DÉCIMA REDONDILHA
VAI O SENTIDO
TRAÇANDO
Escolha um número aleatório entre
1000 e 1132 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1000 - Vai o sentido traçando
Vai o sentido traçando
De infindos contratempos de procura
O verso de dor e cura,
No passo incerto do porquê, do quando.
Quando a luz fica brilhando,
Apura
A palavra com lisura
Onde o alvor registe que for coando.
Aqui
Fica a dureza do corte
De tudo quanto descobri
E o recorte
Com que a pulso recobri
A ignara escuridão que nos trazia a morte.
1001 - Base |
|
Tem base a democracia |
Na convicção |
De que de homens um milhão |
Terá mais sabedoria |
Do que o destino consente |
A um homem somente. |
|
A autocracia, ao contrário, |
Crê que um homem é um vidente |
E um milhão, discricionário |
Somatório incompetente. |
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Não há luz na multidão |
E um somente é garantia |
De que é sempre uma ilusão |
Todo o alvor que ela luzia. |
|
O controlo eficiente |
Que quer a democracia |
o que apenas nos garante |
É que acabo a ir em frente, |
Mais atrás, mais adiante, |
Quando tal a maioria |
Deveras sonhar um dia. |
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1002 - Coragem |
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A coragem |
É o complemento do medo. |
Sem medo quem são os que agem? |
- Os tolos, só por toledo! |
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1003 - Palavra |
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O mistério dos mistérios é a palavra: |
- Como é que um pensamento tem som? |
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E o que o mistério ainda mais agrava: |
- Como é que muda de termo e de tom, |
Terra a terra, país a país, |
E o fogo que lavra |
É sempre o mesmo de raiz? |
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Um em todos, todos num, |
Espírito que incarna puro, |
É um deus, pelo seguro, |
Ou não faz sentido algum: |
|
- Donde vem a magia |
De afinar tão vasta sinfonia? |
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1004 - Dores |
|
Mundo de trabalhadores, |
Não de poetas: |
Quem entende as dores |
Secretas? |
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Quem tempo irá arranjar |
Para haver lar? |
Quem vai ler Camões |
Ou Eça ou Aquilino, |
Furando além os senões |
Do destino? |
Quem, à proa, |
Pesca a madrugada |
Numa canoa? |
|
É verdade |
Que estoutra caminhada |
Não aguilhoa a Humanidade |
Na corrida tresloucada. |
Porém, à vida de quenquer, |
Isto é que a torna digna de viver. |
|
O mal |
É a poupança disto ser pequena? |
- A vida só vale a pena |
Por aquilo que nada vale! |
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1005 - Levada |
|
Deste ribeiro a levada |
Tem centenas de milhares de anos |
E renova-se a cada chuvada. |
|
Tais da vida são os arcanos: |
Vejo-a, com esperança e mágoa, |
À vida e a tudo o que arquiva, |
Ao ver este tropel de água. |
- É um tropel de realidade viva. |
|
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1006 - Pouco |
|
Que mal faz |
Um pouco de socialismo na mocidade? |
Conhece-se o inimigo, do que é capaz, |
Para quando chegar a maioridade… |
Então é só dar-lhe para trás! |
|
- A verdade |
É que a verdade ali jaz. |
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1007 - Perturba |
|
Perdido por entre a turba |
Descubro o que mais me lesa: |
Não é a dúvida que perturba, |
- É a certeza! |
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1008 - Imorais |
|
São sempre os mais imorais, |
A imitar visos de santos, |
Que vão impor aos demais |
As morais |
Que eles chutam pelos cantos. |
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1009 - Pobre |
|
Em casa de pobre |
Quando não entra a jorna, |
Entra fome que sobre. |
Os bem-pensantes |
Proclamam, confiantes: |
- É tudo sorna! |
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1010-Altura |
|
Somos todos tal e qual, |
É que o defeito é da altura. |
Mal |
Aos píncaros trepamos, |
Tanto a luz fulgura |
Que para baixo encegueiramos. |
|
Então, quando anda, |
O pé calca a formiga |
Que não pôde subir. |
Quem comanda |
Acaba sempre nesta briga |
Dos que não têm porvir. |
|
Nos homens, há formigas e há pardais |
A disputar o mesmo grão de trigo. |
Não há inimigo nem amigo, |
Todos têm de ser por direito iguais. |
Mas quem nos livra do perigo |
Das bicadas ancestrais? |
|
Aos de baixo não há via segura |
Que os proteja da vertigem dos da altura. |
|
|
1011 - Pensamento |
|
Um pensamento qualquer, |
Seja dito ou não, |
É real e tem poder: |
Orienta sempre a mão. |
|
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1012 - Ovnis |
|
Ovnis: crença ou descrença? |
Ausência de prova não é prova de ausência. |
Primeiro, porém, a primeira evidência: |
- Não é prova de presença. |
|
Assim, |
Ficamos então |
Aguardando a prova controlável do sim |
Ou do não. |
|
Até lá, |
Porque o não vi, |
Porque de prova comprovada o não deduzi, |
Ficarei por cá, |
De janela aberta, |
A curiosidade alerta, |
Até que da neblina brote de algo o resquício |
Ou o mero empedrado da estrada. |
|
Dou da dúvida o benefício, |
Mais nada. |
|
|
1013 - Peneira |
|
No fundo, a sabedoria |
É saber do não-saber, |
Compreender |
Onde acabo e principia |
O mundo de meus senões, |
Onde a fronteira |
Me peneira |
De minhas limitações. |
|
|
1014 - Enredados |
|
Ficaremos sempre enredados |
No erro. |
De cada geração os traslados |
São o que transpôs do cerro |
Dos enganos |
Através dos anos. |
O mais que pode esperar |
É diminuir a margem de erro |
Sem jamais a ultrapassar. |
|
É a beleza |
De nosso braço de ferro |
Com a natureza. |
|
|
1015 - Sumidade |
|
Não creias na sumidade |
Porque erra como qualquer. |
Faz a prova da verdade |
A tudo o que dela houver |
De se colher. |
|
Por muito que ela o não queira, |
Se a não sujeitas a tal, |
Logo escorregas à beira |
Dum erro fundamental. |
|
A verdade |
Indiscutível, |
Por pagá-la quem acaba, previsível, |
Será sempre a Humanidade. |
|
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1016 - Incrível |
|
O pedido mais incrível: |
“A verdade, toda a verdade e nada mais que a ver-dade”. |
|
Impossível, |
Fica além de nossa capacidade! |
|
A memória é falível |
E a ciência é mera aproximação. |
|
Mesmo que um pouco menos que dantes, |
Somos tão |
Ignorantes |
Da Imensidão! |
|
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1017 - Par |
|
Saber, |
Saber explicar: |
Dois modos de ser |
Nem sempre a par. |
|
Qual é o segredo? |
Apenas um: |
- Muda os termos do mesmo credo |
Quando falas ao comum. |
|
É que aos termos do cientista |
Não há vulgo que resista. |
|
Mas igualmente também, |
Ao encantamento |
Dum portento |
Ninguém |
Resiste nem um momento |
Para dar um salto além. |
|
|
1018 - Dominam |
|
Crês que são os humanos |
Que dominam a vida, |
Que mandam neste mundo de enganos. |
É uma causa perdida. |
|
É Deus que manda: |
Resta acolher as Escrituras, |
Da salvação em demanda. |
|
Só que, depois, o que apuras |
É que Deus anda, |
- Juras, |
A ordenar que és tu quem comanda! |
|
Dentro ou fora da igreja, |
As posturas são iguais |
Para quem a sério |
Leia os sinais |
Do Mistério. |
|
|
1019 - Pigmeus |
|
A ideia de evolução |
Como substituto de Deus |
É de Deus ter a noção |
Bem miúda de pigmeus. |
|
A evolução é a via |
Que Deus criou e mentém viva |
Para manter eternamente activa |
A criação que queria. |
|
Ou então |
É apenas outro vector da noção |
Do poder da energia |
Que Ele é no que nos envia. |
|
Ou, como Ele continua a criar, |
Como tudo continua a devir ser, |
Sei lá bem qual é seu lugar |
A não ser que lugar não tem qualquer! |
|
|
1020 - Distância |
|
A morte primeira |
É a distância intransponível. |
A morte verdadeira, |
Dela com todas as ânsias, |
É apenas a mais incrível |
Das distâncias. |
|
|
1021 - Investimento |
|
Mais que o que nele arriscar |
Todo o investimento rende. |
Não vende apenas quem vende, |
Ao vender anda a comprar. |
|
No ensinar |
É que se aprende: |
E não apenas a dar |
Quanto, enfim, se compreende |
Mas a ver que é que se entende |
Do saber a partilhar. |
|
Quanto mais se ele divide, |
Mais por nós além progride. |
|
|
1022 - Insatisfeito |
|
Viver insatisfeito |
Comigo |
É o pior inimigo. |
Se o tomo a peito, |
Não encontro mais abrigo |
Senão no leito |
Dum jazigo. |
|
Comigo a reconciliação |
É que ao mundo traz |
A paz |
Do perdão. |
|
Não a de quem jaz, |
Senão a de quem é capaz, |
Ainda e sempre em função. |
|
Meu recorte, |
De seguida, |
Não é de morte, |
É de vida. |
|
|
1023 - Álcool |
|
Álcool de beber a dor |
Não a bebe, é enganador. |
Quem naquilo se distrai, |
Cai, |
Nem dele próprio é senhor. |
Se não amaina a tormenta |
E atormenta o bebedor, |
Quem aquilo tenta |
Que dor tenta sobrepor |
À dor que tanto lamenta? |
|
Álcool de beber a dor |
Não a bebe, é enganador. |
|
|
1024 - Desperdício |
|
A questão fundamental |
é se o desperdício de água |
Será só de Portugal |
Ou é o destino fatal, |
Disfarçado pela mágoa |
Nacional, |
Duma Humanidade inteira |
Que águas vivas desperdiça, |
Tenha o mar e a praia à beira |
Ou não tenha, como a Suíça, |
Que tantas águas enguiça |
que é uma gelada ladeira |
Que mal encontra maneira |
De as águas verter na liça. |
|
O mundo a morrer à sede |
E nós a bater no mar, |
Batucando sem parar, |
E ninguém salta a parede! |
|
Aqui, como nos convém, |
A arranhar nossos complexos, |
Tal qual pelo mundo além |
Onde ninguém liga aos nexos. |
|
Desperdício, desperdício, |
Mas sempre justificado |
Em nome dum benefício |
De alguém que anda tresloucado. |
|
1025 - Tristeza |
|
Um dia triste, um tempo triste… |
- E, logo após, |
Reparamos que a tristeza não existe |
Senão dentro de nós. |
|
|
1026 - Torre |
|
Ao descer da torre de marfim, |
A medicina |
Devém mais abrangente assim: |
Escolhe a sina |
De reconhecer a intuição |
daquele a quem trata, |
Procura-lhe, estimula e dele acata, |
Vital, a íntima visão. |
|
Combinados os dois, |
Médico e doente, |
Ambos activos coerentemente, |
É o que depois |
Desmultiplica e apura |
Milagrosamente |
A cura. |
|
|
1027 - Vivos |
|
Junto com a alegria e a liberdade |
De estarmos vivos |
Vêm o medo, a incerteza, a ansiedade, |
Sempre de pé, |
Recidivos, |
- De estarmos vivos sem saber porquê. |
|
|
1028 - Supersticioso |
|
Contraditória com gozo |
É a verdade singular: |
- Não seja supersticioso, |
Traz azar! |
|
O curioso é que esta asneira |
É verdadeira, |
|
Tal o poder da mente |
Sobre a vida corrente! |
|
Então o que intriga |
É que um erro me vergue: |
O paradoxo me obriga |
Como veste que se envergue, |
Que à minha pele se liga |
E nada mais em mim se ergue. |
|
|
1029 - Deliram |
|
Crentes ou ateus, |
Os homens crêem que não deliram |
Quando às maravilhas de Deus |
- Ou as comem ou as admiram! |
|
|
1030 - Público |
|
Do público não sejas, pois ele |
É a grande besta que se não zanga, |
De tão feliz na própria pele |
- Debaixo da canga! |
|
|
1031 - Impropério |
|
O maior mistério |
É o nascimento. |
Por causa deste impropério: |
- Uns anos de pois é o passamento! |
|
Que hipótese de sentido |
Faz ter vivido?! |
|
- A não ser que ainda um indivíduo sobreviva |
Duma qualquer forma esquiva… |
|
E vá lá saber alguém |
Quem tem razão, quem! |
|
|
1032 - Imorredoira |
|
No fundo mais profundo |
Olho o abismo que me oira: |
- A beleza do mundo! |
…E ela é que é imorredoira. |
|
|
1033 - Enlouquecem |
|
Como tão rápido esquecem |
Os homens a verdade dura: |
- Os ditadores não enlouquecem, |
Mas também não se curam da loucura. |
|
1034 - Passa |
|
Sobre nós paira a sombria ameaça, |
Angustiosa de dúvidas, porém: |
Tudo passa, tudo passa |
E nós passaremos também… |
|
|
1035 - Vinga |
|
Seja |
Pelo que vinga: |
- Há quem veja |
E há quem distinga! |
|
|
1036 - Anexim |
|
Se o consenso ata o cadilho, |
Tal pai, tal filho. |
|
Se a discórdia, ao invés, for, |
Pai avarento, filho gastador. |
|
- A verdade do anexim |
É do que atrás tem assim. |
|
|
1037 - Música |
|
A música da vida é que importa captar |
Reboando em toda a parte. |
A maioria as dissonâncias só aprendeu a escutar: |
Jamais deles a vida vai soar a uma obra de arte. |
|
|
1038 - Vides |
|
Mantém de pé |
De tuas crenças as vides, |
Duvides o que duvides: |
A dúvida é o avesso da fé. |
|
Apenas o fanático |
Não duvida: |
Julga ter e não tem senso prático, |
Portanto mata a vida. |
|
|
1039 - Trémula |
|
Para o homem de Deus |
E para o homem de ciência |
Não há desordem nem abismo seus, |
À luz trémula da evidência. |
|
A dúvida tanto ignoram, |
Etiquetas a colar em tudo! |
Dormem bem enquanto demoram |
Porque têm um fim. E basta-lhes, sobretudo. |
|
O que ao desespero nos ata |
É sempre uma fome: |
- Só mata |
O que não tem nome. |
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1040 - Uniforme |
|
General sem uniforme |
É tal domador de focas |
A atraí-las, inconforme, |
Das tocas. |
|
Como um sargento à civil |
De ginástica um mentor, |
A barriga a ganhar vil, |
Parece ao observador. |
|
- Cenário e perspectiva |
São tudo na vida |
Desta amante esquiva: |
A pátria mentida. |
|
|
1041 - Cavalo |
|
Abatemos um cavalo |
Em sofrimento. |
Um homem, porém, que tormento |
Permitiria acabá-lo? |
|
Argumento e contra-argumento |
Discutimos fúteis, |
Prenhes de antagónicas razões, |
Enquanto em guerras inúteis |
Nos massacramos aos milhões. |
|
E ninguém |
Analisa nem vê |
Nem mal nem bem |
Porquê. |
|
Entre o comum cidadão |
Quem há que se importe |
De sangue com a inundação |
De tanta morte? |
|
1042 - Estimula |
|
A certeza de que existe |
A solução |
Estimula quem insiste |
Em resolver a questão. |
|
Enquanto duvidamos |
- Entramos, não entramos? - |
Perdemos o jeito à mão |
E paramos, |
Perdidos na confusão. |
|
É a diferença da fé |
E da prova |
Que me mantém de pé |
E renova. |
|
|
1043 - Destelhar |
|
Comer o trigo |
Antes de o semear |
É meu abrigo |
Destelhar. |
|
Não morrerei de fome |
No Inverno, |
Mas a esperança então se me consome |
De devir eterno. |
|
Sem a investigação fundamental |
Da ciência e da razão |
Retorno gradualmente ao animal, |
- Ando a rastejar no chão. |
|
|
1044 - Loucos |
|
No século de Estaline |
E de Hitler vemos que os loucos, |
Por mais que o crivo se afine, |
Chegam ao poder, aos poucos. |
|
E vivemos descansados |
Com engenhos nucleares |
Às dezenas de milhares |
Disfarçados |
Aí por todos os lados! |
|
Jogamos as nossas vidas |
No pressuposto |
De que nenhum chefe no posto |
Tomará nunca medidas |
Imprudentes: |
Apostamos na sanidade, |
No sobriedade |
Dos dementes! |
|
Ainda mais e pior: |
Isto é no tempo de agora |
E para os tempos vindoiros! |
Somos crédulos, sem favor: |
O milagre não demora, |
Que importam os maus agoiros?… |
|
Entre poentes e arrebóis, |
O relógio marca a hora… |
- E depois? E depois? |
|
|
1045 - Bel-prazer |
|
Os desejos não podem ser |
Suscitados ou reprimidos |
A nosso bel-prazer. |
|
Vêm dos fundos desmedidos, |
Para além das intenções, |
Por bons ou por maus sejam embora tidos. |
|
Em nós se formam e tanto monta |
Que lhes sintamos ou não as lesões: |
Germinam sempre sem nos darmos conta. |
|
Apenas seremos os responsáveis |
Por os tronarmos ou não viáveis. |
|
|
1046 - Presença |
|
Onde quer que estejamos, |
De nossa presença a maior virtude |
É a dimensão que emprestamos |
À nossa atitude. |
|
|
1047 - Negam |
|
Negam aos pobres o direito |
À mentira, |
Sempre houve quem exigira |
Toda a virtude em seu peito, |
|
Para os vacinar dos vícios |
Impõem-lhes todos os sacrifícios… |
|
- E aos ricos, |
Se todos somos iguais, |
Nem uns salpicos |
De obrigações tais?! |
|
|
1048 - Enganos |
|
Sempre escravos e senhores, |
Indigentes e tiranos, |
Desgraçados e gozadores, |
Vítimas e ganhadores |
De todos os enganos… |
|
Dentro de nós mora a chaga, |
Em nós é que ela supura: |
Nada melhora a praga |
que o homem não depura. |
|
Ora, |
Eternamente igual, |
O homem não melhora: |
Não pode |
Ou nem quer crer em tal… |
|
- Quem nos acode? Quem nos acode? |
|
|
1049 - Fantasmas |
|
Batem-se por ou contra ideias, teorias, |
Ministros, governos… |
Morrem por fantasmas e fantasias, |
Em louco frenesi, |
Só para se não baterem, eternos, |
Contra si. |
|
O amor próprio é que importa salvar, |
A nossa rica pessoa: |
Tudo o mais pode tergiversar, |
Desde que eu me mantenha certo, |
A referência a mim seja boa |
E que nada me ponha a descoberto. |
|
Perenemente pronto a bombardear |
Todos os cerros, |
Desde que não tenha de confessar |
E atacar meus erros! |
|
|
1050 - Desespero |
|
Nunca o desespero se mantém. |
Ainda quando menos pareça, |
O que o sustém |
É de ultrapassá-lo a pressa. |
|
O pessimista raivoso |
Não tem paciência que meça: |
É um optimista fogoso |
Que desiste depressa! |
|
|
1051 - Cegos |
|
Cegos que ignoram a cegueira |
Podem ser felizes, |
Incônscios de haver outra maneira. |
|
Desgraçado é o que tem as cicatrizes |
De saber que há luz do dia |
E não lhe pode ver mais as matrizes. |
|
Cego sou eu, que o que me alumia |
Não o poderei ver senão |
Pela fosca lente da dor que me angustia. |
|
Cego e desgraçado porque vejo o chão |
E o mais é fantasia. |
- Ou não?… |
|
|
1052 - Basta |
|
Basta que Deus exista |
Para que todo o mal |
Tenha de não existir: |
Não poderá ser real! |
O que tenho ali à vista |
É que anda-me a iludir. |
|
O mal |
Não está lá: |
Meu olhar é que andará |
A ler mal o sinal |
Que perante mim está. |
|
Como ler, porém, |
O mal como bem? |
|
Ah! Olhos meus, olhos meus, |
Quando é que sereis olhos de Deus? |
|
|
1053 - Suportável |
|
Por mais suportável e banal |
Que se torne, com qualquer arte, |
Sempre a dor individual |
Dói do indivíduo, afinal, em toda a parte. |
|
|
1054 - Homens |
|
O progresso por homens é conquistado, |
As doutrinas, por homens elaboradas e seguidas, |
Qualquer regime, por homens efectuado, |
As normas, por homens obedecidas… |
|
Se o homem não melhora |
Tudo cai no mesmo vício: |
O erro não mora |
Nos modelos e doutrinas |
Senão porque é um resquício |
Dos homens e das sinas. |
|
Se o homem não melhora |
Que poderá melhorar? |
- Aqui e agora, |
Jamais para qualquer melhora |
Haverá lugar. |
|
|
1055 - Superstição |
|
Seja sob que forma for |
A religião é eterna: |
Quem lhe denega o melhor teor |
Tem-lhe a superstição à perna. |
|
Adora-se a ele mesmo, |
A outro homem qualquer, |
A um partido ou seita a esmo, |
Só por Deus não querer. |
|
O pior |
É que quem o quiser |
Não tem destino melhor: |
Adora o ídolo que tiver |
Para si melhor pendor. |
|
E jamais haverá forma |
De fugir a tal norma. |
|
|
1056 - Representante |
|
De Deus na terra o representante |
Que exemplo nos põe diante? |
|
Disputa com rancor |
Os postos hierárquicos do amor. |
|
Por fórmulas e ritos dessorados |
Troca a doutrina dos textos inspirados. |
|
Faz a corte ao poder |
E aos poderosos que o mundo tiver. |
|
Quer, como todos nós, |
Algo, se tem pouco, |
Muito, logo após |
E, se tem muito, louco, |
Quer mais, |
Sempre mais, |
Cada vez mais, |
- Sem limite algum se lhe encontrar jamais. |
|
Que é que então de Deus representante o torna, |
Se tem de ganhar o dia à jorna |
E, quanto ao resto, |
Vale tanto como tu ou como eu que nada presto? |
|
Deus lá tem dEle as razões |
Para não ter passado nunca procuração |
A estes figurões |
Que a si apenas, ao fim, representarão! |
|
|
1057 - Halterofilista |
|
O monstro halterofilista, |
De músculos revestido às carapaças, |
É um inválido, na pista, |
Duma armadura de aço dentro das carcaças. |
|
|
1058 - Engula |
|
Cedo ou tarde havemos de morrer. |
Que importa que a morte, |
A que não escapa homem nem mulher, |
Engula as vítimas à sorte |
Num desastre, |
Ou uma a uma, nas garras do destino? |
|
O desgosto da vida não é dum desatino, |
É da falta de bom senso que nela se encastre. |
|
É que aqueles que obedecem |
Por inteiro ao instinto animal, |
Como os bichos tudo o mais esquecem, |
Sentem um prazer |
Real |
No mero facto de viver. |
|
Muito sofremos nós |
Por não darmos conta bastante |
Desta cauda hesitante |
De animal que arrastamos após! |
|
|
1059 - Inconstante |
|
Como o tempo voa |
Com as asas do prazer |
E a beleza a acelerá-lo! |
Como uma dor que nos doa |
O retarda, o faz moer |
Como não tendo mais abalo! |
|
Como o tempo é inconstante! |
E eu aqui, para trás, para diante, |
Para trás, para diante… |
|
|
1060 - Crítica |
|
A crítica fundamentada a uma crença |
Predominante, |
É um serviço prestado ao apoiante |
Para que vença |
E convença. |
|
Se ele for incapaz de a defender, |
Um aviso |
Para abandoná-la e manter o siso |
De tal vem a receber. |
|
Auto-examinar e auto-corrigir |
É a propriedade |
Mais gratificante da ciência. |
|
Tem-na vindo a distinguir |
Da credulidade, |
Pendor mortal de nossa auto-suficiência. |
|
Que vence ao fim: |
A madeira entalhada |
Ou o monte de serrim |
Que nos atulha a entrada? |
|
|
1061 - Olho |
|
Em terra de cegos |
Quem tem um olho é rei, |
Menos nos pegos |
Da nossa grei. |
|
Aqui, |
Quem tem um olho |
Não é rei, é um zarolho, |
Dele todo o cego ri, |
|
Dele todos fazem pouco, |
É um idealista, |
É um louco, |
|
Até que não mais resista, |
Humilhado no chão. |
|
Então, |
Qualquer um lhe estende a mão |
E proclama que foi, |
Em tempos, um herói! |
|
Porém, |
Que não tenha a veleidade |
De abrir o olho que tem |
De novo sobre a cidade: |
Seria um crime de lesa-majestade! |
|
Ficaria de vez agora refém |
Da própria claridade, |
Condenado à solidão. |
|
Eternamente aí o retém |
A incontrita bestialidade |
Dos cegos que o cerco lhe farão |
- E que toda inteira são |
Esta nossa desgraçada pátria-mãe. |
|
|
1062 - Doutrinas |
|
As doutrinas |
Que não fazem previsões |
Testáveis e finas |
São menos convincentes, pelos senões, |
Que as mais concretas |
Que fazem previsões correctas. |
|
Das comunidades no processo |
Em que flutuam da opinião as inseguras balsas, |
Obtêm, porém, maior sucesso, |
Do que as que fizerem previsões falsas. |
…E eis como religiões e seitas |
Às multidões ficaram afeitas! |
|
|
1063 - Gravitação |
|
Quando a teoria da gravitação universal |
Explica o movimento dos planetas |
Ninguém precisa mais duns anjos patetas |
A empurrarem o carro astral, |
Os astros a zurzir |
Como cavalos, no rumo a seguir. |
|
Quando a origem do sistema solar |
É mostrada por físicas leis, |
Como então Deus embarcar |
Em tais batéis? |
|
Este deus não é |
Nem nunca foi preciso: |
Tal deus, dou-me fé, |
É apenas a nossa falta de juízo! |
|
Mas outro haverá |
Tal |
que faça sentido aqui e acolá |
De minha ferida sem ser mero sinal? |
|
No fundo, Deus não são |
Indefectivelmente os resumos |
De minha interrogação? |
|
Assim, |
Onde encontrar outros rumos? |
Fora de mim? |
|
Não, não há maneira |
De escapar à minha fronteira! |
|
Então, no fim, |
Deus é a distância |
Que vai de mim a Mim: |
|
- É o balbúcio de minha eterna infância. |
|
|
1064 - Infinitamente |
|
Um Universo infinitamente antigo, |
Um infinitamente antigo Deus, |
Não são um do outro o inimigo, |
Antes se dão comum abrigo |
Debaixo de comuns céus. |
|
Ideias diferentes |
Não são de modo algum: |
Ambas as possibilidades presentes |
São o todo do Um. |
|
Deste Cosmos visível rosto à toa, |
Intimidade insondável que nele se queda, |
São a cara e a coroa |
Da mesma moeda. |
|
|
1065 - Imune |
|
Religião como corpo de crenças |
À crítica imune e perene, |
Para sempre fixada nas sentenças |
Dum fundador qualquer, |
É uma receita solene |
Para a desintegração |
Que a prazo lhe advier. |
|
No limite, a ciência |
Procura a mesma verdade |
E não há no mundo paciência |
Para aquela necedade. |
|
O visível |
Cientificável |
É o rosto transitável |
Do invisível. |
|
A religião que o não compreendeu |
Já morreu. |
|
Por muito que sobreviva |
Activa, |
Matando quem lhe tropece no véu. |
Ainda bem que a morte dela |
Nos livra, definitiva, |
De mais mortos da fatídica sequela. |
|
|
1066 - Falibilismo |
|
É saudável que a religião |
Alimente o cepticismo |
Sobre dela as bases de sustentação, |
A evidência do falibilismo. |
|
Ela consola e apoia, |
Baluarte da necessidade, |
De emoções, de afectos é uma jóia, |
De vidas uma heroicidade, |
|
Desempenha papéis sociais |
Como outros nenhuns jamais… |
|
Não se conclui, porém, |
Que a religião fuja à crítica, |
Feita uma entidade mítica |
Obscura e oportunista, |
Para quem siga a pista |
De querer devir por si alguém. |
|
A comprovação |
Que o céptico requer |
Só quem não for são |
Lha irá esconder. |
|
Mas, como ela, no fundo, nunca existe, |
A todo e qualquer assiste, |
Da raiz do peito, |
O direito |
De quem resiste. |
|
|
1067 - Doutrinais |
|
Os sistemas doutrinais |
Em que os dogmas são louvados, |
Os infiéis desprezados, |
Vislumbram-se logo ameaçados |
Pelas buscas dos demais. |
|
“É perigoso” - nos dizem - |
“Procurar demasiado |
Profundamente. Cuidado!” |
E todo o mal nos predizem. |
|
Muitos a religião |
Herdaram tal cor dos olhos: |
Penduricalho que não |
Traz jamais quaisquer escolhos. |
Só que em mim quando o enrolo |
Além fica de controlo. |
|
Mas os que professam fundo, |
Que escolheram, |
Do desafio do mundo |
Só desconforto colheram |
Como num sinal de aviso: |
Aqui, por examinar |
Há bagagem que o bom siso |
De que toda a gente goza |
Deverá já rotular |
De perigosa. |
|
|
1068 - Inquisitivos |
|
Talvez nos queiram propor |
Que somos por demais inquisitivos |
Naquilo que o Criador |
Quis como dEle exclusivos |
Nos arquivos |
Da Sabedoria-mor. |
|
Se nos não quis fazer maior descoberta |
Ou revelação |
- Alerta |
Para nossa tamanha presunção! |
|
Só que eles é que são os resumidos |
Ao pretender pôr fronteiras, |
De Deus feitos validos |
A quem Deus não deu carteiras |
Nem fez procuradores. |
Como se eles foram da marca |
Senhores |
Que apenas Deus abarca, |
Sem penhores |
A ninguém entregar. |
Como se os homens puderam ultrapassar |
Qualquer limite |
Que Deus acaso impôs a seu desquite! |
|
Quem é que tão deus se julga |
Que, estúpido, Deus promulga? |
|
|
1069 - Pobre |
|
O pobre, coitado, |
É amigo, aliado e freguês apetecido, |
Constantemente explorado |
- E sempre agradecido! |
|
|
1070 - Segredo |
|
Na vida, quem muito fala, |
Pouco ao fim vai conseguir. |
O segredo é de quem, atento, cala: |
O mais difícil é saber ouvir. |
|
|
1071 - Império |
|
Ao Império |
Que é que importa a poesia? |
Desde que lhe cante a sério |
Dele a vil mercadoria, |
Calhará bem: |
Os lucros também aumenta |
Como a todos convém. |
|
Desde que seja uma nova pimenta, |
Ao Império |
Que é que importa a poesia? |
Vale mais do que minério: |
Adormenta, |
Anestesia |
Qualquer escrúpulo sério! |
|
|
1072 - Cirurgião |
|
A criança |
Não ousa ao cirurgião olhar |
Que lhe amputa a perna: |
Ignora que o corte lhe alcança |
Salvar |
Primeiro |
A vida superna |
- A do corpo inteiro. |
|
Um pequeno prejuízo |
A prevenir um maior |
Tem marca de mais juízo. |
- E tem da vida o penhor. |
|
|
1073 - Militarismo |
|
O militarismo leva ao armamento |
Que devera aumentar o sentimento |
De segurança. |
|
Porém, o que alcança |
É germinar o receio |
E o ódio, de permeio |
Com a geral desconfiança. |
|
Espalha, ao fim, pela terra |
A guerra. |
|
Estimula, nação a nação, |
Conforme lhe convier, |
Tudo o que de mau houver |
E abafa quanto for bom. |
|
O militarismo |
É mais do que um aleijão: |
É da Humanidade um abismo |
Onde todos se enterrarão. |
|
1074 - Génio |
|
O génio vai descobrir |
A bomba que matará |
Mil crianças a seguir. |
Do filho o nome lhe dá: |
Das palmas entre o barulho |
A criança sorrirá |
De orgulho. |
|
Por enviesados estranhos modos, |
Esta criança |
Que mais longe não alcança |
- Somo-lo, afinal, nós todos! |
|
|
1075 - Bússola |
|
Quem abaixo da superfície mergulha |
Por própria conta o faz: |
Nas artes da bússola a agulha |
O fruidor é quem a traz. |
|
Quem o símbolo interpreta |
À própria conta o decifra: |
No coração lhe mora, secreta, |
A correcta cifra. |
|
A arte espelha menos a vida |
Do que o mediador |
Que, ao fruí-la, com ela lida: |
- É o espelho do espectador. |
|
|
1076 - Alcance |
|
Literatura moral, imoral… |
- Um poema ou um romance |
Enquanto tal |
Ou foi bem escrito ou foi-o mal, |
Tudo o mais não tem aqui nenhum alcance. |
|
Bem ou mal, |
Como moral da literatura, |
É a beleza que ela apura, |
O mais é a ganga de que se vale. |
|
Moral ou imoral |
É o rasto da vida. |
As artes são apenas o sinal |
Que o denuncia, tal e qual, |
De seguida. |
|
|
E a beleza com que o sinalizam |
É com que elas se eternizam. |
|
|
1077 - Cancro |
|
O cancro mais imundo |
Que nos corrói desde o princípio de todas as idades: |
Não são os princípios que movem o mundo, |
São as personalidades. |
|
|
1078 - Tipos |
|
Dois tipos apenas são deveras fascinantes: |
Os que sabem tudo e os que não sabem nada. |
Primeiro porque, duma assentada, |
Não existem de tão gritantes. |
|
Depois porque, se existiram, |
Os que tudo saberiam, |
No desafio que ante nós assumiram, |
Às estrelas nos trepariam. |
|
Os mais, do nada |
Na inocência, |
Tão longe nos reconduziriam ao começo da estrada |
Que ante eles não éramos mais que uma indecência. |
|
|
1079 - Cota |
|
O ascetismo mata os sentidos, |
A libertinagem os embota. |
Aos momentos vividos |
Importa tomar-lhes a cota |
Para o que merecer acento |
Colher o momento |
Do cuidado e da atenção preferida. |
|
Até porque toda a vida |
É apenas um momento: |
Distraída, |
Esvai-se como se esvai um pensamento. |
|
|
1080 - Desilusão |
|
Na vida os caminhos vão |
Dar todos ao mesmo ponto: |
- Desilusão. |
…Mas de tudo isto como nos fascina o conto! |
|
|
1081 - Cáfila |
|
A humanidade que em ti tens, |
Trama de quantos fios se te cruzaram na estrada, |
É uma cáfila de ninguéns |
O tempo inteiro a falar de nada. |
|
E todos gostamos imenso |
De falar de coisa nenhuma: |
É o único tema de que penso |
Que sei coisa alguma. |
|
|
1082 - Política |
|
A reunião política é o único lugar |
Onde ninguém de política vai falar. |
Quem gostar de falar dela |
O dia inteiro irá palrar |
E nunca irá tolerar |
Daquilo ouvir qualquer sequela. |
|
Coitado do Parlamento, |
A ouvir tanta proclamação! |
Como o aguento, como o aguento? |
- Nunca prestando atenção! |
|
Aliás, se atenção alguém presta, |
Pode ser mui perigoso: |
É que pode convencer-se! |
Nenhum argumento resta: |
É um indivíduo tenebroso, |
Destituído de razão. |
- Ninguém com ele converse, |
Que anda a rastejar no chão! |
|
|
1083 - Almocreve |
|
Todos nos imaginámos |
Cavalos de raça |
E agora aqui mourejamos |
Na praça |
Como burros de almocreve. |
|
E o vendedor ambulante |
Nem da glória mais leve |
Nos encanta. |
|
E, depois, quem a glória alcançou |
Ainda mais finge: |
- Jamais nela atinge |
O que sonhou. |
|
1084 - Remos |
|
Antes peguei nos remos, |
Pego neles agora, pegarei depois… |
- Com a guerra talvez um dia acabemos, |
Precisaremos, porém, sempre de her+ois. |
|
|
1085 - Mendicidade |
|
Estranha mendicidade, |
A da ficção, |
Onde cada leitor paga a caução |
Ao autor que lhe agrade, |
Para que este lhe minta |
Sobre eventos que nunca se viram |
De indivíduos que nunca existiram… |
…Só para que, afinal, ele os sinta! |
|
Dá-lhe o leitor uma esmola |
Para que, uma vez na vida, |
A mentira que tudo imola |
Nele incarne verdadeira de seguida. |
|
|
1086 - Confidentes |
|
Serei feliz, porventura, |
Sem a língua dar nos dentes: |
A ventura |
Não procura confidentes. |
|
|
1087 - Dragões |
|
Primeiro foi o medo de fantasmas e dragões, |
Depois, o herói que imita que os matou: |
Então dividiram-se quinhões |
Pelo que fez de conta que libertou. |
|
A seguir, o herdeiro, que ainda menos fez, |
Come já por dois ou três. |
|
Do Reino, pouco depois, |
Já não lhe chegam as vacas nem os bois. |
|
Por fim, clamamos igualdade |
A ver se alguém os persuade… |
|
- Quem não disputa |
Quem não discuta?! |
|
Só quem é louco |
Acredita que sem luta |
Logra sequer de nada um pouco! |
|
|
1088 - Mortos |
|
Os mortos não têm existência |
Senão |
A que os vivos lhes dão. |
|
É a única evidência. |
|
O mais |
É aquilo em que apostais. |
|
Para o sim ou para o não |
Não há mais chão |
Do lado de cá dos sinais. |
|
|
1089 - Censor |
|
É preciso pensar bem |
Antes de pensar |
- Assim o censor nos tem |
No lugar. |
|
É que depois |
É demasiado tarde: |
Já os burros e os bois |
Não terão quem os albarde… |
|
Ficarão no desemprego |
Censores tantos |
Que andam por aí armando em santos |
E têm é de ser postos no prego! |
|
|
1090 - Duvido |
|
Não duvido |
Porque, para o público alvar, |
Sendo por toda a parte repetido, |
Repetir é provar. |
|
Não duvido |
Porque desejo o resultado |
E cremos no que é desejado, |
Mesmo que não tenha sentido. |
|
Duvidar |
É dentre os homens raridade: |
Onde o raro germe germinar |
Sem caldo de cultura não mais é que nulidade. |
|
1091 - Riqueza |
|
No estado policial |
A riqueza é sagrada. |
|
E a democracia repoisa |
Neste sinal: |
A riqueza é a única coisa |
Adorada! |
|
Qual a diferença, qual |
Que entre os caminhos nos vale? |
|
O bezerro de oiro, |
Em qualquer rumo, |
É sempre, em resumo, |
De mau agoiro. |
|
|
1092 - Esquisso |
|
Quem produz o que a vida requer |
Terá permanente falta disso, |
Quem fartura de tal tiver |
Dele não produz nem um esquisso. |
|
Esta lei da iniquidade |
Sempre em busca de excepção |
É a nossa inalterável verdade |
E a nossa maldição. |
|
|
1093 - Bruxaria |
|
Se a bruxaria |
É da realidade um uso enviesado, |
Então, feiticeiro, das vezes a maioria, |
É quem lança o fogo, não quem é queimado. |
|
Os autos de fé |
Deixaram ao lado do cadafalso |
Os bruxos, de pé, |
Sem ninguém deles no encalço. |
|
|
1094 - Cataclismo |
|
A morte é um cataclismo |
Que do mundo aviva as cores com tal vivacidade |
Que todas as coisas restitui do abismo |
À mocidade. |
|
|
1095 - Abrigos |
|
Aceitar tudo, sem buscar abrigos… |
- Mas o menor esforço leva a consciência |
A tropeçar na evidência |
Dos obstáculos eternamente antigos! |
|
|
1096 - Idiotas |
|
Descobrir haver perdido a vida |
A lidar com idiotas |
Apenas elucida, |
Menos idiota, porém, a ninguém torna. |
|
Já é bom medir as cotas |
Do copo da vida que se entorna, |
A conta-gotas, |
Em cada roubada jorna. |
|
Tão idiota, contudo, é o que se não vê |
Como o que o lê, |
Já que se enleia, |
Por magia, |
Das notícias na teia |
Que afloram à mentira de cada dia. |
|
|
1097 - Pior |
|
Nós não somos animais, que horror! |
Somos homens! E corteses… |
- O que é pior, |
Às vezes. |
|
|
1098 - Aloira |
|
O homem a julgar que cultiva |
A seara que aloira |
E a ser apenas de Deus a esquiva |
Mão do moço de lavoira! |
|
|
1099 - Preferência |
|
Na guerra como na vida, |
A preferência |
É muitas vezes devida, |
Não das qualidades à evidência, |
Mas, por um critério certo, |
Aos que da origem familiar estão mais perto. |
|
Preferência |
É sinónimo regular |
De tráfico de influência, |
Com uma ou outra excepção, a condimentar. |
|
|
1100 - Carburante |
|
Éramos o carburante, |
Somos animais de tiro, |
De nós, pela história adiante, |
Se servem em todo o giro. |
|
Zombaram de nossos ideais |
De loucos tal se foram sinais. |
|
Levaram-nos a morrer, |
Primeiro por sua glória, |
Depois para bem viver, |
Enfim, para sobreviver |
A quem lhes trouxe a vitória. |
|
Com o sangue dos soldados, |
Das vítimas com os ossos, |
A sede de triunfo jogam aos dados, |
De vontade de poder enchem os fossos. |
|
Eis como, adoecendo a memória, |
Conquistaram um lugar na história. |
|
E nós, agora como dantes, |
Continuamos ignorados e ignorantes. |
|
|
1101 - Injustiça |
|
A injustiça |
É uma nuvem de poeira: |
Suja e enguiça |
Mesmo quem nunca fez asneira. |
|
|
1102 - Farto |
|
O farto não sabe |
O que é fome. |
A ele, porém, cabe |
Julgar aqueles que ela consome. |
|
As velhas esqueceram |
O que é o amor, |
Não compreendem os que veneram |
Dele o fulgor. |
|
Os que a guerra viveram |
Inteira de campo numa vivenda |
Mal |
Consideram |
Que se pode bombardear a moral |
Depois de a ter posto à venda. |
|
Aliás, da guerra os dentes |
Tornam-nos a todos dóceis e inconscientes. |
|
|
1103 - Amolar |
|
A palavra é uma pedra de amolar: |
Ao zumbir, |
Pode confundir, |
Ao afiar |
Pode seduzir |
E, traindo, aniquilar. |
|
Tudo vem do que a lâmina da faca |
Ataca: |
Dum rapace melro a melodia |
Ou meu pão de cada dia… |
|
|
1104 - Espirituais |
|
São os de espírito destituídos |
Que mais |
Apelam à luta, destemidos, |
Com armas espirituais. |
|
De espírito os homens verdadeiros |
Medem os sinais |
De vitória ou derrota inteiros |
Pelos efeitos carnais. |
|
Tudo o mais |
São atoleiros |
Mortais. |
|
O espírito ou incarna |
Ou tomba no fosso, |
Mera sarna |
De que me coço. |
|
|
1105 - Uniforme |
|
Questão não é um uniforme, |
É o traslado |
Do que ao humano jamais é conforme: |
É o juízo uniformizado. |
1106 - Apontas |
|
No fim de contas |
Só vivemos uma vez. |
A vida, porém, não é o que apontas, |
É o que dela cada qual fez. |
|
|
1107 - Saco |
|
O homem é um mero saco |
Cheio de vento, |
Apenas o aplaco |
Com sopros de pensamento. |
|
|
1108 - Sensatos |
|
Os homens sensatos |
Têm todos a mesma religião. |
Quais dela os pactos |
Nunca os sensatos o dirão. |
|
|
1109 - Engaste |
|
Num homem o contraste |
Entre a profissão de fé |
E os actos em que a engaste |
É |
O espectáculo mais divertido |
Que a vida nos pode ter oferecido. |
|
E, dado que é uma comédia, |
Por quê mudá-lo em tragédia? |
|
Basta sabê-lo |
E apor-lhe o correspondente selo. |
|
|
1110 - Paralítico |
|
O paralítico amarrado |
A uma cadeira |
Crê que é um disparate consumado |
Que alguém possa caminhar |
E correr de canseira. |
|
Generalizar |
Pode ser uma asneira: |
Acaba sempre por nos atar |
À prancha de madeira |
Traiçoeira |
Que nos leva a afundar |
No mar |
A vida inteira. |
|
|
1111 - Sério |
|
Tomar tudo tão a sério, |
Não! |
Procurar responsabilidades, |
Como se, por mistério, |
Não houvera em todo o Império |
Um derradeiro coração |
Capaz de ancestrais heroicidades, |
Não! |
|
É a ridícula mania |
De sermos indispensáveis |
E tudo ter importância. |
Quando, se um sopro nos desvia, |
Todas as rotas continuam viáveis. |
|
- E desde logo nos perdemos na distância. |
|
|
1112 - Atrabiliária |
|
A adolescência é uma casa |
Em dia de mudança: atrabiliária, |
Tudo arrasa, |
Mas é uma desordem temporária. |
|
|
1113 - Múltiplos |
|
Pejados de tarefas, em suma, |
Sofremos de múltiplos modos. |
Como um pouco mais de coisa nenhuma |
Nos faria jeito a todos! |
|
|
1114 - Cérebro |
|
O cérebro humano |
É o que há de mais fascinante num homem. |
O problema é que pode haver engano: |
É o cérebro quem nos diz que assim o tomem. |
|
|
1115 - Menino |
|
Menino bendito de Deus |
O que não morre de fome, |
Tem o sol, a lua, os céus, |
O rio, a chuva, estrelas sem nome, |
Como brinquedos predilectos |
Que não quebram nem se roubam, |
Nem depois dos mil e um projectos |
Que o arroubam! |
|
|
1116 - Breve |
|
Quem a teve, |
À vida, |
foi uma alegria breve, |
Breve elidida. |
|
|
1117 - Lagartixa |
|
Meu absoluto |
É que sou o rabo cortado da lagartixa |
A rabiar o que luto, |
Decepado da cabeça ignota da bicha, |
Esgotando-me afinal em meu inconclusivo remexer. |
|
Depois ando a justificar-me |
Com aquilo em que quenquer |
Vai bulindo ao alarme |
Do carme |
Que em mim mexer… |
|
Definitivamente para trás, grave, |
Anda esquecida a Chave. |
|
|
1118 - Inverosimilhança |
|
A inverosimilhança da morte: |
Um corpo apodrece no chão |
E a luz de dentro tão forte, |
Tão viva, tão igual no clarão! |
|
|
1119 - Perpassa |
|
Deus existe: |
Energia anterior, perpassa e corre além. |
Um rasto da passagem persiste |
Do Universo no eterno vaivém. |
|
Como as águas da nascente, |
Irreais antes da fonte, |
Corrente visível depois, |
Ei-Lo perenemente presente |
Antes e depois do horizonte |
Por dentro de todos os sóis. |
|
1120 - Instruída |
|
É jovem, |
A juventude pode ser instruída. |
À velhice movem- |
-Na uma ou duas ideias. |
|
Das ilusões gastas as teias, |
Eis o que resta duma vida. |
|
|
1121 - Escandalizar |
|
Para escandalizar nasci, |
Já que de estar vivo é o modo. |
Morte é estar para aqui |
No estado normal de todo. |
|
Homem normal é vulgar, |
Toda a vida um nado-morto. |
Nascer, nascer é variar, |
Não ir direito mas torto. |
|
Sigo |
Á divisa: |
Tudo o que é vivo |
Escandaliza. |
|
|
1122 - Tesoiro |
|
Qual |
O tesoiro, |
Afinal? |
É que o oiro |
Acaba tornando o homem irracional. |
Que é que, sem desdoiro, |
Vale o que o homem vale? |
|
Este é o problema |
Que eterno busca e falha o tema. |
|
|
1123 - Abulia |
|
Não te deixarás atacar |
Sem te defender |
De punho no ar |
Ou escondido de quenquer… |
|
Muito cómodo seria |
Para o patife |
Se de bem a gente, em abulia, |
Se deixara aferrolhar no esquife. |
Ao mundo inteiro violaria, |
Que era o mais forte, |
E ninguém nada lhe faria… |
- Era o império da morte! |
|
|
1124 - Pau |
|
Põe-te a pau: |
quem morde a mão |
Que lhe dá o pão |
O que pede é varapau! |
|
|
1125 - Glória |
|
Existe a glória |
Das fanfarras, |
Das divisas |
E dos loiros, |
A das homenagens em memória, |
A dos tesoiros |
Que divisas |
E agarras. |
|
Existe outra, porém, |
Que brota na obscuridade |
E abre caminho como a toupeira: |
À luz do dia apenas vem |
Fora de idade, |
Após escavar a vida inteira |
No subsolo, |
Sem qualquer gratificação nem consolo. |
|
Esta, esta ignorada glória |
Costuma ser a que fica na memória. |
|
- E faz História! |
|
|
1126 - Entrega |
|
Não nos entrega a morte aos vermes apenas |
Que a memória roem |
E decompõem. |
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Aos homens também. |
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E não são mais pequenas |
As destruições que deles nos vêm. |
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Só que os mortos não fazem cenas… |
Ainda bem! |
1127 - Rir |
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Ninguém |
Irá conseguir |
Ficar zangado com quem |
O faz rir! |
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1128 - Herói |
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Quem |
É um herói? |
- Alguém |
Que foi. |
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Podemo-los então admirar |
Sem o justificar. |
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E quantas vezes não |
Há qualquer justificação! |
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1129 - Agigantam |
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Entre as coisas que me espantam |
Desta vem-nos contusão: |
Os problemas se agigantam |
Quando os homens, não! |
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1130 - Desapontamento |
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Árvore da vida, |
Que calor, |
Que desapontamento, |
Na surpresa escondida! |
- Conheces o pensador, |
Jamais o pensamento: |
És a esperança eternamente iludida. |
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1131 - Esquivo |
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O factor mais decisivo |
Para alguém, |
Para os mais é o gesto esquivo |
Desprezado com desdém, |
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Um ponto de referência |
Meramente ocasional, |
De premência |
Sem qualquer vero sinal. |
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Cada qual um mundo cria, |
Nele desmedido viu |
Cheio um vulto de magia: |
- O seu! |
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Logo o vulto desmedido |
No mundo alheio |
É um vago ponto esquecido, |
Algures perdido |
Lá no meio. |
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1132 - Riqueza |
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Aquele cuja riqueza |
Ninguém conhece |
Não fica feliz com tal empresa, |
Emurchece. |
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…Tanto devir feliz |
Deveras tem outra matriz! |