PRIMEIRO TROVÁRIO
PRIMEIRO GERMINA O AMOR, POEMA REGULAR
Escolha ao acaso um número entre 1 e 124, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 - A Mansão da Infinidade
Primeiro germina o Amor, poema regular,
Desemboca na Utopia, em todo o sonho,
Normativo logo após se há-de tornar
Com aquilo que define a caminhar.
E, poema irregular, de Amor disponho
Pela Utopia além verrumando,
Regras a definir,
O Ser que entendo a perseguir.
Depois, a quadra regular de Amor e Sonho laçando,
Atinjo a norma de fermentar o que desvendo,
Até que toco a irregular quadra de utopia e afectos
Culminando a regra a ordenar o que compreendo.
Aqui chegados, sonetos e trovários são projectos
Que agasalham da ironia e bom-humor os tectos.
2 – Primeiro germina o Amor, poema regular
Primeiro germina o Amor, poema regular,
Em verso bem medido e bem rimado.
A raiz aqui vou soletrar,
Nas pegadas que alinhar,
Do que nos destina o fado.
Tanto pelo amor-paixão
Como pelo fraterno ou parental
Ou da humanidade universal
Caminharei, raso ao chão.
Contudo, de olhar ao alto,
Explorando no afecto
O trampolim do salto.
Algum dia no infindo o projecto
Culminará o trajecto.
3 – Sabor
Na máquina de café
Ajunto o sabor dos povos
De Moçambique à Guiné,
De Angola trago renovos,
De Timor à Arábia até,
Em lotes de sabor novos.
O fruto das lavras ponho
Todo inteiro a se abraçar
E das fazendas disponho,
A machamba e a roça a par,
O alegre povo, o tristonho,
Juntos tudo a perfumar.
Pode o mundo fazer guerra,
Que o sabor de tudo enlaço.
Nós cá somos terra a terra
E preferimos o abraço
Ao dente que tudo ferra,
Que a festa prende no laço.
Nós enlaçamos o mundo
E, nele nos enlaçando,
Damos o abraço profundo
Que juntos nos prende, quando
De amor tudo é tão jucundo
Que o mundo acaba inundando.
4 – Poetas
Dum amor toda a fervura
Os poetas transmudaram
Numa infinita impostura:
As rimas deles colaram
De palavras duas bocas
Que as vidas mal decalcaram.
Sempre o amor que em nossas tocas
Os fados nos destinaram
Menos belo e que o que evocas.
Os degraus para o infinito,
Que lonjura em nosso grito!
5 – Mudar
É o amor o derradeiro
Meio de mudar os seres,
Mesmo cheios por inteiro
De ódio quando os acolheres.
Se exprimires este amor
Em contínuo, sem enfado,
Tocá-los-ás do fervor,
Tarde ou cedo, a teu agrado.
6 – Angústias
Para angústias combater
É preocupar-se menos
Consigo que com os mais.
Alguém ao deveras ver
Ruins dos outros os terrenos
Maus os seus não vê jamais.
Quando os outros ajudamos,
Nossa confiança aumenta,
Nossa angústia diminui,
Desde que francos sejamos.
Paga a mais quando se tenta
Só do mal que em nós influi
Nos livrarmos, finalmente,
Noutrem a apostar em frente.
7 – Argumento
Quando argumento, a razão
É sempre a quem me dirijo.
Se amor manifesto, então,
Ou carinho é que de rijo
Me comunico à pessoa,
Eu inteiro ao outro inteiro,
Não a qualquer parte à toa
Donde ao todo não me abeiro.
Dali é que então alguém
Muda no encontro que tem.
8 – Jóia
É sempre uma fancaria
A jóia de minha prenda?
Tanto mais se distinguia
Da ternura que eu te renda.
E é tão mais de pechisbeque
Quanto o amor que tece os dias
Das emoções todo o leque
Nos enche de fantasias.
Uma prenda é uma janela
Para a paisagem soalheira
E és tu nesta a minha estrela
A aquecê-la toda inteira.
9 – Ouvi
Venho aqui testemunhar
Que ouvi bem a Tua voz,
Identifico o sinal.
E venho, pois, te impetrar
Que me não faças, após,
Dele indigno, no final.
Venho dizer que, ao olhar
Meu amor, a Ti descubro:
Já não és mais invisível,
Difuso, uma sombra de ar,
Mesmo se eu estou ao rubro,
Mas concreto, perceptível,
Vivente, reconfortante,
Fonte de amor amor dando,
Sempre a intervir actuante.
Ajuda-me, que ajudando,
Tu que és amor, a que eu ame,
Vou consumir-me no amor
E não temer dele o fogo.
Que ante o risco não me escame,
Que ante o medo, sem tremor,
O terror desgaste logo.
Ajuda-me a não fugir,
Não traficar, degradar,
Não aviltar, corromper.
Ajuda-me a distinguir
O vero do que falsear
E ajuda-me a não ceder
A emboscadas de inimigos
Do amor, os grandes perigos.
Eu e Tu, então, de vez
Juntos no rosto que eu amo
Somos Um em dois, os três,
De Deus o inefável tramo
Vivo em nossa pequenez.
E somos divino um ramo
Com inteira solidez
Junto ao mais que em vida acamo.
10 – Perdido
Falei-te de plenitude
E o que vejo nos teus olhos
É o paraíso que ilude
Perdido por entre abrolhos.
Cada qual o possuía,
Ao paraíso perdido.
Hoje é dele a nostalgia
Da vida e morte o sentido.
Quando eu olho nos teus olhos,
Quando tu olhas nos meus,
Os milagres são aos molhos,
É o tempo, o tempo de Deus.
Em ti eu O encontro a Ele
E me reencontro a mim,
Tua pele é minha pele,
Tuas mãos, minhas assim.
Amo-te, não tenho medo,
Tens a beleza do sol:
Quando ris é um raio, cedo,
Da madrugada que bole.
Sai de ti, inunda o mundo:
- Como tudo põe jucundo!
11 – Auréola
Extremamente fugaz,
Além do mais, é a beleza.
Uma vaga auréola traz,
Uma irradiação mal presa,
Um odor que é tão esquivo
Que mal se inscreve em ser vivo.
Tem a intensidade cega
Que nos prende e ninguém pega.
12 – Encontrado
É uma ideia aterradora
O amor que podia ser
E não é, mera demora.
Quem eu poderia ter
Encontrado e todavia
Nem o vislumbrei sequer.
Amor que então deviria
Aventura em negativo:
O que não é mas seria…
O estranho do amor esquivo
É que a sublime aventura
É a que eu podia, vivo,
Ter vivido em tal altura
E não vivi, morto arquivo
Do que nunca tem figura.
É meu mundo paralelo
A que nunca apus o selo.
Lugar do sonho perdido
Que sou sem nunca ter sido.
13 – Sol
Cada qual é detentor
Dum sol que ciosamente
Conserva em seu interior
E que desde adolescente
Esconde, a aguardar mais ganhos,
De familiares, de estranhos.
Chegará, porém, o dia
Em que tropeça em alguém
Que lhe desvenda a magia
Do segredo que em si tem
E que o assume tal qual
Na alegria que o iguale.
Ou então somos nós quem
Penetrará no segredo
Que o imo doutrem contém,
Que o assumimos sem medo
Como festa de magia
Que em nós também principia.
Não há de sangue algum laço
Que mais ligue, irreversível,
Que a descoberta que faço
Deste sol indestrutível
Que por graça ou por acaso
Se me impõe como meu caso.
Abençoados aqueles
Em que é mútua a descoberta:
Descubro teu sol que impeles
Quando o meu te abre uma aberta.
E mil bênçãos se fiéis
Forem sempre a tais anéis.
14 – Descobriste
Se nos dias que hão-de vir,
Pelo sol te condenarem
Que descobriste fulgir
No peito dos que se amarem,
Lembra-te: digno hás-de ser
De quanto sol aquecer.
Se te pregarem na cruz,
Anjos do céu vão descer,
Vestidos de branco e luz,
Que te irão lá desprender.
Mesmo selado em sepulcro,
Ressuscitarás mais pulcro.
E, se for justo fazê-lo,
Que tu próprio saibas ser
O anjo libertador belo
Daqueles que hão-de sofrer
Por mor da fidelidade
A todo o amor que os invade.
15 – Fruto
Se aquele que se apresenta
Como sendo um esperado
Gerar não nos faz nem tenta,
É só fruto malogrado.
Um desejado anuncia,
Não um cilício de esparto,
Mas aquilo que se cria
Através da dor de parto.
E quem ama, se calhar,
A contradição requer
De só conseguir amar
A quem tal fizer sofrer.
16 – Amo-te
Amo-te de cravo e rosa,
Amo-te de amor-perfeito.
És poema em minha prosa,
És a vida a que ando afeito.
És tão eu, tão eu que, enfim,
Sem ti nem eu era em mim.
17 – Corresponder
O amor incondicional
Não é aquele amor terreno
Em que se ama cada qual
Se corresponder em pleno
Dele ao que espero que vale.
Outro é o que importa deveras:
Amo-te pelo que fores,
Respeito, em quaisquer esferas,
Teu trajecto ao te propores.
És o que és e tens direito
A tomá-lo sempre a peito.
18 – Campo
Um só campo de energia
Nos une a todos no mundo.
Somos todos a magia
Dum cordão imenso e fundo,
Fisicamente ligados
Todos por todos os lados.
Estão mesmo entretecidas
As do meu com as do teu,
As moléculas hauridas
Do Cosmos no gineceu.
Uma só força ata os nós
A agir dentro em todos nós.
19 – Embora
Embora tenha o poder
De interferir e evitar
A dor que um filho tiver,
Optarei por mostrar
Amor deixando-o aprender
À própria custa a esmoer.
Faz parte do crescimento
A dor de cada momento.
É assim que nós aprendemos
Não na estufa que amornemos.
20 – Procuro
Que procuro, que procuras?
Certamente, não o amor:
Não o compram sinecuras
Nem a vontade o há-de impor.
Ao amor ninguém o alcança,
Corra, salte ou atropele,
Pouco importa o que se cansa:
- Quem nos alcança é sempre ele.
21 – Guerra
Em tempo de guerra o amor
Chega a não ter importância,
Tal a importância do horror:
O amor é uma irrelevância,
De tanta insignificância.
O amor, porém, é que empresta
O sentido e peso à vida.
Por isso a guerra não presta,
Tem de ser, nesta medida,
A todo o custo impedida.
22 – Choque
É dentro de nossa casa
Que o inimigo é pior.
O choque que chispa em brasa
Não é de servo e senhor,
Vai ser entre pai e filho,
Entre marido e mulher,
Entre irmãos, quando o cadilho
Que os ata se retorcer…
Quando Deus se faz presente,
Não é paz mas divisão
Que o rio arrasta em torrente
Até regar todo o chão.
23 – Fronteira
Vais a um sábio perguntar
O que é que entre noite e dia
Faz fronteira a separar:
Se estrela que não luzia,
Se linha branca de preta
Distinguir sem hesitar.
E o sábio o que te interpreta
É que és um cego sem par:
Aquilo que te separa
O dia sempre da noite
É quando olhas cara a cara
Qualquer homem que se afoite
E vês que ele é teu irmão.
Se vives num tempo novo,
É nisto que vês então
Que o velho é morto e o renovo
Inaugura um novo dia
Dum olhar nesta harmonia.
24 – Purifica
Nada purifica tanto
Como a afeição. As questões
De família enxugam pranto,
De rasas devirem tanto:
- A união eleva, emoções
A tudo emprestam encanto,
Troca a vida corações.
25 – Súbditos
De súbditos mais amado
Te vale ser que odiado.
Decerto benevolência
É mais própria, por essência,
Que orgulho, na ocasião,
Para ganhar afeição.
Aposta no bem-querer:
Comandas mais que quenquer.
26 – Juntas
Por que é que há-de ser loucura?
Se duas pessoas se amam
Nunca mais pára a procura,
Por que de vez não se acamam?
Se ao fim dum mês andam fartas
Uma já da outra então,
Se com o outro já repartas,
Mau comparsa, o jogo em vão,
Não ficais associados,
Partilhando a mesma estrada:
Cada qual, os pés pisados,
Só da dor é camarada.
27 – Erguer-se
O sentimento de irmãos,
Uma afeição arreigada
À vida, de mãos nas mãos,
Por nenhum choque abalada,
Por mil pequenas disputas
Ofendida num instante
Mas sempre a erguer-se das lutas
Mais forte e mais viva adiante,
Quando a pressão se fundiu;
Uma afeição que nenhuma
Paixão depois destruiu,
Que nem um amor resuma,
Iguale em força, constância:
Que um amor fere, cruel,
Com tais angústias, tal ânsia,
Que nossas forças impele,
Num ápice devoradas
Pelas chamas ateadas;
- Uma afeição sem tormentos
Nem fogueiras a queimar,
É consolo dos momentos,
Bálsamo a cicatrizar.
O sentimento de irmão
Brevemente sintoniza
Coração com coração
E ambos disponibiliza.
28 – Mesma
Jamais há felicidade
Onde não houver mudança.
A monotonia invade
Tudo quanto o amor alcança.
A morte e a monotonia
Farão então parceria,
Uma na outra repoisa,
- São ambas a mesma coisa.
29 – Ilusão
A vida é uma ilusão, mas não o amor.
O amor é a mais real, mais duradoira,
Mais doce e mais amarga fina-flor
Que conhecemos firme ao sol que a doira.
É poderoso como a morte,
Dele a doçura é fugidia
E o aguilhão é de tal porte
Que fica sempre em duro corte,
Cruel tortura, noite e dia.
Isto, a menos que se trate
Dum amor retribuído.
Mas romances são dislate,
A epiderme do sentido:
Mostram a superfície verdejante
E tentadora, enfim, do pantanal,
Não reflectem a face perturbante
Do fundo que ela encobre e é lamaçal.
Há casamentos felizes,
Se é recíproca a atenção
E sincera nos matizes
E se em harmonia estão
As mentes, desde as raízes.
Porém, nunca inteiramente
Um casamento é feliz,
Tal a ferida inclemente
Que nos tolheu a matriz.
30 – Mães
As mães nunca julgam, nunca,
E nunca condenam, amam.
É a missão delas que junca
De jardins tudo o que acamam.
E depois quem é que sabe
O que sofre um criminoso,
Quando isto é quanto não cabe
Da lei no laço oneroso?
Não vai ser ela que negue
Do filho morto à memoria
Um perdão total, entregue
Sem condições nem história.
É que a mãe tudo perdoa:
Aos pés da cruz que redime,
Da forca que amaldiçoa,
Adora ou bendiz, sublime.
Ao filho que o coração
Aos cães da amásia lhe leva,
Se o jovem tombar ao chão,
Logo a voz da mãe se eleva
Inquieta, terna e sem brilho:
“Magoaste-te, meu filho?”
31 – Capricho
Capricho do coração
É que a mente mais contida
Na baia das leis da vida
Sofre uma fascinação
Por aquele que escoucinha
Qualquer tirante que o prende,
Não faz caso nem se rende
À moral que mais convinha.
Chega a ser o predilecto,
Ídolo aos olhos dos pais,
Mesmo se lhes rouba o tecto
E pisa todos os mais.
32 – Nada
Sentir a inutilidade,
Nada e ninguém ser no mundo,
Terror da mortalidade,
Morrer um dia infecundo,
Sem conhecido ou amigo
À beira a quem dar a mão,
Mais dura falta de abrigo
É, pior condenação
De suportar que a vergonha
Ou pobreza que lhe aponha.
Principia aqui o inferno
Antes do que for eterno.
33 – Decisão
A decisão do doente
Em cultivar a esperança
É fundamento premente
E mais quando ela se entrança
Com a família e amigos
À volta em igual postura.
É de aderir-lhe aos abrigos,
Fugir com desenvoltura
Da atitude apreensiva
E da fatalista mais.
De alimentar é a furtiva
Melhoria com sinais
De feições esperançadas,
Pensar com discernimento,
Firmeza e coerência armadas
No íntimo cometimento.
Nosso corpo tem linguagem
De advertência que é preciso
Saber ouvir, na triagem
De decifrar-lhe o juízo.
A razão é conselheira
Se com equilíbrio usada.
O sintoma é uma bandeira
Para a muda a ser tomada
Numa atitude coerente,
Com o acto correspondente.
34 – Pensavam
Não pensavam na criança
Naquela noite os amantes.
Não pensam no que os alcança,
Só sentem o amor, impantes,
O amor que nasce tão vasto,
Tão vago, impregnando o mundo:
Quanto vêem é amor fasto,
Quanto sentem é jucundo.
E o que é difuso e sem forma
Concretiza-se, discreto.
É o jeito deles, por norma,
Que toma o perfil concreto
Dum homem e uma mulher,
Deles os próprios contornos
Que se apuram, tomam ser
Com força e ritmo, em adornos
Com o frémito do sangue
E do corpo na exigência.
O ser que aguardava, langue,
Ei-lo chamado à existência.
Eles, porém, não sabiam.
A mãe era virgem, jovem,
E nem todas propiciam
O que as mães dos deuses movem.
Nem sempre é suficiente
A primeira das visitas.
Nem sempre um pai será o ente
Em que os deuses tu concitas.
Os dois jovens não sonhavam
Com o íntimo da criança,
Nebulosa onde adensavam
Pontos fixos, dança a dança.
Não tinham, pois, consciência
Daquele ente que esperava
E que viria à existência
Por entre o amor que se dava.
Um do outro só noção
E das trémulas mãos dadas
Tinham e do corpo, chão
De sementes germinadas,
Que lhes palpita em fervor,
Até que a revelação
Consume de vez do amor
Num filho em carne e oração.
35 – Quererás
A inteira compreensão
Quererás entre dois entes,
Definitiva fusão
Tal que um só são, entrementes.
A verdade é que são dois
E que, quanto mais se amarem,
Menos se entendem depois,
Por menos se harmonizarem
Um com o outro nas pegadas.
Do amado a mera presença
Faz pulsar desordenadas
No coração, tal doença,
As batidas que ele der.
Quando o ritmo assim se altera
Como alterado há-de ser
Tudo o mais que a par vivera!
Como é que a felicidade
Por trás disto nos invade?
36 – Recordações
Quando um homem já viveu
Tem sempre algo então consigo:
Tem recordações de seu.
E quem recorda, ao abrigo
Estará da solidão:
Só não vive em seu pascigo,
Reparte-se em comunhão.
37 – Mérito
Homem que ama e renuncia
À ventura dum amor
Cedendo-o a quem mais teria
Direito ao seu esplendor
Do mérito se socorre
Dum homem que mártir morre.
38 – Correr
Quero correr atrás do sonho,
Quero que creias no que diz
Teu coração a que me aponho,
Quero que vivas de raiz
Só pelo amor. E quando pronto
Já te encontrares, vem comigo
Ter, que te espero. Ao cume aponto
E tenho o céu por meu abrigo.
39 – Sofre
Do homem sofre o coração
Quando chove, ao vendaval…
Não devo contudo, não,
Por isto querer-lhe mal:
É que de nós não depende
Para onde o sentir pende.
40 – Soubera
Se soubera o que dirão
A pedra, as flores, a chuva!
Acaso chamam em vão,
Ninguém ouve a dor viúva.
Quando é que nossos ouvidos,
De nós todos, se abrirão?
Quando é que olhos refundidos
Hão-de ver na escuridão?
Quando é que abriremos braços
A nos abraçar a todos,
Pedra, flor, chuva e mormaços,
Dos povos todos os modos?
41 – Caído
Eu terei caído tanto
Que, se houvera de escolher
Entre por uma mulher
Apaixonar-me entretanto
E antes um bom livro ler
Sobre o amor jamais vivido,
Teria o livro escolhido
Por melhor me parecer.
Assim é que o mundo em vão
Vive de alucinação,
Enquanto ao lado o regato
Da vida se esvai pacato.
42 – Aldeões
Os aldeões correm aos lares,
Alegres, esfomeados,
Para as ceias e manjares
E para sentir traslados,
No mais fundo das barrigas,
Do que for a Encarnação,
O mistério doutras migas
Que os ventres revelarão.
É nesta sólida base
Que pão, vinho, em camafeus
Mudarão do que ali case:
- Só deles se cria Deus.
43 – Alegria
Cuidada, abundante ceia,
Braseiro aceso à lareira,
Corpo onde o adorno se alteia,
Embandeirado, e que cheira
A flores de laranjeira
- Tudo pequenos prazeres
Corporais e bem humanos.
Que rápido vês tais teres
Das almas salvas de enganos
Volverem festa sem danos!
Não há mesmo outra mestria
Do que fundar a alegria.
44 – Sepulcro
Dum homem o coração
Sepulcro é de sangue cheio.
Nas beiras se deitarão
Os mortos de meu enleio,
De barriga para o chão,
A beber sangue a estuar
Para se reanimar.
E quão mais queridos são,
Mais sangue nos beberão.
Por isso é que a desligar-nos
Temos todos de aprender,
Para amá-los como amar-nos
Sem gavinhas nos prender,
Manter do amor a envolvência
Sem nenhuma dependência.
45 – Príncipe
Um príncipe, muitas vezes,
Não torna a mulher feliz
Como os pelintras soezes
Que se entregam de raiz.
É que os príncipes do mundo,
No momento em que beijavam,
Cuidavam como jucundo
Pôr o reino em que mandavam.
O pelintra esquece tudo
E não há maior prazer,
Contando pelo miúdo,
De que goze uma mulher.
A mulher que é verdadeira
Goza mais com o prazer
Que der que do que se abeira
Dum homem de receber.
46 – Fim
No fim, ficamos a sós,
Do amor fora da influência.
Há um eu impessoal em nós,
Ultrapassa amor, vigência
De emotivas ligações.
Mas a ilusão preferimos
De que do amor os tendões
São a raiz donde vimos.
Não é raiz, são os ramos.
A raiz mergulha além,
Do isolamento em tais tramos
Que não encontra ninguém
Com quem vá se misturar,
Sempre incapaz de o fazer.
Na pessoa singular
Há um além, sempre, em quenquer,
Mais distante que o amor
E fora de nosso alcance
Como há estrelas em redor,
Da vista além que lhes lance.
47 – Morre
Quem morre e antes de morrer
Apto for a crer e amar
Vivo irá permanecer,
De existir não vai findar:
Nos entes amados dura
Como em si de forma pura.
48 – Fonte
É o amor fonte perene
De alegria e sofrimento,
Ânsia que eu apenas drene
Na própria dor que alimento.
Se êxtase for de prazer,
Dá vida e transmuda tudo
Que sob o céu florescer,
De adoração teste mudo,
E o mundo devém pequeno
Para tão grande ventura.
Se em angústia, porém, pleno,
Rasga em peito amante dura,
Voluptuosa ferida
Que depois há-de querer,
Com beijos, após sofrida,
Cicatrizar a correr.
É nesta contradição
Que baloiça o coração.
E não há nunca saída
À contradição vivida.
49 – Infelicidade
A infelicidade é bem mais fácil
Que a felicidade de exprimir.
Na miséria vemos, não é grácil
A vida em que temos de existir:
Esta minha dor é individual
E o nervo que crispo, por igual…
A felicidade me aniquila,
Perco, de repente, a identidade:
Em termos de amor se nos perfila,
Dos cantos na voz, a divindade;
E findo a usar termos de oração
Dum amor ao dar explicação.
Também submetemos a memória,
Como o imaginário ou o intelecto,
Privação sofremos, noite inglória,
No amor como em místico projecto.
E, por recompensa, isto nos traz
Por igual, às vezes, certa paz.
Tem do amor a cópula descrita
Sido tal pequena morte enfim
E também o amante às vezes dita
Viverá feliz e, no confim,
Minúscula paz experimenta,
- Dilui no Infinito quanto inventa.
50 – Impotente
O amor é impotente em muitos casos,
O amor nele mesmo não produz
Tangíveis benesses, bródios rasos.
Por isto difícil se traduz
Encontrar o amor de Deus oculto
Sob realidades materiais
Onde sempre andou, alheio ao culto,
O que sugerir parece mais
Que Deus não existe, ou que não fala,
Ou que vive irado e então se cala.
Tal no amor humano a ambiguidade
Dos frutos do amor que nos invade:
Ou exalte ou queime tudo a esmo,
O amor se bastou sempre a si mesmo.
51 – Companhia
Todo o homem vive o anseio
De companhia durável,
Solidária, num enleio,
Que lhe partilhe, amorável,
Todo o fatal sofrimento,
Que com ele chore, tal
Como a mãe chora o tormento
Que um filho suporte mal.
Deus não pode responder
À imagem dum pai severo,
Antes deve parecer
Esta mãe a quem dói, fero,
O sofrimento dos filhos,
Que os acompanha chorando.
Quem O testemunha, atilhos
Ao infortunado atando,
Por ele ora e a dor lhe sofre.
Então bem-aventurado
É quem chora: tem em cofre
Tesoiros de quem é amado.
52 – Morrer
Morrer pelos que nos amam
É fácil, depois de tudo.
Mas que feridas se acamam,
Como dilacera, agudo,
Oferecermos a vida
Por quem não nos corresponde,
Não entende a oferta havida.
É fácil morrermos onde
Formos heróis gloriosos,
Mas difícil sumamente
Para a morte em pedregosos
Leitos ir duma corrente
De incompreensão, de insulto,
De escárnio sem fundamento.
Jesus sabia que inulto
Viveria tal tormento,
Que a morte o arrasava ao chão
Mais abjecta que a dum cão.
Tanto mais o cume brilha,
Do amor suma maravilha.
53 – Período
O amor pode despertar
Num período mui breve.
Mas, para se aprofundar
Requer tempo longo e leve
Até vir-se a transformar
Num sentimento durável,
Forte e de vez confiável.
Um amor é, sobretudo,
Entrega, dedicação,
Mais um certo conteúdo,
A certeza que terão
Os amantes de que tudo
Vão lograr em companhia,
O que a sós nenhum teria.
Mas só o tempo da jornada
Diz se a escolha era a acertada.
54 – Filhos
Ser bom pai, ser boa mãe…
Ter filhos é cuidar deles,
Criá-los como convém,
Amá-los, embora reles,
E apoiá-los sempre além.
Nada disto tem a ver
Com o que ocorreu na cama
Por uma noite qualquer
Que se ama ou que se não ama,
Nem com gravidez sequer.
Sobre o animal, um humano
É o que supera este engano.
55 – Preocupar-me
Preocupar-me com dinheiro,
Com a fama ou a frequência
De espectáculos e lojas?
Ou com ter no meu quinteiro
O perfume duma essência
Por que a meus pés tu te arrojas?
A vida não se resume
A tais nadas imponentes.
Viver é ter companhia,
Ter tempo que se consume
Em passear, indolentes,
As mãos dadas da magia,
Conversar mui calmamente
Diante dum pôr-de-sol…
Não é nada deslumbrante,
Porém, em toda a vertente,
É o melhor que a vida arrole,
Gratuita, de nós diante.
Quem é que em leito de morte
Disse que desejaria
Haver trabalhado mais?
Ou que teve pouca sorte
Por beber, ao fim do dia,
Crepúsculos siderais?
56 – Mimado
Um adulto que em criança
Fora mimado demais
Com decepções não alcança
Reger a vida jamais,
Tem a noção distorcida
De seus direitos no evento,
E prejudica em seguida
Todo o relacionamento.
É desencorajador
Todo o quadro do porvir
Do que foi prometedor,
Mas que o não soube medir.
57 – Encontrar
Urge encontrar o equilíbrio
Entre o mundo rico e a vida,
A vida cujo ludíbrio
Requer que seja aprendida
Esperando e trabalhando,
Poupando para alcançar
As metas que for sonhando
Num porvir que é de suar.
Quem treinado desde o berço
Não for, nunca fica terso.
58 – Limite
As crianças bem precisam
De ter um limite imposto:
Seguras se realizam,
Melhor se sentem, com gosto.
Melhor porvir o que augura
É viver numa estrutura.
59 – Além
A criança que não tem
A responsabilidade,
Da vida jamais retém
Qual a essencialidade:
Cada qual pode ser útil
Deveras para os demais,
A vida jamais é fútil,
Tem sentido além do cais
Da própria felicidade
Pessoal imediata.
Este é o barco com que invade
O mar da aventura grata.
60 – Xamã
Touro Bravo e Nuvem Branca
- Conta a lenda – de mãos dadas
À tenda vão onde abanca
O xamã das boas fadas:
“Amamo-nos tanto, tanto,
Que queremos garantia
De que juntos neste encanto
Ficaremos cada dia
Até que a morte nos venha.
Para tal, que é de fazer?”
E o velho secreta senha,
Comovido, lhes requer:
“É missão dificultosa.
Tu, Nuvem Branca, escalar
Vais a serra fragorosa,
Só com rede e mãos caçar
O falcão mais predador
E trazê-lo aqui com vida.
Touro Bravo, corredor
Irás trepar a subida
Do pendor das águias bravas.
Com rede e mãos de apanhar
Vais ter a que mais amavas,
Viva a pôr neste lugar.”
Os jovens logo partiram
Para cumprir a missão.
E um certo dia surgiram
Ante a tenda da função
Com as aves prisioneiras
Dentro dum saco de lona.
As palavras feiticeiras
Apontam o que as abona:
“Peguem nas aves, amarrem
Ambas juntas pelas patas.
Depois, quando assim se agarrem,
Soltem-nas, que sem bravatas
Voem livres pelo ar fora.”
Cumprida a ordem, as aves
Tentam voar sem demora
Mas saltam só, dos entraves
Tolhidas que os nós lhes dão.
Do inviável irritadas,
Põem a bicar-se então,
Uma à outra arremessadas.
E o feiticeiro remata:
“Águia e falcão são vocês.
Se amarrados vos empata
A vida acaso de vez,
Só viverão se arrastando
E, tarde ou cedo, também
Vão começar se magoando
Mutuamente, aqui e além.
Se querem que amor perdure
Sempre e por todos os lados,
Que voar juntos se apure,
Nunca, porém, amarrados.”
61 – Culto
O amor é religião
E o culto custa mais caro
Que o das mais que o mais serão:
Rápido passa, não raro,
E passa como o petiz
Que sempre quer deixar rastos
Em estragos dos mais vis
Nas ruas que lhe são pastos.
O luxo do sentimento!
Poesia de fim de feira,
Que era, sem tal alimento,
Do amor a riqueza inteira?
62 – Centelhas
Todos nós nos devoramos
Uns aos outros, dia a dia.
Centelhas leves trocamos
De bondade com magia,
Ocasionais, todavia.
É o que nunca deveríamos
Consentir que arrebatado
Nos fora, que é donde hauríamos
Forças para este enfado
De vida de desterrado.
63 – Milagre
O velho milagre, o amor,
Não se limita a riscar
Um arco-íris no alvor
Dos sonhos com que sonhar
No céu tisnado a alvaiade
Pardo da realidade,
Mas também difunde a luz
Romântica sobre o esterco:
- Milagre é que me seduz
Na lixeira onde me perco.
64 – Quarto
Que no mesmo quarto se ache
Alguém mortalmente enfermo
E outrem em que não se encaixe
Da doença nenhum termo
E que alheio finde assim
Àquele absolutamente,
Prova o desencontro, enfim,
Que ninguém vê vulgarmente.
E desta incompreensão
Mata e morre o coração.
65 – Estrelas
As estrelas voam nuas,
Expostas além ao frio.
Fácil é gelar nas ruas
Se sozinho lá me enfio,
Mesmo quando houver calor.
Contudo, nunca, depois
Me queixo de tal rigor
Se em vez dum já formos dois.
66 – Morto
Sem amor além não vamos
Dum morto em férias ignaro,
Papel onde registamos
Datas, nome, o acaso raro…
- Então será preferível
Morrer quem não é vivível.
67 – Rocha
Era uma vez uma onda
Que um penedo ama no mar.
Espuma, remoinha e sonda
Em torno do luminar,
Beija-o de noite e de dia,
Envolve-o nos níveos braços.
Suspirava e então gemia
Que se lhe entregue aos abraços.
Desencadeava sobre ele
Ternura com tal regalo
Que ao rochedo que assim vele
Lenta finda a solapá-lo.
Ele um dia então cedeu,
Minado inteiro por baixo,
E à onda enfim se acolheu.
Tombado assim no escalracho,
Deixou de ser um rochedo
Com que se pode brincar,
Amar, sonhar em segredo,
Para agora não passar
Dum bloco de pedra imerso
Pela onda no mar fundo.
Traída neste reverso,
Busca a onda outro fecundo
Rochedo que possa amar…
- Quem a amar não aprender
Sempre o amor há-de afundar
No amado que desfizer.
Respeitar a diferença
É que a amar gera a mantença.
68 – Miro
Jamais é o amor um poço
Onde miro meu reflexo.
Fluxo e refluxo, de moço
Tem até o final amplexo,
Tem naufrágios e cidades
Submersas e tempestades,
Tem arcas pejadas de oiro,
Pérolas que os polvos guardam,
Só que é mui fundo o tesoiro
Para os que o buscam e aguardam.
O amor será pertencer
Para sempre quem se quer?
É o velho conto de fadas:
Para sempre, eternamente…
Quando reter nas jornadas
Ninguém consegue somente
Nem mesmo o instante que passa.
Que desgraça! Que desgraça!
Mas erguemos nosso fito
Louco acolhendo o infinito.
69 – Marido
O marido mais bondoso
Como o pai mais dedicado,
Mal entre dentro do pouso
Do gabinete fadado
A nortear-lhe o trabalho,
Devém de bondade falho,
Transmuda-se num tirano
Oculto atrás de tiradas
Que não deixam mais engano
Nas metas ora visadas:
“Fazer tal nunca podíamos!”,
“Onde é que parar iríamos?...”
É nesta contradição
Que, somada caso a caso,
O mundo perde a razão
E temos a vida a prazo.
- Da Humanidade o porvir
É a ponte que ali surgir.
70 – Nome
Sempre o amor é que aprisiona,
Não é o par que casualmente
Da palavra amor se adona.
Quem para julgar tem mente
Uma vez cego das chamas
Do imaginário fremente?
O amor que tanto conclamas
Ignora o valor assente,
Que vale ele em germe e ramas.
E assim é que, prisioneiro,
Te liberta, enfim, inteiro.
71 – Ténis
Uma relação de amor
É como o ténis de praia:
Não quero que o jogador
Contrário falhe e que eu saia
Dali como vencedor.
Por muito que o jogo aperte,
Quero mesmo é que ele acerte.
72 – Dura
Nosso amor é de marujo,
Dura o que dura a maré.
Nem por fugaz dele fujo,
Tanta festa põe de pé!
Pesado preço a pagar,
A vida inteira de luto.
Nem por cem anos durar
Deixa de parco ser fruto.
Ainda assim valeu a pena
A efémera madrugada.
A caro custo condena?
- Foi barato, não é nada!
73 – Sozinho
Um homem pode morrer
Sozinho por acidente,
Por Deus assim o querer…
Todavia, quando um ente
Sem amor morre de esperas,
Sozinho ou acompanhado
É infeliz então deveras:
Vida ou morte, o inferno é o fado.
74 – Mulher
Com a mulher acontece
Que sempre o filho parece
Mais precisar que o marido,
Mormente quando este é tido
Como dotado da sorte
De ser mesmo um homem forte.
Não é bom para ninguém
Tal hierarquia, porém.
No termo, prejudicados,
Ficam todos irmanados.
Como é pela negativa,
Não há lar que daqui viva.
75 – Coagido
O amor não admite
Força nem império,
Ninguém ama a sério
Nem quer o desquite
Coagido o peito
Por qualquer preceito.
Um amor que é vivo
Livre é que arde activo.
76 – Ventura
A ventura finda o amor,
Felicidade demais:
Para existir com fervor,
Só se enlevos não há tais,
Se plenitude que chegue
Não tiver e então reaja.
E para durar, se adregue,
É preciso que a não haja.
O amor é contradição,
Senão, foge o coração:
- Quando visa o infinito,
Não tem metro ou não o fito.
77 – Contam
Contam que uma geração
De anos há-de contar trinta.
Não tenho qualquer razão
Para que a conta desminta,
A não ser que os já vivemos
E nem sequer reparámos.
Como é que tanto empreendemos
E nem sequer por tal damos?
Isto de amor tem segredos
Duma estranha realidade:
Os anos correm sem medos,
Não há tempo, há eternidade.
Somos um par de canários
A voar tão entretidos
Que os bosques corremos vários,
Nem vemos que vão corridos.
Ontem só foi que nos vimos,
Como é que hoje já passaram
Tantos anos cá nos cimos
Donde mal se divisaram?
Há decerto aqui mentira,
Erro em contabilidade:
Quem se ama a vida revira,
Já vivo na eternidade.
Contigo desde que vivo
Bem pode o tempo correr,
Fica ignorado no arquivo,
Que hoje é quanto tempo houver.
É verdade que o amor
É um milagre acontecido:
Amo-te e deste calor
Fora do tempo hei nascido.
78 – Impedir
Contra amor não há poder,
Só de impedir-lhe os efeitos.
A causa, um amor que houver,
Constante mantém os pleitos.
O retiro ou a prisão,
Bem como a dificuldade,
Da formosura farão
A irresistível beldade.
A natureza jamais
Se persuade ao desvio,
Nossa indústria nunca mais
Ao fogo apaga o pavio.
Antes o mesmo é impedi-lo
Que enchê-lo de alento e garra:
Quando o abato, ao amor fi-lo
Mais forte em tudo o que amarra.
79 – Livre
Para o entendimento não há ferros,
Também os não há no coração:
Este, na violência, gritos, berros
E da tirania na lesão,
Sempre se conserva livre, isento,
Aguardando em dor o seu momento.
Um véu preto sempre esconde
Mas não muda nem desfaz
Nada do que esconde atrás,
Antes aumenta que bonde
Tudo bem mais, bem maior
O faz do que é de supor.
Finda tudo ao fim mais claro
Quão mais em acto é mais raro.
80 – Abandonado
Sempre um rasto tem o amor
Que abandonado nos fica,
Saudade lenta que aplica
O dente a sorver o humor,
Insensível devorando
Tudo em nós, dela ao comando.
É um mal cuja privação
Sentimos por mal maior.
Muitos anos correrão
E a lembrança dum amor
De que pareço já falto
Me vem sempre em sobressalto.
Nunca o coração acaba
Deveras indiferente,
Com alvoroço ouve a aldraba
De amortecido e latente
Ardor que outrora foi chama
E é como quem o reclama.
81 – Concentram
O amor e a vaidade, às vezes,
Se concentram e disfarçam
Tanto que nós, os fregueses,
Nem vemos quanto se esgarçam.
Nem nós mesmos dentro em nós
Os podemos descobrir:
Visíveis serão, a sós,
Pelas obras a surgir,
Tal como o fogo escondido
No âmago da pederneira
Que se não vê, só ferido
Do fuzil é chama inteira.
Daqui vem que o que fazemos
É sem captar a raiz
Daquilo por que operemos:
Pode ser doutro cariz.
O que se faz por amor
E, por igual, por vaidade,
De zelo veste o teor,
De virtude identidade.
Que hipócrita é que conhece
Dele qual a hipocrisia?
Vê o amante que entretece
Seu delírio dia a dia?
Fácil coisa é distinguir
Tudo nos outros lá fora.
Como, porém, discernir
O que dentro de nós mora?
82 – Prende
O amor prende o coração
Como os discursos também.
Por mais que a imaginação
Se nos esforce, porém,
Tudo o que ela produzir,
No respeitante ao amor,
São átomos sem porvir
E não tem ganho maior.
Os que amam livre não têm
O íntimo para narrar
O que sentem e os retém,
Sempre acabam por achar
Que o que vivem é bem mais
Que o que lograrão contar.
O amor em que tropeçais
Entorpece a ideia a par,
Serve, afinal, de embaraço.
Quem não ama, discorrer
Não pode, em nenhum compasso,
Sobre o que ignora em quenquer.
Os que amaram, cinza fria,
Vão reconhecer o efeito
Da chama que outrora ardia,
Não o fogo a arder no peito,
São cometa a iluminar
Cosmos fora: resplandece
E, sem vestígio deixar,
Como vem, desaparece.
83 – Formosura
A formosura é soberba,
Vaidosa, ímpia, arrogante.
Não só recusa, de acerba,
Mas despreza, sempre impante,
Não só desdenha, injuria
E assim mal nos dura um dia.
Alguém amável nos basta
Para produzir amor,
Mas não basta para a casta
Que o conserva em pundonor.
O amor nasce facilmente
Mas não dura à mão e tente,
Dura com dificuldade,
Que o império da beleza
Tirano é de quem agrade
E sem brandura, não reza
Que há domínio permanente
Dum qualquer amante ardente.
O amor é sempre um evento
Dum instante repentino.
Conservá-lo é um outro intento,
É um discorrer serpentino.
É fácil coisa a primeira,
Difícil, a derradeira.
Perpétuo não há um encanto,
O do amor também tem fim,
É de intervalos enquanto
Lhe dura seu frenesim,
Mesmo pronto e arrebatado
Em conquistar, doutro lado,
Por isso mesmo não tem
Mesmo nada de seguro.
Precipitado o que vem,
Precipitado o que apuro
É que por igual se larga
Como se fora uma carga.
Um amor que é moderado
Costuma ser mais durável.
É o excessivo acabado
Pela própria força instável,
Que a tormenta que é mais forte
Dura pouco até à morte.
84 – Lei
Da humanidade a energia
Não é para derrubar,
É para nos elevar:
É a lei do amor, dia a dia.
O facto de persistirmos
É que a força da coesão
Mais que a da destruição
É a do todo de existirmos.
85 – Prejudicam
Se os pais sempre se intrometem,
Prejudicam as crianças,
Autoconsciência que afectem
Jamais nos filhos entranças:
Deixam de poder treinar
Respostas próprias a par.
As ânsias de perfeição
O filho enterram no chão.
Afinal, é o imperfeito
Que se molda a nosso jeito.
Quem, porém, o mal acolhe
Quanto aplauso ao fim recolhe!
86 – Resposta
Se não há resposta errada,
Se a aplicação, o talento,
Via relativizada
Forem ao sabor do vento,
Por que há-de a criança escorço
Fazer sequer dum esforço?
Se tudo ao fim tanto vale,
Que é que importa o bem e o mal?
Fica reduzido ao nicho
De ir ao sabor do capricho.
Eis onde a levam os pais
Que querem bem mal demais.
87 – Necessidade
Há necessidade humana
Deveras universal
(A todos nós nos irmana)
De dominar, no final,
Uma tarefa sozinho,
Pulsão de saltar do ninho
E de asas abertas irmos
Assim a nos distinguirmos.
Quando os pais estes limites
Proibirem na fronteira,
Arriscam-se a que os desquites
Fiquem sem eira nem beira,
Perdida a motivação
Que o leite lhes deu e o pão.
De adulto a missão contém
Que os novos se saiam bem.
88 – Educador
O educador realista
Quanto às aptidões da prole
Tem de ser, de ter em vista
Que ser franco é que ao fim bole
Com a criança que quer
De avaliar o poder,
De pesar força e fraqueza
E de supervisionar
O desempenho que preza,
No fito de melhorar.
A capacidade aumenta,
Se pistas claras comenta,
Realista encorajamento
Do adulto que ela ama atento.
89 – Certa
Será para o jovem bom
Que, ante uma resposta errada,
Ao aluno, com bom tom,
O mestre diga de entrada:
“Resposta certa se a junta
A qualquer outra pergunta”?!
Isto aumenta, desde a infância,
Uma intérmina ignorância:
- Perdida na confusão,
Como discernir o chão?
90 – Obcecados
Mães e pais intrometidos,
Obcecados pela notas,
Vão torturar os detidos
Na escola: assim invadidos,
Não são alunos que anotas.
Os problemas com os pais
São razões primordiais
Por que os novos professores
Vão buscar outros labores
Que prometam à partida
Menos louca pôr a vida.
91 – Perfeição
Da perfeição malefícios
Vemo-los por toda a parte:
Pais do impecável com vícios,
De intenção boa que parte
Daí para dominar
E tempestades criar
Na sala de aula, no jogo…
E a ninguém dá desafogo.
Há escolas onde é vulgar
Vermos pais a pressionar
Para subirem as notas
Da montanha sobre as cotas.
Os filhos daqui saídos
Não têm dos mais noção,
Nem do que é mau, do que é bom,
Da vida findam vencidos:
Em redor urdem o inferno
E nelas vai ser eterno.
92 – Sete
Nunca tentes transformar
Teu filho num campeão
Dos sete ofícios a par.
Versatilidade é bom
Mas difícil, se é demais,
Torna os compromissos reais
Com as rotas mais profundas,
Exigentes da adultez.
Em troca, vê se aprofundas
E lhe promoves de vez
Os pontos fortes que houver
Nele decerto conter.
Utiliza os elogios
Caso a caso, no que apontes,
Não globalmente e sem fios
Que atem cada aos horizontes.
Se dizes: “és o melhor!”,
Logo a criança-tradutor
Vai pensar que é bom demais
Para as regras que há na vida.
Se realista fores mais
E mais fundado em seguida,
Dirás: “mas que bem que apanhas
Tudo o que há sobre as aranhas!”
A educação académica
E o desporto nunca bastam.
O valor, dele a polémica,
Moral e labor engastam.
Mensagem de apoio e amor
É a que tem dele o teor.
93 – Miúdos
Não podem fortalecer
Sua vera identidade
Nem se já satisfazer
Dum êxito que os invade
Os miúdos encharcados
De elogios falseados.
Eles incham-lhes seu ego
Mas vão deixá-los carentes
De conhecer-se em sossego,
Não são, a prazo, inocentes:
Elogio imerecido
É adolescente perdido.
As crianças cujos pais
Não param de procurar
Solução para os fatais
Problemas que se augurar,
Nem coragem, energia
Irão ter no dia-a-dia
Para nenhuns desafios.
Os erros são experiências
Que preparam os navios
Às rotas, com previdências,
E é com eles que inauguro
Nos jovens sempre o futuro.
Se os pais vêm em socorro
E todo o controle assumem,
As mensagens a que acorro
Como incapaz me resumem,
Dizem não ser de confiança
O que meu poder me alcança.
Para vida preenchida,
Competente na adultez,
Liberdade é requerida
De falhar muito entremez
Ao correr de toda a infância,
Sem nenhum temor nem ânsia.
94 – Sopra
Como em casa sopra o vento
É o melhor prenunciador
De qual o envelhecimento:
Casar com alguém que for
Activo intelectualmente
É de hipóteses semente
De intactas capacidades
Ter em todas as idades,
O que nunca ocorrerá
Quando estímulo não há.
Quem ficar a isto atento
Mesmo no fim é um portento.
95 – Mudança
Quem à mudança se adapta
Tende a envelhecer melhor
E com a mente mais apta
Que quem mais rígido for.
Quem com mais facilidade
Amigos faz dele ao lado
Mais mental capacidade
Tem que quem for isolado.
Repara bem no conceito
Se à vida vais prestar preito.
96 – Tempo
Por um lado, o tempo cura.
A mulher tem de amuar
Um pouco e saber, segura,
Que a sofrer ele há-de estar
Dos erros que lhe apurar.
Depois disto não há nada
Como vê-lo a mendigar
Um bocadinho, à portada,
Como vê-lo a rastejar
Pela licença de entrar.
Depois, no fim, tudo bem
Tal e qual como convém.
97 – Crescido
Qualquer preocupação
Faz parte do crescimento,
De ser maduro é função,
Saudável, normal momento.
A criança que tiver
Uma preocupação
A ferramenta há-de ter
De aguentar desilusão.
Aos obstáculos da vida
É que assim toma a medida,
Pagando o que for sofrendo
É que aprende a os ir vencendo.
98 – Ansiedade
Ansiedade saudável
Apresenta um desafio
Para a criança, abordável,
Com que aprende sem fastio
E se torna resistente
Mais e mais, desde o presente.
Se fora um degrau acima
Já perturbara a criança,
Já não lhe encoraja o clima
De mais além ver se alcança.
Antes lhe inaugura o medo
E o passo lhe tolhe, quedo.
Encontra, pois, a medida
E vive-a lavrando a vida.
97 – Enfrentar
Enfrenta teus próprios medos!
Se demais preocupado,
Inadvertidos teus credos
No filho hás inoculado.
Se de teus medos tu foges,
Nunca os teus aprenderão
A lidar com o que alojes
No terror do coração.
Ninguém aprende a lidar
Um medo que o desterrar.
100 – Incentiva
Incentiva os filhos teus
Riscos a correr, tentar
Desafios de ir aos céus,
De molde a sempre alargar
O que os pode confortar,
De si feitos corifeus.
Nunca os deixes evitar
Aquilo que fizer medo,
Que vão fora apanhar ar,
Fazer parte do degredo.
Se vivem em concha cedo,
Amanhã vão-se aterrar.
E vai treinando a medida
Em que ganhes a partida.
101 – Incomum
Hoje em dia um bem casado
É deveras improvável.
Casado estar, doutro lado,
É do vulgo inumerável.
Não é o mesmo, se reparo
De ambos no incomum preparo.
Homem certo, mulher certa,
Não é o fiel que bem lida,
É quem sente de alma aberta
Que é feliz só na medida
De estar, sem medo ou cuidado,
Apenas ao nosso lado.
102 – Contigo
O amor é incondicional,
Deus a cada ser humano
Ama como é, tal e qual:
O culposo por igual
Ao santo que não faz dano.
Contigo como vai ser:
Tal qual Deus ou tal quenquer?
103 – Culpa
A culpa sempre ligada
Anda ao medo, com o amor
Jamais a ver terá nada,
Exclui-o até com vigor.
Visto que Deus é o Amor,
Qualquer culpa imaginária
Impede a quenquer dispor
Desta relação primária.
104 – Solda
Todo o humano busca o amor
E o sentido de unidade
De que aquele tem o teor,
Solda da pluralidade,
Porém cada qual exprime
Esta basilar carência
Duma forma a que se arrime,
Diversa em igual essência.
Um diz que recuperar
Pretende a frágil saúde,
Com Deus outro quer falar,
Outro além busca a virtude…
Apesar de se mostrar
De mil formas bem diversas,
A carência a colmatar
É a mesma em todas as berças.
105 – Conduta
A nossa conduta afecta
Todo o nosso sentimento.
Abre a porta do eu directa
Dos outros a todo o vento.
Se saio da esfera do eu
E o rebanho aos outros tanjo,
A bênção terei do céu,
Acompanha-me algum anjo.
De repente, eis que respiro,
Constato que ao mundo adiro.
106 – Próxima
A próxima geração
Deverá ser ensinada
Logo desde a gestação:
É responsabilizada
Pela sua própria vida.
O maior dom dos humanos
E a maldição mais subida
É que é livre, até de enganos,
Tem de escolha a liberdade.
E escolhemos, tarde ou cedo,
Ou do amor a realidade
Ou as sequelas do medo.
107 – Remir
Dum mundo melhor segredo
Dentro em nós mora decerto.
Como remir do degredo?
Pessoa a pessoa, perto,
Coração a coração…
E todos mudar irão
Como somos transformados
No mundo: que é sendo amados!
108 – Parceiro
Parceiro na criação
E não um mero ajudante,
O pai por tal tido, então,
Mais se envolve vida adiante:
Se a actividade ao cuidado
Tiver, finda entusiasmado.
A mãe que o queira presente
Importa que nisto atente.
Porém, disto o maior brilho
É o brilho a brilhar no filho.
109 – Enfrentar
Desde os primeiros momentos
De vida o pai nos ajuda
A enfrentar do mundo os ventos.
A mãe ao bebé se gruda,
Fazendo-o sentir seguro,
É o conforto em qualquer muda.
O pai troca tal apuro
Por visão mais abrangente:
Aquilo de que então curo
É de ao bebé pôr presente
Imagens, sons, brando e duro
Que rodeiam toda a gente.
110 – Habilidades
Criança que aprende cedo
Habilidades sociais
Com os pais, no acto e no credo,
Relaciona-se mais,
Sem brigas, atritos, pegas
Com nenhum de seus colegas.
Brincadeira em mãos do pai
Desenvolve actividades
Cognitivas quando vai,
Desde as mais baixas idades,
Auxiliar a viver
O que a vida requerer,
Experiências sociais
Preparando a escolar vida,
Vivências emocionais
Da actividade envolvida:
Esperar a própria vez,
Negociar o entremez,
Ordenar e compreender
Sentimentos, liderar…
Tudo o que a escola quiser
Sempre é vida a germinar
Do lar para além da porta
Que a agir bem bem cedo exorta.
111 – Adultos
Adultos, os homens falam
Menos e para se impor.
As mulheres não se calam,
Buscam doutrem o calor.
A mulher desanuvia
A cabeça quando fala.
O homem pensa todo o dia
Antes de falar e cala.
São dois mundos singulares,
Unos, se complementares.
112 – Oferta-os
Vida além, se uma criança
Te aparece, ama-a deveras.
Se é um idoso que te alcança,
Compreensivo sê de esperas.
Consola quem for doente,
Faz companhia ao sozinho.
Se o fraco te for presente
Atravessando o caminho,
Dá-lhe força, dá-lhe força.
Velhice, infância, doença,
Fraqueza que nos distorça,
A solidão que nos vença,
Todos pelo teu caminho
Andaram ou andarão.
Estão és tu no cadinho
A buscar compreensão,
O consolo, a companhia,
Amor, força que escasseia.
Oferta-os em cada dia
A quem viver vida meia,
Que então os irás ganhar
Quando és tu a precisar.
113 – Rondando
Andas rondando o problema:
O que não és aborreces
E o que poderias ser
É o que ocupa qualquer tema.
Em vez de em frente ir, que esqueces,
O que és nunca vês sequer.
Para não ferir quem amas,
Nada fazer mais danoso
Pode ser, de escusas tramas,
Que algo actuar perigoso
E não há maior perigo
Que a ti recusar-te abrigo.
Vida com certificado
De garantia não há,
Que garantias, por cá,
Só dum ludíbrio pegado.
114 – Desencontrados
Sós acabam algum dia
Por se sentir todos quantos,
Seja qual for o seu dia,
Desencontrados de encantos
Onde a si próprios se vivem,
Precisam sempre de alguém
De exterior com quem convivem
A acompanhá-los além.
Neles próprios sem assento,
Pendem donde sopra o vento.
Ora, se ele não soprar,
Como a solidão quebrar?
115 – Aprender
Aprender a solidão
Sempre é um tema inadiável.
Há uma plenitude, um chão,
Proveniente, inefável,
De connosco estarmos bem.
Bem-estar que não precisa,
Para existir, de ninguém,
De nada sequer que o visa.
É uma não-necessidade
Que é capaz de irradiar,
Com a singularidade
De outrem atrair a par
Sem ser por qualquer carência
Nem por nada que se junta,
Mas antes pela excelência
Da celebração conjunta.
116 – Condimentam
Sós, no fundo, estarão todos
Os que nunca vislumbraram
Que só o amor tem engodos
Que condimentam os bodos
Dos que nos acompanharam.
Não o amor que é passageiro,
Num contexto confinado,
Delimitado e leveiro,
Mas o que mantém-se inteiro
Dentro de nós, prolongado
Para lá do fim que tenha
O evento sentimental:
Atitude que contenha
A não-recusa que advenha
Duma abertura total,
Duma esperança que é fé.
Sós estão os esfomeados
De ternura ter ao pé,
De compreensão que não é
Feita de externos traslados,
Que jamais é do exterior
Que o amor nos alimenta,
Por muito que seu teor
Tal nos pareça supor.
Quem do que há fora se tenta
Nem olha que o coração
Há-de ir-se-lhe ressecando
E que é por isto que, então,
Da perda, na ocasião,
Vai só o vazio encontrando.
117 – Pertence
Não nos pertence o que temos,
Sejam bens materiais,
Sejam espirituais.
Por um tempo o recebemos
Para que o utilizemos
Mas também para os demais,
Para, por nosso intermédio,
Poderem beneficiar,
Escaparem do assédio
Da fome que se emboscar.
Quem junta sem repartir
Armadilhou o porvir.
118 – Aceitar
Aceitar é muito activo,
Quieto não é fazer nada:
É o desejo com que vivo
Ou não que divide a estrada.
A mãe não deseja o filho
Ali doente de morte,
Mas não se rebela ao trilho
Que lhe provém de tal sorte,
Apesar de seu desejo
Não se estar a realizar.
O que a comanda no ensejo
Não é o desejo: em lugar
Prepondera a aceitação.
A dor, pois, não a crispou
Interiormente, não.
Aceitar nela activou
O não desejar diverso
Do que a vida pede ou dá.
É o despojamento terso
Que brilha então acolá.
119 – Contacto
O que faz um verdadeiro
Contacto entre dois humanos
É um diálogo certeiro,
Interior, sem enganos.
Do tempo já não depende
Que passam juntos então
Nem do que fazem ou rende
O que apuram mão a mão.
O encontro parte do Ser,
Já não do ter que terão.
Tanto mais há-de ocorrer
Quanto mais não prende o chão,
De se agarrar ao passado
Ou se ocupar do futuro,
Mas por antes aumentado
Do presente ter o apuro.
É aquilo que se consegue
Estando atento ao momento,
Ao fluir que se persegue
Nas asas de cada evento.
120 – Governarão
Dado que amor e poder
São as duas grandes forças
Que governarão quenquer,
Pois que ao mundo o vão conter
Entre ambos, se bem tal orças,
Quando não acreditamos
No amor, logo nós tendemos
Do poder a estender ramos.
E logo lhe exageramos
A importância que veremos,
Na conjuntura a atender,
Em o ter ou não o ter.
121 – Círculo
Do círculo sem saída,
Para à saída ajudar,
Só o amor e sem medida,
O gesto apenas de amar.
Só que o amor verdadeiro
Nunca a nada nos obriga:
Nosso é o acorde primeiro
A cantar em tal cantiga.
Cada um tem de trepar
Um degrau rumo ao abrigo,
Logo à partida a evitar
Proferir um: “não consigo!”
122 – Relembrar
Ao relembrar o que pais nossos nos fizeram,
Ao lhes rever como magoaram, nós estamos,
Ao mesmo tempo as agressões (que em nós operam
Ferindo filhos que são nossos e que amamos)
A revelar. Então os filhos vou formando
Em diferentes, mais conformes, outras vias.
É por magoados termos sido que explicando
Podemos ir quanto causar malfeitorias.
Este trabalho quem não faz com a criança
Interior continuará, com o modelo
Que pelos pais foi transmitido e que o alcança,
A magoar, por sua vez, num atropelo.
123 – Falta
Falta tempo para o amor.
Vou então valorizar
O poder a se me impor,
Conduzir vou-me deixar,
Vou-me submeter a ele.
Para o prazer tempo falta
Verdadeiro, que me impele,
Para me fruir em alta,
Então vou-me distrair
Com os múltiplos prazeres
Que não são nada a seguir,
Enchem só tempo e lazeres.
Vivemos num mundo doente
Porque lhe falta o amor
E abusa o poder, contente.
E as doenças do sofredor
Que nos mordem aguerridas
Em nossa sina maldita,
São as múltiplas feridas
Da criança que nos habita.
124 – Acorda
A criança em mim, cá dentro,
Acorda constantemente,
Tenta chamar-me a atenção,
Mas muitas vezes não entro,
Esqueço-me simplesmente
De lhe ouvir a oposição.
Embora em regra escondida
Pelo nosso lado adulto,
Há-de às vezes existir.
Contrabalançando a vida,
A infância em raiva, no oculto,
Grita: “deixa-me sair!”