SEGUNDO TROVÁRIO
DESEMBOCA NA UTOPIA, EM TODO O SONHO
Escolha ao acaso um número entre 125 e 240, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
125 - Desemboca na Utopia, em todo o sonho
Desemboca na Utopia, em todo o sonho,
Este verso regular, de passo certo,
Com a rima em que disponho
Do atractivo onde ponho
Qualquer lonjura aqui perto.
Porém, sempre a lonjura
Fica fora de alcance
Por mais que me lance
À procura.
Vislumbro-lhe a cor
E o sentido,
É quanto basta da vida ao calor
A esperança, porém, hei perseguido
De a meta de vez não ter perdido.
126 – Muda
Mudar deverei tentar
Qualquer alma de quenquer
Se um povo quero mudar.
E tenho de procurar
Mudar a comunidade
Qualquer muda para haver
Numa personalidade.
É o círculo a refazer
Que ao porvir nos persuade.
127 – Desnutrido
Era o maior magricela,
Com uns braços de palito,
Descalço, nariz à vela,
Desnutrido, a fome é um grito.
Dele o pedido de esmola
Era mais uma exigência.
Quando lha pus na sacola,
Estranhei dele a premência:
Foi logo a correr jogá-la
No “conquistador do espaço”!
Puxa alavancas, embala,
Fura um corredor escasso
À nave, entre meteoritos,
Esquiva-se ao inimigo,
Aos mísseis, por entre gritos,
Escapa a qualquer perigo,
As frotas espaciais
São de vez aniquiladas,
Bem como as bases astrais,
Por mão dele estilhaçadas,
E o super-herói do mal
Ali fica derrotado
Em pirotecnia tal
Que o jogo nem é notado.
O miúdo já não é
Nenhum pedinte descalço,
Por momentos pôs de pé
O grande herói que aos céus alço,
Atinge e conquista estrelas,
É um guerreiro espacial
Com galácticas sequelas,
Um Senhor universal…
- E eu para aqui à espera
De o petiz desperdiçar
Dinheiro em comida mera
Quando o infindo é o seu lugar!
128 – Vulneráveis
Os que forem investidos
Com os mais altos poderes
Vulneráveis são mantidos
Tal quenquer doutros misteres,
Sujeitos à inconsistência,
Das convicções à mudança.
A grandeza é prevalência
Da convicção que se alcança
Mas também, em igualdade,
É de elevar-se além dela
Manter a capacidade,
- É poder devir estrela.
129 – Baseado
Quando um homem vai atrás
Do que feliz o tornar,
No que o coração lhe traz
Baseado então actuar
E na própria identidade,
Devém ali tão fecundo
Que parece de verdade
Vir revigorar o mundo.
130 – Estima
Não podemos tolerar
Que nos vão apreciar
Por aquilo que não somos.
Preferível é o desprezo
A uma estima sem o peso
Do que forem nossos pomos.
Que gozo dá, na verdade,
Um gozo que é falsidade?
131 – Sublime
No dia em que nós nascemos
Começamos a morrer.
Como alcançar poderemos
O sublime enquanto houver
Em nós este antro da besta,
A morte que a frecha assesta?
Ou em nós algo de eterno
De nós nos visa o superno?
Sempre o amor, com o erotismo
Promete saltar o abismo.
Será mesmo que o consegue
Ou é uma ilusão que adregue?
No fim, apenas a fé
Aposta naquilo que é.
132 – Sonho
Todo o sonho é realidade,
Somos os sonhos do Autor,
Reais dele por vontade.
Os nossos sonhos supor
Hão-de, para ser reais,
Em nós tais vontades, tais
Que a ascender nós nos sentimos
Elevando-nos aos cimos.
133 – Lutar
Nada é mais libertador
Que lutar por uma causa
Do que nós próprios maior,
Que nos envolva sem pausa,
Porém que determinada
Não seja nunca, na essência
Da transcendente jornada,
Por nossa vil existência.
Que seja sempre este Além
Do sonho que me convém.
134 – Instruir
A planura luxuriante
É para nos relaxar,
O titânico arvoredo
Da floresta murmurante
É para nos instruir:
Contra o medo, contra o medo,
Aprender a olhar, a olhar…
E a verdade perseguir
É para nos elevar
E pôr de vez, a seguir,
A voar, voar, voar…
135 – Realiza-te
“Se te queres realizar,
Realiza-te então em Mim”
- Diz-nos Deus em confidência.
Mas como assim, como assim?
“Faz por mim, em meu lugar,
Faz tudo, tudo, por Mim.
És minha luminescência,
Todo o teu trabalho faz,
Consultas, aulas, palestras,
Projectos, escritos, vendas,
Barro humilde ou traves mestras,
Tudo de que és tu capaz,
Tudo o que na vida orquestras,
Faz por Mim, em minhas sendas.”
- Então é que por meu grito
Vou dando à luz o Infinito.
136 – Incarnar-se
Eu não morro, sou eterno
Como tu, como os demais
Que em redor são do superno
A incarnação dos sinais.
Por isso vais ao deserto,
À viagem dos contrários,
Teu lado oposto desperto
Contigo a juntar fadários.
Quando ao Todo te inicias
E o Infindo te comanda
Multiplicas energias,
A plenitude em ti anda.
137 – Gastar
As pessoas são capazes
De gastar muito dinheiro
Que às vezes nem sequer têm
Para comprarem cabazes
Do que é nada por inteiro,
Cuja realidade retém
Só o que têm nas cabeças:
- O sonho no qual tropeças!
138 – Cheirinho
Aqueles a quem a vida
Tudo dá terão mais sorte
Que aqueles que, de seguida,
Hão-de dar, até à morte,
Tudo a uma vida madrasta?
Uma vida realizada
Não é nunca uma que encastra
Estritamente a fiada
De projectos que se tem:
Pode ser uma colagem
Gloriosa do que advém,
Surpreso, à mão, na viagem.
E como é maravilhoso
Não sabermos desde já
O cheirinho saboroso
Do que amanhã nos trará!
139 – Medir
Quase não será viver
Medir o tempo, medir.
As horas passam, a encher
Dum modo ou doutro, a fluir,
Mas não vivo, mas não vivo:
Suporto a existência vaga,
Não a gozo, a tudo esquivo,
É um deserto a minha plaga.
- Só vivo quando o porvir
De afecto encho a usufruir.
140 – Passo
Passo a vida a comparar:
Presente com o passado,
Sonho com realidade,
O desejo que eu visar
Com os desígnios do fado.
Porém, disto o que me agrade
No resultado final
Nem sempre é consolador:
É que as rédeas do real
São curtas ao se me impor
E a fantasia que fito
Estende-se ao infinito.
141 – Exprime
O amor pela humanidade
Vive preso do futuro.
De arte o amor, em igualdade,
É porvir que eu inauguro.
Sempre arte será esperança,
Não que esta nela só poise,
Mas que inteira ali se alcança
Nas obras onde repoise.
Arte é norma, pela imagem,
Da humanidade ultimada
Felizmente: ainda em viagem,
Vislumbro-a já consumada.
142 – Dormem
Em quantas casas tristonhas,
Portas, janelas cerradas,
Dormem vidas enfadonhas!
Amanhã, às alvoradas,
Quando a estrela matutina
Se apagar de vez no céu,
Retomam, a cada esquina,
A vida em todo o escarcéu.
E nunca compreenderão
Do mundo a beleza, nunca,
Esta profunda emoção
Que aquela distracção trunca
Mas que existir vai poder
Em cada simples minuto.
Só os mortos o vão saber,
Olham do campo o produto
E têm pena de nós.
Santos e poetas também
Sabem daquilo algo após,
Mas não logram ir além.
E o reino dos santos não
É deste mundo jamais
E os poetas sempre são
Homens vagos e fatais,
Tímidos que falam baixo,
Que evitam a turbamulta.
- E assim é que nunca encaixo
A luz que se desoculta.
143 – Aplicação
A verdade apenas é buscada
Tendo em vista a aplicação geral.
Cada homem que quiser, de entrada,
Pressentir a humanidade tal
Como um todo que ela é sempre, logo
Por traidor de sua classe estreita
É tratado e condenado ao fogo.
O valor não negará que espreita
No recanto a que se achar ligado,
Mas procura ir além dele, ao todo,
Quase cósmico é o pendor visado,
Comunhão de ilimitado modo.
Cada eu é vizinhança aqui,
Através de que devemos ir
Cada vez mais englobando em si
Todo o ser, até o total gerir.
Significa, a melhorar o curso
Dos eventos, que é de luta o rumo,
Nunca irá, no que acontece incurso,
Ser moldado como ao vento o fumo.
144 – Ficção
De ler ficção a vontade
É um desejo de viver,
De ampliar a estreita herdade
Que em sorte coube a quenquer,
Participar doutras vidas,
Viajar noutros lugares.
Não são fugas doloridas
De asfixias e pesares.
Nas histórias há o convívio
Com outrem de iguais problemas:
Se os resolverem, que alívio
E que rumo nos meus lemas!
Se os não resolvem, ao menos
Resta-me, ao vê-los, consolo
Que os meus torna mais pequenos
Por partilhar o meu bolo.
A leitura satisfaz
Fome íntima de romance,
Ânsia da viagem que apraz,
De audácias que nem se alcance.
É um desejo de aventura
Como o gosto de assistir
À anedota que se apura
No gozo de divertir.
A vontade de ficção
É pôr asas e voar
Para além deste meu chão
Rumo a um sonho onde habitar.
145 – Uso
Qualquer uso da palavra
Tem para nós importância.
É charrua que nos lavra,
Motor de forte impedância,
Cria em nós o movimento,
O processo evolutivo,
É energia, força ao vento,
Como um combustível vivo,
Ignição das atitudes,
Base da física força.
A virtude das virtudes
Sempre a uma palavra orça.
146 – Simplificar
Cada ser humano pode
Simplificar sempre a vida,
Se a motivar-se ele acode,
Até de vez conseguida
Ter a própria autonomia
No êxito que sonharia.
Este hábito hereditário
De achar que o dia em geral
É difícil, salafrário,
Complicado ou infernal,
Incómodo, trabalhoso,
Insolúvel, perigoso,
E mais jeitos aflitivos
Que acentuam a visão
De pendores negativos,
Faz logo brotar do chão
E como tal ser vividas
Tais vertentes denegridas.
Reconhecer, todavia,
Quanto este funcionamento
Desesperou da magia,
Constrangeu, foi um tormento,
Vai ser entrar na aventura
Da palavra que nos cura:
Da palavra motivada
Nasce uma nova alvorada
Onde a luz que nos fugia
Da palavra bebe o dia.
147 – Degrau
A vida vale demais
E tudo o mais representa
Um degrau nos siderais
Caminhos que o sonho inventa.
A família, o casamento,
Olhados em perspectiva,
Mais não são que este elemento
Da vida a tentar ser viva.
A perspectiva, porém,
Perdemo-la facilmente,
A eternidade intervém
Dos momentos na corrente.
Nos belos dias de sol
Como nos custa cuidar
Que há-de chegar o arrebol
Da invernia a negrejar!
Na escola como na empresa,
Uma vez de hábitos feitas,
Ninguém admite nem preza
Que de vez serão desfeitas.
E então, quando a paixão vem,
Prendê-la da eternidade
Parece o que mais convém,
Sem mais trânsito à verdade.
E, quando o amor acabou,
Feito o sonho em desespero,
Infindável se pintou,
Dentro em mim, um erro mero.
E, todavia, nenhuma,
Destas tais eternidades
Perdurou ao fim, em suma,
Todas elas vacuidades.
Todas desapareceram,
Apenas eu resto intacto
Para os degraus que me geram
No Todo que gero em acto.
148 – Mártir
É mártir o iniciador,
O que jamais é razão
De desistir da missão
Que tiver de se propor.
Viver para um ideal
É aquilo que vale a pena
E morrer por ele acena
De ser homem o fanal.
Então baseia a esperança
Num porvir que lento avança.
A cidade eterna aclama
Dele o nome por quem chama.
149 – Nuvens
Porvir é nuvem batida
Por mil nuvens violentas,
Amor, ódio, sina de ida,
Fantasia, o Deus que atentas…
Maior profeta há-de ser
Palavra de ordem quem der
Mais imprecisa, esfumada,
Do sonho convite à entrada.
150 – Felicidade
Felicidade deveras
É não ter mesmo ambição
E trabalhar com as veras
Dum mouro a ganhar o pão,
Como se, afinal, tivera
Toda a ambição duma era.
Longe é dos homens viver
E sem deles precisar
Mas amar todo e qualquer,
Tal se o mundo fora um lar,
Como se, ao fim, me prendera
A todos como uma hera.
Estar no Natal e após
Ter bebido e bem comido,
Fugir para longe a sós,
Dos laços todos sumido:
Por cima de nós, estrelas,
Aos lados, dunas e velas.
Ver que em nosso coração
A vida realizou
A derradeira função,
O milagre de meu voo:
A vida, em quaisquer estradas,
Tornou-se um conto de fadas.
151 – Arte
Arte é encantamento mágico.
Forças homicidas, cruas,
Se aceitam no ventre trágico
De nossas entranhas nuas,
Funestas pulsões de odiar,
De matar, de destruir,
De humilhar, de desonrar…
Em seu jeito de fluir,
Com a flauta pastoril,
Brota de arte então a aberta:
Logo um novo céu de anil
Desabrocha e nos liberta.
152 – Efémera
Em nossa efémera vida
Deveras há eternidade.
Descobri-la, definida,
É que custa, em soledade.
São as freimas de cotio
Que nos desviam a vista.
Só um escol, em desafio
Trepa ao cume que resista.
O mais é o vulgo ignorante.
Deus deu-lhe a religião
Para poder ir avante
Com algo de eterno à mão.
153 – Muda
A cada instante muda Deus de face.
Feliz aquele que pudera vê-lo
Sob cada máscara com que Ele passe.
Ora é um copo de água fresca,
Ora um filho que o cabelo
Vos prende, em rocambolesca
Aventura nos joelhos,
Uma mulher feiticeira,
Ou meros hábitos velhos,
Como andar do mar à beira…
Pouco a pouco, à minha volta,
Sem nada mudar de forma,
A vida é de sonho envolta,
Terra e céu são um por norma.
154 – Somos
Somos todos mentirosos,
A nós próprios nos mentimos,
O que nos torna animosos.
Temos o ideal dos cimos,
Mundo perfeito, correcto,
Eficaz, limpo dos limos.
Mas depois o que detecto
É que cobrimos o mundo
De lixos até ao tecto.
Só de fadigas me inundo,
Somos vermes de estrumeira
Chafurdando em charco fundo,
Para ter uma lareira,
Um piano em ampla sala,
Um mordomo, um carro à beira,
Uma casa que regala…
E cá vamos divertidos,
A arrastar a nossa mala
A mundos desconhecidos.
E o pé que daqui se abala
Húmus pisa apodrecidos.
155 – Carne
Carne exteriorização
É do espírito somente,
A integral transmutação
Pode ser perfeitamente
Do corpo físico a via.
A não ser que o não queiramos,
Que ao ritmo do dia-a-dia
Escravos nos submetamos,
Que nos imobilizemos,
Estáticos, deslocados
Da vida que aqui vivemos,
Da vontade separados.
Antes morrer que aguentar
Uma vida maquinal
Que apenas seja o lugar
De repetir-me, fatal.
Morrer é com o invisível
Marchar e com alegria
Acolher o incognoscível,
Ter no ignoto parceria.
É uma festa desde então.
Mas automaticamente
Viver como escravo à mão,
Do ignoto sem a semente,
É uma ignomínia e vergonha.
Na morte jamais há disto,
Mecanizada peçonha,
É vida em que não existo.
Fica além de qualquer traço
Da sujeira que não quites
A morte como um espaço
Duma vida sem limites.
156 – Criança
É uma filha do mistério
A criança que nasceu
Ou não foi gerada a sério.
Ignota desceu do céu:
Não vem dum antepassado,
É o desconhecido nado.
157 – Meio
Viver num meio diverso!
Todavia, um mundo novo
Do velho é sempre o reverso,
A desenvolver-se do ovo.
Isolar-se aí então
Não era encontrar aquele
Mas criar uma ilusão,
Mesmo se outrem uno à pele.
E não há uma alternativa,
Seja lá o que for que eu viva.
158 – Penetrar
Cada qual tem um destino,
O que importa é descobri-lo.
Como as palavras: ter tino
É penetrar no sigilo,
Mergulhar até ao fundo.
Um homem fia e desfia,
O diabo tece o mundo,
Até que alguém desconfia…
De repente, aquele nada
E eis que se me abre uma estrada.
159 – Sagrado
Se não há nada sagrado para alguém,
Tudo então logo de novo ali devém
Bem sagrado num sentido mais humano:
A centelha se venera, sem engano,
Que pulsar até na vida da minhoca
E que a obriga alguma vez a vir da toca.
Do maior ao mais pequeno tudo é santo
E fulgura o rosto em tudo dum encanto.
160 – Passa
Nada passa, tudo deixa,
Vestígio dele ao passar.
De meus passos a madeixa,
Por mais que insignificar,
Tem sentidos que inauguro
Desde aqui rumo ao futuro.
161 – Aprender
São a vida ultrapassagens:
Aprender a ser criança
É a primeira das viagens;
E ser jovem quem alcança
Sem novas aprendizagens?
Ser adulto após requer
Ter muito mais que aprender.
Então é viver conselhos,
Aprendemos a ser velhos.
E teremos muita sorte
Se aprendermos bem a morte.
É sempre este salto além
Aquilo que nos convém.
162 – Caminhemos
Voltar atrás ninguém pode,
Caminhemos, pois, em frente.
Não ao sonho: não acode
Nunca ao colo do presente.
Sim ao acto que lhe rume,
Que nisto a vida se assume.
163 – Débil
Nada é tão desesperado
Que algum modo de esperança
Não haja de ter ficado
Que, embora débil, alcança
(Com a vontade e o desejo
Do que o vai levar a cabo)
Saída ao primeiro ensejo,
Parecer que ao fim lhe gabo
Viável quão desejável:
- E a porta se abre, moldável.
164 – Imagino
O que imagino dum bem
Sempre o mesmo bem excede
E então o perco também
Se o alcanço no que mede.
A fortuna, conquistá-la
Não é tanto possuí-la
Como antes é desejá-la
No longe que se perfila.
165 – Ídolos
Os objectos que entretêm
A nossa vaidade e estima
São como ídolos também:
Veneram-se em dado clima
E fora daquele império
Dão lugar ao vitupério,
Em lugar de adoração:
Mármore que aqui daria
De imagem de santo o dom,
Além é lastro de via…
Todos na vaidade a par,
Cada objecto é o que eu sonhar.
166 – Realidade
A realidade é o real,
Mas da extinção gradual
Dos sonhos à morte lenta
Vai só um passo que nos tenta.
O que importa é reagir
E abrir a porta ao porvir.
167 – Procuro
Não voltarei a partir.
Procuro dentro de mim,
Na lembrança a me imiscuir,
A navegar na saudade
Para além de meu confim:
Dentro é que sou de verdade
E serei até ao fim
Sei lá bem que realidade!
168 – Convés
Do convés olho as estrelas
E vejo-me, aos olhos delas,
Uma gota em vasto mar,
E acabo por me assombrar:
Como um minúsculo ponto
De tanto sonho tem conto;
De pensar contraditório
É fiel repositório,
De tantos ódios e amores,
Lágrimas, risos, temores;
Tem coragem e tem medo,
Certeza, dúvida e credo…
- Que tantos mundos se somem
No que faz de mim um homem!
Sou milagre caminheiro,
Num nada o Cosmos inteiro.
169 – Voar
Voar é mau quando nos dá
Uma perspectiva errada
De eventos e gentes que há,
Levando a vista apontada
Às coisas limpas do céu
E não à podre levada
De dejectos com que encheu
A crosta da terra a vida.
Assim é que Deus morreu:
De tão remota a medida
Tirar ao mundo, perdeu
A noção que lhe é devida.
Doravante um Deus de seu
Busca o mundo, sem ferida
Do que um lado só sorveu.
170 – Inventa-os
O homem sem mitos
Não pode viver.
Inventa-os benditos
Para depois ser
Deles sempre escravo
Venerador bravo.
E a contradição,
Sendo insuperável,
É que o mantém são.
É injustificável,
Por irracional.
- Mas é o ideal!
171 – Tendência
É minha tendência erguer
Todo um muro à minha volta,
Tudo, tudo a proteger
Que criei e largo à solta
E com que me sinto bem,
Onde sou eu, mais ninguém
Mas tenho de continuar
A deitar abaixo o muro.
Tenho de me comandar:
“Vamos largar o seguro
Por sítios que não conheço,
Por onde acaso tropeço!”
Esperamos ser capazes,
Se o somos sempre, não sei.
Tentamos, porém, tenazes,
É a postura que faz lei.
E assim é que prosseguimos
Rumo sempre a outros cimos.
172 – Emigração
A emigração é um motor
Da marcha da humanidade.
É uma sorte haver um ror
De gente que se persuade
A ser ponte cultural
Entre povos, continentes…
O futuro mundial
É a mistura das sementes.
De nova síntese a leira
É sempre nova fronteira.
Logo que ela é conseguida
Novo é o mundo, nova, a vida.
173 – Noutra
Noutra espécie não seria
Incentivo denodado,
Mas eu vivo atormentado
Pela apetência sem dia
Pelo remoto e trancado.
Ah, como eu adoraria
Navegar no mar vedado,
Desembarcar na magia
Das terras do outro lado,
Em meio à selvajaria,
Como um facho levantado!
174 – Fé
A fé, tal como um chacal,
Dos túmulos se alimenta
Mas colhe o melhor fanal
Da esperança do que tenta,
Não dum acaso da sorte,
Mas da incerteza da morte.
Abrindo uma porta Além
Dá rumo à vida que tem.
175 – Dificuldade
Para a Deus obedecer
Quantas vezes nós teremos
De a nós desobedecer!
Na desobediência a haver
A dificuldade vemos
A Deus em obedecer.
Isto de trepar aos céus,
Só rasgando os braços meus!
176 – Engalana
Por detrás de cada pena
Há uma festa garantida
E quão mais aquela é plena
Mais esta engalana a vida,
Quão maior é o mastro grande
Mais profunda rompe a quilha.
A alegria é quem comande
Quem se impõe tudo o que brilha,
Inabalável, oposto
Dos falsos deuses ao rosto.
A felicidade é a festa
Vislumbrada além da fresta.
177 – Perigosa
A perigosa viagem,
Mal finda, vem outra logo
E outra se atrela à engrenagem,
Cadeia sem desafogo.
É no que consiste, é nisto,
Em desfraldar sempre o pano,
Nosso imenso esforço humano:
- É nisto que, enfim, consisto.
178 – Menciona
O que é mais maravilhoso
É o que se menciona menos.
Memória a que mais me entroso
Epitáfio nos terrenos
Jamais terá: não são plenos
Os sinais do que der gozo.
O destino do inefável
É no imo só detectável.
179 – Máscaras
Máscaras de papelão
São os objectos visíveis.
É que em cada ocasião,
Por trás dos factos sensíveis,
Algo há de desconhecido
Mas pejado de razão
Que mostra cara e sentido,
Tudo o que tem escondido
Da máscara atrás do vão.
Se é preciso desvelar,
Desvele-se o que haja além
Do que a máscara ocultar.
Pois como é que o prisioneiro
O exterior que o tem refém
Vai conseguir alcançar
Sem o derrube primeiro
Do muro que o apertar?
Quem isto não quiser ver
Será o prisioneiro eterno
Do lado de cá do ser,
De vez perde o ser superno.
180 – Mineiro
O mineiro subterrâneo
Que em nós cava, taco a taco,
Como é que aqui, coetâneo,
Vai poder adivinhar
Onde é que acaba o buraco,
Em que tempo, em que lugar,
Se muda constantemente
De direcção, de sentido,
E se ele escava de ouvido
Com picareta silente,
Sem que nunca seu ruído
Ouça um ouvido de gente?
Quem se não sente atraído,
Quem não sente, quem não sente,
Pela força incontrolável
Que há num sonho inadiável?
Canoa que é rebocada
Como se pode manter
À beira dum cais qualquer
De vez imóvel, parada?
181 – Sintas
Não te sintas infeliz
Só porque alguns de teus sonhos
Não se realizam, viris.
Apenas os que, tristonhos,
Nunca sonharam, matizes
Reais terão de infelizes.
182 – Cultura
Uma cultura de massa
É uma cultura da imagem
Para a qual a linguagem
É um subtítulo que passa.
É a cultura que receia
O silêncio, a solidão,
Aquilo para que ameia
O abismo negro do chão.
Ninguém desvenda os efeitos
Da destruição geral
Disto que era, radical,
Lavrar dos campos os leitos.
183 – Infindo
Nem mesmo Deus poderia
Criar aqui, contingente,
A instituição que abrangia
O infindo infinitamente.
Nossos esquemas estreitos
Não poderiam conter,
A pobre invólucro afeitos,
O infinito de Deus ser.
Eis porque a religião
Não pode guarda de Deus
Armar-se em nenhum portão:
Não há quem abarque os céus.
Não pode trancá-lo à chave
Do tabernáculo à porta
E distribuí-Lo ao conclave
Quando ou onde o gosto exorta.
O Absoluto nunca pode
Privar-se de se mostrar
A quenquer a quem acode,
Onde e quando lhe agradar.
E nunca respeita fés,
Religiões nem sagrados,
Transgride nos próprios pés
As fronteiras e os reinados.
184 – Sistema
A fé nunca deveria
Devir sistema fechado,
De ideias contra vazia,
Mas livro aberto, arejado,
Intimamente abordado
Por quenquer que o quereria,
Nada escondendo de lado.
Deus a ninguém cometeu
Delimitar qual a via
Por que outrem aborde o céu.
E a ninguém armou soldado
Para ocupar qualquer posto
Donde lhe defenda o rosto.
Deus nunca requer ser salvo.
O homem, sim, de tiro um alvo,
Logo do exército do eterno
Que em vida lhe impõe o inferno.
185 – Assumir
O vero conhecimento
Nunca vive de abstracções,
Aquele tipo de evento
Que na escola dá lições.
Acerca da consciência
Em nós próprios é que incide,
O que leva em consequência
A ser quem a si preside,
A responsabilidade
A assumir da própria vida.
É um crescimento de idade
Que a crescer tudo convida.
186 – Julgo
Se julgo que quererei
Algo que eu nem sequer sei,
Ou se julgo que preciso
De algo que nem terá siso,
Só preciso de lembrar
Que já completo hei-de estar,
Que à imagem e semelhança
De Deus meu ser se me entrança.
Cada vez que olho no espelho
E confirmo ser o artelho
De matéria que é divina,
Minha abraço inteira a sina:
Venço o desejo em verdade,
Abraço a totalidade.
187 – Predestinado
Encontro-me na viagem,
Viagem de autodescoberta,
Predestinado à triagem
A aventuras mil aberta,
A fazer novos amigos
Sempre ao longo do caminho,
A aprender que nos postigos,
Por onde espreito do ninho
A julgar que algo me falta,
Desato da corda os nós:
O que falta tenho-o em alta,
Mora aqui dentro de nós.
188 – Éden
O éden primevo em mim pinto,
Partilhando um sentimento
De alienação, por instinto.
Sou este estranho elemento
Que, mal se distrai, se apanha
A viver em terra estranha.
Aqui não estou em casa
E procuro uma resposta.
Mas invento a que me abrasa
E assim mato em breve a aposta:
Numa Igreja ou num Estado
Mais que nunca eis-me alienado.
- Como então vou regressar,
Onde está meu vero lar?
189 – Centelha
A condição de caídos
É de nós andarmos cegos
À centelha que sentidos,
Divina, nos luz nos pegos.
Existe cá dentro, esquiva,
Devia ser chama viva.
E, depois, nossos amigos
Vivem tão desamparados
Como nós, sem mais abrigos.
Ser querendo iluminados,
Buscamos o mensageiro
Que tudo conserte inteiro.
Poderá ser um guru,
Sábio, clérigo ou rabino,
Um Jesus ou um tabu,
Maomé com fé no destino…
- E ao fim tudo revelar
Se há-de ídolo a ultrapassar.
190 – Reino
O reino dos céus não é
Uma esperança remota
Só no futuro de pé,
A brandura a vir que embota
Qualquer dureza diária,
Mas uma realidade
Daqui, do tempo presente,
De quem descobre, em verdade,
Doravante, o que é evidente:
A natureza primária
A que toda a vida inclina:
- A sua matriz divina.
191 – Transportadores
Somos todos portadores,
Transportadores de luz.
Somos o inverso das dores
Que a religião traduz
No desgraçado patético
Do dogma dela profético.
Cada indivíduo detém
O poder de transformar
Noite em dia, sempre além.
Mas não há sendeiro a par,
Colectivo, a percorrer:
Toda a jornada que houver
Será sempre singular
Naquele que iluminar.
192 – Chego
Nunca estou perdendo nada.
Apenas chego ao destino
Quando perceber na estrada
A verdade com que atino,
Que é um factor universal:
Nenhum de nós o fanal
Precisa de procurar
Além do que em si tiver:
A coragem singular,
Toda a força do dever,
Aurora de inteligência
A perseguir a evidência,
Como um outro qualquer fito
Que muito deseje ter.
O que procuro e concito
Já existe dentro em quenquer.
Preciso, ao romper-lhe o selo,
Só, só de reconhecê-lo.
193 – Inimigo
O inimigo inveterado
Se, ao contrário, fora olhado
Como portador de luz,
Um transmissor que traduz
Verdade complementar,
Em que é que se ia mudar?
Árabes, israelitas,
Católicos, protestantes,
Cristãos ou ismaelitas,
Todos os doutrem distantes,
Se logram reconhecer
Que somos só caminhantes
Inadaptados ao ser
E, contudo, irmãos constantes
De Jesus, Buda, Maomé
Nos caminhos hesitantes
Da iluminação com fé,
Talvez os sonhos distantes,
Utopias mais incríveis
Não sejam tão impossíveis.
194 – Sugerem
Muitos sugerem que Deus
Não é realmente nada,
Que dos fundamentos seus
O que se diz, à chegada,
É que nada é material,
Não é coisa do real.
Em certo sentido, aliás,
Nem sequer posso dizer
Que Deus existe-por-trás,
Que existir sempre requer
Uma essência material
Que nele não dá sinal.
Deus se encontra para além
Das palavras, dos conceitos,
É o Ser Eterno, é o Alguém,
Do Mundo do Ser os leitos
Que são os do Nada Eterno,
O Além onde me prosterno,
Sempre fora das fronteiras
Do espaço e do tempo inteiras.
Deus em mim é uma ilusão
Do que há neste Eterno Não.
195 – Conflito
O verdadeiro problema
Que a qualquer conflito humano
Subjaz não provém do lema
De eu gostar demais do engano
De mim próprio, sendo egoísta,
De a mim só só ter em vista,
Mas antes, pelo contrário,
De não gostar o bastante
De mim entre o mundo vário.
Não creio determinante
Que o Adão em mim criado
O seja de anjo fadado
E menos para ser rei
Pleno de sabedoria.
Ora, só se vejo e sei
Deus em mim mesmo algum dia
É que noutrem logro ver
Deus a aflorar, Deus a ser.
196 – Crer
Posso andar atormentado,
Duvidar de crer em Deus,
Mas Deus tem acreditado
Em nós, crentes ou incréus.
Se conseguir afastar
As teias de aranha em mente
E aquele céu vislumbrar
Bem aberto à minha frente,
Percebo o potencial
Quão em mim é ilimitado
E os poderes sem igual
Múltiplos que me hão dotado.
Sempre nós temos opções,
Basta reparar na fonte.
O passo para os fundões,
Até lá montando a ponte,
É que o foco de atenção
Deixe que o sopro do eterno
No nosso corpo, no chão,
Se infunda em seu gesto terno.
197 – Todo
Entendo que farei parte
Dum todo, a fonte divina.
Só quando o esqueço, destarte
O negativismo é sina:
Da realidade maior
Se me corto, então farei
O que impróprio de Deus for
E de mim nunca mais sei.
198 – Controlar
Se conheço a divindade
Que existe dentro de nós,
Não preciso outra entidade
De controlar, nem feroz,
Nem a dominar alguém:
O que sou é que convém.
É que ser é não ter ego:
Sou a presença divina
Num planeta que anda cego,
Na terra que a luz fascina.
Tal como todos os mais,
Só valho por tais sinais.
199 – Amadurarmos
Intenções e pensamentos,
Como as acções negativas,
Mudar posso nos intentos
Para curar as esquivas
Mazelas que há no planeta.
Pequenos, nós deuses somos,
Em realidade concreta,
A amadurarmos os pomos.
Podemos direccionar
O poder divino em nós
Rumo ao bem que houver a amar
(Compaixão pelos avós,
Misericórdia por todos…)
Ou então na direcção
De destruirmos os bodos,
A todos tolhendo o pão.
A escolha é nossa, portanto.
Não poderemos matar
Do mal o enganoso encanto,
Sempre a lá nos inclinar,
Mas posso canalizá-lo.
Nisto consiste crescer:
A palavra causa abalo,
Sopro que força há-de ter;
O pensamento intangível
É matéria bem pesada;
A esperança futurível,
Os sonhos em revoada
São tangíveis entidades
Que sempre se concretizam
Se unirmos nossas vontades,
Mundo que os deuses balizam.
200 – Errado
Que há de errado na magia?
No mundo do ser, a vida
É muito mais do que a via
Dos olhos a ter medida.
Há forças misteriosas
A atravessarem o mundo,
Discretas, tão saborosas
Que é delas que me circundo.
Posso até mesmo aprender
Tais forças a controlar,
Tais forças a vir a ser,
A ser outro e outro lugar.
201 – Ajuda
Só com a ajuda dum arcanjo
Somos capazes de obrigar
Qualquer demónio, mentido anjo,
A obedecer a um sonho a andar.
É o que acontece no exercício
De nossos dons particulares:
Para colhermos benefício,
Tudo terá, nos patamares,
De submeter-se, com fervor,
Sempre a um poder superior.
De ancorar-me mais além
É que aqui deus sou eu também.
202 – Poder
Descobrir o poder que existe em nós
É um maravilhamento inenarrável.
Juntamente, porém, temos a sós
De aprender a viver numa inefável
Dependência perene da presença
Dum além que é divino e que é mais fundo
Do que este agora-aqui que não convença.
Senão, do mal as forças que há no mundo,
Embora as controlemos, recusar-se
Irão a nos servir, serão disfarce.
203 – Conhecemos
Sempre atado ando ao perigo
Por inquebráveis cipós.
Conhecemos o inimigo:
O inimigo somos nós!
Nosso próprio Satanás
Somos nós, com os receios,
Dúvidas que para trás
Recuam caminhos meios.
Quando sou atormentado
Da dúvida do que sou,
Do poder que houver herdado,
Ao inimigo é que vou
Permitir que abra uma brecha
Em minha frágil defesa.
Permito que se erga a flecha
Dum pagão templo em devesa
Que é mesmo na porta ao lado,
Cá na minha vizinhança.
O derrotismo é ocupado
Por pagão deus que me alcança,
Idólatra que desvia
Minha atenção da Presença
Divina que em mim vivia,
Que importa que me convença.
204 – Ameaça
Quando a auto-compaixão
Nos ameaça consumir,
Quando pisamos o chão
Limiar do desespero,
Então,
Compaixão que me sorrir,
Algum cuidado sincero,
O acto de quenquer por mim
Me ajuda a recuperar
Toda a minha perspectiva.
Enfim,
A mim quando alguém amar,
Se apercebo a flama viva,
Logo há toda a diferença:
Do mundo inverto a sentença.
Aí desato a sentir
Todo o apelo do porvir.
205 – Fogo
Não é nenhum inimigo
Que deita fogo à cidade,
São os anjos o perigo,
De Deus cumprindo a vontade.
Fachos de lamentação
São acesos por agentes,
Numa escondida lição
Divina a aflorar as mentes.
É muito reconfortante
Aperceber-me da perda,
Quando a tragédia é gritante,
Como um plano que alguém herda,
A parte dum objectivo
Que não logro vislumbrar.
Nosso carácter ao vivo
É forjado em dor, a par,
Ao grito do sofrimento.
Frágil é o laço da vida,
Morte, o universal momento,
A irrefragável saída.
Destinados a perder
Estamos os mais chegados,
Mas a essência de viver
Fica entregue aos recém-nados,
Marca da posteridade,
Viva em memórias sagradas
Dos nascidos em idades
Depois de nós germinadas.
206 – Dádiva
Grande arte, a de respirar,
Pois, tal como a própria vida,
É dádiva, mais que de ar,
Vinda de cima à medida!
A morte deve ser vista,
Não tal como um véu sombrio
Que nos amortalha e entrista,
Mas como algo em que confio,
Último beijo de Deus,
Momento em que haustos de vida
São retomados dos céus
Por Aquele que convida
Aqui de empréstimo a tê-los.
O processo de morrer
A sós não é, que ata os elos:
Deixa para trás qualquer
Familiar ainda vivo,
E nos junta intimamente
Ao familiar esquivo
Que foi vida precedente.
207 – Problema
Não, problema irremediável
Não há no mundo nenhum.
Faz é falta o actor fiável
Em cena de palco algum,
Os que sabem quando agir,
Quando devem aguardar,
Quando devem, a seguir,
Com o Cosmos alinhar:
Respiração do Infinito
Aqui num ponto pequeno,
Cujo grito é dele o grito,
- Num nada o Infinito em pleno.
208 – Eficaz
A mais eficaz acção,
Quando nós dúvidas temos,
É simplesmente a inacção:
Agir nunca deveremos.
Em vez de gesticular,
Brandir o punho canhestro
Contra o mundo singular,
Deste Universo o mau sestro,
Deverei mesmo parar,
Retirar-me, clandestino,
A energia a preservar,
E aguardar, com todo o tino,
O momento, hora oportuna,
Quando for altura certa.
E, quando a onda se enfuna,
Aproveito então a oferta:
A onda do mar da vida
É que a actuar me convida.
209 – Cânone
Por que motivo exigir
De algum cânone a existência
Para uma Bíblia erigir
Ou do Alcorão a eminência?
E por que não permitir
Que os livros livres circulem,
Cada mente a decidir
Quais os textos que a cumulem,
Que é que mais fundo interpela,
Que mensagem dirigida
Lhe parece uma janela
Para a sua própria vida?
Os textos, no fim de contas,
São palavras em papel,
Pergaminho gasto às pontas,
Papiro atado a cordel.
Não é Deus maior que um livro?
Não há livro algum jamais,
(E das gangas não me livro!)
Que a Deus defina em sinais.
E, mesmo os livros que estão
Pejados de falhas, podem,
Mesmo assim, ter um torrão
De verdades que sacodem,
Profundas, espirituais,
Quaisquer sensibilidades,
Com marcas individuais.
Então, como os mais são grades
Que nos manterão de pé
Como catedrais da fé.
210 – Emoção
Se alguém não se desenvolve
De algum modo em plenitude,
E se a aprender não se envolve
Com a emoção com que mude,
Então a sombra devém
Dele próprio, a truncada
Pequena versão também
Duma mente alienada.
É só de tempo questão
E de cartas o castelo
Se esbarrondará no chão,
À máscara apondo o selo.
211 – Maioria
A maioria que entende
Do lado comum, diário,
Previsível, que se rende,
Dum homem extraordinário?
Mesmo para a mente aberta,
Quanto ao fora do comum
Nada é simples, na encoberta
Imagem de dote algum:
Não vêem que houve o ditado,
Que ficaram de castigo
Por tarde terem voltado,
Ou que querem o ombro amigo
Para um qualquer desabafo…
Da terra o jogam aos céus,
Retiram-lhe o humano bafo,
Desincarnando-o num deus.
212 – Discernir
A solidão de nós quer
Que nela nos debrucemos
Para discernir qualquer
Dom positivo que houver
Dentro dela, onde o colhemos.
Há sempre muitas pessoas
Aptas a viver sozinhas
Sem que sós fiquem. E boas
São as vivências, as loas
Que entoam não são maninhas.
Há uma aceitação serena,
Uma escolha porventura,
Da forma de vida plena
Que lá por dentro se encena,
Que na solidão se apura.
É que estar só nos permite
Apalpar o que deveras
Sentido à vida concite.
É o mais profundo convite
Para além irmos das eras.
213 – Nadas
De nadas encadeados
Pequenos a vida é feita,
Cuja sequência de prados,
Muitas vezes, se se espreita,
Nos escapa dos cuidados.
Se que me possa escapar
Eu não aceito algum dia,
Levado sou a forçar,
Consciente ou não a via
Seja em que tal operar.
Ou tudo é uma maravilha
Ou então é uma desgraça,
Ou como o sonhámos brilha
O sonho ou então não passa,
Desato-o da minha cilha.
O mundo ou nos aprecia
Ou já não somos ninguém.
E, de repente, a magia
No abismo se afunda além,
Sem mais perspectiva ou via.
214 – Detrás
Ante a predisposição
Ou por detrás de feitios,
Uns que optimistas serão,
De pessimismo outros rios,
Algo de mais importante
Pode andar nada gritante:
Pode alguém gostar ou não
De si próprio, lá no fundo.
Aceitar-se em seu torrão,
Dar-se o direito fecundo
De não ser homem perfeito,
A poder falhar atreito,
E de não corresponder
Doutrem às expectativas,
Aos desejos de quenquer,
Elimina arestas vivas,
É não se recriminar
Nem se até preocupar
Em saber o que outrem pensa
Sobre si mesmo algum dia.
É o que liberta da prensa
Que no peito me asfixia.
É abrir um rumo ao porvir
Deixando a vida fluir.
215 – Colar
Somos a pequena conta
Num colar de biliões delas
Que a vida, de ponta a ponta,
Enfeitam como de estrelas
Pejadas de luz doirada
De partilha, de entreajuda,
Solidariedade atada,
Corrente de luz que acuda
Nas horas de sofrimento:
Cada qual entra em contacto
Com as mais, cada momento,
Para ultrapassar tal facto.
Aceitar serenamente
O inevitável da vida
A calma logo consente
Como a energia que lida
Com o que era incontrolável.
Isto logo nos ajuda
A lidar de modo fiável
Com tudo, o que tudo muda.
216 – Fio
Vivemos o dia-a-dia
Em momentos dividido
De agrado e de desagrado,
Sem ver o fio que fia
A teia cujo tecido
Os liga ao tear armado.
Este fio condutor
Permite o distanciamento
Ante o que vamos obtendo:
Noção do pouco valor
Que tem um qualquer momento,
Se em absoluto o vou lendo.
E, todavia, na altura
Em que a vivê-lo estiver,
Sempre o momento aparece
Revestido da figura
Da eternidade a viver,
- E a seguir logo me esquece!
217 – Deixar
Deixar a vida fluir
Não é ficar por sistema
À espera que alguém resolva
O problema que surgir.
Só que às vezes o problema,
Pelo peso que ele envolva,
É tal que, ao cair em cima,
Obriga-nos a entregar
As armas todas de vez.
O que nos pede tal clima
Difícil de suportar
É que, embora ao entremez
O porquê não se lhe entenda,
Nós mesmo assim o aceitemos,
É o acolhimento apenas.
Se, no gesto em que me renda,
Creio que, além do que temos,
Quando é preciso a tais penas,
Há uma força além da nossa
E que nossa então devém,
Consigo então continuar
A olhar para além da fossa,
Com um sorriso também
E um coração a abrigar
A vida com alegria:
O inexplicável é a via.
218 – Convite
Algo em nós nos continua
Com o convite de olhar
Além do que os olhos vêem,
Ouvir para além da rua
Que os ouvidos vão sondar,
A cheirar o que nos lêem
Os perfumes que há na flor,
De que são mera expressão,
A descobrir que há uma fome
Mais do que a física for,
Palpar da vida o tendão
Sem garra exigir que a tome…
Este algo que nos habita,
Que é profundamente nosso,
Não nos pertence de vez.
Não é nosso o que concita,
Que irrompe do fundo poço
Que sou eu dentro; ao invés,
É o que menos esperamos
Quando nem planeamos nada,
Nem controlamos sequer.
Não vem porque o desejamos,
Da simplicidade amada
Virá com que o acolher,
Ganhando então a visível
Forma que for conferível.
219 – Acolher
Ao acolher o maior,
Ultrapasso então os pólos
Opostos de qualquer um
Dos eixos que dão teor
À tensão da vida, aos rolos
Que enfeixam em dado algum.
Aí é que compreendemos
O que é manter-me então pleno
Em tranquilidade inteira,
Sejam guerras que tememos,
Violências que há no terreno
Ou qualquer dor que se abeira.
220 – Presente
Viver no presente é o modo
De não ficar embrulhado
Em tudo o que, no passado,
Nos magoou, feriu de todo,
Ou então nos meteu medo.
E de não me angustiar
Com tudo o que, tarde ou cedo,
Nos pode vir a tocar
Nas incógnitas que apuro
Que serão sempre o futuro.
221 – Atitude
Uma atitude interior
De fé não é teimosia.
O muro que irei transpor
Não é de um poder supor
Que usarei por qualquer via,
Mas de crer numa maior
Força que a minha, capaz
De quanto ousar se me opor
Remover muito melhor
Do que eu, quando tal lhe apraz.
Será quando lhe aprouver,
E, mais, se for caso disso.
É o que distingue qualquer
Saudável crença que houver
Da teimosia sem viço,
Da insistência exagerada:
Se esta eficaz se revela,
Riscos a correr na estrada
Fará correr e avultada
É a multa a pagar por ela.
Trata-se é de convidar
A nos ajudar a vida:
É lhe confidenciar
Que, por nela acreditar,
No amor que em nós faz que incida,
Confiamos nesta ajuda.
Como a chamar-lhe a atenção
Para uma sonhada muda
Que, antes que nos desiluda,
Lhe colocamos à mão.
222 – Recebemos
Sobre outrem expectativas
Ter ou de alguém esperar
Não é o mesmo que as esquivas
Formas da esperança vivas,
Mas o inverso a pulular.
Recebemos tanto mais
Quanto mais nos limitamos
A acolher quanto os demais
Têm a dar dos bornais,
De momento, a servos e amos,
Sem mais nada lhes pedir,
Sem exigências quaisquer,
Sem pressionar o porvir.
Tal é o ver certo em que os vir:
- Respeito da vida a ser.
223 – Espírito
O espírito dá sentido
À matéria que permite
Chegar, a quem o concite,
Ao espírito escondido,
Integrá-lo em nossa vida,
O contexto necessário
A que o aperceba, vário,
Todo a mostrar-se em seguida.
224 – Movimento
Movimento sem tensão
Não cansa: daí que quem
Viver nesta situação,
Vive o constante vaivém
Duma criatividade
Que tudo e todos invade.
Pode então devir, no intento,
Consciência sem esforço
Do infinito movimento
Da vida em qualquer escorço.
E, quão mais humilde for,
Maior da vida o fulgor.
225 – Sofrimento
O sofrimento liberta
De antiga acumulação
De má vida, aqui desperta
A requerer seu quinhão.
É uma dívida pagar
Que, embora não agradável,
A sentir-me vai levar
Mais leve e de vez fiável.
Não é, pois, no todo dele,
Só mal com que me arrepele.
No fim tudo concilia,
Vida e morte: uma só via!
226 – Negativas
Não ser jamais afectado
Por inimigos, doenças,
Por negativas sentenças,
Não significa, no fado,
Que se hajam eliminado
De vez de nossas mantenças.
Apenas que os impedimos
De se tornarem entraves
Ao programa rumo aos cimos
Onde livres somos aves,
À custa de tais arrimos:
Como plintos nos servimos
Deles, escapando às caves
Onde antes presos nos vimos.
227 – Esquecemo-lo
Mal temos conhecimento
De que tudo é o Universo.
Se o tivemos um momento,
Esquecemo-lo. O reverso
É que cegamos ao vento.
Se tudo no Todo vejo,
Qualquer coisa então que exista,
Grande ou pequena, no ensejo
Com tudo enlaça na lista,
Nunca fica só no brejo.
E a tudo o que nos rodeia
Do Todo o valor o alteia.
228 – Resiste
Se a mente resiste à vida,
Do que brota se defende,
Há uma divisão erguida
Um atrito que nos prende,
Uma contrariedade
Que, por sua vez, provoca
Uma reactividade,
Uma irritação na loca.
Ao querer interpretar
Qualquer acontecimento,
Tentá-lo identificar,
Conhecer-lhe o tegumento,
Avaliá-lo, preciso,
Um rótulo lhe prender,
Deixamos de ter aviso
Da vida que acontecer,
Como é na totalidade,
Não somos dela tocados:
- Não permito que a verdade
Responda em todos os lados.
229 – Alto
Para mais alto subir
Qualquer árvore terei
A raiz que ela emitir
De fortalecer, por lei.
Então mergulho mais fundo,
Irei mais terra absorver,
Da sujidade me inundo
- É o que permite crescer.
Toda a parte dolorosa
Mais eventualmente obscura
Que por mim dentro me entrosa:
É o limite o que me apura.
230 – Presença
Na vivida experiência do vazio
A superior presença se revela
Que o coração me habita sem fastio,
Transpessoal vivência duma estrela.
Quando a consciência do eu volta a seguir,
Em mim integra então estes estados,
Por eles transformada, num devir
Enriquecido deles, doutros dados.
É que então me apercebo do sentido,
Envolvente calor, do universal
Que existe para lá, descomedido,
Do asfixiante estertor do individual.
231 – Imagens
Imagens há, conjunturas,
Gente que nos faz sonhar
Pelo encantamento, puras,
Que ao dia-a-dia vão dar.
E depois ainda nos levam
A crer em mil impossíveis,
A que em nós logo se atrevam
Intuições elegíveis,
Criatividade, confiança
Na vida que se desdobra.
Logo mais capaz se alcança
Qualquer fito em qualquer obra.
232 – Caminho
Todos nós temos um caminho a percorrer.
Só à medida que avançar com os meus pés,
A carregar com os meus fardos, irei ver
Que ele se vai delinear de lés a lés.
Há, porém, quem o recuse,
Que sinta que andar em frente
É difícil e que abuse,
Com direito, de repente,
De descarregar em cima
De alguém que assim desanima,
De pedir satisfações
À vida, em letal querela,
Zangando-se dos senões,
Cortando laços com ela.
No discorrer do tal caminho há para todos
A boa estrela que acompanha, luz polar.
Mas só deveras a verá quem, sobre os lodos,
Nela acredita, quem propugna que ela a olhar
Por ele algures se mantém, mesmo se então
À vista dele não lha mostra a solidão.
É que de testes há períodos, deserto
E solidões, até que tudo fique perto.
233 – Ultrapassar
Sempre o sonho nos ajuda
A ultrapassar o real.
Só quando o sonho me iluda
Deixa de útil ser, leal,
Pois, em vez de me dar força
Para o confronto com ele,
À evasão que mo distorça
Me leva que me atropele,
A iludir-me, finalmente,
Acerca da realidade.
Senão, o que tenho em mente
É o infindo que me invade.
234 – Aparecer-nos
Qualquer que seja a nossa idade,
A aparecer-nos o futuro
Vai continuar tal livro em branco.
Mesmo uma página persuade,
Quando final, se tal apuro,
A que a preencha no meu banco.
Para o futuro garantir
Que continue nesta estrada,
Nunca podemos permitir
Ao sonho ser voz sufocada.
235 – Levo
Para onde quer que vá,
Quaisquer que sejam os ventos
Da vida que ocorrerá,
Levo do sonho alimentos
Comigo para acolá.
E o mundo logo será
Mais bonito nos eventos.
A luz do sol para as flores
É o que o sonho é para a vida,
Enriquece-a de mil cores,
Muda-lhe o ser em seguida.
236 – Aproveitar-lhe
Não se perde nem se ganha
O tempo, somente passa.
Só nos convida, na apanha,
A aproveitar-lhe da graça,
Não para coisas gizar,
Mas antes para o gozar,
O respirar, o viver…
Só através desta vivência
Atenciosa de quenquer,
Empenhada sem violência,
Iremos todos podendo
Ver-nos crescendo, crescendo…
237 – Admitir
Admitir não ser capaz
De fazer tudo o que quero
No espaço-tempo fugaz
Obriga-me a aceitar, vero,
Que não sou dono e senhor
Daquilo que possuir,
Nem da vida e seu teor,
Sou limite a me sumir.
E que aprender a viver
Implica ir aceitando,
Tranquilo, o que não tiver,
Tudo o que não for logrando,
O que perco dia a dia…
Inteiro serei só quando
Encho a vida, de vazia,
No além que for desvelando.
238 – Encantamento
O sonho é que nos permite
O encantamento preciso
Para sentir no limite
Que a vida eterna é que viso.
Que há sempre algo que fazer,
Ver, aprender, adiante,
Algo a descobrir e a ser
Que, puxando-nos avante,
Para lá de nós, nos torna
Maiores, mostra o caminho
De percorrermos à jorna
E que, entretanto, adivinho,
Mesmo todo percorrido,
Que não acabou ainda.
Mantendo isto no sentido,
A vida além é benvinda.
Os que sonharam com dia
Muita coisa, ante a sonoite,
Conhecem que escaparia
A quem só sonhar com noite.
239 – Empresta
Tem o sonho a fluidez
Que me empresta a sensação
De que há uma força maior
Do que eu no mesmo entremez
Que o semeará pelo chão,
Tornando-o real, se for
Importante no alargar
De horizontes de sonhar
Ou que, no caso contrário,
O dissipará, sumário.
Chegamos ou não chegamos?
O importante é que nós vamos.
Esta vida é uma viagem
Que não acaba, indolente,
Mesmo ao chegar, na triagem,
Ao fim aparentemente.
240 – Simplifica
O que simplifica a vida
Por nós próprios é o que usamos,
O que nos diz que a subida
É que o dia nós vivamos
Todo inteiro plenamente.
É acreditar que é viável
O sonho mais envolvente
Devir real inefável.
De nós pende o que se alcança,
Duma atitude interior:
Quando ela for de esperança,
A confiança há-de-se impor.