DÉCIMA  SEGUNDA  REDONDILHA

 

 

 

 

NOS  SONETOS  NAVEGANDO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1241 e 1379 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                1241 - Nos sonetos navegando

                                                               

                                                                Nos sonetos navegando

                                                                Rumarei ao Pólo Norte

                                                                Onde irei fazer a corte

                                                                Dos astros a todo o bando.

 

                                                                Voarei pelo Equador

                                                                Tomarei banho no mar,

                                                                Nas selvas irei a par

                                                                Das cachoeiras ao fragor.

 

                                                                Aqui amo,

                                                                Além descubro,

                                                                Inauguro depois um horizonte…

 

                                                                Ramo a ramo,

                                                                Ante o infinito a nudez minha encubro

                                                                E para a infinidade ergo uma ponte.

 

 

 

1242 - Frémitos

 

Como as árvores se enxugam

Dos frémitos da invernia,

Como os vendavais se estugam

A despi-las cada dia!

 

Tremelicam tenras folhas,

Pelos ramos as primeiras,

Quais pardais, por entre as molhas,

Deslumbrados nas canseiras.

 

Só lhes faltará cantar

Por gorjeios e trinados.

Cantam verduras pelo ar

Verde por todos os lados.

 

É nesta orquestra de cor

Que bebo o cósmico amor.

 

 

1243 - Compromissos

 

Um homem tem compromissos

Consigo e com o futuro,

Nenhum escapa aos enguiços:

Morto embora, ali perduro,

 

Nenhum de nós faltará.

Os homens de hoje nenhum

Dinheiro os prolongará,

Mas o que for cada um.

 

Em acto é que eu manifesto

Todo o peso que terei,

Valho o que valer meu gesto,

Não oiros que acumulei.

 

Para o bem ou para o mal

Nós é que somos sinal.

 

 

1244 - Circunferência

 

Era a circunferência a que faltava

Um gomo para a roda ser perfeita.

Então em todo o lado o procurava,

Que a falta lhe doía, tal maleita.

 

Mas, por ser incompleta, a volta atreita

A rolar vagarosa sempre andava,

Pelo que ia admirando a giesta, a feita,

As minhocas e o sol, do vale a cava…

 

Até que um dia encontra o encaixe certo.

Incorpora-o, feliz, e roda logo,

Vertiginosa o longe haurindo perto.

 

Tão depressa, porém, nem vê a paisagem…

Jogo então fora o gomo deste jogo:

- Gostoso devagar sigo viagem.

 

 

1245 - Ausência

 

Na vida, a ausência de Deus

Os homens não libertou

De nenhum dos ópios seus

Nem a escravidão matou,

 

Nem semeia em terra os céus,

Ninguém mais feliz tornou:

Parte a fé, ficamos réus

Da inquietação que ficou.

 

Ido terá Deus embora.

Muito embora tenha ido,

Não chegou a nossa hora

E o dilema do sentido

 

Da existência permanece

E a toda a hora aparece.

 

 

1246 - Vontade

 

Que vontade de viver

Com gestos dos mais graúdos

E com feitos façanhudos!

 

E este medo de morrer

A trocar-ma, sem eu ver,

Numa vida por miúdos.

 

Haverá morte pior

Do que a vida de quem tem

Pela morte um tal pavor

Que a troca por um vintém?

 

Vida morrendo aos bocados

Será vida ou só contém

Morte por todos os lados?

- Um homem sempre é um refém!

 

 

1247 - Absolutas

 

Podemos desejar verdades absolutas,

Podemos pretender tê-las mesmo atingido,

Fanáticos ou crentes num qualquer sentido

Que um vislumbre de luz lampeje em nossas grutas.

 

Pois certo nada há, nem as mais diminutas

Nem as mais comprovadas verdades que haurido

Haja através do tempo decorrido

Desde que, humano sendo, em torno monto escutas.

 

Nem puras matemáticas ao fim são certas,

Pois que dos pressupostos ficam dependentes

E eu tranco-lhes as portas ou tenho-as abertas.

 

As certezas, ao termo, disto decorrentes,

As únicas que as mentes nos mantêm despertas,

São certezas de dúbio ser tudo entrementes.

 

 

1248 - Encontro

 

O encontro da ciência com a natureza

Desperta reverência com algum temor,

Compreender celebra esta fusão de amor

Com da imensidão cósmica a frugal beleza.

 

O acúmulo mundial de saber e sageza

Ao longo das idades, do histórico alvor

Ao pináculo humano de que hoje é senhor,

Longe não andará de atingir, com certeza,

 

Aquela meta-mente que nos fundiria

Para além das fronteiras e das linguagens

Cantando o universal, única melodia

 

Eufónica a se ouvir em todas as paragens.

E, se num todo o espaço o saber alumia,

As gerações fundiu nas planetárias viagens.

 

 

1249 - Espiritualidade

 

Espiritualidade era toda a ciência

E uma fonte lustral de espiritualidade,

Que a mente, material não será de verdade

E a ideia uma sinapse não é de evidência.

 

Quando nosso lugar vemos na imensidade

Dos anos-luz, dos séculos na decorrência,

A beleza da vida toma tal cadência

Que é exaltação e júbilo sobre humildade.

 

É tão espiritual como nas emoções

Que a grande arte em nós toca na literatura,

Na música ou pintura, quando são vulcões

 

Que em nós rasgam janelas a olhar para a altura.

Espiritualidade e ciência, ambas de costas,

Ambas será perder em tudo quanto gostas.

 

 

1250 - Cuidados

 

Os parentais cuidados prestados aos novos

Serão a garantia de manter linhagem.

Parentes sorrirão à criança em rodagem,

Devolve esta o sorriso e gera então nos covos

 

Tentáculos que enlaçam, retraçam a imagem

Que germina fecunda em recônditos ovos,

Novos laços atando onde nascem renovos.

E todos nós sabemos: somos tal focagem.

 

Mal a criança vê, vai reconhecer rostos,

Bem antes de entender como qualquer actua,

Cada qual fotografa, foca-o de olhos postos

 

E só muito mais tarde vai descer à rua.

Porém, quando descemos, levamos impressa

A cara eternamente dentro da cabeça.

 

 

1251 - Alívio

 

Ah, que alívio que seria

Se a dúvida ser pudera

Abolida desta via

Finalmente! Quem dera!

 

Livres do pesado fardo

De nos ocupar de nós

Nunca mais picava o cardo

Que nos atara os ilhós.

 

Se de mim vou-me ocupar,

Preocupar-me irei também,

Com razão, não por azar,

 

Com o sentido que tem,

No porvir a conquistar,

Só comigo contar bem.

 

 

1252 - Alucinação

 

Quando toda a gente sabe

Que os deuses descem à Terra,

Na alucinação já cabe

Deles a mole que aterra:

 

Se os deuses são da família,

Se forem fadas, duendes,

Se espíritos em vigília…

- São tais fendas as que fendes.

 

Porém, quando os velhos mitos

Desaparecem, então,

De extraterrestres conflitos

 

Devém a alucinação.

- Continuam nossos gritos

A guiar-nos pela mão.

 

 

1253 - Dragão

 

“Um dragão na garagem minha vive lá!”

- Assevera com tão real seriedade

Que logo correremos a ver-lhe a verdade.

Perguntas ao vazio: “onde é que o dragão ‘stá?”

 

“É invisível” - confessa - “mas anda acolá!”

“Enfarinha-lhe o chão!” “Só que flutuar ele há-de!”

“Pois com o infra-vermelho que o fogo lhe invade

Podê-lo-ei detectar!” “O fogo esfriará…”

 

“E se um jacto de tinta sobre ele lançar?”

“Esqueci de informar que ele é mesmo incorpóreo!”

- E quando, assim por diante, nada comprovar,

Do deus tendo o vazio dentro do cibório,

 

Comprovarei ao menos que é urgente arranjar

A mente de quem tomba em tão louco avatar.

 

 

1254 - Absolutamente

 

Se absolutamente certo

Fico em minha convicção,

Os outros errados vão

A palmilhar o deserto.

 

Se o bem é que me motiva,

Os demais irão por mal;

Deus em mim tem voz activa,

Dela, noutrem, nem sinal!

 

E se for perversidade

Questionar uma doutrina

E se crer e obedecer

 

Dela é a missão de verdade,

- A caça às bruxas é a sina

Até disto o homem morrer.

 

 

1255 - Tabuada

 

Não há ciência nacional

Nem nacional tabuada.

A religião, por igual,

Quer-se universalizada.

 

 

Mas a questão com que cismo

E que não tem solução

É a desta religião,

Esta do nacionalismo!

 

Entre o facto e o valor

Não há nem nunca haverá

Nenhum paralelo a pôr.

E é bom vê-lo desde já!

 

Há nações, mas tal verdade

Tem valor de eternidade?!

 

 

1256 - Tirano

 

É provável encontrar

Miséria, tortura e crime

Onde o tirano reinar

Sem controlo que o encime.

 

Democrático regime

É aquele que, em seu lugar,

Convívio tente sublime,

Do rei cada qual a par.

 

Aquele tem muito mais,

Este aqui tem muito menos

Do mal traços e sinais.

 

Só porque há direitos plenos

De uns trocar pelos rivais

E outros, não, por mais pequenos.

 

 

1257 - Silenciar

 

Silenciar opinião

Ao fim é sempre um pecado.

Se for boa, a ocasião

De aprender ficou de lado.

Se for má, compreensão

De nosso ponto de vista

Muito mais aprofundado

Contra quanto lhe resista

É o que então terá lugar.

E nem o nosso argumento

Ao fim irei vislumbrar,

Sem vida escoado ao vento,

Pálido e sem mais vigor,

Mera lembrança de cor.

 

 

1258 - Diferentes

 

As coisas que nós vemos como belas

Poderão ser deveras diferentes,

Que as vertentes efectivas lá presentes

São iguais, lobrigadas nas sequelas.

 

Quando o belo saltar, então aquelas

Coisas em que saltou, luminescentes,

Devêm nítidas, de cor ingentes,

Vibram de forças em globais procelas.

 

Na paisagem do mundo, tal no amor,

As coisas, como a amada iridescente,

Ressaltam com o fogo do estupor

 

Perante a opacidade evanescente

Do resto que dormir-lhes em redor:

- O belo cria um mundo transcendente.

 

 

1259 - Tudo

 

Compreendo que tudo faz parte de mim,

Sentado aqui no cume da montanha a olhar

As paisagens que vão para todo o lugar,

Sinto meu corpo físico no meu confim:

 

Não é senão cabeça doutro corpo, enfim,

Afinal bem mais vasto até que meu olhar,

Porque para além vai do que logro alcançar,

Lobriga-se o Universo em mim até ao fim.

 

Não me começa a vida em minha concepção

Nem no meu nascimento no planeta errante.

Muitíssimo antes tudo afinal principiara,

 

Do início de mim próprio com a formação,

Meu corpo mais real, tão mais que o deste instante,

Meu corpo de Universo a olhar por minha cara.

 

 

1260 - Admiro

 

Quando admiro a beleza e a singularidade

Das infinitas coisas que dão corpo ao mundo

Dele acolho a energia que me toca o fundo

E desde o fundo me abre para a eternidade.

 

Então, quando acolá me deixo fascinar

E a estese atinge o nível da paixão de amor,

O meu coração arde como se o fulgor

Em mim eu recolhera do rosto que amar.

 

Então, como ao gratuito amor todo me entrego

Sem dele pretender negociar a troca

Nem paga, que a não há de quanto de vez lego,

 

assim, gratuito e leve, dou-me e desemboca

A vida a relançar a mágica energia

Para o Universo inteiro como quem o cria.

 

 

1261 - Entranhar

 

Obrigar-se a amar

Ninguém poderia,

Porém deixaria

De amor se entranhar.

 

Isto ocorreria

Se sintonizar

O que recordar

Do amor que houve um dia.

 

Nele ao se embrenhar,

Breve sentiria

Como outrora, a par.

 

Como por magia

Flutua pelo ar,

Nasce dele o dia.

 

 

1262 - História

 

Se olhas para tua vida

Como quem olha uma história,

Desde o nascimento à glória

Da gesta daí vivida,

 

Verás que tua memória

Te retraça na corrida

Tentativas de quem lida

Por triar oiro da escória.

 

Intuito de resolver

Aquele magno problema

Legado pelos teus pais:

 

Como o passo que se der

Há-de trilhar certo o lema

Que de Além nos faz sinais.

 

 

1263 - Problema

 

O problema-mor da vida

Não é o de encontrar respostas.

O problema é o das apostas

Com as quais cada qual lida.

 

É que não faltam propostas

De trilhos a qualquer ida

 

O que falta, de seguida,

É saber do que é que gostas.

 

Quando a reflexão tu juntas

Às pegadas que vais dando,

Em breve o que mais assuntas

 

Não é ver por onde ou quando,

É ter certas as perguntas

Do que andas ao fim visando.

 

 

1264 - Sonhos

 

Os sonhos nos contam algo

Relativo a nossas vidas:

Os degraus que jamais galgo

Nas vigílias empreendidas.

 

Mas nem só sonhos nos guiam:

O pensamento contado

Bem como o sonho acordado

Igualmente nos enviam

 

No rumo às verdes colinas

Que eu nem sequer sei que havia

Nas vertentes das más sinas

Onde ébrio me entorpecia.

 

A dormir ou acordado,

Sonho é meu mapa encantado.

 

 

1265 - Cruzar

 

Quando alguém se cruzar pelo nosso caminho

Trará sempre mensagem que nos transmitir,

Pois encontros fortuitos não vão existir,

Por pouco recatado que nos seja o ninho.

 

A maneira, porém, como eu lhes adivinho

O sentido aos encontros é que decidir

Há-de se eu estiver à medida de ouvir

Ou não uma proposta sem a qual definho.

 

Se uma conversa tenho com alguém que cruza

Por este meu caminho e não capto a mensagem

Relativa às perguntas a que a sorte escusa

 

Teima em manter-me cego durante a viagem,

Isto não quer dizer que acolá não exista,

Mas que, por distraído, eu a perdi de vista.

 

 

1266 - Apreço

 

Quando te dou apreço inovo-te a energia,

Além a reforçando mais que normalmente.

Então facilidade como a dum vidente

Em ver tua verdade tens como teu guia.

 

Quando além a transmites, fica pura e fria,

A penetrar o ouvinte tão clarividente

Que uma revelação lhe parece, fremente,

O que de ti discorre como por magia.

 

Melhor verá teu eu e bem mais elevado,

Apreciá-lo mais é o que lhe ocorre então,

Mais nele se concentra, quase altar sagrado.

 

E, quando dois ou mais entre si tal padrão

De reforço viril então compartilharem,

Rumam à infinidade que em comum sonharem.

 

 

1267 - Bastante

 

Não sei quem serão estes, se falar pudera

Com eles o bastante, porém, descobria

A verdade que cada para nós teria,

A parte da resposta à mágica quimera.

 

Porque deveras todos são mensagem vera

Que se cruza comigo, ao acaso do dia.

Se tal assim não fora, cada qual havia

Seguido outro caminho que o fado lhe dera.

 

Aqui quem estiver é porque significa

O peso que tiver na teia do Universo,

Por muito que me cegue o que em nada ao fim fica,

 

Porque eu a interpretá-lo é que nunca ando terso.

Por aqui tanta gente nunca foi em vão:

Quer dizer que estará por alguma razão.

 

 

1268 - Desdém

 

Quando não gosto de alguém

Ou me sinto ameaçado

Tendo a pôr-me então centrado

Num aspecto de desdém

 

Que me irrita ou não convém.

Belo não vislumbro lado,

Nenhum estímulo é dado,

Antes lho tiro também.

 

Então ele, de repente,

Sente-se algo menos belo,

Sem ter pé já no presente.

 

 Assim é que mutuamente

Nos envelhece este apelo

Tão veloz, tão velozmente!

 

 

1269 - Primeira

 

Quando dois se encontrarem pela vez primeira,

Começarão por ver cada qual a atitude

Um do outro, a medir-lhe a boa ou má saúde,

A manipulação negando ao que se abeira.

 

Uma vez acertada a contenção cimeira,

Partilham consciente a vida em magnitude,

Até se revelarem, quando nada ilude,

Mutuamente a mensagem que ambos emparceira.

 

Depois, cada qual torna à vida quotidiana

Mas o encontro ambos já modificou deveras,

A um ponto de tal ordem que dali dimana

 

Toda uma nova vida em mais altas esferas.

Daqui partindo, vão o mundo inteiro erguer

Como fora não pode do encontro quenquer.

 

 

1270 - Saberei?

 

Donde venho, pouco sei,

Para onde vou, sei lá!

Sei apenas (Saberei?)

Este aqui do que sou cá!

 

Não há mais nada, não há

Que uns aos outros, mesma grei,

Termo-nos, enquanto dá

O tempo de nossa lei.

 

Não temos outro conforto,

Já que não sabemos nada

Do que é vivo e do que é morto

 

Do que dar a mão na estrada,

Quebrar qualquer alibi

De estar deveras aqui.

 

 

1271 - Traço

 

Se cada vez é mais certo

Que não há nada seguro,

Sem apoio a vida auguro,

Só da dúvida ando perto.

 

Então aprender é urgente

A mudar em alegria

Cada momento presente,

Transmudando noite em dia.

 

A solidão e a loucura,

A marca do pessimismo,

Quotidiana inaugura

Leve traço de optimismo:

 

- O vazio mudo à mão

Numa boa boa ocasião.

 

 

1272 - Círculo

 

 Pegada na pegada, em círculo fechado,

Caminhamos a vida a repetir pessoas,

Locais e situações, as críticas e as loas,

Montando a identidade, bocado a bocado,

 

Sinais de cada grupo, cada qual buscado

No forno comunal onde cozem as broas,

A identificação do local onde boas

Memórias nos ocorrem do caminho andado.

 

Identificação é também segurança.

Por tal nos repetimos com a persistência

De quem ao repetir-se crê que ao fim se alcança.

 

Sinais do grupo tomam constante existência

Na construção da fala, nos tiques de humor:

- Não somos nunca mais que o círculo do amor.

 

 

1273 - Molde

 

A priori sou eu, como sujeito,

Com o poder de capturar o objecto.

E depois, quando o molde tomo a peito,

É que lhe sigo a linha do trajecto.

 

De dentro de mim saio a procurá-lo,

Capturo-o no desvio perseguido,

A mim retorno enfim, com o regalo

Do caçador que chega bem sortido.

 

Vejo sempre um objecto a mim alheio

Em vias de integrá-lo em meus modelos,

Que só então fará parte de meu seio.

 

Sou eu que, activo, lhe retraço os elos.

Ele, porém, como de tal deveio,

Foge-me sempre em rumos paralelos.

 

 

1274 - Imensa

 

Sentiu vontade imensa de beijá-la,

A mão lhe aperta já, desorientado,

Estrepitoso a rua desce ao lado,

Dá meia volta e para casa abala.

 

Tumultuam-lhe ideias em cabala

Ao longo dos caminhos. Encantado,

Nuvens pisando, vai polarizado

De poema em recital vestindo a gala.

 

Tantos milhões que o mesmo já trilharam

E a todos sempre apareceu tão novo

E tal se fora único o encetaram!

 

Para a felicidade destinado,

Vida nova gerando sempre em ovo,

Assim bendito o amor nos há fadado.

 

 

1275 - Felicidade

 

A felicidade

É um estado de alma.

Não depende, calma,

Senão da verdade

 

De íntimos sinais

De paz e alegria.

Os bens materiais

Não têm tal magia.

 

Por isso é que o rico

Quanto mais existe

Tão mais verifico

Que fica mais triste.

 

Vai morrer assim:

Trocou meio e fim.

 

 

1276 - Sabugueiro

 

Não há melhor razão para alguém preferir

Aquele sabugueiro, sem mesmo elegância,

Que a de lhe despertar as memórias de infância,

Dos tempos de sonhar que não voltam a vir.

 

Não é nada de novo na vida a surdir,

Na vida que nos fala da presente instância

Nas formas e na cor, sem vislumbrar mais ânsia

Do que a dum amanhã seguro garantir.

 

Mas na nossa existência foi o sabugueiro

Fiel e rumoroso o eterno companheiro

De alegrias e angústias nessa infância esquiva,

 

Quando ela ainda não era apenas a memória

Mas o encanto a fluir com esplendor e glória,

- Explosão do infinito numa vida viva.

 

 

1277 - Natalícias

Perfume quente das comidas natalícias

A nos preparar brando esta prisão suave

Que eterna venha dar ao primitivo e grave

Companheirismo o que perdeu já das primícias,

 

Entre os membros da família

A saudar o sol nos rostos

Humanos, de cujos gostos

Permanecera em vigília…

 

Enquanto lá fora a neve

E o vento da tempestade

Nos fecham a porta breve.

 

Um com outro em irmandade,

Como a reclusão é leve,

Como é imensa a liberdade!

 

 

1278 - Insepulto

 

O espírito pouco culto,

Confinado e limitado

Ao preconceito insepulto

De quem no ovo foi gorado,

 

De estreitezas sempre inulto,

Na infelicidade nado,

Em seu imo mais oculto

Tenderá, por todo o lado,

 

A repetir as pegadas,

De modo que ao fim do ano

Estará tal qual no início,

 

Como as máquinas ligadas

A girar no desengano

Da mesma volta por vício.

 

 

1279 - Arrasta

 

Se o que sentimos arrasta

Até os outros esmagar,

Não podemos evitar

De num ponto gritar basta!

 

Doutra maneira a traição

Como qualquer crueldade,

O reino da iniquidade,

Teriam absolvição.

 

Se um compromisso não prende,

Se o passado é de esquecer,

Que é que ofende e não ofende,

Onde é que fica o dever?

 

Inclinação de momento?

- Nem que eu fora folha ao vento!

 

 

1280 - Balizada

 

Começamos, por fim , a perceber

Que do corpo a saúde é balizada

Pelos jogos mentais que a madrugada

Ou crepúsculo vejam em quenquer.

 

O médico é o perito que nos grada

A leiva da doença que entender.

O paciente recebe o que lhe der,

Mas a magia antiga programada

 

Que passivo o dispunha a colocar-se

Doravante é o que tem de superar-se,

A atitude íntima devém crucial:

 

A esperança tal como o medo cura,

Menoscaba certeira a sepultura,

Tudo provém de como encaro o mal.

 

 

1281 - Clínica

 

A opinião clínica terá de ser

Ponderada e medida com cuidado,

Que idolatria médica é um pecado

Que o público comete com quenquer.

 

Já soube disto o médico e qualquer

Há cem anos pintava demasiado

Optimista ao paciente o quadro dado,

Levando-o a cooperar para vencer.

 

Depois, porém, o entendimento ético

Científica impôs a avaliação

Como um direito de qualquer paciente:

 

assim matou em todos nós a poética

Força de crer na nossa salvação

E desde então nos suga lentamente.

 

 

1282 - Cofre

 

Quem namora vai sofrer.

Quem “anda” apenas não sofre:

Se competir é viver,

Do amor vou lesar meu cofre.

 

De vez fujo ao sofrimento,

Como se pudera um sonho

Existir sem pagamento

Na vida de que disponho.

 

Um bebé cresce, em concreto,

Quando cresce para alguém

Porque existe um mar de afecto

Com toda a dor que contém.

 

Grande, de aumento em aumento,

Só com dor de crescimento.

 

 

1283 - Quente

 

Ter ao lado um corpo quente

Mais o apoio para a vida…

Um homem, frequentemente,

Acorda com medo à lida,

 

Com receio de falhar,

Mesmo só de fraquejar,

Deixar de ser um herói

Do drama que a vida dói.

 

Nesses momentos estende

A mão, toca na mulher,

Abraça-a, terno se rende

Ao morno odor que tiver

 

- E desperta as alvoradas

Com as forças renovadas.

 

 

1284 - Manco

 

“Ainda não reparara

Como teus olhos castanhos

São bonitos!” - em tamanhos

Cultos o marido andara

 

A sacrificar-se em ara

Que só perante os amanhos

Da morte as perdas e ganhos

Fazem que tal confessara.

 

Vejam o que é ser casada

Toda a vida com um santo!

Ou lhe a fé corre enganada

 

Ou de santidade é manco:

- Que amor é que não sentia

Aquilo de que vivia?

 

 

1285 - Prefere

 

A mulher

Ser casada com um santo

Prefere

Que nunca lhe reparou no encanto

 

Do que com um pecador

Que ternurento lhe confessara

Amor

Mais a toda a outra mulher

Que uma rua lhe cruzara

Qualquer.

 

A sério, porém,

O que ela preferiria

Era mesmo um santo que também

A via.

 

 

1286 - Baldadamente

 

É sofrer dobradamente

Antes de tempo afligir,

Não sofras baldadamente,

Basta o mal quando surgir.

 

Chorar depois do mal feto

Em vez de o remediar

Incorrer é no defeito

De quem nunca vai mudar

 

Depressa nem devagar.

E vai sofrer, deste jeito,

O mal a multiplicar.

 

Então, de ambas as maneiras,

Qualquer que seja o conceito,

Já de nenhum bem te abeiras.

 

 

1287 - Boto

 

A paixão da juventude

Ao futuro ruma ignoto,

Sem do cálculo a virtude

E de pensamento boto.

 

Esta crença no futuro

De milagres carregado

Tem a força que procuro

A me arrancar do valado.

 

Tem a força sedutora,

Porventura irresistível,

Que vem delir-me a demora,

 

Mentindo próximo o extremo:

- Jovem é crer exequível

O desafio supremo.

 

 

1288 - Século

 

Como um século qualquer

Este pode ser mudado

No século que se quer,

Só, porém, nalgum bocado,

 

Num ou noutro pormenor,

Nunca, pois, do chão ao tecto,

Já que ninguém tem valor

De mudá-lo por completo.

 

E quem tentar o impossível

No possível ficará,

Que nada mais é vivível.

 

Só que indo para acolá,

Já daqui nem é visível,

Vive já o lado de lá.

 

 

1289 - Após-guerra

 

Como é triste pertencer

À geração do após-guerra!

O que, porém, mais aterra

É verificar quenquer,

 

Desde que temos memória,

Que isto é cada geração

Sempre desde a pré-história

Sem lograr uma excepção.

 

Somos os sobreviventes

Sempre, sempre impenitentes.

 

Á inteligência trepar,

Só mesmo bem devagar,

 

Por maior que seja a perca

Que nos cerca, que nos cerca!

 

 

1290 - Modelador

 

Crer que um pai modelador

É do carácter dos filhos

Sem da rua ver o ardor,

É não contar os atilhos,

 

Nem quanto ofuscam os brilhos

Que enfeita, fora o rumor,

Quanto ali são pecadilhos

O que dentro gera horror.

 

Uma personalidade

E o carácter que tiver

Provêm da liberdade

 

Que fruir ali quenquer

Mais do traço de verdade

Que um lar nela transpuser.

 

 

1291 - Lodacentas

 

A vida corre ao acaso

Entre margens lodacentas,

Mudando de curso a prazo,

Terras a embeber sedentas,

 

Ou mergulhando discreta,

Subterrânea fluidez,

Para borbotar directa

Adiante, noutra tez.

 

E nenhuma força humana,

Perdida entre sorte e azar

Se pode opor ao que emana.

 

Tudo, pois, é resolvido

Fora do que eu alcançar,

Haja-o ou não haja crido.

 

 

1292 - Monstruoso

 

No que o tempo é monstruoso

É que o sábio-mor acaba

Trocado pelo bichoso

Dum zé-ninguém que se baba

 

Só porque às células deste

A vida nova as reveste.

 

E, quando a um mais velho mira,

Mais obstáculo vê nele

Do que um exemplo a que adira:

Quer é ver como o atropele.

 

É nesta sorte canina

Que mais joga nossa sina.

 

E nem raiva nem despeito

Nos mudarão nosso jeito.

 

 

1293 - Dinheiro

 

Para mandar os filhos correr mundo há pais

Que têm o dinheiro: porém, mal formados

Os filhos, afinal, lhes crescem transtornados,

Como se de tais pais filhos não foram mais.

 

De milhares de contos em casas reais

Vivem quejandos pais com os filhos mimados

E dão carros aos filhos, despreocupados,

- Mas algo não resulta de soluções tais.

 

Tantas perguntas, tantas, sobre que fazer!

E afinal é tão simples como quanto é grande:

Pois que se preocupem o suficiente

 

Para tempo gastar com os filhos que houver,

Dar-lhes atenção terna em quanto ela comande:

- De si dar o melhor é o mais caro presente.

 

 

1294 - Auto-estima

 

Para poder crescer desde a raiz

A criança precisa de auto-estima.

E o que a semente desta lhe sublima

É sem medida ter amor feliz.

 

Mas incondicional, porém, não diz

Ausência de limites: quem amima

Em estabelecer regras se arrima

Para mostrar quão vale o seu petiz.

 

Criança abandonada ao deus-dará,

Com mil brinquedos e de bolsa cheia,

No sem-limite é desprezada já.

 

Se teu filho os limites ultrapassa,

A punição lhe impõe, ao acto ameia.

E a ele, não, que ele não é desgraça.

 

 

1295 - Quando

 

Quando os botões importam mais do que a camisa,

Quando o perfume vale mais do que a pessoa,

Quando a aparência mais que o íntimo apregoa,

Quando por fundamento a ninharia visa,

 

De vista perderemos quanto é coisa boa,

Enfronhados em nadas, o todo desliza,

O que for importante já ninguém divisa,

Envernizados fora, podres dentro à toa.

 

Gastamos energias no superficial,

Não nos apercebendo do que é essencial.

Ora, o superficial apenas é importante

 

Quando é berma florida que bordeja a estrada,

Quando o essencial completa, de instante em ins-tante,

Que a berma sem caminho nunca será nada.

 

 

1296 - Terra

 

Terra aberta, estendida, que ninguém alcança,

Boa para a façanha, o esforço, a liberdade,

Toda horizontes largos como uma esperança,

Toda caminho incerto como uma vontade,

 

Terra que te levantas cada aurora muda,

Como basta olhar bem e lançar-me em teus braços,

Como então toda a freima em sonho se transmuda,

Como o que me deslaça então me cria laços!

 

É planura e montanha, são rios e vales,

São os mares e as praias, ondas e marés,

Nevoeiros e neblinas - sombras onde iguales

 

A incerteza do certo das crenças e fés.

Da infinidade o seio quanto mais propales,

Pôr-me o infindo à mão mais te destina o que és.

 

 

1297 - Trinado

 

Não é só dela a beleza,

Ela mora em toda a parte:

No trinado da represa

Que o tordo em redor reparte,

 

Na poça de água com arte

Que um colar de ervagem preza,

No palmar fundo que acarte

Diáfana a luz a que reza,

 

Na tarde que doce cai,

Dourada e silenciosa…

- Mas dar-se conta não vai

 

A donzela de tal coisa,

Não fora ao luzir da estrela

O amor lhe abrir a janela.

 

 

1298 - Lausperene

 

O drama das terras tristes

Onde é uma coisa solene

Para a cama, em lausperene,

Ir lento, por entre chistes,

 

Ao cabo de cada dia

Sem obras tão desdobrado

Que mais não conta, em porfia,

De esperança descontado,

 

Que um dia a menos de espera,

De sonhar, um dia a menos…

Mas murmuram, de era em era:

“Amanhã é um outro dia!”

 

- E este, como por magia,

Promete novos acenos.

 

 

1299 - Extremos

 

O amor sem esperança quando inspira a vida

E aqui põe o princípio de afectos extremos

Enobrece atitudes quão mais as queremos

No intuito de atingir a perfeição devida.

 

Intérmino caminho que digno convida

A se tronar quenquer de quenquer que amemos,

Sacrifícios secretos mil que devotemos

A adorá-lo de longe, a vista mal erguida,

 

É tudo imolação do amor-próprio, em eco,

Nem cólera ou orgulho no terreno peco

Germinarão jamais contra o amor amado.

 

Dar-lhe quanto pedir, do próprio em detrimento,

Ter o rosto virado dele ao firmamento,

- A um tal amor quem tudo não terá perdoado?

 

 

1300 - Velada

 

Como é possível alguém

Com tanta esperança diante

Aborrecer-se também?

 

- Quando crê-la não garante

Ou quando lhe não convém,

De velada o desencante.

 

A esperança desvelada

Tem de ser, dia após dia,

Apontando o fim da estrada.

 

E mais mesmo importaria:

Mostrar em cada pegada

Como o fim já principia.

 

Doutro modo, na jornada,

Qualquer descoroçoaria.

 

 

1301 - Humana

 

Vida humana é ritual,

são práticas animais,

É razão fundamental

Mais ritos subliminais.

 

Dum lado, conhecimento,

Dum outro, religião,

É de prosa, num momento,

A poesia do chão.

 

Feita de factos e sonho,

De arte e de matéria-prima,

Homem sou se me disponho

 

Do animal a pôr-me em cima.

Mas a meus pés não me oponho,

Trepo com eles acima.

 

 

1302 - Humanos

 

Quer nós queiramos, quer não,

Os humanos, nós,

Jamais vivemos sós

Deste mundo na prisão.

 

Andamos ligados, mão na mão,

Desde os pais até os avós

E os nós

Atam-nos da espécie a cada irmão.

 

As pegadas do carreiro

Levam-nos às plantas e animais

Do mundo inteiro.

 

As vidas não são vidas separadas:

Ou não são vidas jamais

Ou serão interligadas.

 

 

1303 - Passo

 

Depois de milhões de anos preso à terra

Dei um passo

No espaço

E doravante já nenhum dragão me aterra.

 

O fogo do dragão

Sou eu

Que o espalho no céu:

- Tenho-o à mão.

 

Perdi o medo:

Matei o credo

No inefável segredo.

 

A questão é:

- Não serei doravante, de mim ao pé,

Um risco maior de que nem dou fé?

 

 

1304 - Dilemas

 

Cada geração

Dela acredita que os problemas

Únicos e fatais dilemas

Serão.

 

Todavia, a lição

Dos teoremas

É que cada uma, fintando os temas,

Sobreviveu sempre às que a antecederão.

 

A galinha que a cabeça arrima

Contra o céu,

Com medo de que lhe caia em cima,

 

Não será disto por virtude

Que continua, em pleno escarcéu,

Viva e de boa saúde!

 

 

1305 - Truque

 

O truque é escolher

As ansiedades correctas.

As metas

Que houver

 

São, algures entre os não-te-rales

E os alarmistas,

As conquistas

Com que as dúvidas regales.

 

As fronteiras

Não são leiras

A seguir.

 

Entre os extremos

É que lemos

O porvir.

 

 

1306 - Nunca

 

Tudo aquilo com que me preocupei

Nunca me ocorreu.

Todo o mal que me feriu

Veio-me donde nem sei!

 

Com a prevenção

Como sei que não me iludo,

Contudo,

Senão

 

Porque as coisas são o que são

E nunca tal seriam,

Não fora prevenir-me enquanto agiam?

 

O senão

É que há-de haver sempre um além

Que jamais é como convém.

 

 

1307 - Tribo

 

A tribo dos cientistas

Nem pensou nas consequências

De longo prazo às conquistas

Dadas dela às evidências.

 

Poderes devastadores

Nas mãos de quem lhes dá mais,

Dos países aos senhores,

Sejam lá quem for os tais.

 

É frequente em demasia

A irresponsabilidade

Desta sábia minoria.

 

Do que operam não é o mal:

Não lhes falta integridade,

Falta a bússola moral.

 

 

1308 - Abuso

 

Quando há um abuso dum lado

Logo o outro retalia,

Ambos de orgulho lesado,

Só rectidão anuncia

 

Cada qual de seu traslado:

Noutrem vê perversão fria,

De si nunca vê o pecado

Nem a dor que causaria.

 

Dum lado e doutro os honestos,

Vendo eminente o perigo,

Querem tal rectificar.

 

Os duros, porém, cabrestos

Lhes atam: ter inimigo

Entroniza-os num altar!

 

 

1309 - Pérolas

 

Pobres em bens e não em pensamentos,

Com pérolas há vidas aos milhares:

Um e mais outro, são lindos momentos

Reunidos num fio singulares.

 

Fio subtil e forte, quer vagares

De quem aos grãos de areia varrimentos

Para os lados fará: são tais colares

De vivências catadas enfiamentos.

 

Alguns não vêem pérolas na areia,

Dos dias só terão força bastante

Para limpar dos grãos uma mancheia

 

Que um colar duma volta mal garante.

Quem o colar quiser, mas bem comprido,

Nas pérolas da vida põe sentido.

 

 

1310 - Paixões

 

Nada mais estranhável que as paixões humanas

E tanto as dos adultos quanto as das crianças.

Quem dança um musical acaso entende as danças?

E quem o não dançar apercebe-lhe as ganas?

 

Há quem arrisque a vida dos bosques nas franças,

Quem arruine um amor dos foguetes às canas,

Quem dê termo à saúde nas mesas mais lhanas

Ou afogue nos copos as tristezas mansas…

 

Ninguém nem eles próprios logram explicar

Porquê tanto correr, tanto se emaranhar,

 

Porque se convenceram de que são felizes

Se num lugar diverso enterraram raízes.

 

Mas, sejam o que forem os demais senões,

Quantos os indivíduos, tantas as paixões.

 

 

1311 - Repete-se

 

Quem conhece tudo

Não lhe importa nada,

Repete-se, mudo,

A cada jornada.

 

Tudo é vago de sentido,

Dia, noite, Primavera,

No ponto donde há partido

Tudo torna ao nada que era.

 

Tudo quanto nasceu tem de morrer,

Tudo se anula, o bem tal como o mal,

Tolo e sábio, bonito e feio, quer

 

O queiramos ou não, ao fim tudo é vazio,

Nada, em última instância, por fim é real…

- E que importa? Afinal, é tudo o mesmo rio!

 

 

1312 - Mentira

 

Dá poder sobre os homens a mentira

Porque os homens revivem as ideias

E orientadas podem ser as teias

Das trilhas onde o passo lhes delira.

 

Este poder a tanto, tanto monta

Que apenas ele, para muitos, conta.

 

Somos o espezinhado formigueiro

Disperso em loucos rumos, tudo à tonta,

Que a pata da mentira e do dinheiro

Só o desnorte dos sonhos nos aponta.

 

Sou levado a comprar e não preciso,

A odiar o que ignoro sem juízo…

 

E acabo, dócil, sempre a duvidar

Daquilo que, afinal, me irá salvar.

 

 

1313 - Desejo

 

Para descobrir caminhos,

Só de desejo em desejo.

Se os não atar de carinhos,

Meus trilhos jamais os vejo.

 

Não basta mesmo querer

Simplesmente abandonar

Um lugar

Qualquer.

 

Para outro querer ir

É preciso

A seguir.

 

E seguir o guizo

Do desejo onde ele bulir

Que é a música de ganhar juízo.

 

 

1314 - Desmembra

 

Só podes ter desejos se te lembra

Teu mundo,

Não pode ser fecundo

Quem se desmembra.

 

Não queres ficar avelhentado,

Crês lutar pelo seguro,

Quem, porém, não tem passado,

Também não tem futuro.

 

Segura firme a trança

Que perenemente entrança

Cada tempo, cada lugar,

 

Que a mudança

apenas não alcança

Quem de morto não pode mais mudar.

 

 

1315 - Mentira

 

Vivo aqui rodeado de mentira:

“O seu cheque já foi para o correio”,

“Sou membro do Governo, pois confira,

Vim aqui ajudá-lo no seu meio.”

 

“Só temos cá mais dois em armazém”,

“É tão alto! Que importam mais três quilos?”,

“Fizeste-o?! quem diria, quem? Ninguém!”,

“Mais de quarenta?! Quero os teus sigilos!”,

 

“Está delicioso, não se fira,

Não consigo comer, não sobrevivo!”

- Todos comemos como quem delira

 

De engano a dose de que ao fim derivo.

Vivo tão rodeado de mentira

Que chega a ser mentira até que vivo.

 

 

1316 - Bambu

 

O bambu chinês é o milagre familiar:

Plantada a semente emocional,

Brotam rebentos novos em todo o lugar,

Cada vez mais, até à altura ideal.

 

O crescimento mais incrível, porém,

Ocorre debaixo do solo,

Onde uma estrutura de raízes devém

O suporte que a Humanidade toma ao colo.

 

Então, um mero bambu

Quarenta metros pode vir a atingir:

Poderei ser eu, poderás ser tu.

 

No imediato a sementeira traz rebentos.

A prazo, a seguir,

É a surpresa de todos os inventos.

 

 

1317 - Esteios

 

Técnicos da perfeição

Sentem-se mal nos recreios,

A disciplina e o refrão

Seus únicos são esteios.

 

Na desorientação,

A técnica da alegria

É o que não aprenderão:

Nunca a regra a mediria.

 

E uma civilização,

Estre ambas espartilhada

Tem de dizer sim e não

Aos rumos de cada estrada.

 

No termo, o nosso destino

Pende de como os combino.

 

 

1318 - Nobre

 

Que é que a uma senhora nobre

Fará que é sempre senhora

Nem que deviera pobre

A imprevista qualquer hora?

 

Que é que a uma senhora pobre

Fará que é jamais senhora

Nem que um esplendor de nobre

A revista a toda a hora?

 

Que é que faz tão diferente

Quem apenas sempre e só

Um rebolão é de pó

 

Por acaso feito gente?

Por que diverge o que é igual

Se de tal nem há sinal?

 

 

1319 - Brilhantismo

 

Nem sempre o valor moral

Acompanha o brilhantismo

Mundano, intelectual.

E onde maior é o abismo

 

É onde nem há sinal

De moral mas onde há um sismo

De brilhos, a ofuscar mal

Do mais o extremo nudismo.

 

São estes os pressurosos

Em torno de reis e chafes,

Auréola dos poderosos

 

Que os merecidos tabefes

Não lhes dando. correctores,

Os tornam nossos senhores.

 

 

1320 - Propaganda

 

A propaganda sempre andou orientada

Visando dois estratos que ela estreita abraça:

O povo que o valor tem do número - a massa;

A intelectualidade que se arvora, grada,

 

Da massa em dirigente e a qualidade traça.

Sôfregos de lisonja, acorrem à chamada

Os intelectuais de destaques à caça,

Maiormente os semi que buscam nomeada.

 

Estes serão cuja migalha de talento,

Numa desenfreada procura de aumento,

Inferiores os torna a quem não tem nenhum.

 

Em nome do talento que ainda não têm

Emprestam-se à manobra que ao longe convém

E sempre aquém acabam sem mais ganho algum.

 

 

1321 - Convenções

 

Firme a comunidade sobre convenções,

Firmada a vida inteira em relacionamentos

Talhados de miragens como de ilusões,

Entronizado o mundo em mil e um fingimentos,

 

No altar da imprescindível, sagrada mentira,

Se alguém for o que for sem mais qualquer disfarce,

O nu traje menor, por belo que se aufira,

Não será sempre um sonho que afinal se esgarce?

 

Não será, bem no fundo, mais que perturbante

O estendal da verdade sempre perigoso,

Da desordem mentor quase anarquizante?

 

Quanto nele for ético e for positivo

Se perde nas angústias de ser temeroso

Quanto das mais desordens devém destrutivo.

 

 

1322 - Caviloso

 

Um homem esclarecido,

Sapiente, escrupuloso,

Não encontras, caviloso,

De senso destituído

 

Acerca do desdenhoso

Saber comum garantido

Ao mais néscio, denegrido,

Dos homens ao mais faltoso?

 

E quem é que nunca viu

Cega aos defeitos dum filho

A mulher mais penetrante

 

No mais que a vida lhe deu?

- Tanto nos ata o cadilho

Ao que em nós for importante

 

 

1323 - Avesso

 

Que beleza encontramos completa, perfeita?

Nem sempre nossos olhos vislumbram o avesso

Terrível, empoeirado, que por trás, espesso,

Da superfície bela permanente espreita.

 

Assim, o nosso amor é uma ilusão atreita

A trair: tanto mais amo quão mais esqueço

E mais cego andarei quanto a qualquer tropeço.

Até que ao real um dia a vista colho afeita

 

E nosso amor esfria quando mais preciso

Fora arder e queimar para nos redimir.

Incapaz se revela em ver outra beleza

 

Além da que primeiro ali vira impreciso,

Como da imperfeição que veio a descobrir:

- Que visão nos faltou que salve o que em nós reza?

 

 

1324 - Vantagens

 

Não, na perfeição não creio,

Pelo menos entre nós, animais humanos.

E receio

Que certas imperfeições e desenganos

 

Quanto maiores, maiores vantagens.

O amor duma mulher,

Por quantas paisagens

De compaixão e consolo contiver,

 

Pode preferir o defeituoso

Se ele a souber

Interessar e comover.

 

E este amor chega a ser tão fabuloso

Que redimir logra um dia

O homem que se perdia.

 

 

1325 - Representáramos

 

Porque uma das razões maiores de vivermos

Tal se representáramos aqui comédias,

Cada vez mais em estreitezas indo médias

Que ao invés bem podíamos repor em termos,

 

De nossa dignidade cada vez mais ermos,

Mais e mais enredados nestas teias nédia

De exterioridades, mentiras, tragédias,

Mais e mais presumidos sem jamais nos vermos,

 

- É que ninguém acata ouvir as tais verdades

Que interesses lhe ferem tal como as vaidades,

Nem sequer dele a parte nos erros de todos.

 

Ninguém principiar quer nele mesmo o esforço

De buscar melhoria, da humildade o escorço

Que dos demais exige por todos os modos!

 

 

1326 - Percursos

 

O mundo está cheio

De falas, discursos

Que as covas e os veios

Tapam dos percursos,

 

Escondem abismos.

E onde estão as obras,

Os corações, diz-mos,

Em que te recobras?

 

Quem é tão sincero,

Quem é tão ardente

Que nele inicia

 

O que dele espero?

Quem é tão decente

Que se torne a via?

 

 

1327 - Futura

 

Chama a ciência loucura

Ao que ignora ou não entende.

Quando o conhece, futura

que é natural o que aprende.

 

Volta costas ao mistério.

as mais das vezes, então,

Embora um serviço sério,

A ciência que faz, senão

 

Escamotear o real

À custa das aparências?

É que sempre o principal

Mora atrás das evidências.

 

Presta-nos muitos serviços

- Mas embruxa-nos de enguiços!

 

 

1328 - Trezentas

 

As trezentas mulheres que em vão procurei,

Todas tão incapazes da felicidade

Seriam de me dar com toda a qualidade

Que ali busquei um dia, que nunca encontrei?

 

Não! Não, coitadas delas, eu é que incapaz

Sempre fui de a sentir inteira e nobremente.

É que o namorador cuja mão inclemente

A virgindade cresta, desfolha e desfaz

 

É sempre, afinal, quem não ama e nunca amou.

Como um vendaval corre num campo de lírios,

Não de voluptuoso em libertino voo,

 

Antes o amor-perfeito buscando fatal,

Assim o andei buscando perdido em delírios,

- E afinal escondido mora em cada qual.

 

 

1329 - Enigma

 

Eis este mundo enorme que existe de mim

Independente, humano ser que sou, que fica

Perante nós enigma eterno a que se aplica,

Em minúscula parte, uma inspecção sem fim,

 

Já que acessível ei-lo a nosso pensamento.

Deste mundo igualmente uma contemplação

Acena-nos, discreta, igual libertação.

Para tal paraíso a via a mais contento

 

Menor é que a que enfia ao trilho religioso,

Mas digna de confiança a ciência se mostrou:

Não se arrepende alguém, se dela entregue ao gozo.

 

Se em meu imo reparo, outrem - vejo - não sou,

Nem seu imo em mim vivo nem nele me entroso:

Como então viveria o do Cosmo em que vou?

 

 

1330 - Construtiva

 

Na ciência mais é construtiva

A crítica vigorosa

Do que ousa

Noutra empresa humana, por mais viva.

 

A ciência tem padrões

Em que acordam praticantes

Em todo o mundo: antes

A prova que os sermões.

 

Visa a crítica encorajar,

Ao invés de suprimir,

Novas ideias.

 

Quem sobrevive a um mar

De dúvidas tem porvir,

Há-de estar certo, nem que seja a meias.

 

 

1331 - Raridade

 

Se a vida inteligente é raridade,

Se ausente for doutros locais do espaço,

Se após a busca que extensiva faço

Com todos os recursos, for verdade

 

Que únicos somos nesta soledade,

O mais provável para tal regaço

Vazio deste Cosmo sem abraço

É que se auto-destrói a sociedade,

 

Por norma, antes de ter evoluído

O bastante a implantar qualquer sistema

Que um mundo irmão houvera conhecido.

 

- Qual deve ser então o nosso lema:

Coesos construtores de sentido,

Ou da morte global a ponta extrema?

 

 

1332 - Clâmide

 

Ao poder mais alto,

Cume da pirâmide,

Revisto-o da clâmide

Do Deus que me falto.

 

Podia ter dado

Outro qualquer nome:

Mistério que some,

O Abismo do fado,

 

Luz, Escuridão,

A Matéria, o Ser,

Silêncio, Palavra…

 

- A Esperança não

Descobre sequer

Que trilha ao fim lavra.

 

 

1333 - Anuncia

 

Quando uma religião

Anuncia o fim do mundo

E à não-verificação

Faz o juízo profundo:

 

“Ele acabou. Vós, porém,

Se não reparais em tal,

Vosso é o problema e contém

Dos ímpios claro o sinal!”,

 

Se os crentes lá continuam

Ante a desonestidade

Com que tais seitas actuam,

 

Ou doidos são de verdade

Ou o vazio que acuam

Deles é a profundidade.

 

 

1334 - Sozinho

 

Sozinho, ninguém

Nada fará bem.

 

Importa-lhe ouvir,

Saber dialogar

Para, após, medir

O acerto a operar.

 

Parece ir sozinho,

Mas dentro da pele

Caminha um caminho

Que não é só dele.

 

Não é quem já vi,

Ele hoje é demais:

Por dentro de si

Vão todos os mais.

 

 

1335 - Incentiva

 

Quando estamos com problemas,

Desiste o amigo dos planos,

Das conquistas de meus lemas

Se alegra e jamais dos danos.

 

Um amigo me incentiva

A realizar meus sonhos,

Dá conselhos, não se esquiva

Se meus nãos forem medonhos.

 

Continua a respeitar-nos

E sempre a gostar de nós.

É quem permite apanhar-nos

Das estilhas já sem voz

 

A que os encontrões da vida

Nos reduzem de seguida.

 

 

1336 - Abençoa

 

Com um amigo podemos

Ser nós próprios e tais quais.

A maravilha que lemos

Na amizade, além do mais,

 

É que ela nos abençoa

Pelo facto de nós sermos

Quem somos, assim à toa,

Sem mais condições nem termos.

 

Aquele que tem amigos

É mais feliz e saudável,

Escapa breve aos perigos,

Viver mais lhe é mais provável.

 

Ainda por cima é barato:

Custa o gozo dum bom trato!

 

 

1337 - Atafulho

 

Na luta pela existência

Quero ter algo que dure:

Atafulho a inteligência

De quanto saber apure

 

Naquela tola esperança

De conservar o lugar.

Mal um ideal me alcança

Corro logo a me informar.

 

Ora, a mente do informado

É uma alfurja do medonho,

Loja de quinquilharia

De monstros cheia e pecado.

E o preço que a cada aponho

Jamais compra a luz do dia.

 

 

1338 - Mutilados

 

De nós os mais corajosos

Deles próprios têm medo.

Mutilados, andrajosos,

Somos punidos bem cedo

Das recusas mais precoces.

Cada impulso estrangulado

Envenena-nos as posses

Com pensamento enviesado,

Onde teima em germinar

Todo o sonho que morreu

Porque não teve lugar

E ei-lo negro como breu.

Cara fica a amputação:

- Sou por dentro um aleijão.

 

 

1339 - Palavra

 

A música emociona, até perturba.

Todavia, não sendo articulada,

Não é do novo mundo uma largada,

Antes um novo caos para a turba.

 

A palavra terrível que conturba,

Clara, cruel e nítida morada,

Ninguém fugir-lhe pode a uma chamada,

Tal a magia com que atroz nos turba.

 

Capaz parece de dar forma às coisas,

Terá música própria para o informe,

Alaúde vibrante em que o repoisas.

 

Simples palavras e que força enorme!

Mero sopro de sons correndo as lavras,

Que real existe mais do que as palavras?

 

 

1340 - Frescura

 

Uma nova expressão de arte,

Frescura de olhar a vida,

Como acaso sugerida

Por quem sempre esteve aparte,

 

Penumbra da selva ignota,

Sopro invisível nos prados,

De repente com traslados

Numa paleta que anota,

 

- Revelam a maravilha

A quem a busca encantado.

Formas simples e modelos

 

A que o requinte perfilha

Dalém vislumbram o lado:

- E Além ato os tornozelos!

 

 

1341 - Esquisita

 

A mulher da moda

Nunca nos excita,

Por mais esquisita

ue aconteça toda.

 

Está confinada

A certo contexto,

Não desperta o sexto

Sentido de nada.

 

Onde mora o encanto

Que ma transfigura?

Prevejo-lhe o pranto,

O chapéu que augure…

 

- Leva tudo a sério

Menos o mistério.

 

 

1342 - Cavaqueiam

 

De manhã passeiam

Sorrisos conformes,

Depois cavaqueiam

Temas com que dormes:

 

- Óbvias, é evidente.

Uma actriz, porém,

Sempre é diferente

E tal nos convém.

 

É da diferença

Que vem a surpresa

Que nos desafia.

 

- Por que é que a sentença

Que a vida mais preza

Falha dia a dia?

 

 

1343 - Poupado

 

A razão porque gostamos

Dos outros pensar tão bem

É do medo que sintamos

De nós, acaso, também.

 

Tenho-me por generoso

Por creditar no vizinho

As virtudes que dão gozo,

No fim, dentro de meu ninho.

 

O elogio do banqueiro

Não é só por mor da conta,

Digo bem do bandoleiro

A ver se a mim não me aponta…

 

- Se espero ao fim ser poupado,

Digo bem por todo o lado.

 

 

1344 - Confissão

 

Quando me censuro

Então mais ninguém

O direito tem

De o tentar mais puro.

 

É uma confissão

E um padre jamais

Me absolverá mais

Num qualquer perdão.

 

Descarrego a carga

Que há na consciência

E a palavra amarga,

 

Sofrida a veemência,

Deixa-me leveiro

No dia primeiro.

 

 

1345 - Privilégio

 

Quem ficar enamorado

Começa por se enganar

A si mas, por outro lado,

Nos outros vai acabar.

 

Chama-lhe o mundo romance.

Porém, a grande paixão

Raro tem algum alcance

No mundo que houver à mão.

 

Quando muito, é privilégio

De quem o prémio tem régio

De viver de ociosidade

 

E comete o sacrilégio

De nem ver o povo egrégio

Que é quem ama de verdade.

 

 

1346 - Pedido

 

Noutro tempo as ensinaram

A não compreender nada.

Do velho sistema a entrada

É das coisas que goraram

 

Na mulher sempre enganada.

Quantas vias que a ajudaram

A não perceber! Que erraram

Vemos hoje na letrada.

 

Hoje compreendem tudo,

Marca de modernidade:

A mulher tem conteúdo.

 

Resta um último pedido:

Quando é que ela, de verdade,

Compreenderá o marido?

 

 

1347 - Fraqueza

 

Ama um homem a mulher

Conhecendo-lhe a fraqueza,

O desvario que a lesa,

A imperfeição que tiver.

 

Ama-a mais do que a quenquer,

Não porque o mal nela preza,

Não porque ama o que despreza,

Nem porque o perfeito quer,

 

Mas porque é sempre o imperfeito

Que mais nos requer amor.

É quando ferido o peito

 

Pela própria ou doutrem mão

Que o preito presta o fervor

De vir curar a lesão.

 

 

1348 - Pélago

 

Um homem, ao nascer, tomba às cegas num sonho

Como se caíra ao mar.

Se então se debater, inexperto, ao calhar,

Afogar-se irá, medonho.

 

O que importa, inadiável, é se abandonar

Ao pélago a que me oponho,

Ao destrutivo evento que jamais suponho

Me pudera sustentar.

 

Arranjo que o mar profundo

Ternurento me sustenha,

Incrível a flutuar entre as ondas, jucundo.

 

- Eis como pode quenquer,

Antes que a morte lhe advenha,

Como pode chega um dia a vir a ser.

 

 

1349 - Plaino

 

O grande plaino onde erram os homens por entre

Os túmulos e os barrancos

Desolado mantém-se com os versos mancos

Da poesia que ali entre.

 

E a luz crepuscular que impalpável os bancos

Em nossa fadiga adentre

Jamais em nós logrou que o fulgor se concentre,

Sempre à sombra mantidos dos ais nos arrancos.

 

Sempre com o centro à sombra,

Nas orlas a claridade,

Onde me repousar não vou ter uma alfombra.

 

Enrodilhado em tais tramas,

Quer ou não isto me agrade,

Serei sempre uma ausência de abismos em chamas.

 

 

1350 - Ocasiões

 

Quantas ocasiões, triste, deixei passar?

Quantos sonhos perdi!

E como alguns tão belos se antolham em si,

Se houveram tido lugar!

 

Sabe quantos alguém, quantos em mim, em ti?

Nem eu logro adivinhar

Talvez os miradoiros donde ver o mar

Ao lado do que vivi.

 

Todos temos um ou dois

Destes sonhos que depois

Não vimos, distraídos, como efectivar.

 

Eis, pois, a grande desgraça

Que nos perene ultrapassa

Por jamais nos lograrmos nós ultrapassar.

 

 

1351 - Vagabundeamos

 

Sobre a face da Terra vagabundeamos

Aos milhares e milhares,

De nomes ilustres ou de obscuros ares,

As glórias que respeitamos

 

A ganhar algures: o dinheiro dos mares,

A côdea que nós comamos,

O pedestal de barro que ludibriamos…

Depois, o retorno aos lares

 

É para apresentar contas:

Voltamos para enfrentar

O louvor dos parentes, acaso as afrontas…

 

E para gozar a alegria,

Paz enfim respirar,

A consciência limpa como o dia.

 

 

1352 - Pequenina

 

A planta mais pequenina

Tira a força e a vida

Dum cantinho que a convida

E a que ela se inclina.

 

A terra assim nos destina,

Plantas que decida

Aptas manter para a lida,

Apesar de, fina,

 

Qualquer haste se quebrar.

Aqui me enraízo,

Homem que na terra

 

A fé vai, crente, buscar:

No fundo, o juízo

Vem donde se enterra.

 

 

1353 - Última

 

A última palavra não foi dita,

Provavelmente nunca mais será,

Que ultimar não pertence a quanto cá

A dita nos promete na desdita.

 

Não é verdade que o que a vida dá,

Demasiado curta em sua fita,

O tempo não empresta que medita

A frase inacabada que não há?

 

Bem queríamos nós findar a frase!

Porém, o nosso intuito permanente

Choca eterno no termo que se atrase.

 

Se a derradeira letra um dia apraze,

Abalarei, ao meditá-la, quente,

Os Céus, a ponto que os de Terra abrase.

 

 

1354 - Estúpido

 

Mais proveitoso e seguro

Será não ter ilusões

E respeitável, auguro,

Mas estúpido em senões.

 

No nosso tempo mais puro

Sentimos os abanões

Da vida intensa que apuro

Na luz que explode em vulcões

 

Por vezes dum mero choque

De vagas futilidades,

Tão surpreendente ao toque

 

Como a faísca que a pedra

Fria acende nas vaidades

Do que efémero em mim medra.

 

 

1355 - Impulso

 

Era para obedecer

A uma voz interior,

A um vago impulso do ser,

A um porvir a se propor,

 

Que aqui vemos no escaler

A perseguir o sol-pôr,

Para além do que qualquer

Pudera, ao partir, supor.

 

Toda a aventura começa

Muito antes dum atrevido

Gesto ignoto que a atravessa.

 

E o roteiro perseguido

Rasga a pegada travessa

Além no desconhecido.

 

 

1356 - Mirífica

 

Era uma oportunidade

E porventura magnífica,

Que qualquer uma é mirífica

Quando fora de verdade,

 

De verdade científica.

Porém, o que persuade,

No-la torna tão terrífica,

É que o que dela nos há-de

 

Vir a beneficiar,

Do que os homens fazem pende.

As ocasiões mais belas,

 

Muito mais do que ao azar,

São, no que delas se entende,

O que um homem fizer delas.

 

 

1357 - Resto

 

No resto do mundo

Ninguém haveria

Que requeira um dia

O coração fundo,

 

Nem de alma a magia,

O pulso fecundo,

A mão de que inundo

qualquer fantasia.

 

Destino comum,

Contudo terrível

Para qualquer um.

 

Dizê-lo, que horror

De fado temível,

Seja de quem for!

 

 

1358 - Corrida

 

Não é a própria humanidade,

Dela na cega corrida,

Por um sonho perseguida

de grandeza e potestade?

 

E não é por toda a vida,

Em plena voracidade,

Arrastada à crueldade

De que se quer redimida?

 

É uma devoção demais,

é da verdade a procura

Dogmática dos sinais

 

Que no fim nos inaugura,

Não uma pegada a mais,

Mas a geral sepultura.

 

 

1359 - Asas

 

Eu tenho vivido, tenho,

E também você, também,

Fale embora tal se nem

De gente houvera o tamanho.

 

Tal se fora mesmo alguém

Que de asas teria o ganho

Para gerir seu amanho

Da lama sem ver vintém.

 

A lama existe, porém,

E as asas não tenho, não,

E nem tu nem ninguém tem.

 

Como viver sem no chão

Me enterrar inteiro além,

Semear-me em meu torrão?

 

 

1360 - Sinistra

 

A vaidade prega

À nossa memória

A sinistra e cega

Partida da glória.

 

Quando ela me entrega

Louros de vitória,

Mais deveras chega

Oca de vanglória.

 

A paixão sincera,

Por mais folhas de hera

Que redija em textos,

 

Meros são pretextos:

Ela apenas preza

Continuar acesa.

 

 

1361 - Equilíbrio

 

A melhor coisa da vida

Não é coisa, não senhor:

Falo de saúde, amor,

Amizade, um lar em lida.

 

E, se família e carreira

Não equilibro, cuidoso,

Vai o peso, pesaroso,

Pesar mais para a canseira.

 

No curto prazo, vai bem,

No longo, porém, não vai:

Sempre um novo emprego vem,

 

Mas refazer novo pai,

Novos filhos, nova mãe…?

- Mais vida, à rifa, não sai!

 

 

1362 - Cemitério

 

Respeito votado ao morto

Não é de ir ao cemitério.

É cuidar neste mistério

Dum amor que perde o porto

 

E que magoa, dói, pensa,

Com reverência e orgulho,

De alguém sofre falta imensa

Do vazio no mergulho.

 

Significa isto respeito:

Um coração magoado

A doer fundo no peito

Como uma chaga do lado.

 

Tudo o mais é fantasia

Que o público ludibria.

 

 

1363 - Rebentos

 

Para meu pai era bom

E já me não basta a mim.

E, se em mim perde o condão,

Já te nem serve, por fim.

 

A meta que for a tua,

Para teu filho não chega

E em teu neto nem actua,

Depois já ninguém lhe pega.

 

Catapulta teus rebentos

Acima da linha de água,

Instrui-os, visa os intentos

Que além vão de tua frágua.

 

Um dia agradecerão

A largada do balão.

 

 

1364 - Pulhítico

 

O pulhítico usa o povo

Como cavalo de arena,

Monta-o em cada corcovo,

Para as multidões acena…

 

E a máquina partidária

Lubrifica em sujeição:

O de baixo é-lhe a primária

Escadaria do chão.

 

Mas na voz é um democrata

Sempre ao serviço dos mais

Que em sacrifícios desata

As velas aos vendavais.

 

- E ai de quem se não precata

Em ler por trás dos sinais!

 

 

1365 - Estupenda

 

Não faz nenhum bem pensar

Que qualquer coisa é estupenda

Para depois se chegar

Da desilusão à emenda.

 

Ninguém para a frente andar

Pode se não encarar

Os factos.

 

Onde é que chegar se espera

Se apenas com a quimera

Há pactos?

 

A queda do sonho

É desmedida:

Em medonho

Pesadelo torna a vida.

 

 

1366 - Singelo

 

Há os que têm que dizer,

Não sabem como fazê-lo.

Há os que o bem sabem fazer

E nem um pensar singelo!

 

Quando um homem é fluente

É que o mesmo terá dito

Tanta vez a tanta gente

Que já lhe há perdido o fito.

 

Falar significativo

É o que tem de elaborar-se

A partir de algo que é vivo,

A ler por trás do disfarce,

 

Sem nunca ver claramente

Que contornos tem em frente.

 

 

1367 - Despedida

 

Quando o bom é castigado

E o malvado fica impune,

Virtude é posta de lado

E a honestidade desune,

 

Escarninha, com desprezo,

Se a beleza é conspurcada

- A vida que tanto prezo

Que de vez vá desterrada!

 

Como aceitar esta vida

Tão podre como aquilo é?

Como não, se, de seguida,

Me quero manter de pé?

 

- Ou então é a despedida

De tudo o que é minha lida.

 

 

1368 - Inquietação

 

Um homem tem e sempre mais terá

A inquietação das rotas a correr

Quão mais cultura e afinamento houver,

Compreensão da lei dalém do que há.

 

Pela maior e mais complexa já

Força interior que lhe permite ver

Dele os caminhos que devera ter,

Surpreende os muros que lhe ergueram cá.

 

Para quem sabe qual é seu caminho

De que lhe serve por um outro ir,

Se este não rompe a raia que adivinho?

 

Daqui o estagnamento, esta apatia

Da juventude que, a aguardar porvir,

Lonjuras de ideais nervosa espia.

 

 

1369 - Ignoto

 

Não te direi o meu nome:

Mensagem que vem do ignoto

É aquela que tem renome.

Colho um termo e logo anoto

 

A boca donde ele vem,

Registo dela o limite:

O termo fica refém

Da matriz, sem mais desquite.

 

Se vem do desconhecido,

O invisível é o melhor

Meio de lhe dar sentido:

 

Só a palavra tem valor.

Este alvo então quando olhar

Tudo lhe dou que é de dar.

 

 

1370 - Trilam

 

Trilam os pardais ao sol

A explicar a alegria,

A mais simples que há no rol:

Do ser saltar a fasquia.

 

Meu Deus, como a vida é bela,

Como a terra vibra alegre!

Quem entende esta sequela

Donde vem, que força a regre?

 

Quem o misterioso indício

Me revela?

Quem do escuro precipício

Me atropela?

Quem acende no resquício

Minha estrela?

 

 

1371 - Teia

 

Um nome, teia invisível,

Irreal prisão de sons,

O incrível torna credível,

Dá ser ao que o nunca tem,

No lusco-fusco dos tons

Cria até o que jamais vem.

 

Absurda invenção do homem,

Planto de nada a palavra,

Logo as sombras se consomem,

Brota um fumo aqui, além,

A chama do incêndio lavra

- Em breve o real advém.

 

A palavra é como o amor:

Tem um poder criador.

 

 

1372 - Falésia

 

Realizei meu projecto,

Esgotei  minha energia:

Logo me encontro sem tecto,

Nu de qualquer fantasia.

 

Irrompi de muito longe,

Percorro todo o caminho:

No cume agora sou monge

Definitivo e sozinho.

 

Só que da falésia ao alto,

A infinitude do mar,

Do espaço que ainda falto

Logo me vem visitar.

 

Sei que será sempre assim:

Nunca mais haverá fim.

 

 

1373 - Abarrotado

 

Sozinho aqui estou, sozinho

E abarrotado de mim.

Valeu a pena o caminho?

Ver um Universo vim,

 

Matei curiosidades,

A vida, a morte, que graça!

Os astros, que enormidades!

E o tempo que nos enlaça…

 

Vim saber como isto era

E meu corpo conheci,

Alguém nele me metera

E nunca mais o despi,

 

Como o pêlo dum cão sou

Com a cor com que aqui vou.

 

 

1374 - Vacila

 

Vacila a humana razão

Ante a imensidão da força

Que força à destruição,

Preço a que a razão hoje orça.

 

Temos forças infernais

Dentro em nós tão mal contidas

Que ameaçam como jamais

O homem como as demais vidas.

 

Fogem de medo assustadas

Artes e letras vazias,

Minam-se esterilizadas

Destras ideologias.

 

É o mundo desintegrado

- E eu sem ver qual o bom lado!

 

 

1375 -  Vagabundos

 

Verás os vagabundos caminheiros

Num mundo apenas farto de falência

Que os precipícios beira com dormências,

Daqueles sem os mais rumos inteiros.

 

Eles encarnam o melhor, parceiros

De aspirações profundas, evidências

Do que nos homens de hoje são ausências

De caminhos aos cumes sobranceiros.

 

Eles não desertaram da natura,

Humildes a beleza lhe acolhendo,

Rigores e mercês que ela nos jura.

 

Ébrios de espaço, querem apertar

A mão amiga além do diferendo,

Do longe hospitaleiro partilhar.

 

 

1376 - Errante

 

Homem por excelência, bom e mau,

O errante vagabundo, fruste embora,

Obscuro reconhece e revigora

Mensagens do que, enfim, é nosso tao:

 

Um mundo em que o trabalho já não fora

Maldição constrangida a varapau,

E o homem não trocara, em nenhum grau,

Liberdade em conforto, por penhora.

 

A aventura reside na perene

Duma fraternidade sã procura,

Onde qualquer roteiro fique indemne.

 

Todas as vias de enricar abertas,

Espiritualmente então se apura

O sonho de partir às descobertas.

 

 

1377 - Murmúrio

 

És livre de arrastar pelo mundo um coração

Que para o mundo não criei,

És livre de procurar na terra uma ração

Que não te destinei,

De querer matar a fome

Que nada poderá saciar:

Todas as criaturas, o Universo inteiro, nada a con-some…

Atrás, porém, duns e doutros correrás sem parar.

 

Saberia bem fugir ao isolamento,

De asas inconscientes à solta…

Não te iludas, a todo o momento

O criarei, perene, à tua volta.

 

- Aí, no murmúrio da solidão,

É que te obrigarei à criação.

 

 

1378 - Prospector

 

És mesmo o prospector de oiro,

Os montes corres de mula,

Ferramentas do tesoiro

Tua mão nela acumula.

 

Se a mula caminhar leve,

Percorre vasta extensão,

Vai talvez descobrir breve

Para ti de oiro um filão.

 

Se demais for carregada,

Cansa-se, põe-te em jejum,

Não te irá descobrir nada,

Não chegam a lado algum.

 

- É bom disto te lembrares

Sempre quando discursares.

 

 

1379 - Bizantino

 

Todo o amor é bizantino,

Com aromas orientais,

Que no juízo dos mais

Mais não são que desatino.

 

Não é coisa que alguém veja,

Anda no ar que se respira

E alucina a quem delira

Como droga sertaneja.

 

Quando um perfume tew dou,

Dou-te um sinal do outro lado,

Dou-te o horizonte do voo

 

Pela ternura visado.

Somos aqui de verdade,

- Há um cheirinho a eternidade!