SÉTIMA REDONDILHA
APROFUNDA A REFLEXÃO
Escolha
um número aleatório entre 727 e 821 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
727 - Aprofunda a reflexão
Aprofunda a reflexão
Cada joeira da crítica
Desbravando a teia mítica,
Luz trazendo à escuridão.
Num verso é boa política
Sabedoria em filão
Nele entrosar como um dom
De resistência granítica,
Não vá perder-se de vez
Nos desencontros dos dias,
Das paixões nas contrafés.
Ao gravá-las na palavra
Todas as sabedorias
Semeio no chão da lavra.
728 - Capital |
|
A estupidez não se cura |
Com dinheiro, educação, |
Nem por lei ou com procura, |
E não é pecado, não. |
|
Mas é o crime capital |
De castigo universal: |
- A sentença dele é a morte |
Imposta na evolução |
Quando a estupidez condão |
For da espécie que a transporte. |
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729 - Dialogar |
|
Há quem, ao dialogar, |
Ultrapasse minhas frases |
Como quem fora, em lugar, |
No acelerador pisar, |
Para o amarelo capazes |
Os pneus serem de passar. |
|
Apertam-me contra a berma, |
Tiram faixa de rodagem, |
De raspão batem na enferma |
Minha opinião já erma, |
Precipitam-se em voragem |
(Minha ideia não vão ler-ma!) |
|
Para o estacionamento |
|
Habitual e relaxado |
De seu próprio pensamento. |
Nunca vivem um aumento |
Nem vislumbram o outro lado: |
- São carros sem movimento! |
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730 - Culpado |
|
Na maioria dos casos, |
Alguém sentir-se culpado |
Pode ser, findos os prazos, |
Construtivo em todo o lado. |
|
É a voz civilizadora |
Que evita que se magoem, |
Perturbem, se vão embora, |
Desiludam (que se doem) |
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Os demais com que lidamos. |
Porém, se não abrandar |
A culpa de que inculpamos |
Nossos actos, ao azar, |
|
Após havermos tentado |
Corrigi-los, caso a caso, |
Ou se tal é derivado |
Ao que à mão nos não deu azo, |
|
Então é uma falsa culpa |
A que põe-me em carne viva. |
Torna-a quem se não desculpa |
De vez autodestrutiva. |
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731 - Aceitemos |
|
É preciso que aceitemos |
Que não somos poderosos |
A ponto que controlemos |
Tudo o que ocorre e que vemos |
Que nos traz dores e gozos. |
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O mundo era antes de nós |
E depois de nós será, |
Não somos quem ata os nós |
Nem quem os desatará. |
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732 - Falha |
|
Esperar a perfeição |
De nós próprios, benefícios |
não nos traz tal situação, |
Mata-lhes mesmo os resquícios. |
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Quem de culpa já sofrer |
Colha a falibilidade |
que todos temos de ter: |
- Falha é ser da Humanidade! |
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733 - Manipular-nos |
|
Muitos de nós temos gente |
Que pode manipular-nos |
Para, ao fim, vir a inculpar-nos: |
Um suspiro deprimente |
|
Por parte da mãe mergulha |
A muitos num sentimento |
De culpa cujo tormento |
Atiça qualquer faúlha. |
|
Identifique primeiro |
O detonador da culpa, |
A coisa que não desculpa, |
Que inseguro o põe inteiro, |
|
Que pode ser o trabalho, |
Os filhos ou a mulher, |
A dádiva por quenquer |
A esmagá-lo como um malho. |
|
Quem é que pode accionar |
qualquer dos detonadores? |
Todo o poder dos mentores |
Trate de lho retirar. |
|
Veja após quem você é: |
Não é nenhuma criança! |
E o outro que não alcança |
Não é um deus ali de pé: |
|
Decerto que tal pessoa |
Nem sempre terá razão… |
- Sua vida tenha à mão, |
Não viva mais vida à toa! |
|
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734 - Tempo |
|
O tempo não nos ajuda |
A manter-nos no caminho: |
Nada há nele que me aluda |
A que ele vai sempre em frente, |
Mas agora, sem carinho, |
São pedras, são pedregulhos |
De cada dia o presente, |
Da vida inteira os engulhos |
A tropeçar em meus passos, |
Mais e mais só de cansaços. |
|
Há poucos anos ainda, |
Como eu os ignoraria! |
Mas com a velhice advinda |
Sou balão de fantasia: |
Esponjoso, indiferente |
E cada dia mais mole… |
Aquilo em que sou frequente |
É a buscar o que não bole. |
|
- Até que o tempo virá |
E mais nada bulirá. |
|
|
735 - Melancólico |
|
Melancólico, por certo, |
Depois de haver-me entregado, |
Pelo mundo então negado |
Da vida no desconcerto: |
|
No gosto de discutir, |
Na liberdade de escolha, |
Nos véus que haja a descobrir |
Para poder discernir |
O caminho a que me acolha. |
|
Meteram-me aqui num mundo |
De infindas pequenas cercas: |
Isto, não; aquilo é imundo; |
Olha além, que te não percas… |
|
É uma vida clandestina, |
Deveio recalcamento, |
Juízo que não atina |
A interrogar um momento. |
|
Uma razão que não age |
Enrola-se num novelo, |
Estéril, já não reage, |
Com o mundo perde o elo. |
|
Revirado para dentro, |
Cada qual descobre em si |
Paisagens até ao centro |
Ignorado que haja ali. |
|
Mas, esgotada a substância, |
Parado no pessimismo |
Pela descrença, com ânsia, |
Morre o poema da infância, |
Dele próprio é um mimetismo. |
|
Nova máscara do medo, |
Nunca dirá que é cobarde |
E assim degrada seu credo |
No sofisma onde se tarde. |
|
|
736 - Irracionalismo |
|
É sempre o irracionalismo |
Que espalha sementes de ódio, |
Dos choques o cataclismo |
São deformações em bródio |
E a verdade é que a verdade |
Daqui sempre ela se evade. |
De ódios espalha as sementes |
A desrazão entre as gentes. |
|
|
737 - Juiz |
|
Juiz do tempo é o escritor |
E o tempo é dele o juiz, |
Se é testemunho de amor |
Ou só,de aspirações vis. |
|
A um tempo juiz e réu, |
Que infernos lhe custa o céu! |
|
738 - Requisitos |
|
A lista de requisitos |
Na escolha dum funcionário |
Requer técnicos quesitos, |
Mas poucos, em leque vário. |
|
Tudo o mais, que é quase tudo, |
É com dele a honestidade |
E confiança, sobretudo, |
Mais a maneira de ser |
Com que inteiro persuade |
Ou dissuade quenquer. |
|
O académico saber |
Não leva a vencer ninguém: |
Se tem alguma valia, |
A valia que ele tem |
|
É de ao mais trazer mestria |
Para o mal ou para o bem. |
|
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739 - Primeiro |
|
O pragmático até cá |
Foi o primeiro escolhido |
E o santo só rezará |
Por ele a um canto escondido. |
|
O santo é que doravante |
Deve ter a primazia |
E o pragmático, prestante, |
Servi-lo então deveria. |
|
|
740 - Direito |
|
Para viver a criança |
Precisa de saber onde: |
Onde seu direito alcança, |
Onde é que o dos mais se esconde, |
|
Decida então desenhar |
Linhas de separação |
Entre um e outro lugar, |
Mostre-lhas sem confusão. |
|
Hoje e sempre, seja firme. |
Mas fuja a um erro comum: |
Com rigidez não afirme, |
Mata o excesso qualquer um. |
|
|
741 - Sorte |
|
O que nós temos é sorte |
Por não ter o que queríamos |
E antes termos o que temos. |
Vendo-lhe bem o recorte |
(Aquilo que não sabíamos), |
Se espertos formos, havemos |
De confessá-lo ao ouvido: |
- Se o soubéramos, teríamos |
Antes isto preferido! |
|
|
742 - Barco |
|
A nossa Terra parece |
Um barco sempre encalhado |
À borda do mar bravio. |
E o mar a bater, refece, |
Desfazendo-o, descuidado… |
E a gente neste navio! |
|
Não há nunca quebra-mar |
Que garanta eternamente, |
Ao menos, algum presente, |
Que nos reserve um lugar. |
|
Lá vamos, neste navio, |
Por um fio, por um fio… |
|
|
743 - Mesmo |
|
Religião e política |
A viajar no mesmo carro: |
Logo vem a crença mítica |
De que com nada me esbarro, |
Não há muros no caminho. |
É avançar e bem depressa |
Sempre em frente da cabeça! |
Que importa ser adivinho? |
|
Os obstáculos aparte, |
Esquecemos desde início |
Que, a quem corre de tal arte, |
Se mostrará o precipício, |
Sem indícios nem sinais, |
- Quando for tarde demais! |
|
|
744 - Patamar |
|
Se me não preocupar |
Com o que é verdade ou não, |
Tão imoral patamar, |
Onde há só o que é meu quinhão, |
Será como o de não ver |
Donde me vem o dinheiro |
Desde que eu o venha a ter, |
Nem que mate meu parceiro! |
|
|
745 - Jeito |
|
A ciência é um instrumento |
Que não é nada perfeito |
Para obter conhecimento, |
Mas é o melhor que anda a jeito. |
|
É como a democracia: |
Não nos dita as actuações, |
Mas esclarece o que agia |
Por trás de quaisquer senões. |
|
Por muito que seja mau, |
Se a verdade ao fim lhe escapa, |
Serve-lhe de varapau |
Com que os buracos lhe ataca. |
|
|
746 - Aparência |
|
Procurar uma aparência |
A favor de meu desejo |
E não ligar à evidência |
Do que se opõe ao que almejo, |
Eis a grande tentação. |
Agradar ao que concorda, |
Dar ao desagrado um não |
É que me roeu a corda, |
Precipitou na ilusão: |
Da verdade a caminhada |
É o invés desta pegada. |
|
|
747 - Teorizar |
|
É um erro teorizar |
Antes de os factos colher, |
Que, para a ideia vingar, |
Vão-se todos distorcer. |
|
E então, de verdade alguma |
Ninguém dá conta que existe, |
Pois que realidade, em suma, |
Contra uma ideia subsiste? |
|
Já nada então se amerceia |
Com que nós façamos pacto. |
Um facto vai contra a ideia? |
- Tanto pior para o facto! |
|
|
748 - Contraditório |
|
Invalidar a razão |
Tem algo contraditório: |
Ou se faz com ela, ou não. |
Se for com ela, é ilusório, |
|
Que desmente o que comprova |
Neste acto de o comprovar. |
Se é sem ela, qual é a prova |
Em que o vou fundamentar? |
|
Não há, portanto, saída: |
É sempre fuga iludida. |
|
|
749 - Engrenagem |
|
A engrenagem da pobreza, |
Da ignorância e desespero, |
De auto-estima que não preza, |
Se misturam no tempero |
|
Para a máquina criar |
Do que é perpétuo fracasso, |
Que aqui vai a triturar |
Sonho humano passo a passo. |
|
Pagamos todos um preço |
Desta máquina e bem grave: |
No analfabetismo o meço, |
Dele é sempre a peça-chave. |
|
|
750 - Custo |
|
O custo da educação |
É muito insignificante, |
Se posto em comparação |
Com o custo exorbitante |
|
Que nos custar a ignorância: |
Não é que fiquemos bobos, |
É que largamos, na instância, |
O nosso governo aos lobos. |
|
De cada qual bom apuro |
É que quebrará o azar: |
- Um país só está seguro |
Quando é o povo a governar. |
|
|
751 - Adiante |
|
Se uma nação pretender |
Ser livre e ser ignorante, |
Espera o que não houver |
Nem vai haver adiante. |
|
Um pouco de liberdade |
Trocar de ordem por um pouco, |
Ambas perde de verdade |
E um país, mais do que louco, |
|
Fará com que se resuma |
Em não merecer nenhuma. |
|
|
752 - Gramática |
|
A sabedoria prática |
Que atende ao quotidiano |
É a que permite viver. |
Não tem, porém, a gramática |
Que leia naquele plano |
Que é que me fará correr. |
|
A romântica visão |
De quem por princípios vive, |
Que os sonhos não sonha em vão |
E não tolera a quenquer |
Que vida fora os arquive, |
- Esta é que me põe à mão, |
Seja homem ou mulher, |
A razão para viver. |
|
|
753 - Avesso |
|
Que importam coisas credíveis |
Se delas não há sinais? |
Tão lindos os impossíveis |
E tão tristes os reais! |
|
Começo sempre o começo |
E, na hora de o findar, |
Virado fica do avesso, |
Não há como o culminar. |
|
|
754 - Encomendo |
|
Há quem creia que nasceu |
De alguém o pensar nascendo, |
Que na vida o meu e o teu |
É dali que os encomendo. |
|
É verdade que é verdade |
Mas só no fundo do fundo: |
Quando só o fundo me invade, |
Nada é doutro, é deste mundo. |
|
E, depois, é deste mundo |
Que o de além sempre me fala: |
Outro nem é, mas inundo |
Minha rega de tal vala. |
|
|
755 - Astronómico |
|
Nem crescimento económico |
Nem progresso tecnológico |
Um inimigo autonómico |
Do ambiente serão lógico. |
|
Dele os melhores amigos |
Ao invés serão talvez: |
Dos humanos nos abrigos |
Reduzem marcas dos pés. |
|
Agricultura de ponta |
Gera produtividade: |
Baixa do alimento a conta |
E há mais terra em liberdade. |
|
Esgotos com melhor trato |
Serão rios e ribeiros |
Despoluídos que acato |
Nas praias e nos balseiros. |
|
Catalíticos nos carros |
Conversores reduziram |
Fumo e fuligem nos sarros |
Que do ar sujo descaíram. |
|
Os filtros nas chaminés |
Das unidades fabris |
Eliminam muitos pés |
Das poeiradas mais vis. |
|
- Tudo pesado, o melhor |
Dos programas ambientais |
Prosperidade é maior, |
Rica economia mais. |
756 - Humor |
|
Julgamos que o mau humor |
Vem daquilo que acontece, |
Quando mais é de supor |
Que natural se processe: |
|
Aquilo que nós comemos, |
Meu estado de saúde, |
Que actividade tivemos, |
A que hora do dia eu mude… |
|
Determinado problema |
Que não me toca na altura |
Toma gravidade extrema |
Se a energia mais não dura. |
|
Sentimo-nos mais felizes |
Do corpo à temperatura |
Mais elevada: os matizes |
que a energia nos apura! |
|
Horas de sono inferiores |
Às precisas podem ser |
Um desastre nos factores |
Emocionais que eu tiver. |
|
Se o frustrante acontecer, |
Controlar o desagrado |
Difícil me há-de correr |
Como a um menino cansado. |
|
|
757 - Convido |
|
De espírito o meu estado |
Transmudo quando a beleza |
Convido para o meu lado: |
- Mergulho na Natureza. |
|
Se de casa não puder |
Sair, vou junto às janelas |
Donde um pouco possa ver |
Pardais, plantas, filomelas… |
|
Quando um local de trabalho |
Abre à natural paisagem |
Tende menos para o ralho, |
Entusiasma os que nele agem. |
|
E de doença os sintomas |
Menos aqui sempre são |
Que os que nos lugares somas |
Que derem para um desvão. |
É que a Natureza é mãe |
Que o corpo nos alimenta |
Bem como as almas também |
De quem nela se apresenta. |
|
|
758 - Neutro |
|
Aquilo que nos rodeia |
é neutro por natureza. |
Um valor a que se ameia, |
Positivo ou negativo, |
Seremos nós quem o preza, |
Quem o torna morto ou vivo. |
|
O peso do que valer |
Vem do que eu queira escolher. |
|
|
759 - Bondade |
|
Toda a bondade do mundo |
Não passa de fingimento |
Se não é Deus que aprofundo. |
|
Só que resta o pensamento: |
Toda a bondade do mundo |
É quando de Deus me inundo. |
|
Não houve, pois, fingimento, |
Apenas a distracção |
De quem não vê sob a planta |
A raiz em que se implanta |
E de que é mera função. |
|
760 - Interposta |
|
Deus mais próximo parece |
Se nenhuma dor humana |
Interposta me aparece |
Entre Ele e quem se lhe irmana. |
|
Todavia, o que acontece |
É que é na dor imprevista |
Que Ele afinal nunca esquece |
De impor-se ao que lhe resista. |
|
Não é um sadomasoquista: |
Sou eu que não quero ver |
Que faço parte da lista |
Desde nado até morrer. |
|
Sou eu que não quero ver |
Que, ou serei Deus-a-caminho |
Ou não serei nenhum ser, |
Já que nada sou sozinho. |
|
|
761 - Seixo |
|
Entre este seixo e meu punho, |
Entre este pau e meu dedo, |
O igual com que me acabrunho |
E o diverso de meu credo: |
|
Tão iguais pela função, |
Diversos na morte e vida, |
Eis o que sou e eles são |
Na distância desmedida. |
|
Na contínua semelhança |
Se me firma o que descansa. |
|
É, porém, a diferença, |
A da força com que eu vença. |
|
|
762 - Geografia |
|
A geografia, em política, |
Acabará, tarde ou cedo, |
Por muito que pese a crítica, |
Contra o sonho e a fantasia, |
Pela força ou pelo medo, |
- Por vencer a ideologia. |
|
|
763 - Entre |
|
Sou vencedor e vencido |
E contente por viver, |
Mas na angústia de não ver |
Por que afinal hei nascido. |
|
Esta é a minha condição: |
Estar entre o sim e o não, |
|
Viver entre céu e inferno |
- E só nisto ser eterno. |
|
|
764 - Primitivo |
|
O homem mais primitivo |
Sempre se julga o melhor: |
É o dogma cego, de arquivo, |
À força em roda a se impor. |
|
A dúvida, a tolerância |
Debilitam quem é grado: |
Serão marca ainda de infância, |
Doença de civilizado, |
|
Fragilizam, quando em acto. |
Mas, se bem no alvo se atrema, |
É o que nos põe a recato |
E tal é a força suprema. |
|
|
765 - Arrependimento |
|
Uma absolvição não basta |
Sem um arrependimento. |
Consciência não é da casta |
De ir, de momento a momento, |
|
À máquina de lavar |
Da igreja umas voltas dar |
|
Dentro do confessionário |
E sair enxuta e pura |
Do detergente perdão, |
Pronta a arrumar num armário |
Ou a receber, segura, |
Novas nódoas pelo chão. |
|
Uma consciência apenas |
É o que temos e, lavada |
Vezes demais, estas cenas |
De buracos perfurada |
|
A findarão por deixar: |
Máquinas não os remendam. |
De arrepender-se em lugar, |
Que tiras tenho que a emendam |
|
Quando se puir de vez |
Dos rasgões que sempre fez? |
|
|
766 - Cruz |
|
Aqueles sempre O prenderam, |
Já não pode mais sair: |
Bem o quer (eles ponderam), |
Mas na Cruz é que tem de ir. |
|
Os padres O crucificam, |
Já que os mesmos sempre são: |
Há dois mil anos O aplicam |
A sangrar passos no chão. |
|
Guardam-nO severamente, |
Prisões de alta segurança. |
Dão-Lhe incenso de presente, |
Liturgia que O descansa. |
|
Deixá-Lo ir, isso não, |
Que Ele é mesmo muito rico: |
Não se tem fortuna em vão |
E eles moram lá no pico. |
|
Se Ele foge, voltaria |
Logo a apoderar-se dela: |
E da noite para o dia |
Fica o padre sem gamela. |
|
Como o louco enclausurado |
De que outrem gere a fortuna, |
Como será libertado |
Sem que contra a seita se una? |
|
|
767 - Fome |
|
Um homem com muita fome |
Sonha com empanturrar-se. |
O sonho realiza: come |
E logo, sem mais disfarce, |
Ficará de ideias seco. |
Demais o estômago cheio |
O dia lhe torna peco, |
Com vómitos de permeio. |
|
O sonho que houvera um dia |
Pesadelo é de agonia. |
|
- E sempre a vida é tal fome |
que nos come, que nos come… |
|
|
768 - Salvo |
|
Quando escapou são e salvo, |
Devém-lhe a guerra aventura: |
E quanto menos se apura |
Que a aventura fora um alvo, |
|
Quanto menos graça tinha, |
Mais lhe cresce na memória! |
Apenas ao morto a glória |
Duma opinião convinha, |
|
Que apenas ele viveu |
Horrores até ao fim. |
Ao morto e a quem dele é afim, |
Que com saudade o perdeu. |
|
Serão sempre minoria. |
A memória é um coador: |
Ao sobreviver propor, |
Tudo muda em fantasia. |
|
|
769 - Verdadeiras |
|
Coisas que são verdadeiras |
De várias maneiras são: |
Deveras o são inteiras |
Só na primeira versão. |
|
Quando à gente lhe convém, |
Lhe convém acreditar |
São verdadeiras também, |
Por mais que andem a enganar. |
|
Se aparenta que acredita |
Alguém que algo é verdadeiro, |
Por verdadeiro o concita, |
Tal devém por derradeiro. |
|
Coisas que são verdadeiras, |
De várias maneiras são |
E ao fim todas, se te abeiras, |
São mera aproximação. |
|
|
770 - Planícies |
|
Nas planícies, nos planaltos |
Mais amplos, mais imponentes, |
À besta domina aos saltos |
O Homem rangendo os dentes. |
|
Domina a besta de fora |
E ao mesmo tempo a de dentro. |
E se esta mais nos demora |
É o custo de que em mim entro. |
|
Porém, ao ir dominando, |
Devém a terra formosa |
Das bestas que se amansando |
Amansam o homem que as goza. |
|
|
771 - Espinhas |
|
Posso livrar-me das leis |
Alheias e acidentais, |
Não das que me são fiéis, |
Minhas espinhas dorsais. |
|
Um triângulo liberto |
Da prisão de seus três lados, |
Por muito que seja esperto, |
É mais um entre os finados. |
|
Minha margem de manobra |
Estreita-se entre varais: |
Quem a estes os não dobra |
Nem de si dará sinais. |
|
|
772 - Frágil |
|
Frágil é a voz do intelecto |
Mas, até ser escutada, |
Não se cala, até que a afecto |
Aos socalcos da escalada. |
|
Mas são desaires primeiro |
Que intérminos sofro inteiro. |
|
|
773 - Quantitativamente |
|
Um saber qualitativo |
É mais de mim um saber |
Que das coisas com que vivo, |
Que um metro hão-de ter qualquer. |
|
Quantitativamente é que então |
Agarro profundamente |
Delas a interrogação |
Na porta que me não mente. |
|
Quando a abrir, logo a beleza |
Delas se me revelara |
Mais a escadaria presa |
Ao poder que me doara. |
|
|
774 - Sol |
|
Eis o Sol que tudo afaga |
Quanto lhe mora diante, |
Olhar de Deus: bênção-praga |
Das vidas equidistante. |
|
Compreendo-o bem melhor, |
Todavia, quando o olhar |
Das ondas como o tremor |
Duma torneira a pingar. |
|
Ondas de luz propagadas |
Duma explosão permanente |
E para trás postergadas |
Pelas margens da corrente. |
|
Ou cachoeira de gotas |
De tal modo bombeadas |
Que de mar atingem quotas, |
De tantas tão irmanadas. |
|
- E no fundo é olhar de Deus |
Que, por tudo o que é lugar, |
Em tempos apenas meus, |
Escondido anda a espreitar. |
|
|
775 - Defesa |
|
O problema da defesa |
É o de avaliar até |
Onde trepar a despesa |
Para ficarmos de pé, |
|
Sem por dentro destruir |
O que andamos, toda a hora, |
A defender a seguir |
Da destruição por fora. |
|
|
776 - Roce |
|
Talvez, suceda, talvez, |
Que o homem roce a verdade |
Por uma ou por outra vez. |
|
Porventura, ao calhar, há-de |
Acaso tocá-la em cheio |
Sem saber-lhe a identidade. |
|
Sabe-a tanto, de permeio, |
Como quando julga inteira |
Tê-la à mão dentro do seio |
|
E tem-no a ele a cegueira! |
|
|
777 - Desgraçados |
|
Somos todos desgraçados, |
Porém nem sempre as desgraças |
Que andam à vista os traslados |
Maiores são do que passas: |
|
|
É na fundura escondida |
Que chora a funda ferida. |
|
|
778 - Borboleta |
|
Insensata borboleta |
Que da chama salva as asas |
E, para as queimar, decreta |
Voltar ao meio das brasas, |
Em lugar de contentar-se |
Na meia obscuridade |
Onde podia salvar-se! |
|
Só que é uma fatalidade |
Do amor, da vida e da morte |
E aqui nada muda a sorte. |
|
|
779 - Mérito |
|
Mérito nenhuma ideia, |
Nenhuma ideia terá, |
Ou de igual mérito cheia |
Qualquer uma se nos dá? |
|
Outra é a questão da valia |
Onde o homem põe à prova |
Cada ideia que nos guia, |
A ver se mente ou se aprova. |
|
Mas a todas por igual, |
Sem qualquer prévia censura, |
Terá de abrir o portal |
Ou a prova nada apura. |
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780 - Acervo |
|
Mais um modo de pensar |
É a ciência que um acervo |
De saber a sopesar. |
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Seu fim é captar o nervo |
Com que o mundo funciona, |
O lume que arde onde eu fervo, |
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O regular pôr à tona, |
Caminhar nas relações |
Que o todo condiciona: |
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Do átomo nas uniões |
Constituintes da matéria, |
Do ser vivo nas funções… |
Na humanidade o que fere-a |
São no cosmo os turbilhões |
Da imensidade sidérea |
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Em que um só são triliões. |
A ciência os busca, séria: |
- Dá-nos o espanto e os bordões. |
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781 - Regularidades |
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O ser humano procura |
Notar regularidades, |
Leis naturais, as verdades |
Que, pobre, tão mal apura, |
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Num Universo tão vasto |
De infinitamente grande, |
Que não há como o demande |
No tão pequeno ou tão basto |
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Que nenhum olhar penetra. |
E quem o creia confuso |
Moribundo está de obtuso, |
- Tal é só do que o soletra. |
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782 - Raia |
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Incómoda é toda a raia, |
Também a raia da luz: |
Da liberdade é uma baia |
Que eu mais para além não caia |
Que o limite que traduz. |
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Mas a fronteira que prende |
É donde me compreendo |
Pelo que me surpreende: |
O limite que me estende |
É o escrito onde me aprendo. |
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Tem isto a escrita de estranho: |
É que naquilo que escrevo |
Outro sou no meu tamanho |
E o diverso que me ganho |
Diz que, enfim, outrem ser devo. |
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783 - Libérrima |
|
Não há uma religião |
Com sistema doutrinal |
Que acaso a investigação |
Aberta e sem coacção |
Não tenha por mau sinal. |
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Então, numa ou noutra altura, |
Perseguiram, denodadas, |
A libérrima figura |
De quem nos rasgou estradas. |
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Este deveras é o mal |
Que jamais reconheceram, |
Pecado a sério mortal: |
- Os cemitérios se encheram! |
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Nenhum outro os encheria |
Como esta perversa via, |
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A do fanatismo extremo |
Que na pesquisa vê o Demo. |
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784 - Resistência |
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Por que razão é tão forte |
Dentro da religião |
A resistência à razão |
E às razões que ela transporte? |
|
Vivências perinatais |
Comuns e autênticas são |
Mas resistem como tais |
Ao rigor da evocação. |
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Depois, o medo da morte |
Que nos garantiu a vida |
Como abandoná-lo à sorte |
E descansar de seguida? |
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Ao menos nestas raízes |
Mergulha a religião. |
Que pode nestas matrizes |
Então tecer a razão? |
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785 - Parvas |
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O ser humano em geral, |
Criativo, inteligente, |
Tem capacidade real |
De entender o que haja em frente. |
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Ora, se as religiões |
São, no fundamento, parvas, |
Por que é que tantos milhões |
Lhes alimentam as larvas? |
|
Religiões burocráticas |
Aliam-se, seculares, |
Às mais criminosas práticas |
Dos poderes e avatares. |
|
Quando os Brâmanes manter |
Querem pela escravatura |
Os intocáveis que houver |
Com Deus cobrem a conjura. |
|
Quando o Branco de cristão |
A si próprio se apodava, |
Para o Negro ter à mão |
Era a Deus que ele apelava. |
|
Obram antigos Hebreus |
Assassínios e pilhagens |
Com a aguilhada de Deus |
Que abençoa tais voragens. |
|
Em tempos medievais |
A Igreja oferta esperança |
Aos míseros com sinais |
Que a resignação entrança. |
|
Todas as religiões, |
Uma vez bem implantadas, |
Cultivam nossos senões, |
Apagam as alvoradas. |
|
Uma oligarquia assente |
Favorece a religião |
Se esta frequentemente |
Lhe justifica a opressão. |
|
Por que razão o oprimido |
Então, fervorosamente, |
Apoia descomedido |
Tal doutrina que lhe mente? |
|
|
786 - Deslizes |
|
Cuidado, ao buscar o pico, |
Com traiçoeiros deslizes: |
Ser duas vezes mais rico |
Não nos torna mais felizes. |
|
Ao invés, é natural, |
Se não aprendo a viver, |
Que fique, ao fim, tal e qual, |
E nem entenda sequer. |
|
|
Tudo porque ser feliz |
Não me vem nada de fora, |
Mas dentro funda a raiz |
E todo dentro se escora. |
|
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787 - Religião |
|
Praticar religião |
Tornar-nos-á mais felizes |
Do que aqueles em que não |
Tenha a esperança raízes. |
|
Tudo embora seja falso |
Nesta viagem sem tréguas, |
Melhores botas não calço |
Para as minhas sete léguas. |
|
E, se então viver feliz, |
Que é que importa se a ilusão |
É o sonho que de raiz |
Me massaja o coração? |
|
|
788 - Retrato |
|
Retrato é, no sentimento, |
Do artista, não do modelo, |
Uma vez que este é o momento |
De aquele ver o que é belo. |
|
O modelo é um acidente, |
Uma mera ocasião: |
O que a tela tem presente |
É o pintor lavrando o chão. |
|
Não há um retrato na tela, |
É o pintor que espelha nela. |
|
|
789 - Diva |
|
A mulher decorativa |
Nada tem para dizer |
Mas o que diz é de diva |
Na delícia que disser. |
|
Sobre o espírito é o triunfo |
Da matéria, tal e qual |
Como o homem usa um trunfo |
Contra os usos da moral. |
|
E, apesar da vacuidade, |
Através deste vazio |
Não passa apenas vaidade, |
Algo aquece que anda frio. |
|
|
790 - Rédea |
|
Nasce o corpo novo, |
Velho irá tornar-se. |
Velha brota do ovo |
Alma, por disfarce. |
|
Devém, porém, nova, |
Desatando a ver, |
Se, ao ser posta à prova, |
Opta por dever. |
|
Comédia da vida, |
Da vida tragédia: |
Alma, ao tê-la erguida, |
Ponho ao corpo a rédea, |
Troco-lhe a medida. |
|
De repente a idade |
Mudou de verdade: |
O corpo remoço, |
Sai dum velho um moço. |
|
|
791 - Destruição |
|
O pensamento é fatal, |
Por norma é destruição, |
Pensar nas coisas sinal |
É que já não viverão. |
|
Pois quando vivo o que vivo |
Nem penso que o vou vivendo. |
Quando o repesco do arquivo, |
Penso-o, não estou sendo. |
|
É que duas consciências |
Não tenho, nunca terei, |
Uma a ler-me nas vivências, |
Outra ao lado, a ver que o sei. |
|
Assim, quando me desdobro |
Numa qualquer reflexão, |
Sou eu, tomando-me em dobro, |
Morto ao largar-me no chão. |
|
|
792 - Segredos |
|
Chamam os nomes mais feios |
Aos segredos desvendados |
Quando segredos alheios. |
|
Da moral são tão soldados |
Quando, afinal, dia a dia, |
Tão mais actos condenados |
|
Cada qual praticaria! |
É mesmo por tal motivo |
Que o desvendamento os guia |
|
Dos mais a buscar o arquivo: |
É que isto de vez desvia |
As atenções do que, esquivo, |
|
Em seu canto os refugia. |
|
|
793 - Ardis |
|
Nenhum homem compreende |
Perfeitamente os ardis |
Para escapar que empreende |
Contra os espectros subtis |
Do conhecimento a esmo |
Que deve haurir dele mesmo. |
|
|
794 - Desporto |
|
O que adoro no desporto |
É a paixão que traz a um mundo |
Que de paixão anda morto, |
Tão raro vive jucundo. |
|
Aqui, por onde andam crenças |
Religiosas, políticas, |
Amordaçadas e tensas, |
Sempre com medo das críticas, |
|
Com receio de ofender, |
O desporto permanece |
O escape para quenquer |
Que legítimo o estremece. |
|
Permite aplaudir, gritar, |
Exibir as preferências, |
Como em combate um algar |
Onde escapo às violências. |
|
|
Aqui venho expor meu caso, |
Contra os factos esgrimir, |
O indefensável acaso |
Defender sem me omitir. |
|
E fico tão consolado |
Com tamanho desabafo |
Que pode passar ao lado |
A vida: - Já não abafo! |
|
Porque tão pouco nos toca |
É que assim tanto interessa: |
Vem o coração à boca |
E a vida endireita avessa. |
|
|
795 - Meditação |
|
A meditação não é |
Meio de acalmar a mente, |
Mas de entrar, pé ante pé, |
Na calma nela presente, |
|
Enterrada por debaixo |
De oitenta mil pensamentos |
Que todos temos em cacho |
Por dia soltos ao vento. |
|
Lá, nas profundas do mar, |
É que a calma é de raiz |
E a mente vem devagar |
Medir o que de mim fiz. |
|
|
796 - Acaso |
|
No mundo há sempre dois casos |
De indivíduos lado a lado: |
Os eventos são acasos |
Nas ondas para o levado, |
Mas o que nadar quiser |
Leva o acaso a ter de ser. |
|
Aquele a quem acontece |
E o que faz acontecer |
São a sombra e a luz da messe |
Dos dois trigos de viver. |
|
|
797 - Triagem |
|
Qualquer um ser infeliz |
Pode, não requer coragem. |
A vitória de raiz |
É a que a luta lhe requis |
De ser feliz na triagem. |
|
Teremos de laborar |
Por felicidade obter: |
O sentir que resultar |
Não vem do que é bom, a par |
Do fado que se tiver. |
|
O contrário é que é verdade: |
Depende em larga medida |
A nossa felicidade |
Da luta que persuade, |
Não duma emoção sentida. |
|
Ser feliz é derrubar |
Algumas velhas barreiras. |
Logo a de se comparar |
Com quem nos leve a pensar |
Que as vidas degusta inteiras. |
|
Já que é sempre uma ilusão |
Medir a felicidade |
Pelo tamanho do pão, |
As pedrarias do chão |
Por onde quenquer se evade. |
|
Depois, livrar-se da imagem |
Do que deveria ser: |
“O problema é a criadagem, |
Filhos, cônjuge - não agem |
Como os ideais que houver…” |
|
Por fim, é não sabotar, |
Por sempre olhar para a falha, |
Tecto que me acobertar, |
Tal se a telha só contar |
Que acaso faltar na calha, |
|
Como é vezo do careca |
Quando penetra na sala: |
Todo o cabelo se especa |
Ante dele a calva seca, |
- É só aquilo que o abala! |
|
Em falta anota que telha, |
Que cabelo te convém, |
Se ser feliz te aconselha |
Ou não a manter a velha |
Posição que te sustém. |
|
Há pouca correlação |
Entre os acasos da vida |
E as alegrias que dão: |
Há muito quem viva são |
E sofra de alma perdida. |
|
O segredo é a gratidão: |
Aqueles que são felizes |
São gratos ao que de bom |
Receberam e que dão |
Aos mais com iguais matizes. |
|
Temos tendência a pensar: |
Ser infeliz leva à queixa. |
Mas, se a queixa tem lugar, |
Aquilo a que vai levar |
É que infelizes nos deixa. |
|
A fonte mais abundante |
É o que dá sentido à vida: |
Objectivos de ir adiante, |
Um sonho que se levante, |
Tornam feliz de seguida. |
|
Crer em algo permanente |
A nos transcender além |
Significa um envolvente |
Em que tenho a vida assente, |
Forte me acalma também. |
|
Ver o lado positivo |
Traz a vida abençoada. |
Ver, porém, o negativo, |
No inferno é mergulhar vivo, |
Trocando tudo por nada. |
|
|
798 - Troca |
|
Filosofia e real |
São dois lados da moeda |
Que, quer a bem, quer a mal, |
Se amparam na mesma queda, |
Sempre em busca dum sinal |
De que trocaram de lado… |
- Só que ninguém troca o fado! |
|
Conhecer uma verdade, |
Será que alguém a conhece? |
Ou antes a integridade |
Que cada qual sempre esquece |
É que uma realidade |
Além fatal permanece, |
Por trás do traço negado |
Que vai sendo revelado? |
|
|
799 - Receies |
|
Não receies o talento, |
Que ao fim o que prevalece |
É energia, quando o vento |
Das fadigas o esmorece. |
|
Energia mais talento |
Fazem de qualquer um rei. |
Sem o segundo elemento, |
Ainda príncipe o verei. |
|
Talento sem energia |
É que é tão empobrecente |
Que o que então nos anuncia |
É que se fica indigente. |
|
|
800 - Abastado |
|
Quem se contenta com pouco |
Não fica prejudicado |
Com as restrições que louco |
Põem breve um abastado. |
|
É do magro uma vantagem |
Em relação ao obeso, |
Do pobre a melhor imagem |
Ante do próspero o peso. |
|
O sóbrio melhor resiste |
Às doenças do bem-estar |
Que o imoderado aviste |
E o vão aterrorizar. |
|
Quando tudo falta a todos, |
O pouco que lhe restar |
Atinge valor a rodos, |
Nem dá para calcular! |
|
|
801 - Pelém |
|
Um quer o que outrem retém. |
Declara então simplesmente |
Que outrem é um reles pelém, |
Bandido, fera, um demente… |
|
Divide-se então a terra |
Entre logo dois partidos, |
Que dois sempre quer a guerra, |
Ambos da Igreja benzidos. |
|
Ambos gritam ter razão, |
Gente honrada, querem paz, |
Defendem somente o pão… |
- Um, porém, é satanás! |
|
|
802 - Justifica |
|
Temos no alto o mesmo Deus, |
Pode unir-nos sempre o amor, |
Os mais serão irmãos meus… |
- Que é que pode dar valor, |
Que é que justifica a guerra?! |
Diz que é culpa dos ateus, |
Diz que é de quem crê nos céus… |
Nada, nada sobre a terra |
Poderá justificar |
Que os mais queira mastigar. |
Guerra, só na defensiva |
E, mesmo assim, que a motiva?… |
|
|
803 - Mapas |
|
Fazer a guerra nos mapas |
Não é sofrê-la na lama, |
O sangue com que a encapas |
Lápis não é rubro em chama: |
|
Ali um homem rebenta; |
Acolá, com a borracha, |
Apaga-se e a conta aumenta: |
- Quem nisto qualquer mal acha? |
|
Um vomitará na neve |
O pulmão gaseado um dia; |
Outro vomita ao de leve |
Vinho tinto em demasia. |
|
A guerra não é a dos mapas, |
É guerra uma outra questão: |
Nos mapas somente entrapas |
Consciência morta em vão. |
|
|
804 - Mereça |
|
Pelo meu País morrer |
Não há nada que o mereça, |
Talvez um outro qualquer |
Em sonho um dia apareça… |
|
Mas, se então acontecer, |
Que festa irá cada dia |
Na alegria de o viver! |
- Quem de morte cuidaria? |
|
|
805 - Cadáveres |
|
Cadáveres se amontoam |
Por baixo de nossos pés, |
Vítimas que em nada ecoam, |
Sacrificadas às fés. |
|
É o sacrifício preciso, |
Como cordão dum umbigo, |
Quando os valores do viso |
Eterno andam em perigo. |
|
Militantes, nós, porém, |
Dedicamos à paisagem, |
De hábito ancestral refém, |
Um mero olhar de passagem. |
|
|
806 - Agitador |
|
Superior agitador, |
Movido do que é movido, |
Quer um ideal melhor, |
Quer errado e sem sentido, |
|
Tenta agitar em redor |
Tudo aquilo que for vivo. |
Ora, a desgraça maior |
Na maioria é o motivo |
|
De, qualquer que seja o mar, |
Se deixar sempre agitar. |
|
Não distinguir o sinal |
É aqui a fonte do mal. |
|
|
807 - Indulgentes |
|
Muitos são os indulgentes |
Para os vícios que eles têm |
E bem pouco pacientes |
Para os mais que haja em alguém. |
|
Alguns, de espírito aberto, |
Tolerância compreensiva, |
Acolhem qualquer excerto |
Em teoria, se inactiva. |
São poucos os que toleram |
As maneiras diferentes |
Sem mil coacções que oneram |
As vidas e os ambientes. |
|
|
808 - Fazer-de-conta |
|
Se tudo é fazer-de-conta, |
Tal é o real que então existe. |
Do real, porém, a ponta |
É a que nos coisas mal viste, |
Não serão quaisquer sequelas |
De apenas sonhar com elas. |
|
Somos jovens uma vez. |
De nos desembaraçar |
Teremos, para através |
Dos imprevistos sondar |
Por onde passam as pistas |
Da vida às metas previstas. |
|
Se tudo é imaginação, |
Depois de tanto voar |
Onde encontraremos chão |
Para do sonho poisar? |
- Para que a realidade |
Seja um dia de verdade? |
|
|
809 - Lírio |
|
Tal como o lírio do campo |
Não moireja ou se converte, |
Antes um mágico grampo |
Sempre o vai prender ao tampo |
Da dorna onde o vinho verte |
|
E aceita perfeitamente |
Que os outros façam por ele |
Labor servil (ponto assente |
É que o fará toda a gente |
Para ter direito à pele), |
|
Assim logra conciliar |
O idealista a profissão |
Da vida com cada algar |
Sem se até desconcertar: |
- Olhos no céu, pés no chão! |
|
A principal realidade |
Como aqui configurar? |
Nem o sonho que o invade, |
Nem terra que o persuade: |
- É pôr massa a fermentar! |
|
|
810 - Desfrutar |
|
Quem a civilização |
Desfrutar pela cidade |
Por inteiro na prisão |
Recluso é na realidade. |
|
Os que se exilam da vida |
É que conseguem tirar |
Maior proveito em seguida |
Do que nela tem lugar. |
|
Via de conhecimento, |
Ao ser via de verdade, |
Requer o sopro do vento, |
Porta aberta em liberdade. |
|
|
811 - Virgindade |
|
A palavra repetida, |
Se tiver força interior, |
É a virgindade da vida |
A regar solo fecundo, |
Dita então com o sabor |
Da primeira vez no mundo. |
|
Repete a palavra gasta, |
Vazio eterno do som, |
Quem dentro em si não a engasta |
Da cabeça ao coração. |
|
|
812 - Diferença |
|
Repara na diferença |
Entre as palavras e as coisas: |
As palavras têm presença, |
As coisas, não, a sentença |
Apagou-as já das loisas. |
|
Época falsificada, |
Da mentira por sistema: |
A palavra não diz nada |
Daquilo que, se testada, |
Diria ter por seu lema. |
|
Quando os termos falsificam, |
Escamoteiam eventos, |
O que mentem justificam, |
- As coisas então se aplicam |
A soprar a sério os ventos. |
|
|
813 - Aspiração |
|
Explicarmos o que somos |
É perene aspiração, |
Mas inventamo-lo em tomos |
Pela pequena ilusão |
|
De que afinal dominamos |
Em nós o desconhecido. |
|
E por fim o que logramos, |
Em vez de nossa verdade, |
Acaso é ter compreendido, |
E nem sequer por metade, |
- A nossa fatalidade |
De nunca ver o sentido! |
|
|
814 - Verifico |
|
Será preciso ser rico? |
Não morrem tal como os pobres? |
E os pobres não verifico |
Que podem viver, amar, |
Cultivar nédios alfobres, |
Ter mulher, filhos, um lar, |
Aquecer ao sol do Estio |
E à lareira quando há frio? |
|
Será preciso beber |
Um vinho de boa marca |
Para feliz alguém ser, |
Senão sente a vida parca? |
|
Após terem-se arrastado |
Sobre a terra de ninguém, |
Visto o céu, a Lua, o prado, |
O rio que este retém, |
|
A verdura do arvoredo, |
Após colherem os frutos |
das árvores do degredo, |
Os cachos de uvas enxutos, |
|
Após amarem deveras |
aqueles a quem amarem, |
Sobre os joelhos de esperas |
Os filhos ternos saltarem, |
|
Após tudo não vão todos |
Para debaixo da terra, |
À caverna que aos engodos |
Sempre mouca a porta cerra? |
|
- Que tesoiro é necessário |
A destino tão precário? |
|
Reflecte, portanto, e acalma: |
O que é preciso é ter alma. |
|
|
815 - Libélula |
|
A liberdade é a da célula |
Que em meu corpo se rebela, |
No lago solta libélula |
Até que o vento a atropela: |
|
Meu organismo a elimina |
Como nódoa de resina. |
|
Assim livre também sou, |
Contra as baias me rebelo |
E a dissolver-me então vou |
Nas lagoas que atropelo. |
|
Há uma lei além das leis: |
Delimita meus papéis. |
|
Quando além um passo tento, |
Logo meu pé lá rebento. |
|
|
816 - Loucura |
|
Dos homens a sensatez |
Como deles a bondade |
Serão loucura de vez |
Nos critérios da cidade. |
|
A vera sabedoria |
Não é de hoje, é doutro dia: |
|
Mora sempre noutro mundo |
Que não há… E é deste o fundo |
|
O fundo donde irradia, |
Senão nem cidade havia! |
|
Todavia, impenitente, |
Ela por norma se quer |
Da vida que toda a gente |
Um dia pretende ter! |
|
|
817 - Máscaras |
|
Deles nos termos e modos |
Querem a felicidade |
Talhar, talhar para todos. |
|
Não entendem que alguém queira, |
Ao invés mas de verdade, |
Ser feliz doutra maneira. |
|
Eis no demónio do bem |
As máscaras que ele tem! |
|
|
818 - Enguiça |
|
O mal deveras começa |
Quando alguém domina alguém. |
Vai continuar, porém, |
Quando no espólio tropeça |
|
E dita a lei que convém |
Ao que impune foi ladrão: |
Este é a norma e a convenção |
E dele é a guarda também. |
|
Esta ficção de justiça |
Sobre o que era natural |
É a marca-mor cultural |
Da História que nos enguiça. |
|
|
819 - Dístico |
|
Um prazer sacrificar |
Não é um gesto natural. |
Por um melhor o trocar |
É escolher o menor mal, |
Se de ambos não conseguir |
Concomitantes fruir. |
|
O mais é só mero dístico |
Que uns confundem com o místico. |
|
Depois, ai, como frustrados |
São tais crentes apanhados: |
|
Dentro do santo cibório |
Procuram é um consultório! |
|
|
820 - Intencionados |
|
Grupos bem intencionados |
Promovem a liberdade. |
Traem-na logo aos bocados |
Da prática quando os dados |
São que cada qual persuade: |
|
É que, ao tentar persuadir, |
Uma tirania nova, |
Além de quanta existir, |
Sobre os mais irá imprimir. |
- E é o fado que se renova! |
|
Estorvam o mais possível |
Todo o intuito a promover: |
Quão mais o tornam credível |
Menos devém exequível, |
Diminui quanto crescer! |
|
|
821 - Velhice |
|
A velhice é interessante: |
Envelhece mais depressa |
O que à mostra fica diante, |
O que menos envelheça |
É o que menos apareça. |
|
É por isso que por dentro, |
Onde doutrem a verruma |
Não penetra e só eu entro, |
- Não tenho idade nenhuma! |