 

E, se então viver feliz,

Que é que importa se a ilusão

É o sonho que de raiz

Me massaja o coração?

 

 

788 - Retrato

 

Retrato é, no sentimento,

Do artista, não do modelo,

Uma vez que este é o momento

De aquele ver o que é belo.

 

O modelo é um acidente,

Uma mera ocasião:

O que a tela tem presente

É o pintor lavrando o chão.

 

Não há um retrato na tela,

É o pintor que espelha nela.

 

 

789 - Diva

 

A mulher decorativa

Nada tem para dizer

Mas o que diz é de diva

Na delícia que disser.

 

Sobre o espírito é o triunfo

Da matéria, tal e qual

Como o homem usa um trunfo

Contra os usos da moral.

 

E, apesar da vacuidade,

Através deste vazio

Não passa apenas vaidade,

Algo aquece que anda frio.

 

 

790 - Rédea

 

Nasce o corpo novo,

Velho irá tornar-se.

Velha brota do ovo

Alma, por disfarce.

 

Devém, porém, nova,

Desatando a ver,

Se, ao ser posta à prova,

Opta por dever.

 

Comédia da vida,

Da vida tragédia:

Alma, ao tê-la erguida,

Ponho ao corpo a rédea,

Troco-lhe a medida.

 

De repente a idade

Mudou de verdade:

O corpo remoço,

Sai dum velho um moço.

 

 

791 - Destruição

 

O pensamento é fatal,

Por norma é destruição,

Pensar nas coisas sinal

É que já não viverão.

 

Pois quando vivo o que vivo

Nem penso que o vou vivendo.

Quando o repesco do arquivo,

Penso-o, não estou sendo.

 

É que duas consciências

Não tenho, nunca terei,

Uma a ler-me nas vivências,

Outra ao lado, a ver que o sei.

 

Assim, quando me desdobro

Numa qualquer reflexão,

Sou eu, tomando-me em dobro,

Morto ao largar-me no chão.

 

 

792 - Segredos

 

Chamam os nomes mais feios

Aos segredos desvendados

Quando segredos alheios.

 

Da moral são tão soldados

Quando, afinal, dia a dia,

Tão mais actos condenados

 

Cada qual praticaria!

É mesmo por tal motivo

Que o desvendamento os guia

 

Dos mais a buscar o arquivo:

É que isto de vez desvia

As atenções do que, esquivo,

 

Em seu canto os refugia.

 

 

793 - Ardis

 

Nenhum homem compreende

Perfeitamente os ardis

Para escapar que empreende

Contra os espectros subtis

Do conhecimento a esmo

Que deve haurir dele mesmo.

 

 

794 - Desporto

 

O que adoro no desporto

É a paixão que traz a um mundo

Que de paixão anda morto,

Tão raro vive jucundo.

 

Aqui, por onde andam crenças

Religiosas, políticas,

Amordaçadas e tensas,

Sempre com medo das críticas,

 

Com receio de ofender,

O desporto permanece

O escape para quenquer

Que legítimo o estremece.

 

Permite aplaudir, gritar,

Exibir as preferências,

Como em combate um algar

Onde escapo às violências.

 

 

Aqui venho expor meu caso,

Contra os factos esgrimir,

O indefensável acaso

Defender sem me omitir.

 

E fico tão consolado

Com tamanho desabafo

Que pode passar ao lado

A vida: - Já não abafo!

 

Porque tão pouco nos toca

É que assim tanto interessa:

Vem o coração à boca

E a vida endireita avessa.

 

 

795 - Meditação

 

A meditação não é

Meio de acalmar a mente,

Mas de entrar, pé ante pé,

Na calma nela presente,

 

Enterrada por debaixo

De oitenta mil pensamentos

Que todos temos em cacho

Por dia soltos ao vento.

 

Lá, nas profundas do mar,

É que a calma é de raiz

E a mente vem devagar

Medir o que de mim fiz.

 

 

796 - Acaso

 

No mundo há sempre dois casos

De indivíduos lado a lado:

Os eventos são acasos

Nas ondas para o levado,

Mas o que nadar quiser

Leva o acaso a ter de ser.

 

Aquele a quem acontece

E o que faz acontecer

São a sombra e a luz da messe

Dos dois trigos de viver.

 

 

797 - Triagem

 

Qualquer um ser infeliz

Pode, não requer coragem.

A vitória de raiz

É a que a luta lhe requis

De ser feliz na triagem.

 

Teremos de laborar

Por felicidade obter:

O sentir que resultar

Não vem do que é bom, a par

Do fado que se tiver.

 

O contrário é que é verdade:

Depende em larga medida

A nossa felicidade

Da luta que persuade,

Não duma emoção sentida.

 

Ser feliz é derrubar

Algumas velhas barreiras.

Logo a de se comparar

Com quem nos leve a pensar

Que as vidas degusta inteiras.

 

Já que é sempre uma ilusão

Medir a felicidade

Pelo tamanho do pão,

As pedrarias do chão

Por onde quenquer se evade.

 

Depois, livrar-se da imagem

Do que deveria ser:

“O problema é a criadagem,

Filhos, cônjuge - não agem

Como os ideais que houver…”

 

Por fim, é não sabotar,

Por sempre olhar para a falha,

Tecto que me acobertar,

Tal se a telha só contar

Que acaso faltar na calha,

 

Como é vezo do careca

Quando penetra na sala:

Todo o cabelo se especa

Ante dele a calva seca,

- É só aquilo que o abala!

 

Em falta anota que telha,

Que cabelo te convém,

Se ser feliz te aconselha

Ou não a manter a velha

Posição que te sustém.

 

Há pouca correlação

Entre os acasos da vida

E as alegrias que dão:

Há muito quem viva são

E sofra de alma perdida.

 

O segredo é a gratidão:

Aqueles que são felizes

São gratos ao que de bom

Receberam e que dão

Aos mais com iguais matizes.

 

Temos tendência a pensar:

Ser infeliz leva à queixa.

Mas, se a queixa tem lugar,

Aquilo a que vai levar

É que infelizes nos deixa.

 

A fonte mais abundante

É o que dá sentido à vida:

Objectivos de ir adiante,

Um sonho que se levante,

Tornam feliz de seguida.

 

Crer em algo permanente

A nos transcender além

Significa um envolvente

Em que tenho a vida assente,

Forte me acalma também.

 

Ver o lado positivo

Traz a vida abençoada.

Ver, porém, o negativo,

No inferno é mergulhar vivo,

Trocando tudo por nada.

 

 

798 - Troca

 

Filosofia e real

São dois lados da moeda

Que, quer a bem, quer a mal,

Se amparam na mesma queda,

Sempre em busca dum sinal

De que trocaram de lado…

- Só que ninguém troca o fado!

 

Conhecer uma verdade,

Será que alguém a conhece?

Ou antes a integridade

Que cada qual sempre esquece

É que uma realidade

Além fatal permanece,

Por trás do traço negado

Que vai sendo revelado?

 

 

799 - Receies

 

Não receies o talento,

Que ao fim o que prevalece

É energia, quando o vento

Das fadigas o esmorece.

 

Energia mais talento

Fazem de qualquer um rei.

Sem o segundo elemento,

Ainda príncipe o verei.

 

Talento sem energia

É que é tão empobrecente

Que o que então nos anuncia

É que se fica indigente.

 

 

800 - Abastado

 

Quem se contenta com pouco

Não fica prejudicado

Com as restrições que louco

Põem breve um abastado.

 

É do magro uma vantagem

Em relação ao obeso,

Do pobre a melhor imagem

Ante do próspero o peso.

 

O sóbrio melhor resiste

Às doenças do bem-estar

Que o imoderado aviste

E o vão aterrorizar.

 

Quando tudo falta a todos,

O pouco que lhe restar

Atinge valor a rodos,

Nem dá para calcular!

 

 

801 - Pelém

 

Um quer o que outrem retém.

Declara então simplesmente

Que outrem é um reles pelém,

Bandido, fera, um demente…

 

Divide-se então a terra

Entre logo dois partidos,

Que dois sempre quer a guerra,

Ambos da Igreja benzidos.

 

Ambos gritam ter razão,

Gente honrada, querem paz,

Defendem somente o pão…

- Um, porém, é satanás!

 

 

802 - Justifica

 

Temos no alto o mesmo Deus,

Pode unir-nos sempre o amor,

Os mais serão irmãos meus…

- Que é que pode dar valor,

Que é que justifica a guerra?!

Diz que é culpa dos ateus,

Diz que é de quem crê nos céus…

Nada, nada sobre a terra

Poderá justificar

Que os mais queira mastigar.

Guerra, só na defensiva

E, mesmo assim, que a motiva?…

 

 

803 - Mapas

 

Fazer a guerra nos mapas

Não é sofrê-la na lama,

O sangue com que a encapas

Lápis não é rubro em chama:

 

Ali um homem rebenta;

Acolá, com a borracha,

Apaga-se e a conta aumenta:

- Quem nisto qualquer mal acha?

 

Um vomitará na neve

O pulmão gaseado um dia;

Outro vomita ao de leve

Vinho tinto em demasia.

 

A guerra não é a dos mapas,

É guerra uma outra questão:

Nos mapas somente entrapas

Consciência morta em vão.

 

 

804 - Mereça

 

Pelo meu País morrer

Não há nada que o mereça,

Talvez um outro qualquer

Em sonho um dia apareça…

 

Mas, se então acontecer,

Que festa irá cada dia

Na alegria de o viver!

- Quem de morte cuidaria?

 

 

805 - Cadáveres

 

Cadáveres se amontoam

Por baixo de nossos pés,

Vítimas que em nada ecoam,

Sacrificadas às fés.

 

É o sacrifício preciso,

Como cordão dum umbigo,

Quando os valores do viso

Eterno andam em perigo.

 

Militantes, nós, porém,

Dedicamos à paisagem,

De hábito ancestral refém,

Um mero olhar de passagem.

 

 

806 - Agitador

 

Superior agitador,

Movido do que é movido,

Quer um ideal melhor,

Quer errado e sem sentido,

 

Tenta agitar em redor

Tudo aquilo que for vivo.

Ora, a desgraça maior

Na maioria é o motivo

 

De, qualquer que seja o mar,

Se deixar sempre agitar.

 

Não distinguir o sinal

É aqui a fonte do mal.

 

 

807 - Indulgentes

 

Muitos são os indulgentes

Para os vícios que eles têm

E bem pouco pacientes

Para os mais que haja em alguém.

 

Alguns, de espírito aberto,

Tolerância compreensiva,

Acolhem qualquer excerto

Em teoria, se inactiva.

São poucos os que toleram

As maneiras diferentes

Sem mil coacções que oneram

As vidas e os ambientes.

 

 

808 - Fazer-de-conta

 

Se tudo é fazer-de-conta,

Tal é o real que então existe.

Do real, porém, a ponta

É a que nos coisas mal viste,

Não serão quaisquer sequelas

De apenas sonhar com elas.

 

Somos jovens uma vez.

De nos desembaraçar

Teremos, para através

Dos imprevistos sondar

Por onde passam as pistas

Da vida às metas previstas.

 

Se tudo é imaginação,

Depois de tanto voar

Onde encontraremos chão

Para do sonho poisar?

- Para que a realidade

Seja um dia de verdade?

 

 

809 - Lírio

 

Tal como o lírio do campo

Não moireja ou se converte,

Antes um mágico grampo

Sempre o vai prender ao tampo

Da dorna onde o vinho verte

 

E aceita perfeitamente

Que os outros façam por ele

Labor servil (ponto assente

É que o fará toda a gente

Para ter direito à pele),

 

Assim logra conciliar

O idealista a profissão

Da vida com cada algar

Sem se até desconcertar:

- Olhos no céu, pés no chão!

 

A principal realidade

Como aqui configurar?

Nem o sonho que o invade,

Nem terra que o persuade:

- É pôr massa a fermentar!

 

 

810 - Desfrutar

 

Quem a civilização

Desfrutar pela cidade

Por inteiro na prisão

Recluso é na realidade.

 

Os que se exilam da vida

É que conseguem tirar

Maior proveito em seguida

Do que nela tem lugar.

 

Via de conhecimento,

Ao ser via de verdade,

Requer o sopro do vento,

Porta aberta em liberdade.

 

 

811 - Virgindade

 

A palavra repetida,

Se tiver força interior,

É a virgindade da vida

A regar solo fecundo,

Dita então com o sabor

Da primeira vez no mundo.

 

Repete a palavra gasta,

Vazio eterno do som,

Quem dentro em si não a engasta

Da cabeça ao coração.

 

 

812 - Diferença

 

Repara na diferença

Entre as palavras e as coisas:

As palavras têm presença,

As coisas, não, a sentença

Apagou-as já das loisas.

 

Época falsificada,

Da mentira por sistema:

A palavra não diz nada

Daquilo que, se testada,

Diria ter por seu lema.

 

Quando os termos falsificam,

Escamoteiam eventos,

O que mentem justificam,

- As coisas então se aplicam

A soprar a sério os ventos.

 

 

813 - Aspiração

 

Explicarmos o que somos

É perene aspiração,

Mas inventamo-lo em tomos

Pela pequena ilusão

 

De que afinal dominamos

Em nós o desconhecido.

 

E por fim o que logramos,

Em vez de nossa verdade,

Acaso é ter compreendido,

E nem sequer por metade,

- A nossa fatalidade

De nunca ver o sentido!

 

 

814 - Verifico

 

Será preciso ser rico?

Não morrem tal como os pobres?

E os pobres não verifico

Que podem viver, amar,

Cultivar nédios alfobres,

Ter mulher, filhos, um lar,

Aquecer ao sol do Estio

E à lareira quando há frio?

 

Será preciso beber

Um vinho de boa marca

Para feliz alguém ser,

Senão sente a vida parca?

 

Após terem-se arrastado

Sobre a terra de ninguém,

Visto o céu, a Lua, o prado,

O rio que este retém,

 

A verdura do arvoredo,

Após colherem os frutos

das árvores do degredo,

Os cachos de uvas enxutos,

 

Após amarem deveras

aqueles a quem amarem,

Sobre os joelhos de esperas

Os filhos ternos saltarem,

 

Após tudo não vão todos

Para debaixo da terra,

À caverna que aos engodos

Sempre mouca a porta cerra?

 

- Que tesoiro é necessário

A destino tão precário?

 

Reflecte, portanto, e acalma:

O que é preciso é ter alma.

 

 

815 - Libélula

 

A liberdade é a da célula

Que em meu corpo se rebela,

No lago solta libélula

Até que o vento a atropela:

 

Meu organismo a elimina

Como nódoa de resina.

 

Assim livre também sou,

Contra as baias me rebelo

E a dissolver-me então vou

Nas lagoas que atropelo.

 

Há uma lei além das leis:

Delimita meus papéis.

 

Quando além um passo tento,

Logo meu pé lá rebento.

 

 

816 - Loucura

 

Dos homens a sensatez

Como deles a bondade

Serão loucura de vez

Nos critérios da cidade.

 

A vera sabedoria

Não é de hoje, é doutro dia:

 

Mora sempre noutro mundo

Que não há… E é deste o fundo

 

O fundo donde irradia,

Senão nem cidade havia!

 

Todavia, impenitente,

Ela por norma se quer

Da vida que toda a gente

Um dia pretende ter!

 

 

817 - Máscaras

 

Deles nos termos e modos

Querem a felicidade

Talhar, talhar para todos.

 

Não entendem que alguém queira,

Ao invés mas de verdade,

Ser feliz doutra maneira.

 

Eis no demónio do bem

As máscaras que ele tem!

 

 

818 - Enguiça

 

O mal deveras começa

Quando alguém domina alguém.

Vai continuar, porém,

Quando no espólio tropeça

 

E dita a lei que convém

Ao que impune foi ladrão:

Este é a norma e a convenção

E dele é a guarda também.

 

Esta ficção de justiça

Sobre o que era natural

É a marca-mor cultural

Da História que nos enguiça.

 

 

819 - Dístico

 

Um prazer sacrificar

Não é um gesto natural.

Por um melhor o trocar

É escolher o menor mal,

Se de ambos não conseguir

Concomitantes fruir.

 

O mais é só mero dístico

Que uns confundem com o místico.

 

Depois, ai, como frustrados

São tais crentes apanhados:

 

Dentro do santo cibório

Procuram é um consultório!

 

 

820 - Intencionados

 

Grupos bem intencionados

Promovem a liberdade.

Traem-na logo aos bocados

Da prática quando os dados

São que cada qual persuade:

 

É que, ao tentar persuadir,

Uma tirania nova,

Além de quanta existir,

Sobre os mais irá imprimir.

- E é o fado que se renova!

 

Estorvam o mais possível

Todo o intuito a promover:

Quão mais o tornam credível

Menos devém exequível,

Diminui quanto crescer!

 

 

821 - Velhice

 

A velhice é interessante:

Envelhece mais depressa

O que à mostra fica diante,

O que menos envelheça

É o que menos apareça.

 

É por isso que por dentro,

Onde doutrem a verruma

Não penetra e só eu entro,

- Não tenho idade nenhuma!