DÉCIMA  REDONDILHA

 

 

 

VAI  O  SENTIDO  TRAÇANDO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1000 e 1132 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                1000 - Vai o sentido traçando

 

                                                                Vai o sentido traçando

                                                                De infindos contratempos de procura

                                                                O verso de dor e cura,

                                                                No passo incerto do porquê, do quando.

 

                                                                Quando a luz fica brilhando,

                                                                Apura

                                                                A palavra com lisura

                                                                Onde o alvor registe que for coando.

 

                                                                Aqui

                                                                Fica a dureza do corte

                                                                De tudo quanto descobri

 

                                                                E o recorte

                                                                Com que a pulso recobri

                                                                A ignara escuridão que nos trazia a morte.

 

 

1001 - Base

 

Tem base a democracia

Na convicção

De que de homens um milhão

Terá mais sabedoria

Do que o destino consente

A um homem somente.

 

A autocracia, ao contrário,

Crê que um homem é um vidente

E um milhão, discricionário

Somatório incompetente.

 

Não há luz na multidão

E um somente é garantia

De que é sempre uma ilusão

Todo o alvor que ela luzia.

 

O controlo eficiente

Que quer a democracia

o que apenas nos garante

É que acabo a ir em frente,

Mais atrás, mais adiante,

Quando tal a maioria

Deveras sonhar um dia.

 

 

1002 - Coragem

 

A coragem

É o complemento do medo.

Sem medo quem são os que agem?

- Os tolos, só por toledo!

 

 

1003 - Palavra

 

O mistério dos mistérios é a palavra:

- Como é que um pensamento tem som?

 

E o que o mistério ainda mais agrava:

- Como é que muda de termo e de tom,

Terra a terra, país a país,

E o fogo que lavra

É sempre o mesmo de raiz?

 

Um em todos, todos num,

Espírito que incarna puro,

É um deus, pelo seguro,

Ou não faz sentido algum:

 

- Donde vem a magia

De afinar tão vasta sinfonia?

 

 

1004 - Dores

 

Mundo de trabalhadores,

Não de poetas:

Quem entende as dores

Secretas?                                                              

 

Quem tempo irá arranjar

Para haver lar?

Quem vai ler Camões

Ou Eça ou Aquilino,

Furando além os senões

Do destino?

Quem, à proa,

Pesca a madrugada

Numa canoa?

 

É verdade

Que estoutra caminhada

Não aguilhoa a Humanidade

Na corrida tresloucada.

Porém, à vida de quenquer,

Isto é que a torna digna de viver.

 

O mal

É a poupança disto ser pequena?

- A vida só vale a pena

Por aquilo que nada vale!

 

 

1005 - Levada

 

Deste ribeiro a levada

Tem centenas de milhares de anos

E renova-se a cada chuvada.

 

Tais da vida são os arcanos:

Vejo-a, com esperança e mágoa,

À vida e a tudo o que arquiva,

Ao ver este tropel de água.

- É um tropel de realidade viva.

 

 

1006 - Pouco

 

Que mal faz

Um pouco de socialismo na mocidade?

Conhece-se o inimigo, do que é capaz,

Para quando chegar a maioridade…

Então é só dar-lhe para trás!

 

- A verdade

É que a verdade ali jaz.

 

 

1007 - Perturba

 

Perdido por entre a turba

Descubro o que mais me lesa:

Não é a dúvida que perturba,

- É a certeza!

 

 

1008 - Imorais

 

São sempre os mais imorais,

A imitar visos de santos,

Que vão impor aos demais

As morais

Que eles chutam pelos cantos.

 

 

1009 - Pobre

 

Em casa de pobre

Quando não entra a jorna,

Entra fome que sobre.

Os bem-pensantes

Proclamam, confiantes:

- É tudo sorna!

 

 

1010-Altura

 

Somos todos tal e qual,

É que o defeito é da altura.

Mal

Aos píncaros trepamos,

Tanto a luz fulgura

Que para baixo encegueiramos.

 

Então, quando anda,

O pé calca a formiga

Que não pôde subir.

Quem comanda

Acaba sempre nesta briga

Dos que não têm porvir.

 

Nos homens, há formigas e há pardais

A disputar o mesmo grão de trigo.

Não há inimigo nem amigo,

Todos têm de ser por direito iguais.

Mas quem nos livra do perigo

Das bicadas ancestrais?

 

Aos de baixo não há via segura

Que os proteja da vertigem dos da altura.

 

 

1011 - Pensamento

 

Um pensamento qualquer,

Seja dito ou não,

É real e tem poder:

Orienta sempre a mão.

 

 

1012 - Ovnis

 

Ovnis: crença ou descrença?

Ausência de prova não é prova de ausência.

Primeiro, porém, a primeira evidência:

- Não é prova de presença.

 

Assim,

Ficamos então

Aguardando a prova controlável do sim

Ou do não.

 

Até lá,

Porque o não vi,

Porque de prova comprovada o não deduzi,

Ficarei por cá,

De janela aberta,

A curiosidade alerta,

Até que da neblina brote de algo o resquício

Ou o mero empedrado da estrada.

 

Dou da dúvida o benefício,

Mais nada.

 

 

1013 - Peneira

 

No fundo, a sabedoria

É saber do não-saber,

Compreender

Onde acabo e principia

O mundo de meus senões,

Onde a fronteira

Me peneira

De minhas limitações.

 

 

1014 - Enredados

 

Ficaremos sempre enredados

No erro.

De cada geração os traslados

São o que transpôs do cerro

Dos enganos

Através dos anos.

O mais que pode esperar

É diminuir a margem de erro

Sem jamais a ultrapassar.

 

É a beleza

De nosso braço de ferro

Com a natureza.

 

 

1015 - Sumidade

 

Não creias na sumidade

Porque erra como qualquer.

Faz a prova da verdade

A tudo o que dela houver

De se colher.

 

Por muito que ela o não queira,

Se a não sujeitas a tal,

Logo escorregas à beira

Dum erro fundamental.

 

A verdade

Indiscutível,

Por pagá-la quem acaba, previsível,

Será sempre a Humanidade.

 

 

1016 - Incrível

 

O pedido mais incrível:

“A verdade, toda a verdade e nada mais que a ver-dade”.

 

Impossível,

Fica além de nossa capacidade!

 

A memória é falível

E a ciência é mera aproximação.

 

Mesmo que um pouco menos que dantes,

Somos tão

Ignorantes

Da Imensidão!

 

 

1017 - Par

 

Saber,

Saber explicar:

Dois modos de ser

Nem sempre a par.

 

Qual é o segredo?

Apenas um:

- Muda os termos do mesmo credo

Quando falas ao comum.

 

É que aos termos do cientista

Não há vulgo que resista.

 

Mas igualmente também,

Ao encantamento

Dum portento

Ninguém

Resiste nem um momento

Para dar um salto além.

 

 

1018 - Dominam

 

Crês que são os humanos

Que dominam a vida,

Que mandam neste mundo de enganos.

É uma causa perdida.

 

É Deus que manda:

Resta acolher as Escrituras,

Da salvação em demanda.

 

Só que, depois, o que apuras

É que Deus anda,

- Juras,

A ordenar que és tu quem comanda!

 

Dentro ou fora da igreja,

As posturas são iguais

Para quem a sério

Leia os sinais

Do Mistério.

 

 

1019 - Pigmeus

 

A ideia de evolução

Como substituto de Deus

É de Deus ter a noção

Bem miúda de pigmeus.

 

A evolução é a via

Que Deus criou e mentém viva

Para manter eternamente activa

A criação que queria.

 

Ou então

É apenas outro vector da noção

Do poder da energia

Que Ele é no que nos envia.

 

Ou, como Ele continua a criar,

Como tudo continua a devir ser,

Sei lá bem qual é seu lugar

A não ser que lugar não tem qualquer!

 

 

1020 - Distância

 

A morte primeira

É a distância intransponível.

A morte verdadeira,

Dela com todas as ânsias,

É apenas a mais incrível

Das distâncias.

 

 

1021 - Investimento

 

Mais que o que nele arriscar

Todo o investimento rende.

Não vende apenas quem vende,

Ao vender anda a comprar.

 

No ensinar

É que se aprende:

E não apenas a dar

Quanto, enfim, se compreende

Mas a ver que é que se entende

Do saber a partilhar.

 

Quanto mais se ele divide,

Mais por nós além progride.

 

 

1022 - Insatisfeito

 

Viver insatisfeito

Comigo

É o pior inimigo.

Se o tomo a peito,

Não encontro mais abrigo

Senão no leito

Dum jazigo.

 

Comigo a reconciliação

É que ao mundo traz

A paz

Do perdão.

 

Não a de quem jaz,

Senão a de quem é capaz,

Ainda e sempre em função.

 

Meu recorte,

De seguida,

Não é de morte,

É de vida.

 

 

1023 - Álcool

 

Álcool de beber a dor

Não a bebe, é enganador.

Quem naquilo se distrai,

Cai,

Nem dele próprio é senhor.

Se não amaina a tormenta

E atormenta o bebedor,

Quem aquilo tenta

Que dor tenta sobrepor

À dor que tanto lamenta?

 

Álcool de beber a dor

Não a bebe, é enganador.

 

 

1024 - Desperdício

 

A questão fundamental

é se o desperdício de água

Será só de Portugal

Ou é o destino fatal,

Disfarçado pela mágoa

Nacional,

Duma Humanidade inteira

Que águas vivas desperdiça,

Tenha o mar e a praia à beira

Ou não tenha, como a Suíça,

Que tantas águas enguiça

que é uma gelada ladeira

Que mal encontra maneira

De as águas verter na liça.

 

O mundo a morrer à sede

E nós a bater no mar,

Batucando sem parar,

E ninguém salta a parede!

 

Aqui, como nos convém,

A arranhar nossos complexos,

Tal qual pelo mundo além

Onde ninguém liga aos nexos.

 

Desperdício, desperdício,

Mas sempre justificado

Em nome dum benefício

De alguém que anda tresloucado.

 

1025 - Tristeza

 

Um dia triste, um tempo triste…

- E, logo após,

Reparamos que a tristeza não existe

Senão dentro de nós.

 

 

1026 - Torre

 

Ao descer da torre de marfim,

A medicina

Devém mais abrangente assim:

Escolhe a sina

De reconhecer a intuição

daquele a quem trata,

Procura-lhe, estimula e dele acata,

Vital, a íntima visão.

 

Combinados os dois,

Médico e doente,

Ambos activos coerentemente,

É o que depois

Desmultiplica e apura

Milagrosamente

A cura.

 

 

1027 - Vivos

 

Junto com a alegria e a liberdade

De estarmos vivos

Vêm o medo, a incerteza, a ansiedade,

Sempre de pé,

Recidivos,

- De estarmos vivos sem saber porquê.

 

 

1028 - Supersticioso

 

Contraditória com gozo

É a verdade singular:

- Não seja supersticioso,

Traz azar!

 

O curioso é que esta asneira

É verdadeira,

 

Tal o poder da mente

Sobre a vida corrente!

 

Então o que intriga

É que um erro me vergue:

O paradoxo me obriga

Como veste que se envergue,

Que à minha pele se liga

E nada mais em mim se ergue.

 

 

1029 - Deliram

 

Crentes ou ateus,

Os homens crêem que não deliram

Quando às maravilhas de Deus

- Ou as comem ou as admiram!

 

 

1030 - Público

 

Do público não sejas, pois ele

É a grande besta que se não zanga,

De tão feliz na própria pele

- Debaixo da canga!

 

 

1031 - Impropério

 

O maior mistério

É o nascimento.

Por causa deste impropério:

- Uns anos de pois é o passamento!

 

Que hipótese de sentido

Faz ter vivido?!

 

- A não ser que ainda um indivíduo sobreviva

Duma qualquer forma esquiva…

 

E vá lá saber alguém

Quem tem razão, quem!

 

 

1032 - Imorredoira

 

No fundo mais profundo

Olho o abismo que me oira:

- A beleza do mundo!

…E ela é que é imorredoira.

 

 

1033 - Enlouquecem

 

Como tão rápido esquecem

Os homens a verdade dura:

- Os ditadores não enlouquecem,

Mas também não se curam da loucura.

 

 

1034 - Passa

 

Sobre nós paira a sombria ameaça,

Angustiosa de dúvidas, porém:

Tudo passa, tudo passa

E nós passaremos também…

 

 

1035 - Vinga

 

Seja

Pelo que vinga:

- Há quem veja

E há quem distinga!

 

 

1036 - Anexim

 

Se o consenso ata o cadilho,

Tal pai, tal filho.

 

Se a discórdia, ao invés, for,

Pai avarento, filho gastador.

 

- A verdade do anexim

É do que atrás tem assim.

 

 

1037 - Música

 

A música da vida é que importa captar

Reboando em toda a parte.

A maioria as dissonâncias só aprendeu a escutar:

Jamais deles a vida vai soar a uma obra de arte.

 

 

1038 - Vides

 

Mantém de pé

De tuas crenças as vides,

Duvides o que duvides:

A dúvida é o avesso da fé.

 

Apenas o fanático

Não duvida:

Julga ter e não tem senso prático,

Portanto mata a vida.

 

 

1039 - Trémula

 

Para o homem de Deus

E para o homem de ciência

Não há desordem nem abismo seus,

À luz trémula da evidência.

 

A dúvida tanto ignoram,

Etiquetas a colar em tudo!

Dormem bem enquanto demoram

Porque têm um fim. E basta-lhes, sobretudo.

 

O que ao desespero nos ata

É sempre uma fome:

- Só mata

O que não tem nome.

 

 

1040 - Uniforme

 

General sem uniforme

É tal domador de focas

A atraí-las, inconforme,

Das tocas.

 

Como um sargento à civil

De ginástica um mentor,

A barriga a ganhar vil,

Parece ao observador.

 

- Cenário e perspectiva

São tudo na vida

Desta amante esquiva:

A pátria mentida.

 

 

1041 - Cavalo

 

Abatemos um cavalo

Em sofrimento.

Um homem, porém, que tormento

Permitiria acabá-lo?

 

Argumento e contra-argumento

Discutimos fúteis,

Prenhes de antagónicas razões,

Enquanto em guerras inúteis

Nos massacramos aos milhões.

 

E ninguém

Analisa nem vê

Nem mal nem bem

Porquê.

 

Entre o comum cidadão

Quem há que se importe

De sangue com a inundação

De tanta morte?

 

 

1042 - Estimula

 

A certeza de que existe

A solução

Estimula quem insiste

Em resolver a questão.

 

Enquanto duvidamos

- Entramos, não entramos? -

Perdemos o jeito à mão

E paramos,

Perdidos na confusão.

 

É a diferença da fé

E da prova

Que me mantém de pé

E renova.

 

 

1043 - Destelhar

 

Comer o trigo

Antes de o semear

É meu abrigo

Destelhar.

 

Não morrerei de fome

No Inverno,

Mas a esperança então se me consome

De devir eterno.

 

Sem a investigação fundamental

Da ciência e da razão

Retorno gradualmente ao animal,

- Ando a rastejar no chão.

 

 

1044 - Loucos

 

No século de Estaline

E de Hitler vemos que os loucos,

Por mais que o crivo se afine,

Chegam ao poder, aos poucos.

 

E vivemos descansados

Com engenhos nucleares

Às dezenas de milhares

Disfarçados

Aí por todos os lados!

 

Jogamos as nossas vidas

No pressuposto

De que nenhum chefe no posto

Tomará nunca medidas

Imprudentes:

Apostamos na sanidade,

No sobriedade

Dos dementes!

 

Ainda mais e pior:

Isto é no tempo de agora

E para os tempos vindoiros!

Somos crédulos, sem favor:

O milagre não demora,

Que importam os maus agoiros?…

 

Entre poentes e arrebóis,

O relógio marca a hora…

- E depois? E depois?

 

 

1045 - Bel-prazer

 

Os desejos não podem ser

Suscitados ou reprimidos

A nosso bel-prazer.

 

Vêm dos fundos desmedidos,

Para além das intenções,

Por bons ou por maus sejam embora tidos.

 

Em nós se formam e tanto monta

Que lhes sintamos ou não as lesões:

Germinam sempre sem nos darmos conta.

 

Apenas seremos os responsáveis

Por os tronarmos ou não viáveis.

 

 

1046 - Presença

 

Onde quer que estejamos,

De nossa presença a maior virtude

É a dimensão que emprestamos

À nossa atitude.

 

 

1047 - Negam

 

Negam aos pobres o direito

À mentira,

Sempre houve quem exigira

Toda a virtude em seu peito,

 

Para os vacinar dos vícios

Impõem-lhes todos os sacrifícios…

 

- E aos ricos,

Se todos somos iguais,

Nem uns salpicos

De obrigações tais?!

 

 

1048 - Enganos

 

Sempre escravos e senhores,

Indigentes e tiranos,

Desgraçados e gozadores,

Vítimas e ganhadores

De todos os enganos…

 

Dentro de nós mora a chaga,

Em nós é que ela supura:

Nada melhora a praga

que o homem não depura.

 

Ora,

Eternamente igual,

O homem não melhora:

Não pode

Ou nem quer crer em tal…

 

- Quem nos acode? Quem nos acode?

 

 

1049 - Fantasmas

 

Batem-se por ou contra ideias, teorias,

Ministros, governos…

Morrem por fantasmas e fantasias,

Em louco frenesi,

Só para se não baterem, eternos,

Contra si.

 

O amor próprio é que importa salvar,

A nossa rica pessoa:

Tudo o mais pode tergiversar,

Desde que eu me mantenha certo,

A referência a mim seja boa

E que nada me ponha a descoberto.

 

Perenemente pronto a bombardear

Todos os cerros,

Desde que não tenha de confessar

E atacar meus erros!

 

 

1050 - Desespero

 

Nunca o desespero se mantém.

Ainda quando menos pareça,

O que o sustém

É de ultrapassá-lo a pressa.

 

O pessimista raivoso

Não tem paciência que meça:

É um optimista fogoso

Que desiste depressa!

 

 

1051 - Cegos

 

Cegos que ignoram a cegueira

Podem ser felizes,

Incônscios de haver outra maneira.

 

Desgraçado é o que tem as cicatrizes

De saber que há luz do dia

E não lhe pode ver mais as matrizes.

 

Cego sou eu, que o que me alumia

Não o poderei ver senão

Pela fosca lente da dor que me angustia.

 

Cego e desgraçado porque vejo o chão

E o mais é fantasia.

- Ou não?…

 

 

1052 - Basta

 

Basta que Deus exista

Para que todo o mal

Tenha de não existir:

Não poderá ser real!

O que tenho ali à vista

É que anda-me a iludir.

 

O mal

Não está lá:

Meu olhar é que andará

A ler mal o sinal

Que perante mim está.

 

Como ler, porém,

O mal como bem?

 

Ah! Olhos meus, olhos meus,

Quando é que sereis olhos de Deus?

 

 

1053 - Suportável

 

Por mais suportável e banal

Que se torne, com qualquer arte,

Sempre a dor individual

Dói do indivíduo, afinal, em toda a parte.

 

 

1054 - Homens

 

O progresso por homens é conquistado,

As doutrinas, por homens elaboradas e seguidas,

Qualquer regime, por homens efectuado,

As normas, por homens obedecidas…

 

Se o homem não melhora

Tudo cai no mesmo vício:

O erro não mora

Nos modelos e doutrinas

Senão porque é um resquício

Dos homens e das sinas.

 

Se o homem não melhora

Que poderá melhorar?

- Aqui e agora,

Jamais para qualquer melhora

Haverá lugar.

 

 

1055 - Superstição

 

Seja sob que forma for

A religião é eterna:

Quem lhe denega o melhor teor

Tem-lhe a superstição à perna.

 

Adora-se a ele mesmo,

A outro homem qualquer,

A um partido ou seita a esmo,

Só por Deus não querer.

 

O pior

É que quem o quiser

Não tem destino melhor:

Adora o ídolo que tiver

Para si melhor pendor.

 

E jamais haverá forma

De fugir a tal norma.

 

 

1056 - Representante

 

De Deus na terra o representante

Que exemplo nos põe diante?

 

Disputa com rancor

Os postos hierárquicos do amor.

 

Por fórmulas e ritos dessorados

Troca a doutrina dos textos inspirados.

 

Faz a corte ao poder

E aos poderosos que o mundo tiver.

 

Quer, como todos nós,

Algo, se tem pouco,

Muito, logo após

E, se tem muito, louco,

Quer mais,

Sempre mais,

Cada vez mais,

- Sem limite algum se lhe encontrar jamais.

 

Que é que então de Deus representante o torna,

Se tem de ganhar o dia à jorna

E, quanto ao resto,

Vale tanto como tu ou como eu que nada presto?

 

Deus lá tem dEle as razões

Para não ter passado nunca procuração

A estes figurões

Que a si apenas, ao fim, representarão!

 

 

1057 - Halterofilista

 

O monstro halterofilista,

De músculos revestido às carapaças,

É um inválido, na pista,

Duma armadura de aço dentro das carcaças.

 

 

1058 - Engula

 

Cedo ou tarde havemos de morrer.

Que importa que a morte,

A que não escapa homem nem mulher,

Engula as vítimas à sorte

Num desastre,

Ou uma a uma, nas garras do destino?

 

O desgosto da vida não é dum desatino,

É da falta de bom senso que nela se encastre.

 

É que aqueles que obedecem

Por inteiro ao instinto animal,

Como os bichos tudo o mais esquecem,

Sentem um prazer

Real

No mero facto de viver.

 

Muito sofremos nós

Por não darmos conta bastante

Desta cauda hesitante

De animal que arrastamos após!

 

 

1059 - Inconstante

 

Como o tempo voa

Com as asas do prazer

E a beleza a acelerá-lo!

Como uma dor que nos doa

O retarda, o faz moer

Como não tendo mais abalo!

 

Como o tempo é inconstante!

E eu aqui, para trás, para diante,

Para trás, para diante…

 

 

1060 - Crítica

 

A crítica fundamentada a uma crença

Predominante,

É um serviço prestado ao apoiante

Para que vença

E convença.

 

Se ele for incapaz de a defender,

Um aviso

Para abandoná-la e manter o siso

De tal vem a receber.

 

Auto-examinar e auto-corrigir

É a propriedade

Mais gratificante da ciência.

 

Tem-na vindo a distinguir

Da credulidade,

Pendor mortal de nossa auto-suficiência.

 

Que vence ao fim:

A madeira entalhada

Ou o monte de serrim

Que nos atulha a entrada?

 

 

1061 - Olho

 

Em terra de cegos

Quem tem um olho é rei,

Menos nos pegos

Da nossa grei.

 

Aqui,

Quem tem um olho

Não é rei, é um zarolho,

Dele todo o cego ri,

 

Dele todos fazem pouco,

É um idealista,

É um louco,

 

Até que não mais resista,

Humilhado no chão.

 

Então,

Qualquer um lhe estende a mão

E proclama que foi,

Em tempos, um herói!

 

Porém,

Que não tenha a veleidade

De abrir o olho que tem

De novo sobre a cidade:

Seria um crime de lesa-majestade!

 

Ficaria de vez agora refém

Da própria claridade,

Condenado à solidão.

 

Eternamente aí o retém

A incontrita bestialidade

Dos cegos que o cerco lhe farão

- E que toda inteira são

Esta nossa desgraçada pátria-mãe.

 

 

1062 - Doutrinas

 

As doutrinas

Que não fazem previsões

Testáveis e finas

São menos convincentes, pelos senões,

Que as mais concretas

Que fazem previsões correctas.

 

Das comunidades no processo

Em que flutuam da opinião as inseguras balsas,

Obtêm, porém, maior sucesso,

Do que as que fizerem previsões falsas.

…E eis como religiões e seitas

Às multidões ficaram afeitas!

 

 

1063 - Gravitação

 

Quando a teoria da gravitação universal

Explica o movimento dos planetas

Ninguém precisa mais duns anjos patetas

A empurrarem o carro astral,

Os astros a zurzir

Como cavalos, no rumo a seguir.

 

Quando a origem do sistema solar

É mostrada por físicas leis,

Como então Deus embarcar

Em tais batéis?

 

Este deus não é

Nem nunca foi preciso:

Tal deus, dou-me fé,

É apenas a nossa falta de juízo!

 

Mas outro haverá

Tal

que faça sentido aqui e acolá

De minha ferida sem ser mero sinal?

 

No fundo, Deus não são

Indefectivelmente os resumos

De minha interrogação?

 

Assim,

Onde encontrar outros rumos?

Fora de mim?

 

Não, não há maneira

De escapar à minha fronteira!

 

Então, no fim,

Deus é a distância

Que vai de mim a Mim:

 

- É o balbúcio de minha eterna infância.

 

 

1064 - Infinitamente

 

Um Universo infinitamente antigo,

Um infinitamente antigo Deus,

Não são um do outro o inimigo,

Antes se dão comum abrigo

Debaixo de comuns céus.

 

Ideias diferentes

Não são de modo algum:

Ambas as possibilidades presentes

São o todo do Um.

 

Deste Cosmos visível rosto à toa,

Intimidade insondável que nele se queda,

São a cara e a coroa

Da mesma moeda.

 

 

1065 - Imune

 

Religião como corpo de crenças

À crítica imune e perene,

Para sempre fixada nas sentenças

Dum fundador qualquer,

É uma receita solene

Para a desintegração

Que a prazo lhe advier.

 

No limite, a ciência

Procura a mesma verdade

E não há no mundo paciência

Para aquela necedade.

 

O visível

Cientificável

É o rosto transitável

Do invisível.

 

A religião que o não compreendeu

Já morreu.

 

Por muito que sobreviva

Activa,

Matando quem lhe tropece no véu.

Ainda bem que a morte dela

Nos livra, definitiva,

De mais mortos da fatídica sequela.

 

 

1066 - Falibilismo

 

É saudável que a religião

Alimente o cepticismo

Sobre dela as bases de sustentação,

A evidência do falibilismo.

 

Ela consola e apoia,

Baluarte da necessidade,

De emoções, de afectos é uma jóia,

De vidas uma heroicidade,

 

Desempenha papéis sociais

Como outros nenhuns jamais…

 

Não se conclui, porém,

Que a religião fuja à crítica,

Feita uma entidade mítica

Obscura e oportunista,

Para quem siga a pista

De querer devir por si alguém.

 

A comprovação

Que o céptico requer

Só quem não for são

Lha irá esconder.

 

Mas, como ela, no fundo, nunca existe,

A todo e qualquer assiste,

Da raiz do peito,

O direito

De quem resiste.

 

 

1067 - Doutrinais

 

Os sistemas doutrinais

Em que os dogmas são louvados,

Os infiéis desprezados,

Vislumbram-se logo ameaçados

Pelas buscas dos demais.

 

“É perigoso” - nos dizem -

“Procurar demasiado

Profundamente. Cuidado!”

E todo o mal nos predizem.

 

Muitos a religião

Herdaram tal cor dos olhos:

Penduricalho que não

Traz jamais quaisquer escolhos.

Só que em mim quando o enrolo

Além fica de controlo.

 

Mas os que professam fundo,

Que escolheram,

Do desafio do mundo

Só desconforto colheram

Como num sinal de aviso:

Aqui, por examinar

Há bagagem que o bom siso

De que toda a gente goza

Deverá já rotular

De perigosa.

 

 

1068 - Inquisitivos

 

Talvez nos queiram propor

Que somos por demais inquisitivos

Naquilo que o Criador

Quis como dEle exclusivos

Nos arquivos

Da Sabedoria-mor.

 

Se nos não quis fazer maior descoberta

Ou revelação

- Alerta

Para nossa tamanha presunção!

 

Só que eles é que são os resumidos

Ao pretender pôr fronteiras,

De Deus feitos validos

A quem Deus não deu carteiras

Nem fez procuradores.

Como se eles foram da marca

Senhores

Que apenas Deus abarca,

Sem penhores

A ninguém entregar.

Como se os homens puderam ultrapassar

Qualquer limite

Que Deus acaso impôs a seu desquite!

 

Quem é que tão deus se julga

Que, estúpido, Deus promulga?

 

 

1069 - Pobre

 

O pobre, coitado,

É amigo, aliado e freguês apetecido,

Constantemente explorado

- E sempre agradecido!

 

 

1070 - Segredo

 

Na vida, quem muito fala,

Pouco ao fim vai conseguir.

O segredo é de quem, atento, cala:

O mais difícil é saber ouvir.

 

 

1071 - Império

 

Ao Império

Que é que importa a poesia?

Desde que lhe cante a sério

Dele a vil mercadoria,

Calhará bem:

Os lucros também aumenta

Como a todos convém.

 

Desde que seja uma nova pimenta,

Ao Império

Que é que importa a poesia?

Vale mais do que minério:

Adormenta,

Anestesia

Qualquer escrúpulo sério!

 

 

1072 - Cirurgião

 

A criança

Não ousa ao cirurgião olhar

Que lhe amputa a perna:

Ignora que o corte lhe alcança

Salvar

Primeiro

A vida superna

- A do corpo inteiro.

 

Um pequeno prejuízo

A prevenir um maior

Tem marca de mais juízo.

- E tem da vida o penhor.

 

 

1073 - Militarismo

 

O militarismo leva ao armamento

Que devera aumentar o sentimento

De segurança.

 

Porém, o que alcança

É germinar o receio

E o ódio, de permeio

Com a geral desconfiança.

 

Espalha, ao fim, pela terra

A guerra.

 

Estimula, nação a nação,

Conforme lhe convier,

Tudo o que de mau houver

E abafa quanto for bom.

 

O militarismo

É mais do que um aleijão:

É da Humanidade um abismo

Onde todos se enterrarão.

 

 

1074 - Génio

 

O génio vai descobrir

A bomba que matará

Mil crianças a seguir.

Do filho o nome lhe dá:

Das palmas entre o barulho

A criança sorrirá

De orgulho.

 

Por enviesados estranhos modos,

Esta criança

Que mais longe não alcança

- Somo-lo, afinal, nós todos!

 

 

1075 - Bússola

 

Quem abaixo da superfície mergulha

Por própria conta o faz:

Nas artes da bússola a agulha

O fruidor é quem a traz.

 

Quem o símbolo interpreta

À própria conta o decifra:

No coração lhe mora, secreta,

A correcta cifra.

 

A arte espelha menos a vida

Do que o mediador

Que, ao fruí-la, com ela lida:

- É o espelho do espectador.

 

 

1076 - Alcance

 

Literatura moral, imoral…

- Um poema ou um romance

Enquanto tal

Ou foi bem escrito ou foi-o mal,

Tudo o mais não tem aqui nenhum alcance.

 

Bem ou mal,

Como moral da literatura,

É a beleza que ela apura,

O mais é a ganga de que se vale.

 

Moral ou imoral

É o rasto da vida.

As artes são apenas o sinal

Que o denuncia, tal e qual,

De seguida.

 

 

E a beleza com que o sinalizam

É com que elas se eternizam.

 

 

1077 - Cancro

 

O cancro mais imundo

Que nos corrói desde o princípio de todas as idades:

Não são os princípios que movem o mundo,

São as personalidades.

 

 

1078 - Tipos

 

Dois tipos apenas são deveras fascinantes:

Os que sabem tudo e os que não sabem nada.

Primeiro porque, duma assentada,

Não existem de tão gritantes.

 

Depois porque, se existiram,

Os que tudo saberiam,

No desafio que ante nós assumiram,

Às estrelas nos trepariam.

 

Os mais, do nada

Na inocência,

Tão longe nos reconduziriam ao começo da estrada

Que ante eles não éramos mais que uma indecência.

 

 

1079 - Cota

 

O ascetismo mata os sentidos,

A libertinagem os embota.

Aos momentos vividos

Importa tomar-lhes a cota

Para o que merecer acento

Colher o momento

Do cuidado e da atenção preferida.

 

Até porque toda a vida

É apenas um momento:

Distraída,

Esvai-se como se esvai um pensamento.

 

 

1080 - Desilusão

 

Na vida os caminhos vão

Dar todos ao mesmo ponto:

- Desilusão.

…Mas de tudo isto como nos fascina o conto!

 

 

1081 - Cáfila

 

A humanidade que em ti tens,

Trama de quantos fios se te cruzaram na estrada,

É uma cáfila de ninguéns

O tempo inteiro a falar de nada.

 

E todos gostamos imenso

De falar de coisa nenhuma:

É o único tema de que penso

Que sei coisa alguma.

 

 

1082 - Política

 

A reunião política é o único lugar

Onde ninguém de política vai falar.

Quem gostar de falar dela

O dia inteiro irá palrar

E nunca irá tolerar

Daquilo ouvir qualquer sequela.

 

Coitado do Parlamento,

A ouvir tanta proclamação!

Como o aguento, como o aguento?

- Nunca prestando atenção!

 

Aliás, se atenção alguém presta,

Pode ser mui perigoso:

É que pode convencer-se!

Nenhum argumento resta:

É um indivíduo tenebroso,

Destituído de razão.

- Ninguém com ele converse,

Que anda a rastejar no chão!

 

 

1083 - Almocreve

 

Todos nos imaginámos

Cavalos de raça

E agora aqui mourejamos

Na praça

Como burros de almocreve.

 

E o vendedor ambulante

Nem da glória mais leve

Nos encanta.

 

E, depois, quem a glória alcançou

Ainda mais finge:

- Jamais nela atinge

O que sonhou.

 

 

1084 - Remos

 

Antes peguei nos remos,

Pego neles agora, pegarei depois…

- Com a guerra talvez um dia acabemos,

Precisaremos, porém, sempre de her+ois.

 

 

1085 - Mendicidade

 

Estranha mendicidade,

A da ficção,

Onde cada leitor paga a caução

Ao autor que lhe agrade,

Para que este lhe minta

Sobre eventos que nunca se viram

De indivíduos que nunca existiram…

…Só para que, afinal, ele os sinta!

 

Dá-lhe o leitor uma esmola

Para que, uma vez na vida,

A mentira que tudo imola

Nele incarne verdadeira de seguida.

 

 

1086 - Confidentes

 

Serei feliz, porventura,

Sem a língua dar nos dentes:

A ventura

Não procura confidentes.

 

 

1087 - Dragões

 

Primeiro foi o medo de fantasmas e dragões,

Depois, o herói que imita que os matou:

Então dividiram-se quinhões

Pelo que fez de conta que libertou.

 

A seguir, o herdeiro, que ainda menos fez,

Come já por dois ou três.

 

Do Reino, pouco depois,

Já não lhe chegam as vacas nem os bois.

 

Por fim, clamamos igualdade

A ver se alguém os persuade…

 

- Quem não disputa

Quem não discuta?!

 

Só quem é louco

Acredita que sem luta

Logra sequer de nada um pouco!

 

 

1088 - Mortos

 

Os mortos não têm existência

Senão

A que os vivos lhes dão.

 

É a única evidência.

 

O mais

É aquilo em que apostais.

 

Para o sim ou para o não

Não há mais chão

Do lado de cá dos sinais.

 

 

1089 - Censor

 

É preciso pensar bem

Antes de pensar

- Assim o censor nos tem

No lugar.

 

É que depois

É demasiado tarde:

Já os burros e os bois

Não terão quem os albarde…

 

Ficarão no desemprego

Censores tantos

Que andam por aí armando em santos

E têm é de ser postos no prego!

 

 

1090 - Duvido

 

Não duvido

Porque, para o público alvar,

Sendo por toda a parte repetido,

Repetir é provar.

 

Não duvido

Porque desejo o resultado

E cremos no que é desejado,

Mesmo que não tenha sentido.

 

Duvidar

É dentre os homens raridade:

Onde o raro germe germinar

Sem caldo de cultura não mais é que nulidade.

 

 

1091 - Riqueza

 

No estado policial

A riqueza é sagrada.

 

E a democracia repoisa

Neste sinal:

A riqueza é a única coisa

Adorada!

 

Qual a diferença, qual

Que entre os caminhos nos vale?

 

O bezerro de oiro,

Em qualquer rumo,

É sempre, em resumo,

De mau agoiro.

 

 

1092 - Esquisso

 

Quem produz o que a vida requer

Terá permanente falta disso,

Quem fartura de tal tiver

Dele não produz nem um esquisso.

 

Esta lei da iniquidade

Sempre em busca de excepção

É a nossa inalterável verdade

E a nossa maldição.

 

 

1093 - Bruxaria

 

Se a bruxaria

É da realidade um uso enviesado,

Então, feiticeiro, das vezes a maioria,

É quem lança o fogo, não quem é queimado.

 

Os autos de fé

Deixaram ao lado do cadafalso

Os bruxos, de pé,

Sem ninguém deles no encalço.

 

 

1094 - Cataclismo

 

A morte é um cataclismo

Que do mundo aviva as cores com tal vivacidade

Que todas as coisas restitui do abismo

À mocidade.

 

 

1095 - Abrigos

 

Aceitar tudo, sem buscar abrigos…

- Mas o menor esforço leva a consciência

A tropeçar na evidência

Dos obstáculos eternamente antigos!

 

 

1096 - Idiotas

 

Descobrir haver perdido a vida

A lidar com idiotas

Apenas elucida,

Menos idiota, porém, a ninguém torna.

 

Já é bom medir as cotas

Do copo da vida que se entorna,

A conta-gotas,

Em cada roubada jorna.

 

Tão idiota, contudo, é o que se não vê

Como o que o lê,

Já que se enleia,

Por magia,

Das notícias na teia

Que afloram à mentira de cada dia.

 

 

1097 - Pior

 

Nós não somos animais, que horror!

Somos homens! E corteses…

- O que é pior,

Às vezes.

 

 

1098 - Aloira

 

O homem a julgar que cultiva

A seara que aloira

E a ser apenas de Deus a esquiva

Mão do moço de lavoira!

 

 

1099 - Preferência

 

Na guerra como na vida,

A preferência

É muitas vezes devida,

Não das qualidades à evidência,

Mas, por um critério certo,

Aos que da origem familiar estão mais perto.

 

Preferência

É sinónimo regular

De tráfico de influência,

Com uma ou outra excepção, a condimentar.

 

 

1100 - Carburante

 

Éramos o carburante,

Somos animais de tiro,

De nós, pela história adiante,

Se servem em todo o giro.

 

Zombaram de nossos ideais

De loucos tal se foram sinais.

 

Levaram-nos a morrer,

Primeiro por sua glória,

Depois para bem viver,

Enfim, para sobreviver

A quem lhes trouxe a vitória.

 

Com o sangue dos soldados,

Das vítimas com os ossos,

A sede de triunfo jogam aos dados,

De vontade de poder enchem os fossos.

 

Eis como, adoecendo a memória,

Conquistaram um lugar na história.

 

E nós, agora como dantes,

Continuamos ignorados e ignorantes.

 

 

1101 - Injustiça

 

A injustiça

É uma nuvem de poeira:

Suja e enguiça

Mesmo quem nunca fez asneira.

 

 

1102 - Farto

 

O farto não sabe

O que é fome.

A ele, porém, cabe

Julgar aqueles que ela consome.

 

As velhas esqueceram

O que é o amor,

Não compreendem os que veneram

Dele o fulgor.

 

Os que a guerra viveram

Inteira de campo numa vivenda

Mal

Consideram

Que se pode bombardear a moral

Depois de a ter posto à venda.

 

Aliás, da guerra os dentes

Tornam-nos a todos dóceis e inconscientes.

 

 

1103 - Amolar

 

A palavra é uma pedra de amolar:

Ao zumbir,

Pode confundir,

Ao afiar

Pode seduzir

E, traindo, aniquilar.

 

Tudo vem do que a lâmina da faca

Ataca:

Dum rapace melro a melodia

Ou meu pão de cada dia…

 

 

1104 - Espirituais

 

São os de espírito destituídos

Que mais

Apelam à luta, destemidos,

Com armas espirituais.

 

De espírito os homens verdadeiros

Medem os sinais

De vitória ou derrota inteiros

Pelos efeitos carnais.

 

Tudo o mais

São atoleiros

Mortais.

 

O espírito ou incarna

Ou tomba no fosso,

Mera sarna

De que me coço.

 

 

1105 - Uniforme

 

Questão não é um uniforme,

É o traslado

Do que ao humano jamais é conforme:

É o juízo uniformizado.

 

 

1106 - Apontas

 

No fim de contas

Só vivemos uma vez.

A vida, porém, não é o que apontas,

É o que dela cada qual fez.

 

 

1107 - Saco

 

O homem é um mero saco

Cheio de vento,

Apenas o aplaco

Com sopros de pensamento.

 

 

1108 - Sensatos

 

Os homens sensatos

Têm todos a mesma religião.

Quais dela os pactos

Nunca os sensatos o dirão.

 

 

1109 - Engaste

 

Num homem o contraste

Entre a profissão de fé

E os actos em que a engaste

É

O espectáculo mais divertido

Que a vida nos pode ter oferecido.

 

E, dado que é uma comédia,

Por quê mudá-lo em tragédia?

 

Basta sabê-lo

E apor-lhe o correspondente selo.

 

 

1110 - Paralítico

 

O paralítico amarrado

A uma cadeira

Crê que é um disparate consumado

Que alguém possa caminhar

E correr de canseira.

 

Generalizar

Pode ser uma asneira:

Acaba sempre por nos atar

À prancha de madeira

Traiçoeira

Que nos leva a afundar

No mar

A vida inteira.

 

 

1111 - Sério

 

Tomar tudo tão a sério,

Não!

Procurar responsabilidades,

Como se, por mistério,

Não houvera em todo o Império

Um derradeiro coração

Capaz de ancestrais heroicidades,

Não!

 

É a ridícula mania

De sermos indispensáveis

E tudo ter importância.

Quando, se um sopro nos desvia,

Todas as rotas continuam viáveis.

 

- E desde logo nos perdemos na distância.

 

 

1112 - Atrabiliária

 

A adolescência é uma casa

Em dia de mudança: atrabiliária,

Tudo arrasa,

Mas é uma desordem temporária.

 

 

1113 - Múltiplos

 

Pejados de tarefas, em suma,

Sofremos de múltiplos modos.

Como um pouco mais de coisa nenhuma

Nos faria jeito a todos!

 

 

1114 - Cérebro

 

O cérebro humano

É o que há de mais fascinante num homem.

O problema é que pode haver engano:

É o cérebro quem nos diz que assim o tomem.

 

 

1115 - Menino

 

Menino bendito de Deus

O que não morre de fome,

Tem o sol, a lua, os céus,

O rio, a chuva, estrelas sem nome,

Como brinquedos predilectos

Que não quebram nem se roubam,

Nem depois dos mil e um projectos

Que o arroubam!

 

 

1116 - Breve

 

Quem a teve,

À vida,

foi uma alegria breve,

Breve elidida.

 

 

1117 - Lagartixa

 

Meu absoluto

É que sou o rabo cortado da lagartixa

A rabiar o que luto,

Decepado da cabeça ignota da bicha,

Esgotando-me afinal em meu inconclusivo remexer.

 

Depois ando a justificar-me

Com aquilo em que quenquer

Vai bulindo ao alarme

Do carme

Que em mim mexer…

 

Definitivamente para trás, grave,

Anda esquecida a Chave.

 

 

1118 - Inverosimilhança

 

A inverosimilhança da morte:

Um corpo apodrece no chão

E a luz de dentro tão forte,

Tão viva, tão igual no clarão!

 

 

1119 - Perpassa

 

Deus existe:

Energia anterior, perpassa e corre além.

Um rasto da passagem persiste

Do Universo no eterno vaivém.

 

Como as águas da nascente,

Irreais antes da fonte,

Corrente visível depois,

Ei-Lo perenemente presente

Antes e depois do horizonte

Por dentro de todos os sóis.

 

 

1120 - Instruída

 

É jovem,

A juventude pode ser instruída.

À velhice movem-

-Na uma ou duas ideias.

 

Das ilusões gastas as teias,

Eis o que resta duma vida.

 

 

1121 - Escandalizar

 

Para escandalizar nasci,

Já que de estar vivo é o modo.

Morte é estar para aqui

No estado normal de todo.

 

Homem normal é vulgar,

Toda a vida um nado-morto.

Nascer, nascer é variar,

Não ir direito mas torto.

 

Sigo

Á divisa:

Tudo o que é vivo

Escandaliza.

 

 

1122 - Tesoiro

 

Qual

O tesoiro,

Afinal?

É que o oiro

Acaba tornando o homem irracional.

Que é que, sem desdoiro,

Vale o que o homem vale?

 

Este é o problema

Que eterno busca e falha o tema.

 

 

1123 - Abulia

 

Não te deixarás atacar

Sem te defender

De punho no ar

Ou escondido de quenquer…

 

Muito cómodo seria

Para o patife

Se de bem a gente, em abulia,

Se deixara aferrolhar no esquife.

Ao mundo inteiro violaria,

Que era o mais forte,

E ninguém nada lhe faria…

- Era o império da morte!

 

 

1124 - Pau

 

Põe-te a pau:

quem morde a mão

Que lhe dá o pão

O que pede é varapau!

 

 

1125 - Glória

 

Existe a glória

Das fanfarras,

Das divisas

E dos loiros,

A das homenagens em memória,

A dos tesoiros

Que divisas

E agarras.

 

Existe outra, porém,

Que brota na obscuridade

E abre caminho como a toupeira:

À luz do dia apenas vem

Fora de idade,

Após escavar a vida inteira

No subsolo,

Sem qualquer gratificação nem consolo.

 

Esta, esta ignorada glória

Costuma ser a que fica na memória.

 

- E faz História!

 

 

1126 - Entrega

 

Não nos entrega a morte aos vermes apenas

Que a memória roem

E decompõem.

 

Aos homens também.

 

E não são mais pequenas

As destruições que deles nos vêm.

 

Só que os mortos não fazem cenas…

Ainda bem!

 

 

1127 - Rir

 

Ninguém

Irá conseguir

Ficar zangado com quem

O faz rir!

 

 

1128 - Herói

 

Quem

É um herói?

- Alguém

Que foi.

 

Podemo-los então admirar

Sem o justificar.

 

E quantas vezes não

Há qualquer justificação!

 

 

1129 - Agigantam

 

Entre as coisas que me espantam

Desta vem-nos contusão:

Os problemas se agigantam

Quando os homens, não!

 

 

1130 - Desapontamento

 

Árvore da vida,

Que calor,

Que desapontamento,

Na surpresa escondida!

- Conheces o pensador,

Jamais o pensamento:

És a esperança eternamente iludida.

 

 

1131 - Esquivo

 

O factor mais decisivo

Para alguém,

Para os mais é o gesto esquivo

Desprezado com desdém,

 

Um ponto de referência

Meramente ocasional,

De premência

Sem qualquer vero sinal.

 

Cada qual um mundo cria,

Nele desmedido viu

Cheio um vulto de magia:

- O seu!

 

Logo o vulto desmedido

No mundo alheio

É um vago ponto esquecido,

Algures perdido

Lá no meio.

 

 

1132 - Riqueza

 

Aquele cuja riqueza

Ninguém conhece

Não fica feliz com tal empresa,

Emurchece.

 

…Tanto devir feliz

Deveras tem outra matriz!