NONA REDONDILHA
DE AMOR TRILHA
IRREGULAR
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907 - De amor trilha irregular
De amor trilha irregular
Trilha o verso insatisfeito,
Em preito
A quanto é inseguro amar.
É, porém, no insatisfeito
Pé que anda a deambular
Que, ao azar,
Me tomo, afinal, a peito.
Tomo nota
Das margens, das altitudes,
Tiro a cota.
É um poema de virtudes
Em que o sonho não se embota
Aquele em que, amor, me iludes.
908 - Protege |
|
A idade não nos protege |
Do amor. |
Mas a lei que nos rege |
Tem este pendor: |
A estranha verdade |
É que o amor |
Protege da idade! |
|
|
909 - Importa |
|
O que importa ter à mão |
No mundo, não nos esqueça, |
- Começa no coração, |
Não na cabeça! |
|
|
910 - Casa |
|
Quem não casa pelo que quer e sonha |
Mas pelo que socialmente é, |
Então que se deponha |
Do amor abandonado ao pé, |
Porque vai |
Não ser: |
Se muito enrica, |
A verdade é que cai, |
Nem sequer |
Fica. |
|
E se crê |
Que isto é que o vai tornar feliz |
Não há fé |
Que o salve da podridão da raiz. |
|
O amor é gratuito. |
O dinheiro |
Custa muito: |
- Mata o servo dele por inteiro! |
|
|
911 - Sempre |
|
Sempre juntos e para sempre separados, |
Sei o que é ser dia e noite. |
Somos o alvor de sóis mal nados |
Até ao crepúsculo em que a morte nos acoite. |
|
Um sem o outro não podemos existir, |
Nem ao mesmo tempo os dois. |
E é sempre este o modo de ir |
Depois. |
|
No amor que nos convida |
Como em tudo o mais na vida. |
|
|
912 - Redor |
|
Levamos uma vida inteira a aprender |
A ficar sentados olhando o mundo em redor: |
Só velho pode quenquer |
Ser capaz de sentar-se lado a lado, |
Sem nada dizer, ao brando calor, |
E sentir-se realizado |
E contente. |
|
Quem é novo é impaciente, |
Interrompe o silêncio. |
Que desperdício! |
O silêncio é puro e santo: |
Incense-o, |
Pare o bulício! |
|
Ele é que nos une aqui no canto: |
Só quem se sentir à vontade com os mais |
Consegue ficar sentado, |
Lado a lado, |
Sem falar nem por sinais. |
|
E eis o paradoxo mais estranho: |
- Esta é a comunicação de maior ganho! |
|
|
913 - Companhia |
|
Ninguém pode suportar |
Um caminho qualquer |
Se tiver |
Por companhia quem nunca lhe ganhar |
Afeição, |
Ou de quem nunca souber |
Conquistar |
O coração. |
|
A pior condenação |
Na estrada |
É a da solidão |
Acompanhada. |
Aqui não há caminhada, |
Não! |
Apenas, em surda revolta, |
Intérminos, fatigados passos em volta |
Da prisão. |
|
|
914 - Sós |
|
Vivemos sós, |
Mais acompanhados do que cremos: |
Quanta gente mora dentro de nós, |
Quantas faces nos olhos de mosca com que vemos! |
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915 - Arma |
|
Chego-me ao amor, |
Embora sempre em vão, |
Com teimosia que não desarma, |
Como um caçador |
Que vai à caça ao leão |
- Sem arma! |
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916 - Esculpida |
|
A mulher finda esculpida |
Pela mão que lhe tocar, |
Que a afagar enternecida. |
|
O amor |
Melhor sabe e mais moldar |
Do que o maior escultor. |
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|
917 - Sociedade |
|
O homem de sociedade |
Em pleno apenas se realiza |
Se qualquer individualidade |
Que primeiro visa |
A não puder, a seguir, |
De vez trair. |
|
Não posso ter o coração |
Ao lado de minha gente |
E as pantufas no serão |
Do inimigo ali em frente. |
|
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918 - Sonho |
|
O amor é um sonho sem medida, |
Um sonho sem valor. |
Mas quem não sonha encontra na vida |
Algum sabor? |
|
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919 - Fossa |
|
Para não tombares na fossa, |
Cria amigos, |
Que pão de homem não se adoça |
Sem perigos. |
Olha os abrigos, os abrigos! |
E nunca ligues à troça |
Que mascara os inimigos. |
Cultiva os trigos |
Na roça |
E deixa aos pardais os figos. |
O mais endossa |
- Mas cuida de teus amigos! |
|
|
920 - Espiritualidade |
|
O que é espiritualidade? |
Séculos a falar dela, |
A descrevê-la, |
A professar fé nela. |
Porém sempre, na verdade, |
Foi uma ligação abstracta, |
Em que se crê intelectualmente, |
Para evitar o mal que nos maltrata |
Em lugar do bem que se tente. |
|
Quando os outros amamos, |
É tudo diferente. |
Fico activo, |
Vivo, vivo, vivo! |
A vida evolui e por ela circulamos |
E, em todos os ramos, |
Devém tudo positivo. |
|
Para quê o conceito, |
A palavra, |
Se pelos actos é que tomo a peito |
A lavra? |
|
|
921 - Flores |
|
Não é o ciclo eterno |
Das dores: |
As crianças morrem no Inverno |
Porque são flores. |
|
|
922 - Aleijões |
|
Quem vê caras, |
Não vê corações, |
- Tornam-se as virtudes raras, |
Só ressaltam aleijões. |
Quando às vezes basta um pouco de intimidade… |
E de nobreza quanta raridade! |
|
|
923 - Esvazia |
|
Enquanto se esvazia |
Dando o seio ao bebé que ampara, |
A mãe repara |
Que nasce. Como o dia! |
|
|
924 - Castigado |
|
“Quem o merecer |
Deverá ser castigado!” |
- Que importa a quem grita um castigo, sequer, |
Quando o merecer, por seu lado? |
|
Só que ele, porém, |
No próprio juízo, |
Jamais merece o castigo de ninguém, |
- Fica o aviso. |
|
É sempre contra quem mora ao lado |
Que alguém berra o postulado. |
|
|
925 - Filigrana |
|
Das manhãs a filigrana |
Orvalhada de luar |
No tédio toda se fana, |
Cotio de falta de ar, |
|
Não fora a soalheira relva dos anos |
De antanho, distantes, |
Que vivem, infantis, com os arcanos |
Encantados da ternura que houve dantes |
|
Dentro de nós: |
- De antigamente com o calor, |
Eco de parentes e de avós, |
Toda a banalidade respira logo amor. |
|
|
926 - Horror |
|
Todo o horror é provocado, |
Em parte, |
Pela tendência de presumirmos que determinado |
Indivíduo é naturalmente mau: |
Pomo-lo aparte, |
Controlado a varapau. |
|
Não logra ninguém acreditar |
Que outrem pode agir como age |
Sem intrinsecamente não prestar. |
Então o coage, |
Hostilizando-o, |
A se desumanizar. |
|
O medo entre todos aumentando, |
Traz ao de cima |
O que de pior houver em quem vitima. |
|
|
927 - Indesejável |
|
Por mais indesejável |
Que seja doutrem o comportamento |
Temos de compreender que o mais viável |
|
Caminho para o despertar |
Busca deveras a todo o momento. |
…Como nós, aliás, do vagar, do vagar |
Com o tormento, |
Por azar! |
|
|
928 - Sensato |
|
Quem o rapaz ensina a ser sensato, |
Da sensatez que a rapariga sabe? |
Não o desejo de correr mundo ao desbarato, |
Onde o sonho jamais cabe, |
Antes a felicidade surpreender |
No que perto dele |
Estiver, |
Ali mesmo à flor da pele |
Sem o dar a perceber. |
|
Quem lhe há-de ensinar, |
Quem, |
O lugar |
Discreto |
Onde germina a cecém |
Debaixo do mesmo tecto? |
|
|
929 - Piolhos |
|
Enquanto o homem trata da imortalidade |
Do corpo e da alma, |
A mulher trata dos piolhos. |
Qual a via da verdade, |
Quem da vitória leva a palma |
Sobre os escolhos? |
|
Continuamos todos a morrer, |
Embora cada vez mais tarde. |
Ninguém logra definitivo compreender |
Onde é que o fogo arde. |
E nossas vidas com ambos apenas |
Deixam, lentas, de ser tão pequenas. |
|
|
930 - Vontade |
|
Não compreendo a vontade de Deus |
Mais que meus filhos a minha: |
Confiam-se-me, nada incréus, |
Certos de que os acarinha |
Meu amor. |
|
Prontos sempre a acreditar |
Que saberei do que ninguém melhor |
Deles qual o lugar, |
Para eles o que for bom. |
|
E é como devemos encarar |
De Deus a questão: |
- Mora aqui, nunca nos abandona sós |
E, acima de tudo, olha por nós. |
|
|
931 - Alturas |
|
Que estranha a fé do homem |
Tão certo de ver a Deus nas alturas |
Que nem vislumbra as solitárias criaturas |
Que ao lado as misérias consomem! |
|
Que Deus é esse |
Que nos esquece?! |
|
Quem é que pode crer |
Num mero pretexto para não nos ver?! |
|
|
932 - Imperceptível |
|
Vislumbro na jovem esposa |
Da natureza a sensibilidade misteriosa |
Que, mesmo cedendo ao arrebatamento |
Do homem sedento, |
Aparte se mantém |
Com um imperceptível sorriso de desdém. |
|
Dos campos e bosques o sorriso indefinido, |
Noite e dia soalheiro e enluarado, |
Das árvores e regatos o gemido |
Indiferente e delicado, |
Da flor |
O suave e vibrante odor, |
Das rochas e do canto das aves |
Os murmúrios graves |
À luz do sol e das estrelas, |
- Nenhum pede licença nem nos liga |
Quando a ser parte se obriga |
Das belas |
Miríades de prendas que nos cabe em sorte |
Fruir do nascimento à morte. |
|
|
933 - Velas |
|
Nas zonas equatoriais as velas |
Murcham à míngua de vento, |
Dia a dia diminuindo, por mor delas, |
As probabilidades de salvamento. |
|
Tal do casamento |
As sequelas |
Quando a ilusão do intento |
Se vai esvaindo nas querelas. |
|
Sem amanhã, |
Nenhum sol alvorece |
Pela noite vã. |
|
A pouco e pouco tudo esmorece, |
A promessa de alvor em cada manhã |
Fenece. |
|
Não é dos tubarões |
Que matam no mar, |
É das desilusões, |
As desilusões que matam devagar. |
|
|
934 - Repleto |
|
Artista completo |
Ninguém poderá ser |
Sem de amor ficar repleto, |
Sem ter amado a valer. |
|
|
935 - Avassaladora |
|
Avassaladora revolução |
Do primeiro amor: |
De mim a ti a submissão, |
Voluntária escravidão, |
Incônscia renúncia de me impor |
Em absoluto, |
Em prol da união |
Total e duradoira. |
Em prol do produto |
Que, de tão elevado, oira, |
Quando nele me precipito: |
- Em prol do infinito! |
|
De que no peito trago |
Indelével o grito |
Com que me rasgo e afago. |
|
No qual te medito, |
No qual te suscito, |
Perante que me apago |
E a ti me debito, |
Até que por tua mão me trago |
No rumo prescrito. |
|
O infinito, |
Tão submerso nas poeiras |
Das vielas e das jeiras!… |
|
|
936 - Vigília |
|
Nem clube, nem partido, |
Nem religião, nem família… |
- Com eles no sentido, |
Mantém-te em vigília. |
|
Com teus gestos pacatos |
Poda os sarmentos secos das ramadas, |
Que há macacos e velhacos |
Em todas as camadas. |
|
Antes da pertença de grupo |
Mora a virtude e a verdade: |
Quando alguém apupo, |
É bom que não apupe a minha identidade. |
|
|
937 - Rigor |
|
Consiste, em rigor, viver |
Em os mais aborrecer. |
|
Há sempre alguém para quem |
Sou um malandro que não vale um vintém. |
|
E há quem creia que é sinal |
Dum elevadíssimo ideal. |
|
O contrário seria, na verdade, |
Renunciar a qualquer personalidade. |
|
- E eis como, no desgoverno, |
Uns aos outros garantimos o inferno. |
938 - Separação |
|
Bastam uns dias de separação |
E volta a florescer |
Quanto a vida em comum rojou no chão: |
O que desgasta, destrói, desbota |
O repetido passo que houver |
Na rota. |
|
E vem o corpo, depois, |
Lembrar que cada um são sempre dois. |
|
|
939 - Inconsistente |
|
Pode o Homem morrer à minha frente |
E eu não sentir nada. |
Piedade e simpatia, certamente, |
Mas a dor que sobrenada, |
Se ele a sente |
E dela não me fere a espada, |
É uma sombra que mente, |
Inconsistente, |
Na minha berma da estrada. |
|
A um metro de mim o mundo se afunda |
E a angústia gritante |
Que o inunda |
Corre-me diante |
Tão ignota, tão infecunda, |
Como se nada fora doravante. |
|
É o que gera a tragédia da humanidade: |
Por isto progredir é lento, |
Regredir é à velocidade |
Do pensamento. |
|
A lonjura |
Entre viver e pensar |
É que nos entrava e nos futura |
A distância do lugar. |
|
|
940 - Divertimos |
|
Abre a porta, |
Que a vida é curta e o senão |
É que ninguém se importa |
Se nos divertimos ou não! |
|
941 - Minto |
|
Bem sei que minto: |
Ninguém pode nada por ninguém, |
Pressinto. |
A cada qual dele a sorte, |
A cada qual dele a morte, |
- Dele a solidão também. |
|
Uno é o mundo: |
Porém, as pontes |
Entre os horizontes, |
No fundo, |
Ou ruíram |
Ou jamais se construíram. |
|
Entre mim e as fronteiras |
Erguem-se fatais os montes |
De que se não trepam as ladeiras. |
|
|
942 - Infelicidade |
|
A infelicidade, primeiro, |
É jamais nos podermos tornar um, |
Nós que tanto nos atraímos. |
Não apenas pelo dinheiro, |
Nem por segurança contra o medo comum, |
- Antes da fraternidade ao tentar os cimos. |
|
A infelicidade, segundo, |
É que devemos deixar-nos perpetuamente, |
Dia a dia e a cada hora do mundo, |
Areia a escorrer entre os dedos, |
Por mais preciosa que se apresente, |
Impossível de segurar contra os degredos. |
Há sempre um que morre, |
Pingadamente, |
De instante a instante, |
Outro que corre e escorre |
Sempre um pouco mais adiante… |
|
E, enquanto fica, |
Como o sangue o salpica, |
Como o silvado que o prende |
Pica, |
Como a infelicidade ofende! |
|
|
|
943 - Sobressalto |
|
Muito tempo se morre antes |
Do sobressalto final. |
Temos de aguardar, constantes, |
A separação total |
|
Dum amor que já morreu, |
Antes de nos importar |
Outro que nos traga céu |
A cobrir daquele o algar. |
|
É o paradoxo do amor: |
Mesmo morto ainda vive |
E de nós tanto é senhor |
Que a vida inteira cative. |
|
|
944 - Mal-entendido |
|
Estreito-a nos meus braços. |
Ela treme e aperta-se contra mim. |
Seguro-a: dois pedaços |
Que um do outro nada sabem, |
Mal compreendem o que têm de afim, |
E, apesar disto, até que acabem, |
Retiram um conforto fugitivo e desmedido |
Deste eterno mal-entendido. |
|
|
945 - Partirei |
|
Partirei leve, |
Sem demora, |
Serei breve |
Agora. |
|
Que fadiga, |
Que cansaço, |
Como tanto abraço |
Me fatiga! |
|
Todos os meses |
Escorrem um pouco esvaziados |
De adeuses, |
Em tristeza e expectativa germinados. |
|
Todos os meses |
Esqueço |
Um pouco mais os reveses |
Que mereço. |
|
De mim partirei atrás |
Finalmente em paz. |
946 - Ebulição |
|
Para quê breve destino em meu proveito |
Querer extrair desta imensa ebulição? |
Pôr as balizas de minha duração, |
Minha pobre mente |
Sem jeito |
Ingenuamente crente |
Tomar a peito |
Como metro do que não tem medição? |
|
Perdido farrapo |
Um instante no mundo, |
Nem de trapo |
Imundo |
Servirei, mesmo quando me reparto |
Pelo cósmico trabalho de parto! |
|
Tal, porém, é o amor: |
O lugar mais elevado |
Rumo às pálidas estrelas, |
No horizonte o precário fulgor |
Do encontro entre céu e mar cavado, |
As procelas |
Da tentativo do mortal para o imortal |
Sempre vãmente perseguida |
E caída. |
|
O amor é tal |
que só no infinito acende a chama, |
Só na infinitude vê o sinal |
Que lhe serve de fanal, |
Que o proclama, |
Que o inflama, |
Que para além da fronteira o chama |
Final! |
|
|
947 - Ladrão |
|
Amado um ladrão |
Por uma mulher honesta, |
Ou muda em honesto então |
Ou ladra vai tornar esta. |
|
|
948 - Aldeia |
|
Somos esta pequena aldeia |
De cem famílias |
Toda cheia |
De quezílias. |
|
Sessenta e cinco das famílias dela |
São analfabetas, |
Mas brilha sempre, para todas, uma estrela, |
Nas noites pretas. |
|
Noventa e sete não falam português, |
Noventa não falam inglês. |
|
Setenta não têm água em casa, |
Oitenta não têm qualquer elemento |
Que de avião, num golpe de asa, |
Planara ao vento. |
|
Sete famílias são donas |
De sessenta por cento das terras. |
De tudo são tão mandonas |
Que pelos vales e serras |
Oitenta por cento da energia |
É o que o grupo consome dia a dia. |
Sem recurso a qualquer bruxo |
São quem goza todo o luxo. |
|
Sessenta famílias |
Da terra em dez por cento |
Moram, dormem e fazem vigílias |
E uma só tem um portento: |
Alguém que finalmente entrou na área |
Da educação universitária! |
|
Ar, água e clima, |
Radiação solar, |
Tudo na aldeia anda a piorar. |
quem anima |
Esta aldeia em vias de se apagar? |
|
Será que não há vector nenhum |
De nossa responsabilidade comum? |
|
|
949 - Escalracho |
|
Eis o lema a que se arrima |
O escalracho: |
Bajula o que está por cima, |
Pisa quem está por baixo, |
|
Aos parentes prioridade |
Arranja nas coisas todas; |
Para os mais há liberdade, |
Procede segundo as modas. |
|
Questão |
Não é saber o que é que eu acho, |
Mas quando é que o escalracho |
Domina ou não. |
|
E onde, e onde: |
Porque o problema é que muitas vezes |
O vilão se esconde |
Por trás dos gestos mais corteses. |
|
|
950 - Família |
|
Quando alguém perde a família, |
Perde tudo. |
Família se tem, contudo, |
Que o ama e por ele faz vigília, |
|
Que ao lado lhe fica, fiel, |
Não importa o que perder: |
Ele há-de ser, |
Por quanto dali o impele, |
|
No fim, para além de toda a dor, |
Um vencedor. |
|
|
951 - Alegria |
|
Grato vos fico cada dia |
Por me garantirdes o lugar |
Desta infinita alegria |
De vos alegrar. |
|
|
952 - Tapete |
|
Com hipócritas ser sincero, |
Humilde com poltrões arrogantes, |
Leal com farsantes, |
Com oportunistas manter o que quero, |
Eis o gesto que se não repete: |
Serei pisado como um tapete. |
|
Oferecer a outra face |
É ir até ao limite |
Para que outrem me fite |
E me enlace. |
Não para quem se desquite |
E da lista me trace. |
|
Para que o lugar me não vague |
Destes ante cada figurão, |
Apenas o azorrague |
Do templo contra o vendilhão! |
|
|
953 - Modos |
|
Tenha modos! |
Contudo, |
Vá contra todos e contra tudo |
Pelo bem de todos! |
|
|
954 - Servimos |
|
Servimos nossas ambições, |
Nossos interesses e manias, |
Nosso amor próprio - nossos aleijões! |
E proclamamos todos os dias |
Que vos servimos a vós, à Pátria, à Humanidade… |
|
- E o pior é que acreditamos que é verdade! |
|
|
955 - Secura |
|
De desejar pior do que e tortura |
É a dor de não desejar mais: |
A mulher em que saciámos apenas a secura |
Mata em nós sementes |
Que não voam ao sabor dos vendavais. |
|
O donjuanismo que fermentes, |
Um devaneio a sonhar |
Qualquer, |
Não leva a vida a amar, |
Leva a vida a morrer. |
|
|
956 - Desfolha |
|
O vento desfolha a roseira |
E chora após por tê-la desfolhado: |
Pobre namorado |
Que no amor não joga a vida inteira! |
|
|
957 - Trilho |
|
Para um homem qualquer |
Sempre um trilho há dos céus: |
- É através da mulher |
Que vê Deus. |
|
|
958 - Confira |
|
Por mim, não rezando dos mais os terços |
(E talvez o inverso também o confira), |
- À mulher que cria versos |
Prefiro a que os inspira. |
|
|
959 - Murmuração |
|
Crer na murmuração, |
Mais que indecente, |
É dar pérfida interpretação |
Ao gesto inocente. |
|
Quem se une |
Nesta via? |
Que é que reúne |
O que apenas separaria? |
|
Que riqueza alguém |
Juntaria |
Despojando-se dum último vintém? |
|
|
960 - Sepulto |
|
Pouco importa que um amor |
Fique sepulto, |
Um amor que ninguém proclama: |
Um fogo oculto |
Revela-o tanto o calor |
Como a chama! |
|
|
961 - Violeta |
|
Quem se baixa a colher a humilde violeta |
Quando à mão tem a rosa deslumbrante? |
Quem, senão o poeta |
Que um pouco vê mais adiante? |
Que a mais humilde flor |
O aroma mais doce |
Crê que espalha em redor |
Por onde quer que o mundo for, |
A quenquer que o endosse? |
|
Quem gritaria |
O alerta, |
Acolhendo o mais banal dia-a-dia |
De porta aberta? |
|
|
962 - Acariciaram |
|
Nossas vidas se encontraram |
Por um instante |
E logo as almas se acariciaram |
Adiante. |
Destino cativo |
De quanto é vivo. |
|
|
963 - Terso |
|
Se improviso o que inauguro |
Nunca tenho o braço terso. |
Os caminhos do futuro |
Talha-os o berço. |
|
|
964 - Ensejos |
|
As palavras dão-te ensejos |
De rumos com que te acalmas: |
As cartas, bem mais que os beijos, |
Juntam almas. |
|
|
965 - Coerência |
|
A fidelidade |
Retém, na vida emotiva, |
O que, na intelectualidade, |
A coerência cativa. |
|
Para o vulgo que fidelidade e coerência ainda preza, |
São, todavia, confissão de fraqueza: |
Demite-se cada qual e nada mais |
Da festa nos arraiais. |
|
Para quem as despreza, |
Pior: |
Demitem-se os fiéis e os coerentes da beleza |
E sabem lá o que é o amor! |
|
Tais incréus, porém, têm falta de clareza: |
De quanto se despojariam, |
Não fora recearem |
Que os mais o despojo apanhariam |
Para se banquetearem! |
|
E é nesta baixeza |
Que perdem os píncaros da beleza! |
|
|
966 - Amo-a |
|
Amo-a e, portanto, |
Ela é todas as heroínas |
Do mundo numa apenas. |
Tem o encanto |
Das ravinas |
Que, de longinquamente infinitas, |
São ante ela tão pequenas! |
|
É mais que uma só pessoa: |
São todas juntas atadas nas guitas |
De todos os piões da infância que perdi. |
Amo-a: descobri |
Que vivo nos cumes, |
Que tenho de fazer ciúmes |
A todo o mundo Romeu |
Que não sou eu. |
|
Amo-a e vivo neste permanente alarme |
De a fazer amar-me. |
|
A verdade |
É que ela é o princípio e fim |
De toda a genialidade |
Que houver em mim. |
|
Amada, |
Tu és tudo, deveras tudo, |
E a desgraça |
É que eu não sou nada. |
|
Um nada mudo |
E desnudo |
Que passa… |
|
|
967 - Grilheta |
|
Paixões sobre cuja origem |
Me enganei |
São as que mais duras me impingem |
Delas a lei. |
|
Libertar-me da grilheta |
É desvendar-lhes a teia |
Secreta |
Que me enleia. |
|
O saber |
E a liberdade |
São a cara e a coroa de eu ser |
Eu em verdade. |
|
968 - Vulgo |
|
O vulgo aguarda que a vida |
Lhe desvende o segredo. |
Para uns poucos de eleitos a cortina é erguida |
Das obras de arte pelo dedo. |
|
Mais raramente ainda, |
Por uma personalidade rica e densa |
Em que a vida toma a forma de obra de arte: |
Poesia duma voz profunda e linda, |
Música duma ternura intensa, |
Pintura dum gesto que do mundo fica aparte… |
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Entretanto, quem revela a maravilha |
Ignora |
Este oceano infinito |
Que nele mora: |
Ali se vê como irrelevante ilha |
À espera de que alguém |
Lhe ouça também |
O solitário grito. |
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E, sem mediação, |
Para si continua enjeitado sem casa, |
Opaco e negro tição |
Que nenhum sopro abrasa. |
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969 - Ela |
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Ela logra dar alma, |
Ela, |
Aos que sem alma viveram, |
Gerar beleza e calma |
Nas vidas sem porta nem janela |
Que sórdidas e feias devieram, |
Despe-as do egoísmo, |
Emprestando-lhes lágrimas para dores |
Que delas não são o abismo |
De horrores, |
Ela |
É digna de toda a adoração, |
É digna de qualquer vergel fecundo |
E bem mais que ele se revela, |
É digna da adoração do mundo. |
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Ela, |
No mistério subtil que detém |
Germina ignota uma parcela |
Do Além. |
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970 - Paixão |
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A paixão que não sinto |
Poderei representar, |
Mas como me minto |
A que me queimar? |
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971 - Imbele |
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Ao vencido adora a mulher |
Que a ela se encosta, |
Imbele. |
Ao vencedor, porém, mais quer: |
Tanto gosta |
Que ela é quem se encosta a ele. |
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972 - Derradeiro |
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O que um homem sempre quer |
É ser o primeiro amor |
Duma mulher: |
A vaidade o faz correr. |
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A mulher outro fim se irá propor: |
Para o homem que alcance, |
O que pretende é ser |
O derradeiro romance. |
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973 - Desvendar |
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A força da mulher |
É de a psicologia |
A não poder explicar. |
Um homem pode ser. |
A mulher jamais o poderia, |
Que quem só logramos admirar |
Confunde, com a magia, |
Qualquer pretensão de o desvendar. |
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Quando muito, ergo a ponta do véu |
- E vislumbro o céu! |
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974 - Véu |
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É tão difícil o véu |
Levantar do coração |
Como tocar no céu |
Com a mão. |
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975 - Guinchar |
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Teu filho leva a melhor |
Após berrar e guinchar? |
- Vai supor, |
Se calhar, |
Que pode atingir o que quiser |
Se aos mais termo à paciência der. |
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Quando adulto, |
Ou se tornará um estulto |
Ou, para público pavor, |
Será com toda a gente um ditador. |
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- Quem tem a primeira responsabilidade |
Duma vida |
Inteira de marginalidade |
Descomedida? |
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976 - Vão |
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Penses o que pensares, |
Pensarás sempre em vão |
Enquanto não reparares |
Que a mente não é nunca o coração. |
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977 - Promessas |
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Conquisto por lisonjas, por presentes, |
E conquisto por promessas. |
Estas custam menos que os precedentes |
E, quanto ao valor, pedem meças, |
Porque valem muito mais. |
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O que a promessa alcança |
E nenhuma outra via, jamais: |
- Dá esperança! |
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E, em resumo, toda a vida |
É uma esperança indefinidamente traída. |
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978 - Estarrecer |
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Uns vivem, outros morrem, |
E alguns deixam de viver. |
Permanentemente |
São estes que nos ocorrem |
Porque é o que é de estarrecer: |
São a marca diferente! |
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Não são nem deixam de ser: |
Como com tal conviver? |
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979 - Entrementes |
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Que quer dizer ter um filho? |
Ou ter mesmo uma mulher? |
Ninguém tem nem um cadilho |
Sequer! |
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Tudo é gratuito, |
Fortuito, |
Até que um dia Alguém venha a acontecer. |
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Entrementes, |
Somos apenas sementes. |
Muito embora convencidas: |
- Senão, quem aguentaria estas vidas? |
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980 - Expectativa |
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À dolorosa expectativa de te esperar |
A vida |
Inteira, |
Irremediável já se vem juntar |
O desânimo da despedida |
Derradeira. |
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Íntegra pureza, íntegra beleza?… |
- Qualquer hora boa |
Por trás sempre à toa |
Nos despreza! |
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981 - Estufa |
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É de estufa uma flor: |
Quanto mais alta a patente, |
Maior |
Dela o amor. |
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Evidentemente, |
Quando fores um general, |
Desmaiará diante de tal. |
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Crerás, porém, que é diante de ti: |
Daí |
O engano |
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E, do eternamente falso alibi, |
O eternamente falso dano |
que a cada qual |
Esvaziará, fatal, |
De si. |
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O brio |
Da patente |
É a promoção do humanamente |
Vazio. |
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982 - Adiafa |
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Conhecer uma mulher |
A quem um homem pertence, |
Um filho ter |
Que meu olhar ergue e convence, |
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Cultivar em qualquer parte |
Uma casita discreta |
Onde o lar todo se aparte |
Em adiafa secreta, |
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O refúgio derradeiro, |
- Isto é que é vida! |
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Da guerra é o que sentimos no atoleiro, |
Como dela a final medida, |
Traído sonho primeiro… |
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Ao sonho, porém, na paz, |
Que é que cada qual lhe faz? |
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983 - Demasiado |
|
Demasiado nova para ti, |
Demasiado velho para ela?… |
Teu alibi |
Uma verdade |
Revela |
Ausente: |
- Importante é apenas a idade |
Que se sente! |
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A realidade |
Pessoal |
Não tem outra identidade, |
Para bem ou para mal. |
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984 - Bem-educado |
|
Um homem bem-educado |
Não expõe aquela que ama à humilhação |
De lhe dar a entender não haver acreditado |
Dela nas mentiras do coração. |
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Passa, breve, de lado, |
E aguarda a chuva da monção: |
O que houver cultivado |
Acabará dando os frutos da estação. |
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985 - Adiando |
|
A sabedoria da mulher, |
Adiando, adiando o regalo… |
- Adiar o prazer |
Vai aumentá-lo! |
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986 - Magnífico |
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Visitar |
Todo e qualquer |
Magnífico lugar |
Com a mulher |
Que é tudo para quenquer |
Que melhor pode o mundo ofertar? |
|
É o mais perfeito. |
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Para a amada, |
Porém, |
Pode ser a maior punhada |
No peito |
Que alguém |
Que a ama |
A vida inteira lhe trama. |
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- Tão sem jeito |
A vida nos acama! |
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987 - Loucamente |
|
Ama-a loucamente |
E este é que é o problema. |
Amá-la ajuizadamente… |
- Quem resolve tal dilema? |
|
Isto, porém, |
É que libertaria o refém. |
|
Mas seria o fim |
Da Humanidade e de mim. |
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988 - Força |
|
A paixão |
É uma força da natureza a cumprir-se. |
Que venha a reduzir-se |
A desejo carnal |
Só prova que o homem não |
Quer outro fanal |
Para levar mais longe, em desatino, |
Dele o destino. |
Vem por acréscimo tudo o mais |
Que no homem vejais. |
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989 - Iridescente |
|
É o mar |
Qualquer relação humana: |
Toda à superfície plana, |
Basta um pouco aprofundar |
E são monstros, precipícios, |
Cardumes de benefícios, |
Tubarões a amedrontar… |
|
E lá do fundo mais fundo |
Onde só o escuro pasce |
Nasce |
Um mundo: |
Borbulhando iridescente |
Borbota eterno um vulcão |
Discreta, discretamente, |
- Nosso humano coração. |
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990 - Estúpido |
|
Fico espantado |
Do excesso de mim, |
Comigo aterrado |
De minha abundância, enfim. |
|
A palavra é um mistério, |
Estúpido ruído |
Em que o espírito a sério |
Mora escondido. |
|
A palavra ouvida |
Aterra, |
Que nos ferra |
Em brasa acendida, |
Uma vez mordida. |
|
Apenas a aguento |
Se com alguém |
A tento |
Aguentar também. |
|
E, quando falo só, |
Não me oiço, |
Retoiço, apenas retoiço |
No meio do pó. |
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991 - Rala |
|
A palavra da fala, |
Que deserto |
De vida mais rala! |
|
Surge um homem desperto, |
Desata a inventá-la |
E recria tudo: |
Dá nome às pedras e às estrelas… |
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E quanto era mudo |
Principia a relatar as sequelas |
De belezas e desgraças |
Das pegadas, das vias |
E das traças |
De todos os dias Nas praças |
Onde as vidas permanente avias. |
|
E eis como principias, |
|
A palavra da fala, |
Que estranha, que estranha cabala! |
|
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992 - Difícil |
|
Como é difícil falar! |
Palavras são requeridas |
E da palavra o horizonte |
É sempre lançar |
Uma ponte |
Entre vidas. |
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|
993 - Barco |
|
Um amor ninguém o inventa, |
Ou existe ou não existe |
E é só. |
Quem com tal se não contenta |
E tenta |
Quanto o conquiste, |
Mete dó |
E desiste. |
|
Um saber que ainda não tenho |
Eu poderei conquistá-lo, |
É uma ciência de ganho. |
Uma afeição, |
Não! |
|
Abalo |
A conquistar a mulher: |
Posso lograr-lhe o regalo, |
Não o amor que eu lhe tiver. |
|
Poderei, sim, cultivá-lo, |
Mas antes terá de ser. |
|
E sobre tal condição |
Não terei de todo mão. |
|
No barco soltar o pano |
Poderei, |
Mas é um engano |
Se nem de barco nenhum sei. |
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994 - Conflito |
|
Apenas o conflito |
Gera a criação. |
Não tem, porém, de haver nenhum grito: |
- Basta que o conflito seja dentro dum coração. |
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|
995 - Devorada |
|
A fadiga, o esgotamento |
Da mãe |
Devorada pelos filhos, |
Viva e a cada momento, |
Não pede a ninguém |
Que a admire nem a louve: |
Quem a entenda |
É que lhe aprouve, |
Só que alguém a compreenda, |
Mais nada. |
|
Para tudo o mais |
Anda por demais |
Cansada. |
|
|
Para não agravar o mal, |
Ponto final. |
|
|
996 - Cepa |
|
Os irmãos, rebentos da mesma cepa, |
Embora unidos pela raiz |
Nunca são da cabeleira a mesma repa |
Quando um ao outro se traduz e diz. |
|
Tolhido de pudores, |
Este é o menos eloquente dos amores. |
|
Por trás do silêncio, porém, |
Quem suspeitaria a força que por norma tem? |
|
É que a seiva discreta, hesitante, |
Trepa, afinal, até o galho mais distante. |
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997 - Candeeiro |
|
Candeeiro de cozinha: |
Estrela no céu do lar |
A alumiar |
A toda a hora |
Trilhos de quem caminha |
Vida fora. |
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|
998 - Monstros |
|
O determinismo cego da intérmina cadeia |
De monstros que devoram ou são devorados… |
Quem quebrá-lo ameia |
Senão o amor dos auto-sacrificados? |
|
A cadeia continua. |
Em vez, porém, do charco, aponta a lua. |
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999 - Jugo |
|
Presos ao jugo, |
Os bois rasgam a terra |
E enquanto a subjugo |
Me libertam a messe que nela encerra. |
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Tal qual num casamento |
De filhos a procriação, |
O aumento |
De rendimento, |
Do coração |
O linimento, |
O aprofundamento |
Da paixão |
- Das ternuras no evento |
Que semeiam de rebentos de amor |
O terror |
Da solidão. |
|
Tal qual q compra de fazenda |
Aos ócios a impor emenda |
Com o trabalho produtivo |
Que qualquer lar mantém vivo. |
|
Ou de negócios viagem |
que, ao impor-me disciplina, |
O benefício combina |
Do lucro, no fim da triagem. |
|
Ou a perseguição |
Ordenada e ardilosa |
Do ladrão, |
Do crime organizado |
Que violento contra nós se entrosa: |
- O esforço combinado |
Em jugo apertado |
A terra liberta das ervas daninhas, |
Da cultura e da paz semeia as vinhas. |
|
Meus bois ao jugo |
Não são verdugo: |
São o custo da messe |
Que virente me apetece. |