DÉCIMA  PRIMEIRA  REDONDILHA

 

 

 

                                    RUMO  A  UM  IGNORADO  OLHAR

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1133 e 1240 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                1133 - Rumo a um ignorado olhar

 

                                                                Rumo a um ignorado olhar

                                                                Virarei o timão

                                                                Da barca a navegar

                                                                Na humana infinita solidão.

 

                                                                Terra à vista

                                                                Anotarei

                                                                E o mais leve vislumbre que revista

                                                                A vinda do que espero e nunca sei.

 

                                                                As alvoradas

                                                                Tocarei nos clarins do verso

                                                                A estimular as caminhadas

 

                                                                Por onde interminável me disperso.

                                                                Minhas jornadas

                                                                Na palavra terão delas o berço.

 

 

1134 - Nunca

 

Ele nunca aliciava,

Persuadia.

Ele, não, nunca adulava,

Encorajava quem via.

 

- Que admira depois que o melhor

Rebente em cada qual como uma flor?

 

 

1135 - Cimos

 

Quando já não conseguimos

Aquilo que desejamos,

Se para os cimos

Caminhamos,

O melhor é começar,

Para exorcizar os demos,

A gostar

Mas é daquilo que temos.

 

 

1136 - Poesia

 

A poesia não é escrita

Para ser interpretada,

Concita

A um nada

Inspira sem razão,

Toca sem compreensão…

 

A poesia é tudo,

Aquele todo maior que a soma das partes…

Não as dividas, põe-te mudo,

Que o mistério é para ser ouvido.

Não acartes

Com a maldição do além

Que mora escondido

Nas franjas de sentido

Que qualquer poema indelevelmente tem

Só porque o não contém.

Nem retém.

 

 

1137 - Tela

 

Pintar uma tela em branco…

O pior é que a vida dum homem

Não é a tela que atravanco

De tintas que se somem.

 

Esquecer para recomeçar…

Só quando o esquecimento

Fora inútil por não haver lugar

À memória, ao passado, à dúvida dum momento.

 

Minha tela está cheia de coloridos

De todos os meus eus que já são idos.

 

Todo o recomeço

É uma mudança

A ver se o que meço

Minha pegada o alcança.

 

 

1138 - Enraizado

 

Recusar o mundo é impossível,

Nele estou enraizado,

Por mais que seja terrível.

Somos nós que o fazemos

E ele faz-nos, por seu lado.

Em cada qual e no todo

Mora o drama que vivemos.

Depois da noite e seu modo

Vem o alvor de cada dia,

Embora a noite arredia

Lhe venha após suceder.

O que temos de tentar

É a noite tanto encurtar

Que nem noite fique sequer.

Que o que lhe sucederia

Não seja um dia qualquer,

Seja o dia, o eterno Dia.

 

O porvir não adivinho,

Porém, aponto um caminho.

 

 

1139 - Materiais

 

Ninguém recolhe os materiais da vida:

Vivem-se, Ou então nós os inventamos.

 

Vivência ou invenção pode escolhida

Ser se sabemos para onde vamos,

Porém,

E como queremos ir.

 

Como convém,

Quando entalhamos o comum porvir.

 

 

1140 - Parcela

 

A vida é uma parcela

Do que quero e que não há:

É no fundo o que sonhamos dela,

Não o que nos dá.

 

 

1141 - Traça

 

Como o tempo passa!

E como pelo tempo nós passamos

Sem deixar traça

Do que quer que sejamos.

 

Ou deixamos

E o que nunca passa

É o que sonhamos

E jamais somos, por nossa desgraça.

 

 

1142 - Fronteira

 

Não são os escolhos,

É a fronteira que nos reduz:

- Temos olhos,

Mas não podemos ver se não há luz.

 

O sinal

É que além das encostas jamais veremos

Do vale

Por cujo leito fundo caminhemos.

 

O tempo é uma estrada larga

Mas quando vamos através dele

Torna-se porta tão estreita e amarga

Que nos rasga a pele.

 

Defende-te da tentação

De escolher rumo claro e seguro:

Isto cega-te ao que o rumo tem de impuro,

Leva sempre à estagnação

E acaba num muro.

 

 

1143 - Dentro

 

Planos dentro de planos, dentro de planos…

Sou mesmo refém!

Nu fundo dos arcanos

Serei um plano de Alguém?

 

 

1144 - Mecanismo

 

A aposta no progresso

Age, tal mecanismo protector,

A abrigar-nos, dela no recesso,

Do futuro contra o terror.

 

 

1145 - Caminho

 

O caminho que conduz

Da escravatura à liberdade

É da literacia a luz,

Rumo ao saber e à verdade.

 

Tantos tipos de escravatura

E de liberdade tantos!

A postura

Que destes promete os encantos

É um discreto cadinho

Que apura o ser:

- O caminho

É o de ler!

 

 

1146 - Planeta

 

A ciência não mente:

A Humanidade mora

Neste planeta para evoluir, pelo menos agora,

Conscientemente.

 

 

1147 - Lentamente

 

O que faz

O presente

É o futuro lentamente

A caminhar para trás.

 

É o grande ausente

Que nos traz

De presente

Os anos que cada qual faz,

Os anos cuja semente

De sonho e de paz

O mundo inteiro sente,

O mundo inteiro pressente…

E depois fica incapaz,

Incoerente,

Impotente,

Ineficaz…

 

O futuro

É o presente que inauguro

Sem entender sequer como se faz.

 

 

1148 - Hoje

 

Como o que inovo

Me foge!

O novo é novo

Apenas hoje…

 

 

1149 - Fugir

 

Cada qual tem de assumir

A própria cura.

Entregá-la aos outros é fugir

E o medo perdura.

 

Ora, vencer o medo

É o segredo

Para o porvir que se inaugura.

 

Porvir individual

Ou colectivo:

- Sem a marca de meu sinal

Não vivo.

 

 

1150 - Polarização

 

Há uma polarização

Entre quem crê que há um porvir

E quem só vê negação:

- É o que impede de seguir.

 

A caminhada

Irá tão mais devagar

Quanto mais demorar

O consenso da chegada.

 

 

1151 - Transição

 

Na transição cultural

Finda a civilização:

Velhas certezas se desfarão,

Os pontos de vista dão sinal

De evoluir para nova tradição.

 

A curto prazo

Às ansiedades dão aso.

 

Enquanto alguns despertam

Para uma íntima ligação de amor,

Entre eles se alertam

E concertam

Para rápidos evoluírem com vigor,

Outros perdem o rumo

Na demasiada para eles rapidez.

 

Devêm receosos, em resumo,

E controladores, por sua vez.

Se lhes aumentam os problemas

Poderão chegar, perigosos,

Às medidas extremas.

 

- É o que sempre na memória

Nos envenena os gozos

Da História.

 

 

1152 - História

 

A História,

Mais do que um avatar,

É a memória

Dum longo caminho de acordar.

 

 

1153 - Controlo

 

Libertar-me dum evento de controlo

De mim sobre outrem, doutrem sobre mim,

De ansiedade faz que me rebolo

E me enrolo

Em descontrolo,

Do princípio até ao fim.

 

O terror vai-me subir

Antes de haver conseguido

No imo o caminho do devir

Para deixar de andar perdido.

 

A noite escura

Precede a euforia

Do dia

Que me apura.

 

 

1154 - Capaz

 

Não proclames perante quenquer,

Sem intervalo,

O que és capaz de fazer:

- Fá-lo!

 

 

1155 - Mimada

 

A criança mimada

Sofre e desespera,

Duma assentada

Detestável fera

E pomba encantadora.

 

Quis a Lua

Que demora,

Logrou passeá-la pela rua

E já não sabe que fazer dela agora.

 

Limita-se a agarrá-la

Com ambas as mãos,

Vendo que dela cada vez mais abala,

Que todos os músculos são vãos,

Por mais que finque os pés,

Para evitar que lhe fuja de vez.

 

A humanidade mimada,

Fera e pomba,

Quando o sonho tomba

Assim perde o rumo pela estrada.

 

Como se o sonho não fora primícia mera

Do que a espera

Na adultez, com a medida

Doutro patamar de vida.

 

 

1156 - Nuvem

 

Até a nuvem que no primeiro momento

Cabe na palma da mão

Pode vir a toldar o firmamento

Em toda a imensidão.

 

 

1157 - Seguintes

 

Não na minha vida nem na tua,

Na seguinte das seguintes…

Que importa? Lutar é que pontua,

Até acertarmos nos vintes.

 

A luta

Mais dura

Virá depois de toda a disputa.

É na paz

Que a verdadeira guerra perdura:

Aí é que a vida apraz

E se apura.

 

Aí é que a vida nos faz,

Segura.

 

 

1158 - Ricaço

 

O ricaço amaldiçoa

Alto e bom som.

O ricaço resiste, à toa,

A quanto cheire a modificação,

Desde que, como um agoiro,

Se inventou o oiro.

 

É o travão

Do futuro.

Por isso o que inauguro

É sempre em contra-mão.

E o mais que apuro

É uma ilusão,

Seja embora o único seguro

Contra a definitiva podridão.

 

Na ilusão e na derrota,

Afinal, estou a ir:

- Ferido e humilhado, sou a rota

Do porvir.

 

 

1159 - Frondes

 

Nas frondes dos jardins

Quantos projectos perdidos,

Esperanças adiadas para confins

De horizontes desmedidos!

Quantos sonhos que hão morrido

Há tanto tempo, tanto,

Que já nem valem o pranto

De os nem haver pressentido!

 

O sonho da igualdade

Entre todos em todos os mundos,

A equidade,

Será destes fantasmas vagabundos?

 

- Por muito que seja vão

Para os que se por ele somem,

Jamais ao menos morreu no coração

Do homem.

 

Eis como a luta pela igualdade

É o nosso chão

De eternidade.

 

 

1160 - Esquecidos

 

É viável perdoar ao homem

Por olhar tempos esquecidos

Os desejos que o consomem,

Dele no coração perdidos,

 

Embora os saiba,

Enquanto a angústia o balance,

Fora e para além de quanto caiba

Nas margens de seu alcance.

 

É viável perdoá-lo

De lhes sentir eterno o abalo.

 

Até porque um pouco de carinho

Sempre ajuda

A deitar pés ao caminho

Enquanto melhor nos não acuda.

 

- E eis como do Fim sempre me avizinho.

 

 

1161 - Onda

 

A grande onda

De inquietação que assola o mundo,

Haverá quem nos responda

Onde a seguir tocará o fundo?

 

A única certeza

Que não tolera disfarce

É que o Homem luta e reza

Por libertar-se.

 

Deste inferno

Para o céu

A gemer, eterno,

Por levantar o véu.

 

 

1162 - Suprema

 

De Deus a suprema caridade

Os homens consiste em impedir

De felizes serem de verdade

Na terra que existir.

 

Doutro modo, quem abala,

Como lhe custaria deixá-la!

 

Então, por trás dos véus,

Quem vislumbraria os céus?

 

 

1163 - Raízes

 

Felizes

Os que fundam o chão:

Viver sem raízes

Amargura o coração!

 

 

1164 - Extraordinário

 

Crês, primeiro,

Que ocorre contigo o extraordinário.

Vagueias, vário,

Pelo mundo inteiro:

Descobrirás que a infelicidade

É a mais vulgar

Identidade

De todo e qualquer lugar.

 

O derradeiro

Horizonte da sorte

É o inexorável sendeiro

Discreto e lento da morte.

 

Daí a aposta de que a vida

Seja também

Interminavelmente mais comprida

Para Além.

 

 

1165 - Serenidade

 

A serenidade,

Tranquila filha da tolerância,

Que escadaria nos há-de

Encurtar dela a distância?

 

Primeiro, a sabedoria,

Depois, pairar acima da circunstância,

Resignar-se ao inevitável cada dia,

Acolher o diferente

Com a inocência da infância…

 

O militarismo do ideal

Consente

Em devir brutal

Para o mundo melhorar

E tem-no sempre piorado,

Não por mero fruto do azar

Mas por inevitável fado:

Nunca o ditador é sereno.

 

E, para o tamanho do ideal,

É, para nosso mal,

Fatalmente por demais pequeno.

 

Como, aliás, todo o homem:

Nós somos o lugar

Onde os sonhos se consomem,

Sem que jamais sequer apenas

Um logre vingar

Em leiras terrenas.

 

O sonho, à escala humana,

Tem o estatuto

De jamais ser um produto,

Mas de encantar-me com o perfume que emana.

 

 

1166 - Turistas

 

Olhando as vistas,

Cada qual cumprindo os destinos

Que forem os seus,

Somos apenas turistas,

Meros peregrinos

Nesta terra de Deus.

 

 

1167 - Ilusão

 

A ilusão vale a pena

Quando a realidade, na ocasião,

Por mais pequena,

Lhe der a mão.

 

 

1168 - Litígio

 

Tudo como dantes,

Sem que eu acometa

Em litígio?!

- Os próprios tratantes

Não gostam de abandonar o planeta

Sem o próprio vestígio!

 

 

1169 - Arco-íris

 

No arco-íris não sei andar,

Mas bem gostaria!

Quem o vai lograr? Quem o vai lograr?

Contentemo-nos em tentar,

Mesmo então é fantasia!

 

Já não é, porém, mau:

Pesa menos o pau

Com que a vida nos ameia,

Com que sobre nós, cada dia,

Desencadeia

A pancadaria.

 

 

1170 - Cabaz

 

A nossa mente é capaz

De tudo,

Porque no conteúdo

Do cabaz

Retém todo o passado,

Contém todo o futuro.

 

E é o presente este lado

Em que o todo inauguro.

 

 

1171 - Diversidade

 

A menos que nos venhamos

Totalmente a destruir,

O porvir

Só estende os ramos

Na comunidade

Que encoraje ao abismo

Da diversidade

E não ao conformismo.

 

Que invista recursos

Para de experiências sociais

Alargar os percursos,

De modelos políticos, económicos e culturais,

Pronta a sacrificar de curto prazo a vantagem

Para a longo prazo garantir linhagem.

 

As novas ideias são as vias

Delicadas e frágeis,

Mas de infindas mais-valias,

Que nos conduzem, ágeis,

Do presente apuro

Ao ar livre do futuro.

 

 

1172 - Rumo

 

A evolução tem um rumo

A rumar à inteligência.

Em resumo;

- É a Providência?…

 

Não é, porém, um mistério:

É que ser inteligente

Melhor livrará do império

De qualquer risco adjacente

 

E garante descendência

Decerto mais abundante

Do que a de proveniência

Duma estupidez galante!

 

Ao termo,

Aqui me encontro eu

De pé no meio do ermo

Porque aquela estupidez já se extinguiu.

 

 

1173 - Escrita

 

Inventei a escrita,

Pus um autor no papel.

Doravante quem medita

Em minha cabeça é ele.

 

Não preciso de o procurar:

Quando me apeteça,

Posso ouvi-lo falar

Dentro de minha cabeça.

 

Depois,

O poder de pensar,

Porque a pensar já somos dois,

Desata então a caminhar.

 

Do ilógico ao concreto,

Do concreto ao abstracto,

Do abstracto ao criativo,

Não me limita nenhum tecto:

As asas desato

E vivo! E vivo! E vivo!

 

 

1174 - Rastos

 

A nossa tecnologia

Escreve no céu

Rastos de magia

Onde Deus morreu.

 

Serei doravante eu,

No real, na fantasia,

Que terei de encher o céu

Da salvação que havia?

 

Ou então,

Da minha falta de jeito

Resta apenas a perdição,

Por despeito?

 

 

1175 - Coragem

 

Nesta viagem

Para a salvação ou o degredo

É preciso ter coragem

Para ter medo.

 

 

1176 - Conservador

 

O conservador opõe-se

À conservação da natureza.

Põe-se

A questão:

O conservador que se preza

Conserva o quê?

Um quinhão

Do que é,

Ou não?

 

Senão,

Disto no lugar

Fica-lhe o quê

Para conservar?

 

 

1177 - Caminho

 

Não há nenhum caminho

Para a paz:

Nenhum adivinho

A traz,

Nenhum cadinho

Nela se compraz…

 

Resta apenas isto

Em que insisto:

A paz

É o caminho!

 

 

1178 - Desafio

 

O desafio que temos

É a reconciliação,

Que as mortes em massa vemos

Da História por todo o chão.

 

Depois da carnificina,

Não:

Em vez de toda a chacina,

Vamos apertar a mão!

 

É tempo de atar os laços,

É tempo de agir:

Vamos substituir

Armas por abraços

- E seguir!

 

 

1179 - Nada

 

Cuidado, que o nada pleno

Ainda um dia te acontece:

Onde o nada ganha terreno,

Nada mais cresce!

 

 

1180 - Sabedorias

 

Não é preciso ler todas as sabedorias,

Senão,

Na imensidão,

Como é que, tão minúsculo, lá entro?

Felizmente constato todos os dias

Que, sobretudo,

Tudo está em tudo

Para quem caminha lá por dentro.

 

 

1181 - Monstros

 

É abusar das criaturas

Termos

De monstros ser

Para da perfeição as figuras

Podermos

Entrever.

Exactamente

Por monstros nos reconhecermos,

Distantes das alturas

Definitivamente.

 

É abusar das criaturas,

Francamente!

 

 

1182 - Nobres

 

São as almas mais nobres

As mais sujeitas a ilusão:

Não serão

Os de espírito pobres

Que mais loucamente

Vêem o que querem ver,

Quem atribui a quenquer

Das qualidades a semente

Que só naqueles logra florescer.

 

Indefesas se entregam então

As nobres personalidades

Aos mais grosseiros ardis

Do pedante perverso e rezingão,

Do impostor artificioso de vaidades,

De encapotados senis…

 

Indefesas se afundam

E, com elas, as esperanças

Que, delas vindas, por vezes nos inundam.

 

- Homem, quando te alcanças?

 

 

1183 - Vento

 

Tudo no mundo se compra e se vende,

Os bens da terra e os do mar.

E aqueles a que menos se atende:

Os do ar.

 

Quem, porém, compra o vento

Que semeia as sementes

Do pensamento

No cruzar de todas as correntes?

 

Quem, porém, quer comprar

Um pouco da tempestade

De mudar

E melhorar

De identidade?

 

Quem, porém, por precaução,

Antes que a intempérie o destrua,

Compra um pouco de Lua

Por antecipação?

 

Quem um braçado de qualquer invento

Tem à mão?

Quem mo estende no chão?

Quem me vem minorar o tormento

Desta interminável solidão?

 

 

1184 - Maré

 

Cada coisa a seu tempo, senão erro

E nem dou fé:

Ninguém pode levantar ferro

Enquanto não há maré.

 

 

1185 - Voragem

 

Na vida pouco releva a voragem

Ou a precariedade:

Que importa o tamanho da viagem

Se no fim houver felicidade?

 

 

1186 - Agasalha

 

Creiam-no ou não os cépticos,

A cada dever cumprido

Há uma alegria secreta.

Os pagamentos poéticos

Só não farão mais sentido

A quem já não tenha meta.

 

Mais difícil a tarefa

A cumprir,

Tão mais abundante a ceifa

Deste trigo a nos nutrir.

 

Do corpo o repouso de quem trabalha

Não se compara

Ao calor

Com que o agasalha

A paz interior

Que no íntimo o ampara.

 

 

1187 - Extraterrestre

 

De extraterrestre inteligência

A procura,

Dum contexto cósmico a benevolência

Familiar,

Aceitável e segura

É, no fundo, procurar.

 

Mas no fundo mais profundo,

Dos desejos é o mais velho:

- Procurar-me a mim no mundo

E ver-me nele ao espelho.

 

 

1188 - Biliões

 

De galáxias mais de cem biliões,

Cada qual com mais de cem biliões de estrelas…

A esta escala quando te propões,

Que peso têm os homens, que sequelas?

 

No cósmico contexto

O Universo é muito belo

E muito violento.

Que pretexto

Em meu nada singelo

Invento

Para nele pesar como um elemento?

 

Através de infindos céus

Vemos um Universo, infinitamente um,

Que não exclui nenhum Deus

E também não exige Deus nenhum.

 

E aqui estou eu,

Um nada de solidão,

A gritar para o céu…

- Será que me ouvirão?

 

 

1189 - Bem-estar

 

Se existe Deus,

Minha curiosidade

É-me advinda de desejos seus.

Pouco apreciaria o dom de tal bondade

Se suprimira minha paixão

De mim e do Universo pela exploração.

 

Se não existir,

Minha inteligência

É a ferramenta do porvir

Que me há-de garantir

A sobrevivência.

 

Por ambas as vias

Do saber a empreitada

Tece as harmonias

Da ciência e da religião:

Na jogada,

Por ele garantirão,

Através do que do saber emana,

O bem-estar da espécie humana.

 

 

1190 - Misterioso

 

Experimentar podemos

O mais belo:

- O misterioso!

 

Ele é a fonte onde bebemos

Da ciência todo o apelo,

Das artes o vero gozo.

 

Quem é estranho a tal emoção,

Quem não consegue admirar,

Quem pelo deslumbramento

Não se deixa arrebatar,

Então,

É um morto, que um passamento

É viver de olhos fechados.

 

O que é impenetrável para nós

Deveras existe:

São os brados

Da beleza e sabedoria mais radiosos,

Cujos cipós

Nossa frágil mão persiste

Em agarrar

E apenas em formas primitivas

Apreende, perigosas

E esquivas.

 

Tal pressentimento

Da fugidia verdade,

Tal sentimento

É o coração da religiosidade.

 

Só neste sentido

Timorato e corajoso,

Quem o houver vivido

Às fileiras pertence de quem é religioso.

 

 

1191 - Perda

 

Lembramos o nascimento,

A perda sem remissão.

Sem tal, houvera o momento

De querer mudar meu chão?

 

A dor do parto

É de o cérebro ser tamanho:

O ganho

Com que parto

Gera-me a infelicidade

E origina a força,

Agrade-me ou não agrade,

A que a raça humana orça.

 

A religião promete

Um céu eterno:

Retorno que se repete

Ao útero materno.

 

Um nascimento é uma morte,

A morte, um renascimento.

Entre uma e outra, a sorte

É um tormento

Que a vida inteira comigo acarto:

É a dor do parto.

E a busca eterna, de seguida,

Do retorno ao ponto de partida.

 

Útero materno,

Meu céu e meu inferno.

 

A luz

Que ao fim do túnel a morte me traduz

Não será mais que a recordação

Do pélvico túnel que no mundo me introduz

Na acolhedora mão

Do deus que me tomou ao colo

E que, após a angústia, foi consolo.

Tudo em luz mergulhado

Ante meu olhar finalmente calmo e desfocado.

 

E toda a mudança

É, afinal, a retomada

Remoçada

Deste eterno compasso de dança.

 

 

1192 - Bravia

 

Quem tem garra gera o dia

Na paisagem onde pasce,

À flor bravia

Pouco lhe importa onde nasce.

 

 

1193 - Resistência

 

É uma evidência:

- Temos de encontrar

Resistência

Para voar.

 

 

1194 - Movimentando

 

Aprende a dançar dançando,

Aprende a viver vivendo:

Sempre te movimentando

É que irás sendo.

 

Quer de ti por fora,

Quer por dentro,

A realização que em ti mora

Dependerá deste centro.

 

A consciência de nós,

A satisfação do imo

Virão sempre após

A peregrinação ao cimo.

 

 

1195 - Argumento

 

As árvores de fruto

Quando em Maio florescem

Dão-nos o argumento arguto

De que nem só pelos frutos crescem.

 

Então, a glória, o esplendor

É o que vale cada flor.

 

E depois o fruto?

- É uma derradeira fantasia,

Mera demasia

Do produto…

 

 

1196 - Nada

 

Não fazer nada,

Liberto de amos,

É nunca saber, na jornada,

Quando acabamos.

 

 

1197 - Cinzas

 

Uma velha paixão ardente

Encontrar

É poder, de repente,

Em cinzas se transmudar.

 

 

1198 - Inúteis

 

As obras de arte são inúteis

E a desculpa mais evidente

Para cultivarmos coisas tão fúteis

É admirarmo-las nós tão intensamente.

 

O feio

Só resiste

Quando alguma utilidade, pelo meio,

Nele existe.

 

As obras de arte, não:

Se não forem belas, morrem,

- Ou estrelas nelas ocorrem

Ou extinguir-se-ão.

 

E não há quem se afoite

Na noite

De tal escuridão.

 

 

1199 - Sagrado

 

O sagrado é que merece

Que lhe ponha a mão:

Porque é proibido, apetece…

Depois é a desilusão:

Por mim principia

e nos demais acaba um dia.

 

E quando Ela é que é sagrada,

Chama o mundo então romance

À mão que hesita de entrada,

Que estremece com o alcance,

Se fecha ao fim sobre o nada

Por mais que avance…

 

A ilusão

É a marca de nossa mão

À partida e à chegada.

 

É no sonho

Que inteiro me ponho

E só nesta contramão

Vale a vida

Deveras a pena ser vivida.

 

Sem isto, não,

Não tem nunca a medida

Devida.

 

Com isto também não.

Mas que importa?

- Com isto deixo sempre aberta a porta

Para a outra dimensão.

 

 

1200 - Falência

 

Vai à falência a maioria

Por investir demais

Na prosa da vida.

São estúpidos, jamais

Viram a via:

Falência por falência, quem duvida?,

É falir pela poesia,

Que é ter a honra da festa

À despedida.

Não presta?

Pois não! Mas que admira?

- A festa, a festa já ninguém nos tira!

 

 

1201- Adeja

 

Miséria rasteja

Pela porta dentro,

Da janela adeja

Um amor ao centro.

 

Os olhos no chão,

Olhos nas estrelas,

De cada qual pende a opção

Por qual delas.

 

Em qualquer caso,

Nada muda a posição,

Mas altero por inteiro em mim o vaso

Da função.

 

 

1202 - Erro

 

É um erro pensar

Que a paixão

Experimentada

Num acto de criação

Se vem a manifestar

Na obra criada.

Qualquer obra de arte esconde mais

O artista, mesmo expondo-o à janela,

Do que à vista

O revela.

 

E, quanto mais o expuser,

Mais é um outro que se logra ver.

 

 

1203 - Inevitável

 

O passado pode ser destruído

Por remorso, renúncia, esquecimento.

O futuro é inevitável. Irrompido,

Rasgará de paixões o caminho,

Dos sonhos o lento

andamento

Será o cadinho

Que cobrirá de realidade

A indefesa

Presa:

- A sombra de nossa perversidade

Ou de nossa grandeza.

 

 

1204 - Fealdade

 

A fealdade,

As rixas grosseiras

São a única realidade.

O antro detestável a fervilhar de asneiras,

A cruel violência da vida

Desordenada,

O aviltamento com que lida

A proscrição revoltada,

Na intensidade

Que imprimem, brutais,

São a verdade

Nua, crua, sem mais.

 

E mais que as formas de arte,

Que a poesia

Estrumam o sonho de que parte

A fantasia.

 

Até que um dia, até que um dia…

 

 

1205 - Pactos

 

No mundo dos factos,

Nem os maus são punidos,

Nem os bons, recompensados:

O êxito firmou pactos

Com os fortes, embora fementidos,

E ao fracasso os fracos são jogados.

 

Nada mais,

Tal como entre quaisquer outros animais.

 

A humana diferença

Não é o facto que a alcança:

É um fermento de bem-querença

A viver da esperança.

 

Um dia qualquer

No porvir,

Talvez possamos vir a ser,

Talvez possamos vir…

 

 

1206 - Absoluta

 

Aquilo de que tiver

A certeza absoluta

Nunca verdadeiro há-de ser.

 

E esta é a única verdade que se escuta

Na minha gruta

Diminuta,

Em troca do que bem queira saber.

 

Ficarei de vez escasso.

A radical medida impoluta

É sempre a de meu fracasso.

 

Embora, de alguma maneira,

Vá ficando dia a dia mais à beira,

Mais à beira…

Aqui, do precipício na ameia,

À espreita do que da bruma de além me ameia.

 

 

1207 - Alcance

 

Uma palavra tem um longo alcance,

Muito longo,

Salva e destrói através dos tempos em que a lance

Como uma bala risca um traço

Estalando no gongo

Do espaço.

E, ao fim,

Sei lá bem que mistério lancei de mim!

 

 

1208 - Página

 

Caio e me levanto

Neste lento caminhar:

Há sempre uma página em branco

Ao meu dispor, para recomeçar.

 

 

1209 - Rosário

 

Nem grandes alegrias, nem grandes tristezas,

Apenas um intérmino rosário de aborrecimentos

É o dia-a-dia monótono que rezas.

 

Bastam, porém, de satisfações ligeiros tegumentos

E logo te sentes com direito fecundo

A um lugar no mundo.

 

E o dia

Brota sempre, afinal, desta alegria.

 

 

1210 - Adivinha

 

Tudo aconteceu já

Pelo menos uma vez.

Como viver à superfície do que há

Quando, mês a mês,

Momento a momento,

A vida

Nos convida

A reencontrar, em cada elemento,

O segredo da adivinha perdida?

 

 

1211 - Inferno

 

O inferno da guerra, o inferno…

- E o da paz, quem dele fala?

Esta paz que nos entala

Entre as folhas do caderno

Onde a palavra se cala,

Opaca, num branco eterno…

 

Só uma paz tempestuosa

Nos impede de morrer

No fogo lento do tédio.

Quem dela goza não goza,

A não ser quando aprender

O remédio,

Quando por dentro e por fora

A aventura abrir caminho

No sonho que nos devora,

Nos céus que voo sozinho…

 

- Quando na pedra e na carne

A guerra, ao fim, toda incarne.

 

 

1212 - Bofetada

 

Ontem, de repente, a bofetada:

Iria morrer como tinha nascido,

Como tinha vivido,

- Para nada!

 

E hoje, sem mais nem menos, a madrugada

Mudou tudo!

Ou sou o eterno miúdo

Onde qualquer pincelada

Muda o calhau da pegada

Em veludo?

 

 

1213 - Enraizar

 

Qualquer semente

Pode voar de porta em porta.

Quando árvore se enraizar ingente

Já ninguém a transporta.

 

É a divisa:

Quem pretende ser fecundo,

Fundo se enraíza

No mundo.

 

 

1214 - Barca

 

Compreenderás

De que lado sopra o vento,

Saberás

Dirigir a tua barca

Através do tredo elemento.

Cuidado, porém, com quanto abarca

O lado mau.

Salvarás teu porão e tua copa

Passando a vau

Quando em cheio te der o vento pela popa.

 

Escolhe bem, escolhe bem,

Ou serás, como o mundo inteiro,

Dos erros prisioneiro,

De ti próprio refém!

 

 

1215 - Pagamento

 

Ninguém logra fazer vida

Sem organização,

Como logo, de seguida,

Sem improvisação.

 

Apenas com os dois lados

A rigor medidos

E combinados

Receberemos os pagamentos devidos

Com os atrasados.

 

 

1216 - Ansiamos

 

Para que falamos sempre, falamos,

E sempre, afinal, do passado,

Se é pelo futuro que ansiamos

Com outro dedo do fado?

 

Não um futuro qualquer:

O que o sonho prometer!

 

Muitas vezes o passado

Corre atrás de nós, corre,

E apanha-nos do lado

Em que todo o futuro morre.

 

Como, porém, falar

Do que nunca existe

E que, disto apesar,

É a única coisa que em nós resiste?

 

O futuro, o futuro…

- Como saltar de vez o muro?

 

 

1217 - Despeça

 

Como confiar há-de poder

Quenquer em quenquer

Que lhe peça

Que por ele da vida se despeça?

 

Este mundo está cheio de mentira

E o de mentira incapaz

Já nem respira,

Sagaz.

 

Pela pátria ou pela nação,

Por Deus ou pela salvação,

Pela libertação,

Pelo fim da exploração,

Pela verdade,

Por sei lá quantas mais

Fantasias celestiais,

- Corre o sangue nos rios da cidade.

 

Por todo o mundo o chão

Ecoa

Ao dobrar do carrilhão,

No enterro das vítimas de cada causa boa.

 

Como confiar

Em quem nos pede a vida

Quando da paga a medida

Será sempre um balão de ar?

 

 

1218 - Ideal

 

O problema não é falta de ideal,

O idealista é que é perigoso:

Um idealista normal

Não é bondoso.

 

Sacrifica

Tudo e todos,

Por todos e quaisquer modos,

Aos sonhos pelos quais pontifica.

 

A vida de quem não sonha

Jamais é tão medonha,

Apenas desliza

Ao sabor da brisa…

 

Dela o mal

É não trepar um degrau

Acima do animal.

Mas enfim,

Não, não é assim

Tão mau…

 

E depois

Há sempre aqui lugar

Para dois, todos os dois…

 

Quem

Os impede de trepar?

Quem impede de trepar alguém?

 

 

1219 - Desagrado

 

Não querer

O desagrado do caminho

Os fins em vista é renunciar a percorrer,

Mesmo o mais comezinho.

 

 

1220 - Horizonte

 

A pergunta

Que o espírito cansa

Nenhum estímulo junta

Ao que alcança.

 

A pergunta que liberta

Vai à fonte:

É a que alerta

E desperta

Um horizonte.

 

 

1221 - Gota

 

Uma gota de água

Espelha o Universo,

Redonda como do Sol a frágua,

Da Terra o berço,

Com átomos aos milhões e milhões

Como de galáxias turbilhões,

Para ao fim , como tudo o mais,

Ser apenas uma bola onde vais,

Onde vais para diante

Como por todo o Universo restante.

 

Eu, tu e o Universo

Somos todos contas do mesmo terço.

 

 

1222 - Abelhas

 

O mel e as abelhas

Querem-se juntos,

Os nossos assuntos

Requerem as nossas orelhas,

O homem e a mulher

Um ao outro se requer…

Mas, às vezes, ao cheiro do recheio,

Metem-se ursos de permeio…

 

Por isto, a vida,

Na contradança,

Tão pouco e tão mal alcança

Em cada aposta prometida.

 

 

1223 - Travessia

 

A vida humana é assim:

Tudo é uma ilusão de magia.

Não há fim,

Apenas travessia!

 

 

1224 - Herdeiro

 

É muito estranho

Que um homem tenha de morrer.

Perda ou ganho

Haverá qualquer

Num herdeiro de inumeráveis gerações,

Resultado

Dum complicado

Rosário de evoluções,

Principiado

Há quatro biliões de anos,

Num berço de seis biliões de arcanos

Que formaram o planeta,

Se agora aqui,

Cortada a meta

Daquele interminável frenesi,

A cadeia de acidentes que nos confunde,

Numa solidão perdida e desolada,

Se funde

Com o nada?

 

 

1225 - Persuasivo

 

É difícil tudo e vago

De compreender.

Mas quem é persuasivo

Tudo o que no lago

Tiver

Torna magicamente vivo,

Pleno de grandiosidade e beleza.

São noites de luar

Que reza,

Estrelas distantes,

Murmúrios do mar…

- E nada fica como dantes.

 

 

1226 - Estranhos

 

Somos no mundo uns estranhos,

Desembarcados na ilha deserta.

Aprenderemos, com tempo, a tirar ganhos

Desta porta aberta

E a alcançar, como convier,

Tudo quanto se puder.

 

Um migalho de senso comum,

Um nico de tolerância,

Bom humor, algum,

- E que elegância

Mais completa

Na alegria do planeta!

 

 

1227 - Trilha

 

No horizonte a estrela dum sonho brilha?

Mais que luz, tenho uma trilha!

 

 

1228 - Escravatura

 

A evolução da escravatura,

Da antiguidade ao presente,

Mostra como o tempo dura, dura,

Até que algo fique assente.

 

Cada hora

Passageira,

O tempo que demora,

Pela História inteira,

Até ostentar a condecoração que nos decora

A frágil ombreira!

 

 

1229 - Imaginário

 

Atingimos estranhas metas:

O contrário das verdades de cotio

São mentiras completas;

Resta o bizarro desafio

De das grandes verdades o contrário

Serem outras verdades.

 

E a Razão que não logra ver Realidades

Como fantasias do imaginário!

 

É tão verdadeiro

O determinismo da relatividade

À escala do Universo inteiro,

Como o indeterminismo é verdade

No movimento das partículas

Microscopicamente ridículas

que não são mais que o reverso,

Em escala diminuta,

Deste mesmo Universo

Regido pela mesma batuta.

 

Como é que a Razão

Afirma, em simultâneo, Sim e Não?

 

Como, sem se perder no desvão?…

 

 

1230 - Pó

 

A terra é grande,

O céu, imenso.

Vazio. E eu só!

Eu quem mande,

Penso…

- A pretensão do pó!

 

 

1231 - Princípio

 

O princípio duma

É doutra o fim

Que principiou noutra alguma:

Sou viagem assim,

Caminho também

Desde o ventre de minha mãe.

Prolongo trilhos que vêm detrás

Um nada adiante.

E mais distante

Seguirá quem de mim vier atrás.

 

O mundo é uma teia de caminhos

Ensarilhados geração a geração.

Os ninhos

São o nó de ligação.

 

 

1232 - Costas

 

A religião e o sexo

Andam de costas voltadas.

O nexo

São as vergonhas pecadas.

 

Temos vergonha ou terror

Do que demais vive nele:

O amor

É o terror do Além que apele.

 

Mora em nós a divindade:

Como a divindade pesa!

A verdade

É o Além que te embeleza.

 

 

1233 - Presente

 

A realidade presente

Em tua realidade,

Ser único de teu ente,

Que quer dizer de verdade?

 

Aceno da plenitude

De ti

Vai sendo, vai sendo em virtude

De ser ao não ser aí!

 

 

1234 - Assusta

 

O meu gesto será mesmo

Maior do que eu?

Tremo, com tal me ensimesmo:

Um deus assusta, Deus meu!

 

Mesmo se verifico após

Que tal deus sejamos nós.

 

Até porque o não crio,

Antes ele é que me cria:

Flui de mim como um rio

Em demasia!

 

 

1235 - Solidão

 

Tu hás-de ser grande,

Tu hás-de ficar só

Com toda a grandeza que comande

Um grão de pó.

 

Estar só, como magoa!

Como encher a solidão?

 

Mas como pode errar a voz que ecoa,

Grave, da imensidão,

Tão humana além do homem?

Como, se é nela

Que os sonhos se te consomem

No rumo de cada estrela?

 

 

1236 - Sortilégios

 

Não crerás

Em feitiços nem sortilégios

Para combater um inimigo assás

Mortal e com privilégios

Régios:

O mundo

Em decomposição,

Uma civilização

A afogar, inexorável, cada vez mais fundo.

 

A angústia e a negação

Ultrapassarás

Dedicando-te ao que há de permanente

E te perfaz:

Tua íntima riqueza

Inúmera, consistente,

Bem como dela a subtileza,

a ingente

Necessidade

De progredir em liberdade…

 

E o eterno combate

Contra o inimigo:

- O que de fora te abate

E que dentro em ti armou abrigo.

 

 

1237 - Inclinam

 

Os olhos nos iluminam

O que vêem.

Com luz interior inclinam,

Nos exactos momentos,

Os que lêem

A ficarem atentos.

 

Ocorre então,

Inesperada,

A iluminação:

- E temos mais uma estrada!

 

 

1238 - Famintos

 

As coisas de arte

Não alimentam famintos

Mas, famintos aparte,

Alargam do espírito os cintos.

 

 

1239 - Emaranhado

 

Ligado

Por um longo emaranhado

De fios com o presente,

O passado

Jamais desaparece:

Eternamente

Em todo o aqui permanece.

 

É o fado

De qualquer antigamente:

Plinto

Sob meus pés colocado

Onde no porvir me pinto

Lançado

E me sinto.

E me sinto renovado!

 

É o meu fado,

O fado que eternamente me minto.

 

 

1240 - Minhoca

 

Enclausurado em minha toca,

Adivinho:

Deus a cada pardal dá sua minhoca,

Mas nunca lha atira para o ninho.