DÉCIMA PRIMEIRA REDONDILHA
RUMO
A UM IGNORADO OLHAR
Escolha um número aleatório entre 1133 e 1240 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1133 - Rumo a um ignorado olhar
Rumo a um ignorado olhar
Virarei o timão
Da barca a navegar
Na humana infinita solidão.
Terra à vista
Anotarei
E o mais leve vislumbre que revista
A vinda do que espero e nunca sei.
As alvoradas
Tocarei nos clarins do verso
A estimular as caminhadas
Por onde interminável me disperso.
Minhas jornadas
Na palavra terão delas o berço.
1134 - Nunca |
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Ele nunca aliciava, |
Persuadia. |
Ele, não, nunca adulava, |
Encorajava quem via. |
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- Que admira depois que o melhor |
Rebente em cada qual como uma flor? |
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1135 - Cimos |
|
Quando já não conseguimos |
Aquilo que desejamos, |
Se para os cimos |
Caminhamos, |
O melhor é começar, |
Para exorcizar os demos, |
A gostar |
Mas é daquilo que temos. |
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1136 - Poesia |
|
A poesia não é escrita |
Para ser interpretada, |
Concita |
A um nada |
Inspira sem razão, |
Toca sem compreensão… |
|
A poesia é tudo, |
Aquele todo maior que a soma das partes… |
Não as dividas, põe-te mudo, |
Que o mistério é para ser ouvido. |
Não acartes |
Com a maldição do além |
Que mora escondido |
Nas franjas de sentido |
Que qualquer poema indelevelmente tem |
Só porque o não contém. |
Nem retém. |
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1137 - Tela |
|
Pintar uma tela em branco… |
O pior é que a vida dum homem |
Não é a tela que atravanco |
De tintas que se somem. |
|
Esquecer para recomeçar… |
Só quando o esquecimento |
Fora inútil por não haver lugar |
À memória, ao passado, à dúvida dum momento. |
|
Minha tela está cheia de coloridos |
De todos os meus eus que já são idos. |
|
Todo o recomeço |
É uma mudança |
A ver se o que meço |
Minha pegada o alcança. |
1138 - Enraizado |
|
Recusar o mundo é impossível, |
Nele estou enraizado, |
Por mais que seja terrível. |
Somos nós que o fazemos |
E ele faz-nos, por seu lado. |
Em cada qual e no todo |
Mora o drama que vivemos. |
Depois da noite e seu modo |
Vem o alvor de cada dia, |
Embora a noite arredia |
Lhe venha após suceder. |
O que temos de tentar |
É a noite tanto encurtar |
Que nem noite fique sequer. |
Que o que lhe sucederia |
Não seja um dia qualquer, |
Seja o dia, o eterno Dia. |
|
O porvir não adivinho, |
Porém, aponto um caminho. |
|
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1139 - Materiais |
|
Ninguém recolhe os materiais da vida: |
Vivem-se, Ou então nós os inventamos. |
|
Vivência ou invenção pode escolhida |
Ser se sabemos para onde vamos, |
Porém, |
E como queremos ir. |
|
Como convém, |
Quando entalhamos o comum porvir. |
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1140 - Parcela |
|
A vida é uma parcela |
Do que quero e que não há: |
É no fundo o que sonhamos dela, |
Não o que nos dá. |
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1141 - Traça |
|
Como o tempo passa! |
E como pelo tempo nós passamos |
Sem deixar traça |
Do que quer que sejamos. |
|
Ou deixamos |
E o que nunca passa |
É o que sonhamos |
E jamais somos, por nossa desgraça. |
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1142 - Fronteira |
|
Não são os escolhos, |
É a fronteira que nos reduz: |
- Temos olhos, |
Mas não podemos ver se não há luz. |
|
O sinal |
É que além das encostas jamais veremos |
Do vale |
Por cujo leito fundo caminhemos. |
|
O tempo é uma estrada larga |
Mas quando vamos através dele |
Torna-se porta tão estreita e amarga |
Que nos rasga a pele. |
|
Defende-te da tentação |
De escolher rumo claro e seguro: |
Isto cega-te ao que o rumo tem de impuro, |
Leva sempre à estagnação |
E acaba num muro. |
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1143 - Dentro |
|
Planos dentro de planos, dentro de planos… |
Sou mesmo refém! |
Nu fundo dos arcanos |
Serei um plano de Alguém? |
|
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1144 - Mecanismo |
|
A aposta no progresso |
Age, tal mecanismo protector, |
A abrigar-nos, dela no recesso, |
Do futuro contra o terror. |
|
|
1145 - Caminho |
|
O caminho que conduz |
Da escravatura à liberdade |
É da literacia a luz, |
Rumo ao saber e à verdade. |
|
Tantos tipos de escravatura |
E de liberdade tantos! |
A postura |
Que destes promete os encantos |
É um discreto cadinho |
Que apura o ser: |
- O caminho |
É o de ler! |
|
|
1146 - Planeta |
|
A ciência não mente: |
A Humanidade mora |
Neste planeta para evoluir, pelo menos agora, |
Conscientemente. |
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1147 - Lentamente |
|
O que faz |
O presente |
É o futuro lentamente |
A caminhar para trás. |
|
É o grande ausente |
Que nos traz |
De presente |
Os anos que cada qual faz, |
Os anos cuja semente |
De sonho e de paz |
O mundo inteiro sente, |
O mundo inteiro pressente… |
E depois fica incapaz, |
Incoerente, |
Impotente, |
Ineficaz… |
|
O futuro |
É o presente que inauguro |
Sem entender sequer como se faz. |
|
|
1148 - Hoje |
|
Como o que inovo |
Me foge! |
O novo é novo |
Apenas hoje… |
|
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1149 - Fugir |
|
Cada qual tem de assumir |
A própria cura. |
Entregá-la aos outros é fugir |
E o medo perdura. |
|
Ora, vencer o medo |
É o segredo |
Para o porvir que se inaugura. |
|
Porvir individual |
Ou colectivo: |
- Sem a marca de meu sinal |
Não vivo. |
|
|
1150 - Polarização |
|
Há uma polarização |
Entre quem crê que há um porvir |
E quem só vê negação: |
- É o que impede de seguir. |
|
A caminhada |
Irá tão mais devagar |
Quanto mais demorar |
O consenso da chegada. |
|
|
1151 - Transição |
|
Na transição cultural |
Finda a civilização: |
Velhas certezas se desfarão, |
Os pontos de vista dão sinal |
De evoluir para nova tradição. |
|
A curto prazo |
Às ansiedades dão aso. |
|
Enquanto alguns despertam |
Para uma íntima ligação de amor, |
Entre eles se alertam |
E concertam |
Para rápidos evoluírem com vigor, |
Outros perdem o rumo |
Na demasiada para eles rapidez. |
|
Devêm receosos, em resumo, |
E controladores, por sua vez. |
Se lhes aumentam os problemas |
Poderão chegar, perigosos, |
Às medidas extremas. |
|
- É o que sempre na memória |
Nos envenena os gozos |
Da História. |
1152 - História |
|
A História, |
Mais do que um avatar, |
É a memória |
Dum longo caminho de acordar. |
|
|
1153 - Controlo |
|
Libertar-me dum evento de controlo |
De mim sobre outrem, doutrem sobre mim, |
De ansiedade faz que me rebolo |
E me enrolo |
Em descontrolo, |
Do princípio até ao fim. |
|
O terror vai-me subir |
Antes de haver conseguido |
No imo o caminho do devir |
Para deixar de andar perdido. |
|
A noite escura |
Precede a euforia |
Do dia |
Que me apura. |
|
|
1154 - Capaz |
|
Não proclames perante quenquer, |
Sem intervalo, |
O que és capaz de fazer: |
- Fá-lo! |
|
|
1155 - Mimada |
|
A criança mimada |
Sofre e desespera, |
Duma assentada |
Detestável fera |
E pomba encantadora. |
|
Quis a Lua |
Que demora, |
Logrou passeá-la pela rua |
E já não sabe que fazer dela agora. |
|
Limita-se a agarrá-la |
Com ambas as mãos, |
Vendo que dela cada vez mais abala, |
Que todos os músculos são vãos, |
Por mais que finque os pés, |
Para evitar que lhe fuja de vez. |
|
A humanidade mimada, |
Fera e pomba, |
Quando o sonho tomba |
Assim perde o rumo pela estrada. |
|
Como se o sonho não fora primícia mera |
Do que a espera |
Na adultez, com a medida |
Doutro patamar de vida. |
|
|
1156 - Nuvem |
|
Até a nuvem que no primeiro momento |
Cabe na palma da mão |
Pode vir a toldar o firmamento |
Em toda a imensidão. |
|
|
1157 - Seguintes |
|
Não na minha vida nem na tua, |
Na seguinte das seguintes… |
Que importa? Lutar é que pontua, |
Até acertarmos nos vintes. |
|
A luta |
Mais dura |
Virá depois de toda a disputa. |
É na paz |
Que a verdadeira guerra perdura: |
Aí é que a vida apraz |
E se apura. |
|
Aí é que a vida nos faz, |
Segura. |
|
|
1158 - Ricaço |
|
O ricaço amaldiçoa |
Alto e bom som. |
O ricaço resiste, à toa, |
A quanto cheire a modificação, |
Desde que, como um agoiro, |
Se inventou o oiro. |
|
É o travão |
Do futuro. |
Por isso o que inauguro |
É sempre em contra-mão. |
E o mais que apuro |
É uma ilusão, |
Seja embora o único seguro |
Contra a definitiva podridão. |
|
Na ilusão e na derrota, |
Afinal, estou a ir: |
- Ferido e humilhado, sou a rota |
Do porvir. |
|
|
1159 - Frondes |
|
Nas frondes dos jardins |
Quantos projectos perdidos, |
Esperanças adiadas para confins |
De horizontes desmedidos! |
Quantos sonhos que hão morrido |
Há tanto tempo, tanto, |
Que já nem valem o pranto |
De os nem haver pressentido! |
|
O sonho da igualdade |
Entre todos em todos os mundos, |
A equidade, |
Será destes fantasmas vagabundos? |
|
- Por muito que seja vão |
Para os que se por ele somem, |
Jamais ao menos morreu no coração |
Do homem. |
|
Eis como a luta pela igualdade |
É o nosso chão |
De eternidade. |
|
|
1160 - Esquecidos |
|
É viável perdoar ao homem |
Por olhar tempos esquecidos |
Os desejos que o consomem, |
Dele no coração perdidos, |
|
Embora os saiba, |
Enquanto a angústia o balance, |
Fora e para além de quanto caiba |
Nas margens de seu alcance. |
|
É viável perdoá-lo |
De lhes sentir eterno o abalo. |
|
Até porque um pouco de carinho |
Sempre ajuda |
A deitar pés ao caminho |
Enquanto melhor nos não acuda. |
|
- E eis como do Fim sempre me avizinho. |
|
|
1161 - Onda |
|
A grande onda |
De inquietação que assola o mundo, |
Haverá quem nos responda |
Onde a seguir tocará o fundo? |
|
A única certeza |
Que não tolera disfarce |
É que o Homem luta e reza |
Por libertar-se. |
|
Deste inferno |
Para o céu |
A gemer, eterno, |
Por levantar o véu. |
|
|
1162 - Suprema |
|
De Deus a suprema caridade |
Os homens consiste em impedir |
De felizes serem de verdade |
Na terra que existir. |
|
Doutro modo, quem abala, |
Como lhe custaria deixá-la! |
|
Então, por trás dos véus, |
Quem vislumbraria os céus? |
|
|
1163 - Raízes |
|
Felizes |
Os que fundam o chão: |
Viver sem raízes |
Amargura o coração! |
|
|
1164 - Extraordinário |
|
Crês, primeiro, |
Que ocorre contigo o extraordinário. |
Vagueias, vário, |
Pelo mundo inteiro: |
Descobrirás que a infelicidade |
É a mais vulgar |
Identidade |
De todo e qualquer lugar. |
|
O derradeiro |
Horizonte da sorte |
É o inexorável sendeiro |
Discreto e lento da morte. |
|
Daí a aposta de que a vida |
Seja também |
Interminavelmente mais comprida |
Para Além. |
|
|
1165 - Serenidade |
|
A serenidade, |
Tranquila filha da tolerância, |
Que escadaria nos há-de |
Encurtar dela a distância? |
|
Primeiro, a sabedoria, |
Depois, pairar acima da circunstância, |
Resignar-se ao inevitável cada dia, |
Acolher o diferente |
Com a inocência da infância… |
|
O militarismo do ideal |
Consente |
Em devir brutal |
Para o mundo melhorar |
E tem-no sempre piorado, |
Não por mero fruto do azar |
Mas por inevitável fado: |
Nunca o ditador é sereno. |
|
E, para o tamanho do ideal, |
É, para nosso mal, |
Fatalmente por demais pequeno. |
|
Como, aliás, todo o homem: |
Nós somos o lugar |
Onde os sonhos se consomem, |
Sem que jamais sequer apenas |
Um logre vingar |
Em leiras terrenas. |
|
O sonho, à escala humana, |
Tem o estatuto |
De jamais ser um produto, |
Mas de encantar-me com o perfume que emana. |
|
|
1166 - Turistas |
|
Olhando as vistas, |
Cada qual cumprindo os destinos |
Que forem os seus, |
Somos apenas turistas, |
Meros peregrinos |
Nesta terra de Deus. |
|
|
1167 - Ilusão |
|
A ilusão vale a pena |
Quando a realidade, na ocasião, |
Por mais pequena, |
Lhe der a mão. |
|
|
1168 - Litígio |
|
Tudo como dantes, |
Sem que eu acometa |
Em litígio?! |
- Os próprios tratantes |
Não gostam de abandonar o planeta |
Sem o próprio vestígio! |
|
|
1169 - Arco-íris |
|
No arco-íris não sei andar, |
Mas bem gostaria! |
Quem o vai lograr? Quem o vai lograr? |
Contentemo-nos em tentar, |
Mesmo então é fantasia! |
|
Já não é, porém, mau: |
Pesa menos o pau |
Com que a vida nos ameia, |
Com que sobre nós, cada dia, |
Desencadeia |
A pancadaria. |
|
|
1170 - Cabaz |
|
A nossa mente é capaz |
De tudo, |
Porque no conteúdo |
Do cabaz |
Retém todo o passado, |
Contém todo o futuro. |
|
E é o presente este lado |
Em que o todo inauguro. |
|
|
1171 - Diversidade |
|
A menos que nos venhamos |
Totalmente a destruir, |
O porvir |
Só estende os ramos |
Na comunidade |
Que encoraje ao abismo |
Da diversidade |
E não ao conformismo. |
|
Que invista recursos |
Para de experiências sociais |
Alargar os percursos, |
De modelos políticos, económicos e culturais, |
Pronta a sacrificar de curto prazo a vantagem |
Para a longo prazo garantir linhagem. |
|
As novas ideias são as vias |
Delicadas e frágeis, |
Mas de infindas mais-valias, |
Que nos conduzem, ágeis, |
Do presente apuro |
Ao ar livre do futuro. |
|
|
1172 - Rumo |
|
A evolução tem um rumo |
A rumar à inteligência. |
Em resumo; |
- É a Providência?… |
|
Não é, porém, um mistério: |
É que ser inteligente |
Melhor livrará do império |
De qualquer risco adjacente |
|
E garante descendência |
Decerto mais abundante |
Do que a de proveniência |
Duma estupidez galante! |
|
Ao termo, |
Aqui me encontro eu |
De pé no meio do ermo |
Porque aquela estupidez já se extinguiu. |
|
|
1173 - Escrita |
|
Inventei a escrita, |
Pus um autor no papel. |
Doravante quem medita |
Em minha cabeça é ele. |
|
Não preciso de o procurar: |
Quando me apeteça, |
Posso ouvi-lo falar |
Dentro de minha cabeça. |
|
Depois, |
O poder de pensar, |
Porque a pensar já somos dois, |
Desata então a caminhar. |
|
Do ilógico ao concreto, |
Do concreto ao abstracto, |
Do abstracto ao criativo, |
Não me limita nenhum tecto: |
As asas desato |
E vivo! E vivo! E vivo! |
|
|
1174 - Rastos |
|
A nossa tecnologia |
Escreve no céu |
Rastos de magia |
Onde Deus morreu. |
|
Serei doravante eu, |
No real, na fantasia, |
Que terei de encher o céu |
Da salvação que havia? |
|
Ou então, |
Da minha falta de jeito |
Resta apenas a perdição, |
Por despeito? |
|
|
1175 - Coragem |
|
Nesta viagem |
Para a salvação ou o degredo |
É preciso ter coragem |
Para ter medo. |
|
|
1176 - Conservador |
|
O conservador opõe-se |
À conservação da natureza. |
Põe-se |
A questão: |
O conservador que se preza |
Conserva o quê? |
Um quinhão |
Do que é, |
Ou não? |
|
Senão, |
Disto no lugar |
Fica-lhe o quê |
Para conservar? |
|
|
1177 - Caminho |
|
Não há nenhum caminho |
Para a paz: |
Nenhum adivinho |
A traz, |
Nenhum cadinho |
Nela se compraz… |
|
Resta apenas isto |
Em que insisto: |
A paz |
É o caminho! |
|
|
1178 - Desafio |
|
O desafio que temos |
É a reconciliação, |
Que as mortes em massa vemos |
Da História por todo o chão. |
|
Depois da carnificina, |
Não: |
Em vez de toda a chacina, |
Vamos apertar a mão! |
|
É tempo de atar os laços, |
É tempo de agir: |
Vamos substituir |
Armas por abraços |
- E seguir! |
|
|
1179 - Nada |
|
Cuidado, que o nada pleno |
Ainda um dia te acontece: |
Onde o nada ganha terreno, |
Nada mais cresce! |
|
1180 - Sabedorias |
|
Não é preciso ler todas as sabedorias, |
Senão, |
Na imensidão, |
Como é que, tão minúsculo, lá entro? |
Felizmente constato todos os dias |
Que, sobretudo, |
Tudo está em tudo |
Para quem caminha lá por dentro. |
|
1181 - Monstros |
|
É abusar das criaturas |
Termos |
De monstros ser |
Para da perfeição as figuras |
Podermos |
Entrever. |
Exactamente |
Por monstros nos reconhecermos, |
Distantes das alturas |
Definitivamente. |
|
É abusar das criaturas, |
Francamente! |
|
|
1182 - Nobres |
|
São as almas mais nobres |
As mais sujeitas a ilusão: |
Não serão |
Os de espírito pobres |
Que mais loucamente |
Vêem o que querem ver, |
Quem atribui a quenquer |
Das qualidades a semente |
Que só naqueles logra florescer. |
|
Indefesas se entregam então |
As nobres personalidades |
Aos mais grosseiros ardis |
Do pedante perverso e rezingão, |
Do impostor artificioso de vaidades, |
De encapotados senis… |
|
Indefesas se afundam |
E, com elas, as esperanças |
Que, delas vindas, por vezes nos inundam. |
|
- Homem, quando te alcanças? |
|
|
1183 - Vento |
|
Tudo no mundo se compra e se vende, |
Os bens da terra e os do mar. |
E aqueles a que menos se atende: |
Os do ar. |
|
Quem, porém, compra o vento |
Que semeia as sementes |
Do pensamento |
No cruzar de todas as correntes? |
|
Quem, porém, quer comprar |
Um pouco da tempestade |
De mudar |
E melhorar |
De identidade? |
|
Quem, porém, por precaução, |
Antes que a intempérie o destrua, |
Compra um pouco de Lua |
Por antecipação? |
|
Quem um braçado de qualquer invento |
Tem à mão? |
Quem mo estende no chão? |
Quem me vem minorar o tormento |
Desta interminável solidão? |
|
|
1184 - Maré |
|
Cada coisa a seu tempo, senão erro |
E nem dou fé: |
Ninguém pode levantar ferro |
Enquanto não há maré. |
|
|
1185 - Voragem |
|
Na vida pouco releva a voragem |
Ou a precariedade: |
Que importa o tamanho da viagem |
Se no fim houver felicidade? |
|
|
1186 - Agasalha |
|
Creiam-no ou não os cépticos, |
A cada dever cumprido |
Há uma alegria secreta. |
Os pagamentos poéticos |
Só não farão mais sentido |
A quem já não tenha meta. |
|
Mais difícil a tarefa |
A cumprir, |
Tão mais abundante a ceifa |
Deste trigo a nos nutrir. |
|
Do corpo o repouso de quem trabalha |
Não se compara |
Ao calor |
Com que o agasalha |
A paz interior |
Que no íntimo o ampara. |
|
|
1187 - Extraterrestre |
|
De extraterrestre inteligência |
A procura, |
Dum contexto cósmico a benevolência |
Familiar, |
Aceitável e segura |
É, no fundo, procurar. |
|
Mas no fundo mais profundo, |
Dos desejos é o mais velho: |
- Procurar-me a mim no mundo |
E ver-me nele ao espelho. |
|
|
1188 - Biliões |
|
De galáxias mais de cem biliões, |
Cada qual com mais de cem biliões de estrelas… |
A esta escala quando te propões, |
Que peso têm os homens, que sequelas? |
|
No cósmico contexto |
O Universo é muito belo |
E muito violento. |
Que pretexto |
Em meu nada singelo |
Invento |
Para nele pesar como um elemento? |
|
Através de infindos céus |
Vemos um Universo, infinitamente um, |
Que não exclui nenhum Deus |
E também não exige Deus nenhum. |
|
E aqui estou eu, |
Um nada de solidão, |
A gritar para o céu… |
- Será que me ouvirão? |
|
|
1189 - Bem-estar |
|
Se existe Deus, |
Minha curiosidade |
É-me advinda de desejos seus. |
Pouco apreciaria o dom de tal bondade |
Se suprimira minha paixão |
De mim e do Universo pela exploração. |
|
Se não existir, |
Minha inteligência |
É a ferramenta do porvir |
Que me há-de garantir |
A sobrevivência. |
|
Por ambas as vias |
Do saber a empreitada |
Tece as harmonias |
Da ciência e da religião: |
Na jogada, |
Por ele garantirão, |
Através do que do saber emana, |
O bem-estar da espécie humana. |
|
|
1190 - Misterioso |
|
Experimentar podemos |
O mais belo: |
- O misterioso! |
|
Ele é a fonte onde bebemos |
Da ciência todo o apelo, |
Das artes o vero gozo. |
|
Quem é estranho a tal emoção, |
Quem não consegue admirar, |
Quem pelo deslumbramento |
Não se deixa arrebatar, |
Então, |
É um morto, que um passamento |
É viver de olhos fechados. |
|
O que é impenetrável para nós |
Deveras existe: |
São os brados |
Da beleza e sabedoria mais radiosos, |
Cujos cipós |
Nossa frágil mão persiste |
Em agarrar |
E apenas em formas primitivas |
Apreende, perigosas |
E esquivas. |
|
Tal pressentimento |
Da fugidia verdade, |
Tal sentimento |
É o coração da religiosidade. |
|
Só neste sentido |
Timorato e corajoso, |
Quem o houver vivido |
Às fileiras pertence de quem é religioso. |
|
|
1191 - Perda |
|
Lembramos o nascimento, |
A perda sem remissão. |
Sem tal, houvera o momento |
De querer mudar meu chão? |
|
A dor do parto |
É de o cérebro ser tamanho: |
O ganho |
Com que parto |
Gera-me a infelicidade |
E origina a força, |
Agrade-me ou não agrade, |
A que a raça humana orça. |
|
A religião promete |
Um céu eterno: |
Retorno que se repete |
Ao útero materno. |
|
Um nascimento é uma morte, |
A morte, um renascimento. |
Entre uma e outra, a sorte |
É um tormento |
Que a vida inteira comigo acarto: |
É a dor do parto. |
E a busca eterna, de seguida, |
Do retorno ao ponto de partida. |
|
Útero materno, |
Meu céu e meu inferno. |
|
A luz |
Que ao fim do túnel a morte me traduz |
Não será mais que a recordação |
Do pélvico túnel que no mundo me introduz |
Na acolhedora mão |
Do deus que me tomou ao colo |
E que, após a angústia, foi consolo. |
Tudo em luz mergulhado |
Ante meu olhar finalmente calmo e desfocado. |
|
E toda a mudança |
É, afinal, a retomada |
Remoçada |
Deste eterno compasso de dança. |
|
|
1192 - Bravia |
|
Quem tem garra gera o dia |
Na paisagem onde pasce, |
À flor bravia |
Pouco lhe importa onde nasce. |
|
|
1193 - Resistência |
|
É uma evidência: |
- Temos de encontrar |
Resistência |
Para voar. |
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1194 - Movimentando |
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Aprende a dançar dançando, |
Aprende a viver vivendo: |
Sempre te movimentando |
É que irás sendo. |
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Quer de ti por fora, |
Quer por dentro, |
A realização que em ti mora |
Dependerá deste centro. |
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A consciência de nós, |
A satisfação do imo |
Virão sempre após |
A peregrinação ao cimo. |
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1195 - Argumento |
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As árvores de fruto |
Quando em Maio florescem |
Dão-nos o argumento arguto |
De que nem só pelos frutos crescem. |
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Então, a glória, o esplendor |
É o que vale cada flor. |
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E depois o fruto? |
- É uma derradeira fantasia, |
Mera demasia |
Do produto… |
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1196 - Nada |
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Não fazer nada, |
Liberto de amos, |
É nunca saber, na jornada, |
Quando acabamos. |
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1197 - Cinzas |
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Uma velha paixão ardente |
Encontrar |
É poder, de repente, |
Em cinzas se transmudar. |
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1198 - Inúteis |
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As obras de arte são inúteis |
E a desculpa mais evidente |
Para cultivarmos coisas tão fúteis |
É admirarmo-las nós tão intensamente. |
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O feio |
Só resiste |
Quando alguma utilidade, pelo meio, |
Nele existe. |
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As obras de arte, não: |
Se não forem belas, morrem, |
- Ou estrelas nelas ocorrem |
Ou extinguir-se-ão. |
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E não há quem se afoite |
Na noite |
De tal escuridão. |
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1199 - Sagrado |
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O sagrado é que merece |
Que lhe ponha a mão: |
Porque é proibido, apetece… |
Depois é a desilusão: |
Por mim principia |
e nos demais acaba um dia. |
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E quando Ela é que é sagrada, |
Chama o mundo então romance |
À mão que hesita de entrada, |
Que estremece com o alcance, |
Se fecha ao fim sobre o nada |
Por mais que avance… |
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A ilusão |
É a marca de nossa mão |
À partida e à chegada. |
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É no sonho |
Que inteiro me ponho |
E só nesta contramão |
Vale a vida |
Deveras a pena ser vivida. |
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Sem isto, não, |
Não tem nunca a medida |
Devida. |
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Com isto também não. |
Mas que importa? |
- Com isto deixo sempre aberta a porta |
Para a outra dimensão. |
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1200 - Falência |
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Vai à falência a maioria |
Por investir demais |
Na prosa da vida. |
São estúpidos, jamais |
Viram a via: |
Falência por falência, quem duvida?, |
É falir pela poesia, |
Que é ter a honra da festa |
À despedida. |
Não presta? |
Pois não! Mas que admira? |
- A festa, a festa já ninguém nos tira! |
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1201- Adeja |
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Miséria rasteja |
Pela porta dentro, |
Da janela adeja |
Um amor ao centro. |
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Os olhos no chão, |
Olhos nas estrelas, |
De cada qual pende a opção |
Por qual delas. |
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Em qualquer caso, |
Nada muda a posição, |
Mas altero por inteiro em mim o vaso |
Da função. |
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1202 - Erro |
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É um erro pensar |
Que a paixão |
Experimentada |
Num acto de criação |
Se vem a manifestar |
Na obra criada. |
Qualquer obra de arte esconde mais |
O artista, mesmo expondo-o à janela, |
Do que à vista |
O revela. |
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E, quanto mais o expuser, |
Mais é um outro que se logra ver. |
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1203 - Inevitável |
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O passado pode ser destruído |
Por remorso, renúncia, esquecimento. |
O futuro é inevitável. Irrompido, |
Rasgará de paixões o caminho, |
Dos sonhos o lento |
andamento |
Será o cadinho |
Que cobrirá de realidade |
A indefesa |
Presa: |
- A sombra de nossa perversidade |
Ou de nossa grandeza. |
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1204 - Fealdade |
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A fealdade, |
As rixas grosseiras |
São a única realidade. |
O antro detestável a fervilhar de asneiras, |
A cruel violência da vida |
Desordenada, |
O aviltamento com que lida |
A proscrição revoltada, |
Na intensidade |
Que imprimem, brutais, |
São a verdade |
Nua, crua, sem mais. |
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E mais que as formas de arte, |
Que a poesia |
Estrumam o sonho de que parte |
A fantasia. |
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Até que um dia, até que um dia… |
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1205 - Pactos |
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No mundo dos factos, |
Nem os maus são punidos, |
Nem os bons, recompensados: |
O êxito firmou pactos |
Com os fortes, embora fementidos, |
E ao fracasso os fracos são jogados. |
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Nada mais, |
Tal como entre quaisquer outros animais. |
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A humana diferença |
Não é o facto que a alcança: |
É um fermento de bem-querença |
A viver da esperança. |
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Um dia qualquer |
No porvir, |
Talvez possamos vir a ser, |
Talvez possamos vir… |
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1206 - Absoluta |
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Aquilo de que tiver |
A certeza absoluta |
Nunca verdadeiro há-de ser. |
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E esta é a única verdade que se escuta |
Na minha gruta |
Diminuta, |
Em troca do que bem queira saber. |
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Ficarei de vez escasso. |
A radical medida impoluta |
É sempre a de meu fracasso. |
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Embora, de alguma maneira, |
Vá ficando dia a dia mais à beira, |
Mais à beira… |
Aqui, do precipício na ameia, |
À espreita do que da bruma de além me ameia. |
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1207 - Alcance |
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Uma palavra tem um longo alcance, |
Muito longo, |
Salva e destrói através dos tempos em que a lance |
Como uma bala risca um traço |
Estalando no gongo |
Do espaço. |
E, ao fim, |
Sei lá bem que mistério lancei de mim! |
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1208 - Página |
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Caio e me levanto |
Neste lento caminhar: |
Há sempre uma página em branco |
Ao meu dispor, para recomeçar. |
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1209 - Rosário |
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Nem grandes alegrias, nem grandes tristezas, |
Apenas um intérmino rosário de aborrecimentos |
É o dia-a-dia monótono que rezas. |
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Bastam, porém, de satisfações ligeiros tegumentos |
E logo te sentes com direito fecundo |
A um lugar no mundo. |
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E o dia |
Brota sempre, afinal, desta alegria. |
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1210 - Adivinha |
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Tudo aconteceu já |
Pelo menos uma vez. |
Como viver à superfície do que há |
Quando, mês a mês, |
Momento a momento, |
A vida |
Nos convida |
A reencontrar, em cada elemento, |
O segredo da adivinha perdida? |
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1211 - Inferno |
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O inferno da guerra, o inferno… |
- E o da paz, quem dele fala? |
Esta paz que nos entala |
Entre as folhas do caderno |
Onde a palavra se cala, |
Opaca, num branco eterno… |
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Só uma paz tempestuosa |
Nos impede de morrer |
No fogo lento do tédio. |
Quem dela goza não goza, |
A não ser quando aprender |
O remédio, |
Quando por dentro e por fora |
A aventura abrir caminho |
No sonho que nos devora, |
Nos céus que voo sozinho… |
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- Quando na pedra e na carne |
A guerra, ao fim, toda incarne. |
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1212 - Bofetada |
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Ontem, de repente, a bofetada: |
Iria morrer como tinha nascido, |
Como tinha vivido, |
- Para nada! |
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E hoje, sem mais nem menos, a madrugada |
Mudou tudo! |
Ou sou o eterno miúdo |
Onde qualquer pincelada |
Muda o calhau da pegada |
Em veludo? |
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1213 - Enraizar |
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Qualquer semente |
Pode voar de porta em porta. |
Quando árvore se enraizar ingente |
Já ninguém a transporta. |
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É a divisa: |
Quem pretende ser fecundo, |
Fundo se enraíza |
No mundo. |
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1214 - Barca |
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Compreenderás |
De que lado sopra o vento, |
Saberás |
Dirigir a tua barca |
Através do tredo elemento. |
Cuidado, porém, com quanto abarca |
O lado mau. |
Salvarás teu porão e tua copa |
Passando a vau |
Quando em cheio te der o vento pela popa. |
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Escolhe bem, escolhe bem, |
Ou serás, como o mundo inteiro, |
Dos erros prisioneiro, |
De ti próprio refém! |
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1215 - Pagamento |
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Ninguém logra fazer vida |
Sem organização, |
Como logo, de seguida, |
Sem improvisação. |
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Apenas com os dois lados |
A rigor medidos |
E combinados |
Receberemos os pagamentos devidos |
Com os atrasados. |
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1216 - Ansiamos |
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Para que falamos sempre, falamos, |
E sempre, afinal, do passado, |
Se é pelo futuro que ansiamos |
Com outro dedo do fado? |
|
Não um futuro qualquer: |
O que o sonho prometer! |
|
Muitas vezes o passado |
Corre atrás de nós, corre, |
E apanha-nos do lado |
Em que todo o futuro morre. |
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Como, porém, falar |
Do que nunca existe |
E que, disto apesar, |
É a única coisa que em nós resiste? |
|
O futuro, o futuro… |
- Como saltar de vez o muro? |
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1217 - Despeça |
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Como confiar há-de poder |
Quenquer em quenquer |
Que lhe peça |
Que por ele da vida se despeça? |
|
Este mundo está cheio de mentira |
E o de mentira incapaz |
Já nem respira, |
Sagaz. |
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Pela pátria ou pela nação, |
Por Deus ou pela salvação, |
Pela libertação, |
Pelo fim da exploração, |
Pela verdade, |
Por sei lá quantas mais |
Fantasias celestiais, |
- Corre o sangue nos rios da cidade. |
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Por todo o mundo o chão |
Ecoa |
Ao dobrar do carrilhão, |
No enterro das vítimas de cada causa boa. |
|
Como confiar |
Em quem nos pede a vida |
Quando da paga a medida |
Será sempre um balão de ar? |
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1218 - Ideal |
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O problema não é falta de ideal, |
O idealista é que é perigoso: |
Um idealista normal |
Não é bondoso. |
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Sacrifica |
Tudo e todos, |
Por todos e quaisquer modos, |
Aos sonhos pelos quais pontifica. |
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A vida de quem não sonha |
Jamais é tão medonha, |
Apenas desliza |
Ao sabor da brisa… |
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Dela o mal |
É não trepar um degrau |
Acima do animal. |
Mas enfim, |
Não, não é assim |
Tão mau… |
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E depois |
Há sempre aqui lugar |
Para dois, todos os dois… |
|
Quem |
Os impede de trepar? |
Quem impede de trepar alguém? |
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1219 - Desagrado |
|
Não querer |
O desagrado do caminho |
Os fins em vista é renunciar a percorrer, |
Mesmo o mais comezinho. |
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1220 - Horizonte |
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A pergunta |
Que o espírito cansa |
Nenhum estímulo junta |
Ao que alcança. |
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A pergunta que liberta |
Vai à fonte: |
É a que alerta |
E desperta |
Um horizonte. |
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1221 - Gota |
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Uma gota de água |
Espelha o Universo, |
Redonda como do Sol a frágua, |
Da Terra o berço, |
Com átomos aos milhões e milhões |
Como de galáxias turbilhões, |
Para ao fim , como tudo o mais, |
Ser apenas uma bola onde vais, |
Onde vais para diante |
Como por todo o Universo restante. |
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Eu, tu e o Universo |
Somos todos contas do mesmo terço. |
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1222 - Abelhas |
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O mel e as abelhas |
Querem-se juntos, |
Os nossos assuntos |
Requerem as nossas orelhas, |
O homem e a mulher |
Um ao outro se requer… |
Mas, às vezes, ao cheiro do recheio, |
Metem-se ursos de permeio… |
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Por isto, a vida, |
Na contradança, |
Tão pouco e tão mal alcança |
Em cada aposta prometida. |
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1223 - Travessia |
|
A vida humana é assim: |
Tudo é uma ilusão de magia. |
Não há fim, |
Apenas travessia! |
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1224 - Herdeiro |
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É muito estranho |
Que um homem tenha de morrer. |
Perda ou ganho |
Haverá qualquer |
Num herdeiro de inumeráveis gerações, |
Resultado |
Dum complicado |
Rosário de evoluções, |
Principiado |
Há quatro biliões de anos, |
Num berço de seis biliões de arcanos |
Que formaram o planeta, |
Se agora aqui, |
Cortada a meta |
Daquele interminável frenesi, |
A cadeia de acidentes que nos confunde, |
Numa solidão perdida e desolada, |
Se funde |
Com o nada? |
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1225 - Persuasivo |
|
É difícil tudo e vago |
De compreender. |
Mas quem é persuasivo |
Tudo o que no lago |
Tiver |
Torna magicamente vivo, |
Pleno de grandiosidade e beleza. |
São noites de luar |
Que reza, |
Estrelas distantes, |
Murmúrios do mar… |
- E nada fica como dantes. |
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1226 - Estranhos |
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Somos no mundo uns estranhos, |
Desembarcados na ilha deserta. |
Aprenderemos, com tempo, a tirar ganhos |
Desta porta aberta |
E a alcançar, como convier, |
Tudo quanto se puder. |
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Um migalho de senso comum, |
Um nico de tolerância, |
Bom humor, algum, |
- E que elegância |
Mais completa |
Na alegria do planeta! |
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1227 - Trilha |
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No horizonte a estrela dum sonho brilha? |
Mais que luz, tenho uma trilha! |
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1228 - Escravatura |
|
A evolução da escravatura, |
Da antiguidade ao presente, |
Mostra como o tempo dura, dura, |
Até que algo fique assente. |
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Cada hora |
Passageira, |
O tempo que demora, |
Pela História inteira, |
Até ostentar a condecoração que nos decora |
A frágil ombreira! |
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1229 - Imaginário |
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Atingimos estranhas metas: |
O contrário das verdades de cotio |
São mentiras completas; |
Resta o bizarro desafio |
De das grandes verdades o contrário |
Serem outras verdades. |
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E a Razão que não logra ver Realidades |
Como fantasias do imaginário! |
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É tão verdadeiro |
O determinismo da relatividade |
À escala do Universo inteiro, |
Como o indeterminismo é verdade |
No movimento das partículas |
Microscopicamente ridículas |
que não são mais que o reverso, |
Em escala diminuta, |
Deste mesmo Universo |
Regido pela mesma batuta. |
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Como é que a Razão |
Afirma, em simultâneo, Sim e Não? |
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Como, sem se perder no desvão?… |
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1230 - Pó |
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A terra é grande, |
O céu, imenso. |
Vazio. E eu só! |
Eu quem mande, |
Penso… |
- A pretensão do pó! |
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1231 - Princípio |
|
O princípio duma |
É doutra o fim |
Que principiou noutra alguma: |
Sou viagem assim, |
Caminho também |
Desde o ventre de minha mãe. |
Prolongo trilhos que vêm detrás |
Um nada adiante. |
E mais distante |
Seguirá quem de mim vier atrás. |
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O mundo é uma teia de caminhos |
Ensarilhados geração a geração. |
Os ninhos |
São o nó de ligação. |
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1232 - Costas |
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A religião e o sexo |
Andam de costas voltadas. |
O nexo |
São as vergonhas pecadas. |
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Temos vergonha ou terror |
Do que demais vive nele: |
O amor |
É o terror do Além que apele. |
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Mora em nós a divindade: |
Como a divindade pesa! |
A verdade |
É o Além que te embeleza. |
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1233 - Presente |
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A realidade presente |
Em tua realidade, |
Ser único de teu ente, |
Que quer dizer de verdade? |
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Aceno da plenitude |
De ti |
Vai sendo, vai sendo em virtude |
De ser ao não ser aí! |
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1234 - Assusta |
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O meu gesto será mesmo |
Maior do que eu? |
Tremo, com tal me ensimesmo: |
Um deus assusta, Deus meu! |
|
Mesmo se verifico após |
Que tal deus sejamos nós. |
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Até porque o não crio, |
Antes ele é que me cria: |
Flui de mim como um rio |
Em demasia! |
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1235 - Solidão |
|
Tu hás-de ser grande, |
Tu hás-de ficar só |
Com toda a grandeza que comande |
Um grão de pó. |
|
Estar só, como magoa! |
Como encher a solidão? |
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Mas como pode errar a voz que ecoa, |
Grave, da imensidão, |
Tão humana além do homem? |
Como, se é nela |
Que os sonhos se te consomem |
No rumo de cada estrela? |
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1236 - Sortilégios |
|
Não crerás |
Em feitiços nem sortilégios |
Para combater um inimigo assás |
Mortal e com privilégios |
Régios: |
O mundo |
Em decomposição, |
Uma civilização |
A afogar, inexorável, cada vez mais fundo. |
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A angústia e a negação |
Ultrapassarás |
Dedicando-te ao que há de permanente |
E te perfaz: |
Tua íntima riqueza |
Inúmera, consistente, |
Bem como dela a subtileza, |
a ingente |
Necessidade |
De progredir em liberdade… |
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E o eterno combate |
Contra o inimigo: |
- O que de fora te abate |
E que dentro em ti armou abrigo. |
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1237 - Inclinam |
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Os olhos nos iluminam |
O que vêem. |
Com luz interior inclinam, |
Nos exactos momentos, |
Os que lêem |
A ficarem atentos. |
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Ocorre então, |
Inesperada, |
A iluminação: |
- E temos mais uma estrada! |
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1238 - Famintos |
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As coisas de arte |
Não alimentam famintos |
Mas, famintos aparte, |
Alargam do espírito os cintos. |
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1239 - Emaranhado |
|
Ligado |
Por um longo emaranhado |
De fios com o presente, |
O passado |
Jamais desaparece: |
Eternamente |
Em todo o aqui permanece. |
|
É o fado |
De qualquer antigamente: |
Plinto |
Sob meus pés colocado |
Onde no porvir me pinto |
Lançado |
E me sinto. |
E me sinto renovado! |
|
É o meu fado, |
O fado que eternamente me minto. |
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1240 - Minhoca |
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Enclausurado em minha toca, |
Adivinho: |
Deus a cada pardal dá sua minhoca, |
Mas nunca lha atira para o ninho. |