SEGUNDO  TROVÁRIO

 

 

 

              DESEMBOCA  NA  UTOPIA,  EM  TODO  O  SONHO

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 125 e 240, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                125 -  Desemboca na Utopia, em todo o sonho

 

                                                Desemboca na Utopia, em todo o sonho,

                                                Este verso regular, de passo certo,

                                                Com a rima em que disponho

                                                Do atractivo onde ponho

                                                Qualquer lonjura aqui perto.

 

                                                Porém, sempre a lonjura

                                                Fica fora de alcance

                                                Por mais que me lance

                                                À procura.

 

                                                Vislumbro-lhe a cor

                                                E o sentido,

                                                É quanto basta da vida ao calor

 

                                                A esperança, porém, hei perseguido

                                                De a meta de vez não ter perdido.

 


 


126 – Muda

 

Mudar deverei tentar

Qualquer alma de quenquer

Se um povo quero mudar.

E tenho de procurar

Mudar a comunidade

Qualquer muda para haver

Numa personalidade.

 

É o círculo a refazer

Que ao porvir nos persuade.

 

 

127 – Desnutrido

 

Era o maior magricela,

Com uns braços de palito,

Descalço, nariz à vela,

Desnutrido, a fome é um grito.

 

Dele o pedido de esmola

Era mais uma exigência.

Quando lha pus na sacola,

Estranhei dele a premência:

 

Foi logo a correr jogá-la

No “conquistador do espaço”!

Puxa alavancas, embala,

Fura um corredor escasso

 

À nave, entre meteoritos,

Esquiva-se ao inimigo,

Aos mísseis, por entre gritos,

Escapa a qualquer perigo,

 

As frotas espaciais

São de vez aniquiladas,

Bem como as bases astrais,

Por mão dele estilhaçadas,

 

E o super-herói do mal

Ali fica derrotado

Em pirotecnia tal

Que o jogo nem é notado.

 

O miúdo já não é

Nenhum pedinte descalço,

Por momentos pôs de pé

O grande herói que aos céus alço,

Atinge e conquista estrelas,

É um guerreiro espacial

Com galácticas sequelas,

Um Senhor universal…

 

- E eu para aqui à espera

De o petiz desperdiçar

Dinheiro em comida mera

Quando o infindo é o seu lugar!

 

 

128 – Vulneráveis

 

Os que forem investidos

Com os mais altos poderes

Vulneráveis são mantidos

Tal quenquer doutros misteres,

 

Sujeitos à inconsistência,

Das convicções à mudança.

A grandeza é prevalência

Da convicção que se alcança

 

Mas também, em igualdade,

É de elevar-se além dela

Manter a capacidade,

- É poder devir estrela.

 

 

129 – Baseado

 

Quando um homem vai atrás

Do que feliz o tornar,

No que o coração lhe traz

Baseado então actuar

 

E na própria identidade,

Devém ali tão fecundo

Que parece de verdade

Vir revigorar o mundo.

 

 

130 – Estima

 

Não podemos tolerar

Que nos vão apreciar

Por aquilo que não somos.

Preferível é o desprezo

A uma estima sem o peso

Do que forem nossos pomos.

 

Que gozo dá, na verdade,

Um gozo que é falsidade?

 

 

131 – Sublime

 

No dia em que nós nascemos

Começamos a morrer.

Como alcançar poderemos

O sublime enquanto houver

Em nós este antro da besta,

A morte que a frecha assesta?

 

Ou em nós algo de eterno

De nós nos visa o superno?

 

Sempre o amor, com o erotismo

Promete saltar o abismo.

 

Será mesmo que o consegue

Ou é uma ilusão que adregue?

 

No fim, apenas a fé

Aposta naquilo que é.

 

 

132 – Sonho

 

Todo o sonho é realidade,

Somos os sonhos do Autor,

Reais dele por vontade.

Os nossos sonhos supor

 

Hão-de, para ser reais,

Em nós tais vontades, tais

 

Que a ascender nós nos sentimos

Elevando-nos aos cimos.

 

 

133 – Lutar

 

Nada é mais libertador

Que lutar por uma causa

Do que nós próprios maior,

Que nos envolva sem pausa,

 

Porém que determinada

Não seja nunca, na essência

Da transcendente jornada,

Por nossa vil existência.

 

Que seja sempre este Além

Do sonho que me convém.

 

 

134 – Instruir

 

A planura luxuriante

É para nos relaxar,

O titânico arvoredo

Da floresta murmurante

É para nos instruir:

Contra o medo, contra o medo,

Aprender a olhar, a olhar…

E a verdade perseguir

É para nos elevar

E pôr de vez, a seguir,

A voar, voar, voar…

 

 

135 – Realiza-te

 

“Se te queres realizar,

Realiza-te então em Mim”

- Diz-nos Deus em confidência.

Mas como assim, como assim?

“Faz por mim, em meu lugar,

Faz tudo, tudo, por Mim.

És minha luminescência,

 

Todo o teu trabalho faz,

Consultas, aulas, palestras,

Projectos, escritos, vendas,

Barro humilde ou traves mestras,

Tudo de que és tu capaz,

Tudo o que na vida orquestras,

Faz por Mim, em minhas sendas.”

 

- Então é que por meu grito

Vou dando à luz o Infinito.

 

 

136 – Incarnar-se

 

Eu não morro, sou eterno

Como tu, como os demais

Que em redor são do superno

A incarnação dos sinais.

 

Por isso vais ao deserto,

À viagem dos contrários,

Teu lado oposto desperto

Contigo a juntar fadários.

 

Quando ao Todo te inicias

E o Infindo te comanda

Multiplicas energias,

A plenitude em ti anda.

 

 

137 – Gastar

 

As pessoas são capazes

De gastar muito dinheiro

Que às vezes nem sequer têm

Para comprarem cabazes

Do que é nada por inteiro,

Cuja realidade retém

Só o que têm nas cabeças:

- O sonho no qual tropeças!

 

 

138 – Cheirinho

 

Aqueles a quem a vida

Tudo dá terão mais sorte

Que aqueles que, de seguida,

Hão-de dar, até à morte,

 

Tudo a uma vida madrasta?

Uma vida realizada

Não é nunca uma que encastra

Estritamente a fiada

 

De projectos que se tem:

Pode ser uma colagem

Gloriosa do que advém,

Surpreso, à mão, na viagem.

 

E como é maravilhoso

Não sabermos desde já

O cheirinho saboroso

Do que amanhã nos trará!

 

 

139 – Medir

 

Quase não será viver

Medir o tempo, medir.

As horas passam, a encher

Dum modo ou doutro, a fluir,

 

Mas não vivo, mas não vivo:

Suporto a existência vaga,

Não a gozo, a tudo esquivo,

É um deserto a minha plaga.

- Só vivo quando o porvir

De afecto encho a usufruir.

 

 

140 – Passo

 

Passo a vida a comparar:

Presente com o passado,

Sonho com realidade,

O desejo que eu visar

Com os desígnios do fado.

Porém, disto o que me agrade

 

No resultado final

Nem sempre é consolador:

É que as rédeas do real

São curtas ao se me impor

E a fantasia que fito

Estende-se ao infinito.

 

 

141 – Exprime

 

O amor pela humanidade

Vive preso do futuro.

De arte o amor, em igualdade,

É porvir que eu inauguro.

 

Sempre arte será esperança,

Não que esta nela só poise,

Mas que inteira ali se alcança

Nas obras onde repoise.

 

Arte é norma, pela imagem,

Da humanidade ultimada

Felizmente: ainda em viagem,

Vislumbro-a já consumada.

 

 

142 – Dormem

 

Em quantas casas tristonhas,

Portas, janelas cerradas,

Dormem vidas enfadonhas!

Amanhã, às alvoradas,

 

Quando a estrela matutina

Se apagar de vez no céu,

Retomam, a cada esquina,

A vida em todo o escarcéu.

 

E nunca compreenderão

Do mundo a beleza, nunca,

Esta profunda emoção

Que aquela distracção trunca

 

Mas que existir vai poder

Em cada simples minuto.

Só os mortos o vão saber,

Olham do campo o produto

 

E têm pena de nós.

Santos e poetas também

Sabem daquilo algo após,

Mas não logram ir além.

 

E o reino dos santos não

É deste mundo jamais

E os poetas sempre são

Homens vagos e fatais,

 

Tímidos que falam baixo,

Que evitam a turbamulta.

- E assim é que nunca encaixo

A luz que se desoculta.

 

 

143 – Aplicação

 

A verdade apenas é buscada

Tendo em vista a aplicação geral.

Cada homem que quiser, de entrada,

Pressentir a humanidade tal

 

Como um todo que ela é sempre, logo

Por traidor de sua classe estreita

É tratado e condenado ao fogo.

O valor não negará que espreita

 

No recanto a que se achar ligado,

Mas procura ir além dele, ao todo,

Quase cósmico é o pendor visado,

Comunhão de ilimitado modo.

 

Cada eu é vizinhança aqui,

Através de que devemos ir

Cada vez mais englobando em si

Todo o ser, até o total gerir.

 

Significa, a melhorar o curso

Dos eventos, que é de luta o rumo,

Nunca irá, no que acontece incurso,

Ser moldado como ao vento o fumo.

 

 

144 – Ficção

 

De ler ficção a vontade

É um desejo de viver,

De ampliar a estreita herdade

Que em sorte coube a quenquer,

 

Participar doutras vidas,

­Viajar noutros lugares.

Não são fugas doloridas

De asfixias e pesares.

 

Nas histórias há o convívio

Com outrem de iguais problemas:

Se os resolverem, que alívio

E que rumo nos meus lemas!

 

Se os não resolvem, ao menos

Resta-me, ao vê-los, consolo

Que os meus torna mais pequenos

Por partilhar o meu bolo.

 

A leitura satisfaz

Fome íntima de romance,

Ânsia da viagem que apraz,

De audácias que nem se alcance.

 

É um desejo de aventura

Como o gosto de assistir

À anedota que se apura

No gozo de divertir.

 

A vontade de ficção

É pôr asas e voar

Para além deste meu chão

Rumo a um sonho onde habitar.

 

 

145 – Uso

 

Qualquer uso da palavra

Tem para nós importância.

É charrua que nos lavra,

Motor de forte impedância,

 

Cria em nós o movimento,

O processo evolutivo,

É energia, força ao vento,

Como um combustível vivo,

 

Ignição das atitudes,

Base da física força.

A virtude das virtudes

Sempre a uma palavra orça.

 

 

146 – Simplificar

 

Cada ser humano pode

Simplificar sempre a vida,

Se a motivar-se ele acode,

Até de vez conseguida

 

Ter a própria autonomia

No êxito que sonharia.

 

Este hábito hereditário

De achar que o dia em geral

É difícil, salafrário,

Complicado ou infernal,

Incómodo, trabalhoso,

Insolúvel, perigoso,

 

E mais jeitos aflitivos

Que acentuam a visão

De pendores negativos,

Faz logo brotar do chão

E como tal ser vividas

Tais vertentes denegridas.

 

Reconhecer, todavia,

Quanto este funcionamento

Desesperou da magia,

Constrangeu, foi um tormento,

Vai ser entrar na aventura

Da palavra que nos cura:

 

Da palavra motivada

Nasce uma nova alvorada

 

Onde a luz que nos fugia

Da palavra bebe o dia.

 

 

147 – Degrau

 

A vida vale demais

E tudo o mais representa

Um degrau nos siderais

Caminhos que o sonho inventa.

 

A família, o casamento,

Olhados em perspectiva,

Mais não são que este elemento

Da vida a tentar ser viva.

 

A perspectiva, porém,

Perdemo-la facilmente,

A eternidade intervém

Dos momentos na corrente.

 

Nos belos dias de sol

Como nos custa cuidar

Que há-de chegar o arrebol

Da invernia a negrejar!

 

Na escola como na empresa,

Uma vez de hábitos feitas,

Ninguém admite nem preza

Que de vez serão desfeitas.

 

E então, quando a paixão vem,

Prendê-la da eternidade

Parece o que mais convém,

Sem mais trânsito à verdade.

 

E, quando o amor acabou,

Feito o sonho em desespero,

Infindável se pintou,

Dentro em mim, um erro mero.

 

E, todavia, nenhuma,

Destas tais eternidades

Perdurou ao fim, em suma,

Todas elas vacuidades.

 

Todas desapareceram,

Apenas eu resto intacto

Para os degraus que me geram

No Todo que gero em acto.

 

 

148 – Mártir

 

É mártir o iniciador,

O que jamais é razão

De desistir da missão

Que tiver de se propor.

 

Viver para um ideal

É aquilo que vale a pena

E morrer por ele acena

De ser homem o fanal.

 

Então baseia a esperança

Num porvir que lento avança.

 

A cidade eterna aclama

Dele o nome por quem chama.

 

 

149 – Nuvens

 

Porvir é nuvem batida

Por mil nuvens violentas,

Amor, ódio, sina de ida,

Fantasia, o Deus que atentas…

 

Maior profeta há-de ser

Palavra de ordem quem der

 

Mais imprecisa, esfumada,

Do sonho convite à entrada.

 

 

150 – Felicidade

 

Felicidade deveras

É não ter mesmo ambição

E trabalhar com as veras

Dum mouro a ganhar o pão,

Como se, afinal, tivera

Toda a ambição duma era.

 

Longe é dos homens viver

E sem deles precisar

Mas amar todo e qualquer,

Tal se o mundo fora um lar,

Como se, ao fim, me prendera

A todos como uma hera.

 

Estar no Natal e após

Ter bebido e bem comido,

Fugir para longe a sós,

Dos laços todos sumido:

Por cima de nós, estrelas,

Aos lados, dunas e velas.

 

Ver que em nosso coração

A vida realizou

A derradeira função,

O milagre de meu voo:

A vida, em quaisquer estradas,

Tornou-se um conto de fadas.

 

 

151 – Arte

 

Arte é encantamento mágico.

Forças homicidas, cruas,

Se aceitam no ventre trágico

De nossas entranhas nuas,

 

Funestas pulsões de odiar,

De matar, de destruir,

De humilhar, de desonrar…

Em seu jeito de fluir,

 

Com a flauta pastoril,

Brota de arte então a aberta:

Logo um novo céu de anil

Desabrocha e nos liberta.

 

 

152 – Efémera

 

Em nossa efémera vida

Deveras há eternidade.

Descobri-la, definida,

É que custa, em soledade.

 

São as freimas de cotio

Que nos desviam a vista.

Só um escol, em desafio

Trepa ao cume que resista.

 

O mais é o vulgo ignorante.

Deus deu-lhe a religião

Para poder ir avante

Com algo de eterno à mão.

 

 

153 – Muda

 

A cada instante muda Deus de face.

Feliz aquele que pudera vê-lo

Sob cada máscara com que Ele passe.

 

Ora é um copo de água fresca,

Ora um filho que o cabelo

Vos prende, em rocambolesca

 

Aventura nos joelhos,

Uma mulher feiticeira,

Ou meros hábitos velhos,

 

Como andar do mar à beira…

 

Pouco a pouco, à minha volta,

Sem nada mudar de forma,

A vida é de sonho envolta,

Terra e céu são um por norma.

 

 

154 – Somos

 

Somos todos mentirosos,

A nós próprios nos mentimos,

O que nos torna animosos.

 

Temos o ideal dos cimos,

Mundo perfeito, correcto,

Eficaz, limpo dos limos.

 

Mas depois o que detecto

É que cobrimos o mundo

De lixos até ao tecto.

 

Só de fadigas me inundo,

Somos vermes de estrumeira

Chafurdando em charco fundo,

 

Para ter uma lareira,

Um piano em ampla sala,

Um mordomo, um carro à beira,

 

Uma casa que regala…

E cá vamos divertidos,

A arrastar a nossa mala

 

A mundos desconhecidos.

E o pé que daqui se abala

Húmus pisa apodrecidos.

 

 

155 – Carne

 

Carne exteriorização

É do espírito somente,

A integral transmutação

Pode ser perfeitamente

 

Do corpo físico a via.

A não ser que o não queiramos,

Que ao ritmo do dia-a-dia

Escravos nos submetamos,

 

Que nos imobilizemos,

Estáticos, deslocados

Da vida que aqui vivemos,

Da vontade separados.

 

Antes morrer que aguentar

Uma vida maquinal

Que apenas seja o lugar

De repetir-me, fatal.

 

Morrer é com o invisível

Marchar e com alegria

Acolher o incognoscível,

Ter no ignoto parceria.

 

É uma festa desde então.

Mas automaticamente

Viver como escravo à mão,

Do ignoto sem a semente,

 

É uma ignomínia e vergonha.

Na morte jamais há disto,

Mecanizada peçonha,

É vida em que não existo.

 

Fica além de qualquer traço

Da sujeira que não quites

A morte como um espaço

Duma vida sem limites.

 

 

156 – Criança

 

É uma filha do mistério

A criança que nasceu

Ou não foi gerada a sério.

Ignota desceu do céu:

Não vem dum antepassado,

É o desconhecido nado.

 

 

157 – Meio

 

Viver num meio diverso!

Todavia, um mundo novo

Do velho é sempre o reverso,

A desenvolver-se do ovo.

 

Isolar-se aí então

Não era encontrar aquele

Mas criar uma ilusão,

Mesmo se outrem uno à pele.

 

E não há uma alternativa,

Seja lá o que for que eu viva.

 

 

158 – Penetrar

 

Cada qual tem um destino,

O que importa é descobri-lo.

Como as palavras: ter tino

É penetrar no sigilo,

 

Mergulhar até ao fundo.

Um homem fia e desfia,

O diabo tece o mundo,

Até que alguém desconfia…

 

De repente, aquele nada

E eis que se me abre uma estrada.

 

 

159 – Sagrado

 

Se não há nada sagrado para alguém,

Tudo então logo de novo ali devém

Bem sagrado num sentido mais humano:

A centelha se venera, sem engano,

 

Que pulsar até na vida da minhoca

E que a obriga alguma vez a vir da toca.

 

Do maior ao mais pequeno tudo é santo

E fulgura o rosto em tudo dum encanto.

 

 

160 – Passa

 

Nada passa, tudo deixa,

Vestígio dele ao passar.

De meus passos a madeixa,

Por mais que insignificar,

Tem sentidos que inauguro

Desde aqui rumo ao futuro.

 

 

161 – Aprender

 

São a vida ultrapassagens:

Aprender a ser criança

É a primeira das viagens;

E ser jovem quem alcança

Sem novas aprendizagens?

 

Ser adulto após requer

Ter muito mais que aprender.

 

Então é viver conselhos,

Aprendemos a ser velhos.

 

E teremos muita sorte

Se aprendermos bem a morte.

 

É sempre este salto além

Aquilo que nos convém.

 

 

162 – Caminhemos

 

Voltar atrás ninguém pode,

Caminhemos, pois, em frente.

Não ao sonho: não acode

Nunca ao colo do presente.

 

Sim ao acto que lhe rume,

Que nisto a vida se assume.

 

 

163 – Débil

 

Nada é tão desesperado

Que algum modo de esperança

Não haja de ter ficado

Que, embora débil, alcança

 

(Com a vontade e o desejo

Do que o vai levar a cabo)

Saída ao primeiro ensejo,

Parecer que ao fim lhe gabo

 

Viável quão desejável:

- E a porta se abre, moldável.

 

 

164 – Imagino

 

O que imagino dum bem

Sempre o mesmo bem excede

E então o perco também

Se o alcanço no que mede.

 

A fortuna, conquistá-la

Não é tanto possuí-la

Como antes é desejá-la

No longe que se perfila.

 

 

165 – Ídolos

 

Os objectos que entretêm

A nossa vaidade e estima

São como ídolos também:

Veneram-se em dado clima

E fora daquele império

Dão lugar ao vitupério,

 

Em lugar de adoração:

Mármore que aqui daria

De imagem de santo o dom,

Além é lastro de via…

Todos na vaidade a par,

Cada objecto é o que eu sonhar.

 

 

166 – Realidade

 

A realidade é o real,

Mas da extinção gradual

 

Dos sonhos à morte lenta

Vai só um passo que nos tenta.

 

O que importa é reagir

E abrir a porta ao porvir.

 

 

167 – Procuro

 

Não voltarei a partir.

Procuro dentro de mim,

Na lembrança a me imiscuir,

A navegar na saudade

 

Para além de meu confim:

Dentro é que sou de verdade

E serei até ao fim

Sei lá bem que realidade!

 

 

168 – Convés

 

Do convés olho as estrelas

E vejo-me, aos olhos delas,

Uma gota em vasto mar,

E acabo por me assombrar:

 

Como um minúsculo ponto

De tanto sonho tem conto;

 

De pensar contraditório

É fiel repositório,

 

De tantos ódios e amores,

Lágrimas, risos, temores;

 

Tem coragem e tem medo,

Certeza, dúvida e credo…

 

- Que tantos mundos se somem

No que faz de mim um homem!

 

Sou milagre caminheiro,

Num nada o Cosmos inteiro.

 

 

169 – Voar

 

Voar é mau quando nos dá

Uma perspectiva errada

De eventos e gentes que há,

 

Levando a vista apontada

Às coisas limpas do céu

E não à podre levada

 

De dejectos com que encheu

A crosta da terra a vida.

Assim é que Deus morreu:

 

De tão remota a medida

Tirar ao mundo, perdeu

A noção que lhe é devida.

 

Doravante um Deus de seu

Busca o mundo, sem ferida

Do que um lado só sorveu.

 

 

170 – Inventa-os

 

O homem sem mitos

Não pode viver.

Inventa-os benditos

Para depois ser

Deles sempre escravo

Venerador bravo.

 

E a contradição,

Sendo insuperável,

É que o mantém são.

É injustificável,

Por irracional.

- Mas é o ideal!

 

 

171 – Tendência

 

É minha tendência erguer

Todo um muro à minha volta,

Tudo, tudo a proteger

Que criei e largo à solta

E com que me sinto bem,

Onde sou eu, mais ninguém

Mas tenho de continuar

A deitar abaixo o muro.

Tenho de me comandar:

“Vamos largar o seguro

Por sítios que não conheço,

Por onde acaso tropeço!”

 

Esperamos ser capazes,

Se o somos sempre, não sei.

Tentamos, porém, tenazes,

É a postura que faz lei.

E assim é que prosseguimos

Rumo sempre a outros cimos.

 

 

172 – Emigração

 

A emigração é um motor

Da marcha da humanidade.

É uma sorte haver um ror

De gente que se persuade

 

A ser ponte cultural

Entre povos, continentes…

O futuro mundial

É a mistura das sementes.

 

De nova síntese a leira

É sempre nova fronteira.

 

Logo que ela é conseguida

Novo é o mundo, nova, a vida.

 

 

173 – Noutra

 

Noutra espécie não seria

Incentivo denodado,

Mas eu vivo atormentado

Pela apetência sem dia

Pelo remoto e trancado.

Ah, como eu adoraria

Navegar no mar vedado,

Desembarcar na magia

Das terras do outro lado,

Em meio à selvajaria,

Como um facho levantado!

 

 

174 – Fé

 

A fé, tal como um chacal,

Dos túmulos se alimenta

Mas colhe o melhor fanal

Da esperança do que tenta,

Não dum acaso da sorte,

Mas da incerteza da morte.

 

Abrindo uma porta Além

Dá rumo à vida que tem.

 

175 – Dificuldade

 

Para a Deus obedecer

Quantas vezes nós teremos

De a nós desobedecer!

Na desobediência a haver

A dificuldade vemos

A Deus em obedecer.

 

Isto de trepar aos céus,

Só rasgando os braços meus!

 

 

176 – Engalana

 

Por detrás de cada pena

Há uma festa garantida

E quão mais aquela é plena

Mais esta engalana a vida,

 

Quão maior é o mastro grande

Mais profunda rompe a quilha.

A alegria é quem comande

Quem se impõe tudo o que brilha,

 

Inabalável, oposto

Dos falsos deuses ao rosto.

 

A felicidade é a festa

Vislumbrada além da fresta.

 

 

177 – Perigosa

 

A perigosa viagem,

Mal finda, vem outra logo

E outra se atrela à engrenagem,

Cadeia sem desafogo.

 

É no que consiste, é nisto,

Em desfraldar sempre o pano,

Nosso imenso esforço humano:

- É nisto que, enfim, consisto.

 

 

178 – Menciona

 

O que é mais maravilhoso

É o que se menciona menos.

Memória a que mais me entroso

Epitáfio nos terrenos

Jamais terá: não são plenos

Os sinais do que der gozo.

 

O destino do inefável

É no imo só detectável.

 

 

179 – Máscaras

 

Máscaras de papelão

São os objectos visíveis.

É que em cada ocasião,

Por trás dos factos sensíveis,

Algo há de desconhecido

Mas pejado de razão

Que mostra cara e sentido,

Tudo o que tem escondido

Da máscara atrás do vão.

 

Se é preciso desvelar,

Desvele-se o que haja além

Do que a máscara ocultar.

Pois como é que o prisioneiro

O exterior que o tem refém

Vai conseguir alcançar

Sem o derrube primeiro

Do muro que o apertar?

Quem isto não quiser ver

Será o prisioneiro eterno

Do lado de cá do ser,

De vez perde o ser superno.

 

 

180 – Mineiro

 

O mineiro subterrâneo

Que em nós cava, taco a taco,

Como é que aqui, coetâneo,

Vai poder adivinhar

Onde é que acaba o buraco,

Em que tempo, em que lugar,

Se muda constantemente

De direcção, de sentido,

E se ele escava de ouvido

Com picareta silente,

Sem que nunca seu ruído

Ouça um ouvido de gente?

 

Quem se não sente atraído,

Quem não sente, quem não sente,

Pela força incontrolável

Que há num sonho inadiável?

 

Canoa que é rebocada

Como se pode manter

À beira dum cais qualquer

De vez imóvel, parada?

 

 

181 – Sintas

 

Não te sintas infeliz

Só porque alguns de teus sonhos

Não se realizam, viris.

Apenas os que, tristonhos,

Nunca sonharam, matizes

Reais terão de infelizes.

 

 

182 – Cultura

 

Uma cultura de massa

É uma cultura da imagem

Para a qual a linguagem

É um subtítulo que passa.

 

É a cultura que receia

O silêncio, a solidão,

Aquilo para que ameia

O abismo negro do chão.

 

Ninguém desvenda os efeitos

Da destruição geral

Disto que era, radical,

Lavrar dos campos os leitos.

 

 

183 – Infindo

 

Nem mesmo Deus poderia

Criar aqui, contingente,

A instituição que abrangia

O infindo infinitamente.

 

Nossos esquemas estreitos

Não poderiam conter,

A pobre invólucro afeitos,

O infinito de Deus ser.

 

Eis porque a religião

Não pode guarda de Deus

Armar-se em nenhum portão:

Não há quem abarque os céus.

 

Não pode trancá-lo à chave

Do tabernáculo à porta

E distribuí-Lo ao conclave

Quando ou onde o gosto exorta.

 

O Absoluto nunca pode

Privar-se de se mostrar

A quenquer a quem acode,

Onde e quando lhe agradar.

 

E nunca respeita fés,

Religiões nem sagrados,

Transgride nos próprios pés

As fronteiras e os reinados.

 

 

184 – Sistema

 

A fé nunca deveria

Devir sistema fechado,

De ideias contra vazia,

Mas livro aberto, arejado,

Intimamente abordado

Por quenquer que o quereria,

Nada escondendo de lado.

 

Deus a ninguém cometeu

Delimitar qual a via

Por que outrem aborde o céu.

E a ninguém armou soldado

Para ocupar qualquer posto

Donde lhe defenda o rosto.

 

Deus nunca requer ser salvo.

O homem, sim, de tiro um alvo,

 

Logo do exército do eterno

Que em vida lhe impõe o inferno.

 

 

185 – Assumir

 

O vero conhecimento

Nunca vive de abstracções,

Aquele tipo de evento

Que na escola dá lições.

 

Acerca da consciência

Em nós próprios é que incide,

O que leva em consequência

A ser quem a si preside,

 

A responsabilidade

A assumir da própria vida.

É um crescimento de idade

Que a crescer tudo convida.

 

 

186 – Julgo

 

Se julgo que quererei

Algo que eu nem sequer sei,

 

Ou se julgo que preciso

De algo que nem terá siso,

 

Só preciso de lembrar

Que já completo hei-de estar,

 

Que à imagem e semelhança

De Deus meu ser se me entrança.

 

Cada vez que olho no espelho

E confirmo ser o artelho

 

De matéria que é divina,

Minha abraço inteira a sina:

 

Venço o desejo em verdade,

Abraço a totalidade.

 

 

187 – Predestinado

 

Encontro-me na viagem,

Viagem de autodescoberta,

Predestinado à triagem

A aventuras mil aberta,

 

A fazer novos amigos

Sempre ao longo do caminho,

A aprender que nos postigos,

Por onde espreito do ninho

 

A julgar que algo me falta,

Desato da corda os nós:

O que falta tenho-o em alta,

Mora aqui dentro de nós.

 

 

188 – Éden

 

O éden primevo em mim pinto,

Partilhando um sentimento

De alienação, por instinto.

Sou este estranho elemento

Que, mal se distrai, se apanha

A viver em terra estranha.

 

Aqui não estou em casa

E procuro uma resposta.

Mas invento a que me abrasa

E assim mato em breve a aposta:

Numa Igreja ou num Estado

Mais que nunca eis-me alienado.

 

- Como então vou regressar,

Onde está meu vero lar?

 

 

189 – Centelha

 

A condição de caídos

É de nós andarmos cegos

À centelha que sentidos,

Divina, nos luz nos pegos.

Existe cá dentro, esquiva,

Devia ser chama viva.

 

E, depois, nossos amigos

Vivem tão desamparados

Como nós, sem mais abrigos.

Ser querendo iluminados,

Buscamos o mensageiro

Que tudo conserte inteiro.

 

Poderá ser um guru,

Sábio, clérigo ou rabino,

Um Jesus ou um tabu,

Maomé com fé no destino…

- E ao fim tudo revelar

Se há-de ídolo a ultrapassar.

 

 

190 – Reino

 

O reino dos céus não é

Uma esperança remota

Só no futuro de pé,

A brandura a vir que embota

Qualquer dureza diária,

 

Mas uma realidade

Daqui, do tempo presente,

De quem descobre, em verdade,

Doravante, o que é evidente:

A natureza primária

 

A que toda a vida inclina:

- A sua matriz divina.

 

 

191 – Transportadores

 

Somos todos portadores,

Transportadores de luz.

Somos o inverso das dores

Que a religião traduz

No desgraçado patético

Do dogma dela profético.

 

Cada indivíduo detém

O poder de transformar

Noite em dia, sempre além.

Mas não há sendeiro a par,

Colectivo, a percorrer:

Toda a jornada que houver

 

Será sempre singular

Naquele que iluminar.

 

 

192 – Chego

 

Nunca estou perdendo nada.

Apenas chego ao destino

Quando perceber na estrada

A verdade com que atino,

Que é um factor universal:

Nenhum de nós o fanal

Precisa de procurar

Além do que em si tiver:

A coragem singular,

Toda a força do dever,

Aurora de inteligência

A perseguir a evidência,

 

Como um outro qualquer fito

Que muito deseje ter.

O que procuro e concito

Já existe dentro em quenquer.

Preciso, ao romper-lhe o selo,

Só, só de reconhecê-lo.

 

 

193 – Inimigo

 

O inimigo inveterado

Se, ao contrário, fora olhado

 

Como portador de luz,

Um transmissor que traduz

 

Verdade complementar,

Em que é que se ia mudar?

 

Árabes, israelitas,

Católicos, protestantes,

Cristãos ou ismaelitas,

Todos os doutrem distantes,

Se logram reconhecer

Que somos só caminhantes

Inadaptados ao ser

E, contudo, irmãos constantes

 

De Jesus, Buda, Maomé

Nos caminhos hesitantes

Da iluminação com fé,

Talvez os sonhos distantes,

 

Utopias mais incríveis

Não sejam tão impossíveis.

 

 

194 – Sugerem

 

Muitos sugerem que Deus

Não é realmente nada,

Que dos fundamentos seus

O que se diz, à chegada,

É que nada é material,

Não é coisa do real.

 

Em certo sentido, aliás,

Nem sequer posso dizer

Que Deus existe-por-trás,

Que existir sempre requer

Uma essência material

Que nele não dá sinal.

 

Deus se encontra para além

Das palavras, dos conceitos,

É o Ser Eterno, é o Alguém,

Do Mundo do Ser os leitos

Que são os do Nada Eterno,

O Além onde me prosterno,

 

Sempre fora das fronteiras

Do espaço e do tempo inteiras.

 

Deus em mim é uma ilusão

Do que há neste Eterno Não.

 

 

195 – Conflito

 

O verdadeiro problema

Que a qualquer conflito humano

Subjaz não provém do lema

De eu gostar demais do engano

De mim próprio, sendo egoísta,

De a mim só só ter em vista,

 

Mas antes, pelo contrário,

De não gostar o bastante

De mim entre o mundo vário.

Não creio determinante

Que o Adão em mim criado

O seja de anjo fadado

 

E menos para ser rei

Pleno de sabedoria.

Ora, só se vejo e sei

Deus em mim mesmo algum dia

É que noutrem logro ver

Deus a aflorar, Deus a ser.

 

 

196 – Crer

 

Posso andar atormentado,

Duvidar de crer em Deus,

Mas Deus tem acreditado

Em nós, crentes ou incréus.

 

Se conseguir afastar

As teias de aranha em mente

E aquele céu vislumbrar

Bem aberto à minha frente,

 

Percebo o potencial

Quão em mim é ilimitado

E os poderes sem igual

Múltiplos que me hão dotado.

 

Sempre nós temos opções,

Basta reparar na fonte.

O passo para os fundões,

Até lá montando a ponte,

 

É que o foco de atenção

Deixe que o sopro do eterno

No nosso corpo, no chão,

Se infunda em seu gesto terno.

 

 

197 – Todo

 

Entendo que farei parte

Dum todo, a fonte divina.

Só quando o esqueço, destarte

O negativismo é sina:

 

Da realidade maior

Se me corto, então farei

O que impróprio de Deus for

E de mim nunca mais sei.

 

 

198 – Controlar

 

Se conheço a divindade

Que existe dentro de nós,

Não preciso outra entidade

De controlar, nem feroz,

Nem a dominar alguém:

O que sou é que convém.

 

É que ser é não ter ego:

Sou a presença divina

Num planeta que anda cego,

Na terra que a luz fascina.

Tal como todos os mais,

Só valho por tais sinais.

 

 

199 – Amadurarmos

 

Intenções e pensamentos,

Como as acções negativas,

Mudar posso nos intentos

Para curar as esquivas

 

Mazelas que há no planeta.

Pequenos, nós deuses somos,

Em realidade concreta,

A amadurarmos os pomos.

 

Podemos direccionar

O poder divino em nós

Rumo ao bem que houver a amar

(Compaixão pelos avós,

 

Misericórdia por todos…)

Ou então na direcção

De destruirmos os bodos,

A todos tolhendo o pão.

 

A escolha é nossa, portanto.

Não poderemos matar

Do mal o enganoso encanto,

Sempre a lá nos inclinar,

 

Mas posso canalizá-lo.

Nisto consiste crescer:

A palavra causa abalo,

Sopro que força há-de ter;

 

O pensamento intangível

É matéria bem pesada;

A esperança futurível,

Os sonhos em revoada

 

São tangíveis entidades

Que sempre se concretizam

Se unirmos nossas vontades,

Mundo que os deuses balizam.

 

 

200 – Errado

 

Que há de errado na magia?

No mundo do ser, a vida

É muito mais do que a via

Dos olhos a ter medida.

 

Há forças misteriosas

A atravessarem o mundo,

Discretas, tão saborosas

Que é delas que me circundo.

 

Posso até mesmo aprender

Tais forças a controlar,

Tais forças a vir a ser,

A ser outro e outro lugar.

 

 

201 – Ajuda

 

Só com a ajuda dum arcanjo

Somos capazes de obrigar

Qualquer demónio, mentido anjo,

A obedecer a um sonho a andar.

 

É o que acontece no exercício

De nossos dons particulares:

Para colhermos benefício,

Tudo terá, nos patamares,

 

De submeter-se, com fervor,

Sempre a um poder superior.

 

De ancorar-me mais além

É que aqui deus sou eu também.

 

 

202 – Poder

 

Descobrir o poder que existe em nós

É um maravilhamento inenarrável.

Juntamente, porém, temos a sós

De aprender a viver numa inefável

 

Dependência perene da presença

Dum além que é divino e que é mais fundo

Do que este agora-aqui que não convença.

Senão, do mal as forças que há no mundo,

 

Embora as controlemos, recusar-se

Irão a nos servir, serão disfarce.

 

 

203 – Conhecemos

 

Sempre atado ando ao perigo

Por inquebráveis cipós.

Conhecemos o inimigo:

O inimigo somos nós!

 

Nosso próprio Satanás

Somos nós, com os receios,

Dúvidas que para trás

Recuam caminhos meios.

 

Quando sou atormentado

Da dúvida do que sou,

Do poder que houver herdado,

Ao inimigo é que vou

 

Permitir que abra uma brecha

Em minha frágil defesa.

Permito que se erga a flecha

Dum pagão templo em devesa

 

Que é mesmo na porta ao lado,

Cá na minha vizinhança.

O derrotismo é ocupado

Por pagão deus que me alcança,

 

Idólatra que desvia

Minha atenção da Presença

Divina que em mim vivia,

Que importa que me convença.

 

 

204 – Ameaça

 

Quando a auto-compaixão

Nos ameaça consumir,

Quando pisamos o chão

Limiar do desespero,

Então,

 

Compaixão que me sorrir,

Algum cuidado sincero,

O acto de quenquer por mim

Me ajuda a recuperar

Toda a minha perspectiva.

Enfim,

 

A mim quando alguém amar,

Se apercebo a flama viva,

Logo há toda a diferença:

Do mundo inverto a sentença.

 

Aí desato a sentir

Todo o apelo do porvir.

 

 

205 – Fogo

 

Não é nenhum inimigo

Que deita fogo à cidade,

São os anjos o perigo,

De Deus cumprindo a vontade.

Fachos de lamentação

São acesos por agentes,

Numa escondida lição

Divina a aflorar as mentes.

 

É muito reconfortante

Aperceber-me da perda,

Quando a tragédia é gritante,

Como um plano que alguém herda,

A parte dum objectivo

Que não logro vislumbrar.

Nosso carácter ao vivo

É forjado em dor, a par,

 

Ao grito do sofrimento.

Frágil é o laço da vida,

Morte, o universal momento,

A irrefragável saída.

 

Destinados a perder

Estamos os mais chegados,

Mas a essência de viver

Fica entregue aos recém-nados,

 

Marca da posteridade,

Viva em memórias sagradas

Dos nascidos em idades

Depois de nós germinadas.

 

 

206 – Dádiva

 

Grande arte, a de respirar,

Pois, tal como a própria vida,

É dádiva, mais que de ar,

Vinda de cima à medida!

 

A morte deve ser vista,

Não tal como um véu sombrio

Que nos amortalha e entrista,

Mas como algo em que confio,

 

Último beijo de Deus,

Momento em que haustos de vida

São retomados dos céus

Por Aquele que convida

Aqui de empréstimo a tê-los.

O processo de morrer

A sós não é, que ata os elos:

Deixa para trás qualquer

 

Familiar ainda vivo,

E nos junta intimamente

Ao familiar esquivo

Que foi vida precedente.

 

 

207 – Problema

 

Não, problema irremediável

Não há no mundo nenhum.

Faz é falta o actor fiável

Em cena de palco algum,

 

Os que sabem quando agir,

Quando devem aguardar,

Quando devem, a seguir,

Com o Cosmos alinhar:

 

Respiração do Infinito

Aqui num ponto pequeno,

Cujo grito é dele o grito,

- Num nada o Infinito em pleno.

 

 

208 – Eficaz

 

A mais eficaz acção,

Quando nós dúvidas temos,

É simplesmente a inacção:

Agir nunca deveremos.

 

Em vez de gesticular,

Brandir o punho canhestro

Contra o mundo singular,

Deste Universo o mau sestro,

 

Deverei mesmo parar,

Retirar-me, clandestino,

A energia a preservar,

E aguardar, com todo o tino,

 

O momento, hora oportuna,

Quando for altura certa.

E, quando a onda se enfuna,

Aproveito então a oferta:

 

A onda do mar da vida

É que a actuar me convida.

 

 

209 – Cânone

 

Por que motivo exigir

De algum cânone a existência

Para uma Bíblia erigir

Ou do Alcorão a eminência?

 

E por que não permitir

Que os livros livres circulem,

Cada mente a decidir

Quais os textos que a cumulem,

 

Que é que mais fundo interpela,

Que mensagem dirigida

Lhe parece uma janela

Para a sua própria vida?

 

Os textos, no fim de contas,

São palavras em papel,

Pergaminho gasto às pontas,

Papiro atado a cordel.

 

Não é Deus maior que um livro?

Não há livro algum jamais,

(E das gangas não me livro!)

Que a Deus defina em sinais.

 

E, mesmo os livros que estão

Pejados de falhas, podem,

Mesmo assim, ter um torrão

De verdades que sacodem,

 

Profundas, espirituais,

Quaisquer sensibilidades,

Com marcas individuais.

Então, como os mais são grades

 

Que nos manterão de pé

Como catedrais da fé.

 

 

210 – Emoção

 

Se alguém não se desenvolve

De algum modo em plenitude,

E se a aprender não se envolve

Com a emoção com que mude,

 

Então a sombra devém

Dele próprio, a truncada

Pequena versão também

Duma mente alienada.

 

É só de tempo questão

E de cartas o castelo

Se esbarrondará no chão,

À máscara apondo o selo.

 

 

211 – Maioria

 

A maioria que entende

Do lado comum, diário,

Previsível, que se rende,

Dum homem extraordinário?

 

Mesmo para a mente aberta,

Quanto ao fora do comum

Nada é simples, na encoberta

Imagem de dote algum:

 

Não vêem que houve o ditado,

Que ficaram de castigo

Por tarde terem voltado,

Ou que querem o ombro amigo

 

Para um qualquer desabafo…

Da terra o jogam aos céus,

Retiram-lhe o humano bafo,

Desincarnando-o num deus.

 

 

212 – Discernir

 

A solidão de nós quer

Que nela nos debrucemos

Para discernir qualquer

Dom positivo que houver

Dentro dela, onde o colhemos.

 

Há sempre muitas pessoas

Aptas a viver sozinhas

Sem que sós fiquem. E boas

São as vivências, as loas

Que entoam não são maninhas.

 

Há uma aceitação serena,

Uma escolha porventura,

Da forma de vida plena

Que lá por dentro se encena,

Que na solidão se apura.

 

É que estar só nos permite

Apalpar o que deveras

Sentido à vida concite.

É o mais profundo convite

Para além irmos das eras.

 

 

213 – Nadas

 

De nadas encadeados

Pequenos a vida é feita,

Cuja sequência de prados,

Muitas vezes, se se espreita,

Nos escapa dos cuidados.

 

Se que me possa escapar

Eu não aceito algum dia,

Levado sou a forçar,

Consciente ou não a via

Seja em que tal operar.

 

Ou tudo é uma maravilha

Ou então é uma desgraça,

Ou como o sonhámos brilha

O sonho ou então não passa,

Desato-o da minha cilha.

O mundo ou nos aprecia

Ou já não somos ninguém.

E, de repente, a magia

No abismo se afunda além,

Sem mais perspectiva ou via.

 

 

214 – Detrás

 

Ante a predisposição

Ou por detrás de feitios,

Uns que optimistas serão,

De pessimismo outros rios,

Algo de mais importante

Pode andar nada gritante:

 

Pode alguém gostar ou não

De si próprio, lá no fundo.

Aceitar-se em seu torrão,

Dar-se o direito fecundo

De não ser homem perfeito,

A poder falhar atreito,

 

E de não corresponder

Doutrem às expectativas,

Aos desejos de quenquer,

Elimina arestas vivas,

É não se recriminar

Nem se até preocupar

 

Em saber o que outrem pensa

Sobre si mesmo algum dia.

É o que liberta da prensa

Que no peito me asfixia.

É abrir um rumo ao porvir

Deixando a vida fluir.

 

 

215 – Colar

 

Somos a pequena conta

Num colar de biliões delas

Que a vida, de ponta a ponta,

Enfeitam como de estrelas

 

 

Pejadas de luz doirada

De partilha, de entreajuda,

Solidariedade atada,

Corrente de luz que acuda

 

Nas horas de sofrimento:

Cada qual entra em contacto

Com as mais, cada momento,

Para ultrapassar tal facto.

 

Aceitar serenamente

O inevitável da vida

A calma logo consente

Como a energia que lida

 

Com o que era incontrolável.

Isto logo nos ajuda

A lidar de modo fiável

Com tudo, o que tudo  muda.

 

 

216 – Fio

 

Vivemos o dia-a-dia

Em momentos dividido

De agrado e de desagrado,

Sem ver o fio que fia

A teia cujo tecido

Os liga ao tear armado.

 

Este fio condutor

Permite o distanciamento

Ante o que vamos obtendo:

Noção do pouco valor

Que tem um qualquer momento,

Se em absoluto o vou lendo.

 

E, todavia, na altura

Em que a vivê-lo estiver,

Sempre o momento aparece

Revestido da figura

Da eternidade a viver,

- E a seguir logo me esquece!

 

 

217 – Deixar

 

Deixar a vida fluir

Não é ficar por sistema

À espera que alguém resolva

O problema que surgir.

Só que às vezes o problema,

Pelo peso que ele envolva,

 

É tal que, ao cair em cima,

Obriga-nos a entregar

As armas todas de vez.

O que nos pede tal clima

Difícil de suportar

É que, embora ao entremez

 

O porquê não se lhe entenda,

Nós mesmo assim o aceitemos,

É o acolhimento apenas.

Se, no gesto em que me renda,

Creio que, além do que temos,

Quando é preciso a tais penas,

 

Há uma força além da nossa

E que nossa então devém,

Consigo então continuar

A olhar para além da fossa,

Com um sorriso também

E um coração a abrigar

 

A vida com alegria:

O inexplicável é a via.

 

 

218 – Convite

 

Algo em nós nos continua

Com o convite de olhar

Além do que os olhos vêem,

Ouvir para além da rua

Que os ouvidos vão sondar,

A cheirar o que nos lêem

 

Os perfumes que há na flor,

De que são mera expressão,

A descobrir que há uma fome

Mais do que a física for,

Palpar da vida o tendão

Sem garra exigir que a tome…

 

Este algo que nos habita,

Que é profundamente nosso,

Não nos pertence de vez.

Não é nosso o que concita,

Que irrompe do fundo poço

Que sou eu dentro; ao invés,

 

É o que menos esperamos

Quando nem planeamos nada,

Nem controlamos sequer.

Não vem porque o desejamos,

Da simplicidade amada

Virá com que o acolher,

 

Ganhando então a visível

Forma que for conferível.

 

 

219 – Acolher

 

Ao acolher o maior,

Ultrapasso então os pólos

Opostos de qualquer um

Dos eixos que dão teor

À tensão da vida, aos rolos

Que enfeixam em dado algum.

 

Aí é que compreendemos

O que é manter-me então pleno

Em tranquilidade inteira,

Sejam guerras que tememos,

Violências que há no terreno

Ou qualquer dor que se abeira.

 

 

220 – Presente

 

Viver no presente é o modo

De não ficar embrulhado

Em tudo o que, no passado,

Nos magoou, feriu de todo,

 

Ou então nos meteu medo.

E de não me angustiar

Com tudo o que, tarde ou cedo,

Nos pode vir a tocar

Nas incógnitas que apuro

Que serão sempre o futuro.

 

 

221 – Atitude

 

Uma atitude interior

De fé não é teimosia.

O muro que irei transpor

Não é de um poder supor

Que usarei por qualquer via,

 

Mas de crer numa maior

Força que a minha, capaz

De quanto ousar se me opor

Remover muito melhor

Do que eu, quando tal lhe apraz.

 

Será quando lhe aprouver,

E, mais, se for caso disso.

É o que distingue qualquer

Saudável crença que houver

Da teimosia sem viço,

 

Da insistência exagerada:

Se esta eficaz se revela,

Riscos a correr na estrada

Fará correr e avultada

É a multa a pagar por ela.

 

Trata-se é de convidar

A nos ajudar a vida:

É lhe confidenciar

Que, por nela acreditar,

No amor que em nós faz que incida,

Confiamos nesta ajuda.

Como a chamar-lhe a atenção

Para uma sonhada muda

Que, antes que nos desiluda,

Lhe colocamos à mão.

 

 

222 – Recebemos

 

Sobre outrem expectativas

Ter ou de alguém esperar

Não é o mesmo que as esquivas

Formas da esperança vivas,

Mas o inverso a pulular.

 

Recebemos tanto mais

Quanto mais nos limitamos

A acolher quanto os demais

Têm a dar dos bornais,

De momento, a servos e amos,

 

Sem mais nada lhes pedir,

Sem exigências quaisquer,

Sem pressionar o porvir.

Tal é o ver certo em que os vir:

- Respeito da vida a ser.

 

 

223 – Espírito

 

O espírito dá sentido

À matéria que permite

Chegar, a quem o concite,

Ao espírito escondido,

 

Integrá-lo em nossa vida,

O contexto necessário

A que o aperceba, vário,

Todo a mostrar-se em seguida.

 

 

224 – Movimento

 

Movimento sem tensão

Não cansa: daí que quem

Viver nesta situação,

Vive o constante vaivém

Duma criatividade

Que tudo e todos invade.

 

Pode então devir, no intento,

Consciência sem esforço

Do infinito movimento

Da vida em qualquer escorço.

E, quão mais humilde for,

Maior da vida o fulgor.

 

 

225 – Sofrimento

 

O sofrimento liberta

De antiga acumulação

De má vida, aqui desperta

A requerer seu quinhão.

 

É uma dívida pagar

Que, embora não agradável,

A sentir-me vai levar

Mais leve e de vez fiável.

 

Não é, pois, no todo dele,

Só mal com que me arrepele.

 

No fim tudo concilia,

Vida e morte: uma só via!

 

 

226 – Negativas

 

Não ser jamais afectado

Por inimigos, doenças,

Por negativas sentenças,

Não significa, no fado,

Que se hajam eliminado

De vez de nossas mantenças.

 

Apenas que os impedimos

De se tornarem entraves

Ao programa rumo aos cimos

Onde livres somos aves,

À custa de tais arrimos:

Como plintos nos servimos

Deles, escapando às caves

Onde antes presos nos vimos.

 

 

227 – Esquecemo-lo

 

Mal temos conhecimento

De que tudo é o Universo.

Se o tivemos um momento,

Esquecemo-lo. O reverso

É que cegamos ao vento.

 

Se tudo no Todo vejo,

Qualquer coisa então que exista,

Grande ou pequena, no ensejo

Com tudo enlaça na lista,

Nunca fica só no brejo.

 

E a tudo o que nos rodeia

Do Todo o valor o alteia.

 

 

228 – Resiste

 

Se a mente resiste à vida,

Do que brota se defende,

Há uma divisão erguida

Um atrito que nos prende,

 

Uma contrariedade

Que, por sua vez, provoca

Uma reactividade,

Uma irritação na loca.

 

Ao querer interpretar

Qualquer acontecimento,

Tentá-lo identificar,

Conhecer-lhe o tegumento,

 

Avaliá-lo, preciso,

Um rótulo lhe prender,

Deixamos de ter aviso

Da vida que acontecer,

 

Como é na totalidade,

Não somos dela tocados:

- Não permito que a verdade

Responda em todos os lados.

 

 

229 – Alto

 

Para mais alto subir

Qualquer árvore terei

A raiz que ela emitir

De fortalecer, por lei.

 

Então mergulho mais fundo,

Irei mais terra absorver,

Da sujidade me inundo

- É o que permite crescer.

 

Toda a parte dolorosa

Mais eventualmente obscura

Que por mim dentro me entrosa:

É o limite o que me apura.

 

 

230 – Presença

 

Na vivida experiência do vazio

A superior presença se revela

Que o coração me habita sem fastio,

Transpessoal vivência duma estrela.

 

Quando a consciência do eu volta a seguir,

Em mim integra então estes estados,

Por eles transformada, num devir

Enriquecido deles, doutros dados.

 

É que então me apercebo do sentido,

Envolvente calor, do universal

Que existe para lá, descomedido,

Do asfixiante estertor do individual.

 

 

231 – Imagens

 

Imagens há, conjunturas,

Gente que nos faz sonhar

Pelo encantamento, puras,

Que ao dia-a-dia vão dar.

 

E depois ainda nos levam

A crer em mil impossíveis,

A que em nós logo se atrevam

Intuições elegíveis,

 

Criatividade, confiança

Na vida que se desdobra.

Logo mais capaz se alcança

Qualquer fito em qualquer obra.

 

 

232 – Caminho

 

Todos nós temos um caminho a percorrer.

Só à medida que avançar com os meus pés,

A carregar com os meus fardos, irei ver

Que ele se vai delinear de lés a lés.

 

Há, porém, quem o recuse,

Que sinta que andar em frente

É difícil e que abuse,

Com direito, de repente,

 

De descarregar em cima

De alguém que assim desanima,

 

De pedir satisfações

À vida, em letal querela,

Zangando-se dos senões,

Cortando laços com ela.

 

No discorrer do tal caminho há para todos

A boa estrela que acompanha, luz polar.

Mas só deveras a verá quem, sobre os lodos,

Nela acredita, quem propugna que ela a olhar

 

Por ele algures se mantém, mesmo se então

À vista dele não lha mostra a solidão.

 

É que de testes há períodos, deserto

E solidões, até que tudo fique perto.

 

 

233 – Ultrapassar

 

Sempre o sonho nos ajuda

A ultrapassar o real.

Só quando o sonho me iluda

Deixa de útil ser, leal,

 

Pois, em vez de me dar força

Para o confronto com ele,

À evasão que mo distorça

Me leva que me atropele,

 

A iludir-me, finalmente,

Acerca da realidade.

Senão, o que tenho em mente

É o infindo que me invade.

 

 

234 – Aparecer-nos

 

Qualquer que seja a nossa idade,

A aparecer-nos o futuro

Vai continuar tal livro em branco.

Mesmo uma página persuade,

Quando final, se tal apuro,

A que a preencha no meu banco.

 

Para o futuro garantir

Que continue nesta estrada,

Nunca podemos permitir

Ao sonho ser voz sufocada.

 

 

235 – Levo

 

Para onde quer que vá,

Quaisquer que sejam os ventos

Da vida que ocorrerá,

Levo do sonho alimentos

Comigo para acolá.

E o mundo logo será

Mais bonito nos eventos.

A luz do sol para as flores

É o que o sonho é para a vida,

Enriquece-a de mil cores,

Muda-lhe o ser em seguida.

 

 

236 – Aproveitar-lhe

 

Não se perde nem se ganha

O tempo, somente passa.

Só nos convida, na apanha,

A aproveitar-lhe da graça,

Não para coisas gizar,

Mas antes para o gozar,

 

O respirar, o viver…

Só através desta vivência

Atenciosa de quenquer,

Empenhada sem violência,

Iremos todos podendo

Ver-nos crescendo, crescendo…

 

 

237 – Admitir

 

Admitir não ser capaz

De fazer tudo o que quero

No espaço-tempo fugaz

Obriga-me a aceitar, vero,

 

Que não sou dono e senhor

Daquilo que possuir,

Nem da vida e seu teor,

Sou limite a me sumir.

 

E que aprender a viver

Implica ir aceitando,

Tranquilo, o que não tiver,

Tudo o que não for logrando,

 

O que perco dia a dia…

Inteiro serei só quando

Encho a vida, de vazia,

No além que for desvelando.

 

 

238 – Encantamento

 

O sonho é que nos permite

O encantamento preciso

Para sentir no limite

Que a vida eterna é que viso.

 

Que há sempre algo que fazer,

Ver, aprender, adiante,

Algo a descobrir e a ser

Que, puxando-nos avante,

 

Para lá de nós, nos torna

Maiores, mostra o caminho

De percorrermos à jorna

E que, entretanto, adivinho,

 

Mesmo todo percorrido,

Que não acabou ainda.

Mantendo isto no sentido,

A vida além é benvinda.

 

Os que sonharam com dia

Muita coisa, ante a sonoite,

Conhecem que escaparia

A quem só sonhar com noite.

 

 

239 – Empresta

 

Tem o sonho a fluidez

Que me empresta a sensação

De que há uma força maior

Do que eu no mesmo entremez

Que o semeará pelo chão,

Tornando-o real, se for

 

Importante no alargar

De horizontes de sonhar

 

Ou que, no caso contrário,

O dissipará, sumário.

 

Chegamos ou não chegamos?

O importante é que nós vamos.

 

Esta vida é uma viagem

Que não acaba, indolente,

Mesmo ao chegar, na triagem,

Ao fim aparentemente.

 

 

240 – Simplifica

 

O que simplifica a vida

Por nós próprios é o que usamos,

O que nos diz que a subida

É que o dia nós vivamos

 

Todo inteiro plenamente.

É acreditar que é viável

O sonho mais envolvente

Devir real inefável.

 

De nós pende o que se alcança,

Duma atitude interior:

Quando ela for de esperança,

A confiança há-de-se impor.