OITAVA  REDONDILHA

 

 

 

DA  LONJURA  OUVINDO  O  GONGO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 822 e 906 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                822 - Da lonjura ouvindo o gongo

 

                                                                Da lonjura ouvindo o gongo,

                                                                Aqui vou eu a caminho,

                                                                Semeio o pão, colho o vinho,

                                                                Que o itinerário é longo.

 

                                                                Não fatigo o passarinho,

                                                                Cujo canto, de longada,

                                                                É que encantatória a estrada

                                                                Me aparenta que apadrinho.

 

                                                                Nem faz medo aquele monte

                                                                Que me esconde o horizonte.

                                                                É que imagino por trás

 

                                                                A promessa derradeira

                                                                Que a passada faz leveira

                                                                Do caminho que me traz.

 

823 - Escolhas

 

Quão mais alto o chamamento

E quão mais vasta a visão

Mais escolhos no incremento

Ao homem se lhe imporão.

 

O âmbito da criação

Será este, o de escolher:

Geração a geração

Corre o rio que eu quiser.

 

Para sempre permanece,

Escolhe em sabedoria,

Mas escolhe, que se esquece

Sempre o amor que não havia.

 

 

824 - Contradições

 

Há contradições ocultas

Nos que amam a Natureza

Que deploram, por incultas,

Do artifício miudezas.

 

O Homem não fará parte

Da Natureza que apoiam?

Castores têm melhor arte

Nas barragens onde bóiam

 

Que uma barragem humana?

- Tal naturalista acua

Quem soltou asas com gana

E viajou para a Lua!

 

 

825 - União

 

A capacidade é aquilo

Que sou capaz de fazer.

Motivação é o sigilo

Do que o leva a acontecer.

 

A atitude a perfeição

Nos marca do que fazemos.

 

- Todas três em união

Elevam-nos aos extremos.

 

 

826 - Informação

 

Eu recebo informação

Por muitas vias e meios,

Em todo o momento e dose.

É chegada a ocasião

De medir os meus receios,

De ver que linha me cose.

 

De meu porvir a visão

Nem vai por ali sequer:

- Será conseguir viver

Dispensando informação.

 

 

827 - Labrego

 

O labrego deitas à terra

Um punhado de sementes.

Vibra ao lavrá-la, na guerra

Contra o tempo de entrementes.

 

Acompanha o germinar

De cada flor que acarinha

Com cuidado, com o olhar

Que intempéries adivinha.

 

Vive e sofre do que faz

Com profundas alegrias.

A escravidão dele traz

À libertação mais vias:

 

- A seara é a apoteose

De quanta vida alguém goze.

 

 

828 - Erro

 

Um homem requer agir

Sabendo que pode errar,

Para o erro não por ir,

Que seria se matar,

Mas por jamais conseguir

Os acertos garantir

De quem não quer procurar

A morte, mas, se surdir,

É o risco a ter de pagar.

 

Quantas vezes uma vida

É uma morte consentida!

 

- Isto é, duma vida a sério,

O mais profundo mistério.

 

 

829 - Partida

 

Há sempre algo a recear

Dos que chegam ao ideal

Mesmo à hora de fechar,

Já da partida ao sinal.

 

Viajante de última hora

Porque tão tarde começa,

Não sabe como demora,

Tem, por norma, muita pressa.

 

 

 

830 - Romance

 

Um romance é uma montanha,

Por vezes inacessível,

Que a predilecção nos ganha

Por ser tal sonho impossível.

 

Um romance é uma mulher:

A inacessível demais

A mais amada há-de ser,

- Tem doutro mundo os sinais!

 

 

831 - Passarinho

 

Vida, breve passarinho

De muitas penas que mudam

Ou que ficam, fazem ninho,

À nossa pele se grudam,

Até que todos se iludam

De aves num sonho adivinho.

 

A vida é um pardal que voa

Ora raso, ora bem alto.

Dentro em nós vive ele à toa,

A fugir quando me falto,

Tantas vezes dando o salto

Fora do que a vida ecoa.

 

Muitos deixam-no fugir

No momento de nascerem.

Como pedras vão cair

Vida fora, sem viverem

Nem darem conta que querem

Voar nos céus do porvir.

 

 

832 - Coragem

 

O que é preciso é coragem

Para rumar sempre em frente

Porque muda, de repente,

Toda a esteira da viagem.

 

E torna-se o mal em bem

Quando esgotado o haja alguém.

 

Como manter o meu fito

Quando devém um delito?

 

Como não, se ao invés dele,

Bem é o que me morde a pele?

 

- O que é preciso é coragem

Para usar, sábio, da aragem.

 

 

833 - Perspectiva

 

Na perspectiva da fé,

O dia em que escolhi Deus

Pouco importa, já que ele é

Fruto de caprichos meus.

 

O que importará deveras,

Que tem o dedo do céu,

É o dia gerador de eras,

Dia em que Deus me escolheu.

 

 

834 - Terra-mãe

 

Lutam pela terra-mãe,

Eu luto pelo futuro.

O tiro que lhes convém

Não convém ao que inauguro.

 

Da bala fica refém,

Eu, da seara que amaduro.

- Qual de nós, afinal, tem

À terra amor mais seguro?

 

 

835 - Sentidos

 

Ultra-sons, com que audição?

Raios X como sentirmos?

Em que é que anda a vida envolta?

Que sentidos faltarão

Para vermos ou ouvirmos

Outro mundo à nossa volta?

 

É que há um outro que anda aqui

Que não sinto e nunca vi…

 

- E quantos mais haverá

Além, do lado de lá?

 

E Quem é que Além habita,

Que visão de lá me fita?

 

 

836 - Lógica

 

Do fundo do inconsciente

Vem-me a urgência penetrante

Dum Universo com lógica,

Com um sentido evidente.

Do real, porém, constante

É a certeza demagógica

De que anda sempre distante,

Sempre um passo além da lógica.

E eu esgarço-me, hesitante,

Nesta via mistagógica

Que se me perde diante.

 

 

837 - Graduais

 

O mais que posso esperar

São melhoras graduais

No saber que procurar,

Sem atingi-lo jamais.

 

É que a certeza absoluta

Sei de absoluta certeza

Que me fugirá impoluta,

Mecha apenas sempre acesa.

 

E eu sempre um passo atrás dela,

Sempre a dar um passo além

Para que o lume da estrela

Um passo aqui dê também.

 

 

838 - Humildade

 

O cientista não procura

Impor a necessidade,

O desejo, à natureza.

Ao contrário lhe assegura,

Interrogando a humildade,

Que o que lhe ouve é o que mais preza.

 

Há cientistas de renome

Que se enganaram de fome…

 

Compreendendo a imperfeição,

Insisto na independente,

Tenaz verificação,

Medida a frio e a quente.

 

Assim é que, dia a dia,

Ao invés de a condenar,

Eu encorajo a heresia

Rumo à verdade a alcançar.

 

E o primeiro a consegui-lo

Não será punido, não,

Tem um prémio a persegui-lo:

- A nossa libertação!

 

 

839 - Maravilhoso

 

O maravilhoso atrai,

Tanto atrai que nos embota,

O juízo perde a cota,

No irracional qualquer cai.

 

Como se nos não bastara,

Espaços além voando,

Do homem hoje em dia a cara

Ir-se em astro transmudando!

 

 

840 - Cortes

 

Os cortes orçamentais

Da investigação de base

É comer dos cereais

As sementes, não se atrase

 

A ceia para ninguém!

Mas se a nova sementeira

Ninguém já fizer, porém,

Amanhã quem ceifa a jeira?

 

Para nós e nossos filhos,

Nas invernias vindoiras,

Quem colhe fruto, em que trilhos,

Se searas não houver loiras?

 

 

841 - Tarefa

 

Tarefa que surge

Nunca se domina

Sem a crença que urge

Na força que mina.

 

Nem que um coração,

Apenas um fique

Guardando o guião

Que o passado explique

 

E queira o futuro.

- Só então me inauguro.

 

 

842 - Resolução

 

Tomar a resolução

Com esperança é correr,

Será mais longe alcançar,

De vida melhor o estilo

Pretender vir ter à mão.

…Acaso não vá ocorrer,

Como dantes ao falhar,

Ter entrado ao peristilo

E logo me acontecer

Nem mesmo em tal reparar,

Mantendo vago meu silo.

 

Tomar a resolução

É agarrar a ocasião.

 

 

843 - Degrau

 

O espanto entretém a vida,

Encurta o correr do dia.

A esperança então revida,

Entalha um degrau na via.

 

Penar hoje um amanhã

Aos ancestrais dá sentido.

 

Debaixo da telha vã

Quem nascer pela manhã,

Porém, mal agradecido,

Já se esqueceu do vagido

Do que ontem sofreu sozinho,

Dum amanhã adivinho.

 

O espanto gera a esperança

Mas quem mede o que ele alcança?

 

 

844 - acabamento

 

Somos gente começada

Que nunca foi acabada

 

E de cujo acabamento

Responsável o elemento

 

Não é de fado nenhum,

- Apenas de cada um!

 

 

845 - Imagem

 

Cada qual dentro de si

Dele próprio cria a imagem.

Sem tal, como houvera aqui

Da eternidade a sondagem

Para além do que vivi,

Abrindo-se o que senti

Mais que à cópia, à Grande Viagem?

 

 

846 - Inventar

 

Urge inventar um país.

Se o não inventas, na pele

Não caberás da raiz

Que mergulhas dentro dele.

 

Quando um país inventar

A mim é que irei criar.

 

 

847 - Torpezas

 

O país que nos calhou,

De pequeninas torpezas,

Não importará cantá-lo.

Enquanto nos tolhe o voo

Perdido em mil miudezas

Só por sadismo é um regalo.

 

Para vindoiras grandezas

Convém é desinventá-lo.

 

 

848 - Loucura

 

Todo o sonho é uma loucura,

Só as loucuras é que contam:

Um plano bom o que apura

São ideais que dele apontam.

 

- E é o ideal o que nos cura.

 

 

849 - Valor

 

Só tem valor uma coisa

Quando a lutar obrigado

Por ela se não repoisa.

 

Sem esforço o que me é dado,

Mero presente da sorte,

Nem prazer me há revelado,

 

Nada vale e cheira a morte.

O valor, quando é suado,

Tem de eldorado o recorte.

 

 

850 - Cristianismo

 

Cristianismo é sempre mais

Que individual relação

Com Deus ou com seus sinais:

- Inclui o mundo e os demais

Neste abraço de união.

 

Ao tentar esta unidade

É que a universalidade

É de sua vocação.

Não nas palavras ou ritos:

- Nos actos com infinitos!

 

 

851 - Traiu

 

Após sonhar tanto voo

Pelo mundo em liberdade,

A juventude findou,

Traída a felicidade.

 

É no sangue e no suor

Que as minhas pegadas vou

Sobre as do sonho pospor.

 

E quem sabe desde já

Onde a pista levará?

 

 

852 - Dinheiro

 

Foi o dinheiro inventado

Para pela maioria

Poder vir a ser usado

E não para aferrolhado

Ser por qualquer minoria.

 

Foi por isso que lutámos

Desde que germina o dia.

Como é que ao fim constatamos

Que há sempre os servos e os amos,

Que é sempre uma fantasia

 

Este sonho de justiça

Que os pés aqui nos enguiça?

 

 

853 - Janela

 

Pintura e literatura

São o espelho que revela,

Música tem a abertura

Ao mundo duma janela.

 

Naquelas é a ti que vês

Quando nelas te recolhas.

Ao mundo de lés-a-lés

Te abrem de música as folhas.

Entre descobrir-te a ti

E outro mundo descobrir

Trazem-te as artes em si

O que faltar ao porvir.

 

 

854 - Afogar-se

 

Para quem vive a afogar-se

Uma só coisa é importante:

Vir à tona sem que esgarce

Da vida o breve disfarce

No passo que der adiante.

 

Que é que importa a cor do peixe

Que nas braçadas se enfeixe?

 

Ou que o mundo, aos solavancos,

Viva os últimos arrancos?

 

Para quem vive a afogar-se

Uma só coisa é importante:

Um hausto de ar que garante

Que a vida irá prolongar-se.

 

O mais morre num instante,

Sem mais atrás nem adiante.

 

 

855 - Esperar

 

Importa mesmo é esperar.

Esperar, porém, o quê?

Quando o que espero chegar

Já não vai valer de nada,

É a cinza donde ardeu fé.

 

E lá vamos de longada,

À espera mais uma vez

Daquilo que jamais vês…

- De que corres sempre atrás

Porque nos fez e nos faz.

 

Eternamente iludidos,

Somos uma eterna busca

Do lume que nos chamusca:

- Busca eterna de sentidos.

 

 

856 - Exequível

 

Do bom o óptimo é inimigo

Se só o bom for exequível.

Mas devo andar disponível

Para do bom abdicar

Se quero abrir um postigo

Para o óptimo alcançar.

 

 

857 - Auferimos

 

O que nós não conseguimos

Parece sempre melhor

Do que aquilo que auferimos

Já de hoje com o sabor.

 

É daqui sempre que emana

Toda a idiotice humana.

 

 

858 - Alcance

 

Decide-te duma vez,

Mas não te enraiveças contra.

Refilar, bater os pés,

Ao alcance sempre encontra

Todos quantos são o que és.

 

Daí, contudo, jamais

Do porvir leio sinais.

 

Decide-te e realiza:

- Só daí sopra uma brisa…

 

 

859 - Morte

 

Talvez a morte não use

Dela o verdadeiro nome.

Talvez que o amor abuse

De nós termos tanta fome:

 

Se ele devier total

É uma faísca e mais nada.

Talvez a morte, afinal,

Do amor total seja a entrada.

 

Do amor total entre Deus

E os homens. Serão os céus?

 

 

860 - Inquilino

 

Constantemente me esqueço

De que apenas inquilino

Sou do planeta que meço

Com meu passo peregrino.

 

Então por completo errado

O mundo leio, complexo

De quem já vive instalado,

Consigo perdido o nexo.

 

Tanto a eternidade quero

Que anseio esqueço que é mero!

 

 

861 - Portas

 

Para quê fugir? as portas

São todas as portas mesmas.

Atrás delas que suportas?

Nada está, do nada resmas.

 

Não passam de portas portas:

Para onde quer que vás,

Com ilusão te comportas,

Não têm nada por trás.

 

Porém, a ilusão comanda

E logo o passo desanda.

 

- Pois no fim, sabemos lá

Lá por trás que é que andará…

 

 

862 - Esconder

 

Temos de esconder o jogo,

Senão pregam-nos na cruz.

Com sorte, em troça os afogo,

Quando é o papão que os reduz.

 

Porém, sempre a ratoeira

Das libertações se abeira

 

E quem inaugura o novo,

Mal repara, gora em ovo.

 

 

863 - Soleira

 

Será que não tem sentido

O porvir que hoje hei vivido?

 

Que desespero, uma porta

Que a mais além não exorta!

 

- Mas por baixo da soleira

Não se esconde a Terra inteira?

 

 

864 - Cansas

 

Não te cansas de teu nome

E, às vezes, de ti também?

Muda-o, se ele te consome,

Viaja pelo mundo além!

 

Torna-te um outro qualquer,

Vai até outro país:

Este mundo nem sequer

Vale a dor que lhe sentis.

 

E, ao ir ao lado de lá,

Quem sabe o que ocorrerá?

 

Será sempre um mundo outro

Que há-de vir ao teu encontro.

 

 

865 - Pioneiro

 

Ninguém vai querer ficar

Sem a paisagem ter visto.

Do mundo qualquer algar

Todos vão querer saltar,

Tal de viagem registo:

 

É que atrás do pioneiro

Vai um segundo, um terceiro…

 

Em breve irá toda a gente:

- É da cultura a corrente.

 

 

866 - Cerca

 

Na planura, aquela cerca

É o direito contra a força,

Da limitação a perca

A que um princípio nos força.

 

Assim é que, dumas feras

Que pelas eras já fomos,

Nos pomos noutras esferas,

À espera agora dos pomos.

 

Na fieira dos arames,

A linha recta do Homem

Das curvas entre os enxames

Que na Terra nos consomem,

 

Entre inúmeros caminhos

Um só demarca e direito

Onde os sonhos adivinhos

Talhem porvir a preceito.

 

As esperanças errantes,

Rumando então concertadas

Não se perdem como dantes

No desvairo das estradas.

 

 

867 - Avarento

 

Moeda de oiro do avarento,

Dos mais o mais idealista,

Riqueza de sonhos tento

Com a certeza prevista

De jamais colher do chão

Uma só, uma ilusão.

 

Moeda nunca envolvida

Sequer numa transacção…

- Mas uma vida iludida

Será vida? Será vida?

 

 

868 - Aprisco

 

O poder e as intenções

Para o mal darão e o bem.

E a melhor das intenções

Pode matar-nos também

Se não previr os senões

Que qualquer rumo contém.

 

Hoje quem saltar do aprisco,

Se esperto não for bastante,

Pôr-nos pode a vida em risco

Um pouco mais adiante.

 

Não basta não querer mal,

É prevê-lo e preveni-lo,

Mesmo antes de dar sinal.

Quem vai poder consegui-lo?

 

- Se deixarmos tudo à sorte

Pode ser a nossa morte.

 

 

869 - Privilégio

 

Concedemos privilégio

Ao local sobre o global.

Dou-me tratamento régio,

Só aqui sou deveras real.

 

 

Em detrimento do longo,

Dou primado ao curto prazo.

Do porvir soando o gongo,

Fico de vez em atraso.

 

- Prisioneiro do presente,

Não tenho horizonte à frente.

 

 

870 - Fardas

 

Quase todos vêm do povo.

Porém, como resplandecem

Naquelas fardas de gala,

Caracolam o renovo

E dos grandes se engrandecem

Cujo olhar se não regala

 

 

Senão quando sob as patas

Os próprios pais espezinham,

Com os seus belos corcéis.

Crêem-se do povo as natas

Quando, afinal, se avizinham

Das bestas em tais papéis.

 

Assim é que nunca o povo

Jamais de fora promovo,

 

Já que o gesto que liberta

Tem uma morada certa:

 

- A escada que trepa ao cimo

Assenta no próprio imo.

 

 

871 - Cansado

 

O cansado intelectual

Cria civilização,

Detém a força real

Que triunfa das demais:

- Inteligência em acção.

 

E será preciso mais?…

- A mais, só ter coração!

 

 

872 - Pressentido

 

A vida não tem sentido

Ou não tem sentido o que há?

É que o que há-de ser vivido

Só o vivemos pressentido

Sempre além do que houver cá.

 

O sentido da exist~encia

É o traçado da pegada

Em que ponho em evidência

Qualquer auto-transcendência

Que logre em minha jornada.

 

Meu além é sempre aquém

Da fronteira retraçada

No tempo que me contém.

 

Religião e ciência,

Cada qual por outro lado,

Põem marcas de excelência

Na cicatriz do castrado.

 

 

873 - Neandertal

 

O homem de Neandertal,

Extinto há milhares de anos,

Constitui prova cabal

De não haver, à evidência,

Garantia nem aval

Da nossa sobrevivência

Indefinida e total.

 

Talvez tudo isto, quem sabe,

Amanhã de vez acabe…

 

 

874 - Berço

 

É o berço da Humanidade

A mãe-Terra onde vivemos.

Quem se limita aos extremos,

Porém, para a eternidade,

Do berçário onde nascemos?

 

- Um dia nós saltaremos

Além das cercas da herdade…

 

 

875 - Deixamos

 

Deixamos a nossa mãe

Primeiro no nascimento

E de novo tal advém

quando, num dado momento,

 

No mundo nós nos lançamos

Sozinhos, numa aventura.

Toda a dor que aqui soframos

É a paga do que perdura.

 

Por fim, o místico apelo

Dos voos espaciais

Corta um derradeiro elo:

É nascer uma vez mais.

 

Corremos a vida inteira

Repetindo o mesmo gesto.

- E já nem vemos maneira

De ser outro o nosso apresto.

 

 

876 - Reviver

 

A ideia religiosa,

De geral acatamento,

É uma busca corajosa:

Reviver do nascimento.

 

É uma ponte recriar

Com a memória esbatida

Do que foi vivenciar

A angústia de entrar na vida.

 

A morte e o renascimento,

Com todas as convulsões,

Quase um estrangulamento,

E a luz vaga de ilusões

 

Que finalmente se dá

Num oceano de paz,

Onde um deus me espera já

Com o ar puro que me traz,

 

- Toda a aventura do parto

É o acto que me estrutura

Quando, da placenta farto,

Busco uma Vida Futura.

 

 

877 - Terra

 

A gente com terra nossa

Talvez se engane mas tem

Uma razão com que possa

Ter lucro como ninguém.

 

Se, porém, andar à jorna,

Quando pára, um homem pensa:

Nenhum remédio nos torna

Esperança que convença.

 

Quando o amanho ficar nosso

Fica sempre mais qualquer

Coisa a que mão deitar posso:

- A esperança de vencer!

 

 

878 - Autodesenvolvimento

 

É destinação da vida

O autodesenvolvimento,

Realizar a devida

Perfeição do acabamento.

 

Eis porque estamos aqui.

Hoje, porém, as pessoas

Muito medo têm de si,

Se esqueceram de ser boas,

 

De seu primeiro dever:

O dever de si consigo.

Ao faminto dão comer,

Vestem o nu, dão-lhe abrigo…

 

- Mas deixam morrer à fome

Seu imo que não tem nome.

 

 

879 - Sempre

 

“Sempre” é palavra terrível

Que a mulher ama empregar

E o romance mata incrível,

De o tentar fazer durar.

 

Entre uma prisão eterna

E um capricho passageiro

Mais duração mede terna

Quem morrer por derradeiro:

 

A paixão quer ser superna

Mas irá morrer primeiro

Refechada na caverna

Onde morre sem parceiro.

 

“Para sempre!” é a diferença

Que assusta qualquer projecto

Quando o que importa é a pertença

E ter um comum trajecto:

 

Quando a sério querem ir,

Em frente a estrada caminha

Sempre rumando ao porvir

E o fim jamais se adivinha.

 

 

880 - Paradoxo

 

Do paradoxo o caminho

Será via de verdade:

Pôr à prova a realidade

Do argumento no cadinho.

 

Na corda bamba é de vê-la:

Uma verdade acrobata

É que pode ser a estrela

Que do mundo se desata.

 

Então podemos julgar

Se tem mesmo condições

Para devir luminar

Do porvir rumo aos fundões.

 

 

881 - Rir

 

Se o Homem soubera rir

Desde a idade das cavernas,

Outro fora o rumo a ir

Que talhara a nossas pernas.

 

A humanidade se toma

Sempre por demais a sério

E este pecado nos soma

Da tristeza sob o império.

 

A História teria sido

Deveras bem diferente

Se houvéramos rido, rido

Numa gargalhada ingente.

 

 

882 - Publicidade

 

Vendem-me como porvir,

Em toda a publicidade,

Isto de que consumir

É que traz felicidade.

 

Se exiges coisas e coisas,

Qual, afinal, saboreias,

Em que é que, no fim, repoisas

Se nunca sais das ameias?

 

Um combatente sem sono

Acaba às mãos do inimigo,

Jogado por qualquer dono,

Sem mais muralha ou abrigo.

 

 

883 - Estendida

 

A vida é feita de sonho

E o que lhe ponho na lida

É a medida que disponho

Entre sonhos estendida.

 

Entre dois sonos, o abono

De quem nasce até que morre

É que entre um sono e outro sono

Tece vida em quanto corre.

 

Tudo o mais é despedida

De quem uma vez nasceu

E se perde na corrida

A ver se descobre o céu.

 

 

884 - Miúdo

 

Há muito quem saiba tudo

O que se deve saber

De tudo quanto é miúdo,

Cujo valor nem sequer

Para a mais banal ganância

Tem a mínima importância.

 

E depois há sempre a adenda:

- Como fazer produzir

Jamais consegue a fazenda…

 

E eis o que encolhe o porvir!

 

 

885 - Arautos

 

“Bem escrito, parabéns!”

- São três palavras de nada

Que acordaram, em reféns,

Os clarins da madrugada.

 

Se em lugar disto a mentora

Orelhas de burro impunha,

Qual deles teria agora

Grandezas de que dispunha?

 

Antes de ler a mensagem

Ninguém sabia quem era,

Para o devir qual a imagem,

Se de Inverno ou Primavera.

 

Uma palavra oportuna,

Encorajadora, honesta,

Abre a porta da fortuna,

Já do porvir é uma fresta.

 

 

886 - Corrente

 

Para ir contra a corrente

É importante ter coragem

Ou muita imbecilidade.

A comunhão que cimente

Os idealistas, quando agem,

Aos idiotas que grade

Leva, este mundo ao arar,

Quenquer a desesperar.

 

Como chocar em tal ovo

Um credível mundo novo?

 

E, se ele não convier,

De que nos importa ser?

 

 

887 - Turvo

 

Se eu derrubar o que pende,

Se quebrar o que está curvo,

De nadas que tais depende

O que o porvir tem de turvo.

 

A semente hoje espalhada

Vai germinar amanhã

E a colheita é que é pesada,

Serôdia ou temporã.

 

Portanto, minha pegada

Convém medir no local,

Mais que na terra pisada,

No rumo que lhe assinale.

 

 

888 - Mestre-escola

 

Mestre-escola sonhador,

Sem qualquer sentido prático,

Atraído por miragens,

É o burro do vendedor

De hortaliças que, fanático,

Deixado à solta entre as vagens

Do pasto, vai vadiando

Do espírito entre a cultura,

Comendo os rebentos quando

Vão, acaso, à dentadura.

E terão de ser os mais

A pôr as coisas em ordem

Para os caminhos reais

Que, História além, nos acordem.

 

 

889 - Errado

 

Ele tem algo de errado:

É que o sonho que sonhou

Encontrou real traslado

No real que o invocou.

 

Ora, o que empresta beleza

A um ideal almejado

É que inatingível preza

Sempre ficar colocado.

 

E quando os homens alcançam

Tudo aquilo que desejam

Riem os deuses que os cansam

Nos fossos onde os despejam.

 

 

890 - Emana

 

Há quem morra porque não

Sobrevive ao ver que emana

De quem creu ter um condão

Que é só uma pessoa humana.

 

É o que terá de pior

Isto de ser idealista:

Nunca aceita tal qual for

Ninguém que conste da lista.

 

Confrontado com o real,

Do mundo se quebra a imagem,

Todo o bem tornado mal,

E então põe termo à viagem.

 

 

891 - Creu

 

Pode alguém ter o direito

De sonhar um sonho seu

E de aplicá-lo a seu jeito

A quem nunca nele creu?

 

E quando depois se zanga

Só porque as duas imagens

Não coincidem manga a manga,

Tem razão em tais clivagens?

 

Ele quer aprisionar

Dentro de seu ideal,

Sem, de resto, se importar

Doutrem com o que é o sinal.

 

Ele jamais tomaria

Alguém tal qual ele for:

Prender-lhe o íntimo queria,

Que algo lhe escapa ao fervor,

 

Para ao fim o substituir

Por um fantasma criado

Por fantasias que urdir,

Do mundo, afinal, ao lado.

 

Aprisionar-me num sonho

Era um sonho diferente.

Eu sou eu que aqui me ponho:

- Não quero sonhar ausente!

 

Não quero sonhar os sonhos

Doutrem, de quenquer que seja,

Quero os meus, quero-os risonhos,

Quero ser Eu que se veja!

 

 

892 - Gastam

 

Os ideais bastam

Para alguém viver:

- Sem ideais gastam

Os anos quenquer.

 

Quem viver não sabe

Ou morrer até

Por um ideal

Nem lhe a sorte cabe:

Digno já não é

Do que lhe não vale

E lhe valeria

Se uma porta aberta,

A fresta dum dia,

Ficara entreaberta

Ao sol que viria.

 

Os ideais bastam

Para alguém viver:

- Sem ideais gastam

Os anos quenquer.

 

 

893 - Atirar

 

Falar fará sempre bem

Do que nos preocupar,

É como atirar além,

Para fora, a falta de ar,

 

E às vezes é pôr até

Tudo em posição tão nova

Que aquilo que então se vê

Noutro lado se renova.

 

- E em vez de preocupar

Acaba a nos libertar.

 

 

894 - Fotografia

 

Como quem der um passeio

Ou volta de bicicleta,

Como tiro à mente o anseio

Quando de emoções repleta,

Sofrimentos pela meta,

Planos e dor pelo meio?

 

Dos ses a lista mortífera,

Quão difícil despejá-la!

Viaja connosco, infrutífera,

Teatro encenando, prolífera,

Mentalmente, em qualquer sala.

 

Como ter férias mentais?

Como abandonar em casa

Dúvidas, gritos que tais?

Como um pardal bater asa,

Ares voar estivais,

O vento, o sol que me abrasa

Na cara acolher demais?

 

- Liberto da comoção,

Permitir-me poderia

Ser uma fotografia

Em que o mundo, o céu e o chão,

Tudo enfim registaria

E em minha vida vivia

Como se comera um pão.

 

 

895 - Pinheiro

 

Como um pinheiro bravio

Pode um homem trepar alto,

Que a raiz, sempre em pousio,

Nunca escapa ao catafalco.

A raiz não trepa nunca,

Para sempre entra na terra,

De infância e mortos nos junca,

No chão raso nos enterra.

 

Será que o alto mais alto

Se encontra na terra funda

E afinal o que me falto

É o que dali não me inunda?

 

 

896 - Patada

 

Atiro a patada abrupta

Para desentorpecer,

Mesmo a disfarçar a luta

Dum deus que quer vir a ser.

 

Tremendo medo e coragem,

Volto-me a tudo em que pegue:

Em mim terei, na triagem,

A divindade que chegue?

 

- Por entre tremor e aprumo,

Eis a aposta que me assumo.

 

 

897 - Distante

 

Fui ao monte mais distante,

Outro é mais distante ainda,

Continuei para diante…

- Dou no da partida, à vinda!

 

A forma da vida humana

É a duma circunferência,

Sempre à volta, sempre plana,

Menos para dentro a essência.

 

Só que para dentro o susto

É o dum abismo sem fundo

E, se o noto, é sempre a custo:

- Cega-me a origem do mundo!

 

 

898 - Pintainho

 

Somos este pintainho

Que desde saltar da casca

Foi tratado com carinho,

A ver se jamais se atasca

Nos lodaçais do caminho.

 

Depois, frango, atada a pata

A preveni-lo de estragos,

Bicando em volta desata,

Sorve ao bebedoiro uns tragos

Entre os limites que acata.

 

Quando quer além-fronteira

Bicar lagarta ou semente,

Pata estica prisioneira,

Bico estica para a frente:

- De ir além não há maneira!

 

Mais tarde, já galo adulto,

Desatada a pata presa,

Continua a prestar culto

À prisão que o não apresa,

Nele agora hábito oculto.

 

É que, se atinge o limite,

Em lugar de além saltar,

Estica a pata em desquite,

Não logra lá debicar:

- Não tem como o hábito evite!

 

Cá vamos a vida inteira

Dentro atados ao cordel,

A ver que além da soleira

Algo por nós há que apele

- E a pata em nós prisioneira!

 

 

899 - Parvo

 

É parvo imitar ser alto

Num homem que imita Deus;

De senso o profundo é falso:

Não tem porquê, cai dos céus

O que em nós mimar o salto.

 

Entalham-nos os destinos:

- Nossos actos são divinos.

 

 

900 - Pouco

 

Vivemos de muito pouco,

Nós é que nunca sabemos:

Vivemos dum sonho louco

de atingirmos os extremos,

 

De imaginarmos impérios,

De juntar velhos papéis,

De sentir raios sidéreos

A massacras infiéis,

De secar ao sol da vida

Ou de escarrar para o chão…

- Vivo da poeira erguida

Das patadas que me dão.

 

Ou doutra coisa qualquer,

O que é preciso é uma coisa:

Logo que ela me ocorrer

Toda a vida me repoisa.

 

Atamos um burro á nora,

Ordenamos-lhe: “anda à volta!”

Ele anda e, enquanto demora,

Vive mesmo a vida à solta.

 

 

901 - Familiar

 

A impossível descoberta

Por trás do familiar

Que não tem a porta aberta

Nem mais olhos para olhar,

 

A claridade instantânea,

Verdade irrecuperável,

A certeza momentânea

Sem nada certificável,

 

Aquela voz que me fala

Após se ter dito tudo,

Quando tudo o mais se cala

E fala em tudo o que é mudo

 

- É a música do Messias

Que não vem nunca, não vem,

Embora sejam tais vias

As por que se mostra a alguém.

 

São religiões e sonhos,

São erros e desesperos,

São os crimes mais medonhos

Que atrás correm de tais zeros.

 

Atroz modo de falarem

Da vida que só me augura,

Dos campos que nunca se arem,

- Do limite da procura!

 

 

902 - Ignorância

 

Dos erros do homem a história

Provém sempre da ignorância

Que do Universo a memória

Realiza desde a infância

 

O espírito que o trespassa,

Que o é na raiz do ser.

E a tudo afirma que passa

E impõe seu fim ao que houver.

 

 

903 - Sonda

 

O homem é bem maior

Do que o homem sempre foi.

Deitai fora, com amor,

O que ele criando dói:

 

Ciência, Filosofia,

Arte, castelos pelo ar…

- Quem razão de fantasia

Poderá discriminar?

 

Também eu já tive ideias,

Poucas, decerto, e bem rudes…

Como ver que nestas teias

A ti não é que te iludes?

 

É melhor i-las tecendo

Abandonado na onda

Da vida que vai batendo

Sem me iludir com a sonda.

 

 

904 - Talos

 

De que te importa ter bens

Se não hás-de aproveitá-los?

As quinze vinhas que tens,

Se nem lhes verás os talos?

 

Uma cave de bom vinho,

Se proibido de beber?

- Mais valera um bocadinho,

De gozá-lo com poder!

 

E tudo o mais que há na vida,

Não tem nada que enganar,

É sempre isto de seguida…

- Mas quem sonha em não sonhar?

 

 

905 - Melodia

 

Há só dois tipos de gente:

O da coragem ausente

Para num livro pegar;

Aquele em que é tão presente

Que o não vai jamais largar.

 

Do mundo aquele é a rotina,

Este, o que o canto lhe afina.

 

Do livro na melodia

Talha-nos a História a via.

 

 

906 - Limite

 

Tudo no extremo limite:

Para apreciar a vida,

Devorá-la sem desquite!

Moderação no convite

É de monges a medida:

Se o infinito convida

Quem lhe entrava o apetite?