TERCEIRO TROVÁRIO
NORMATIVO LOGO APÓS SE HÁ-DE TORNAR
Escolha ao acaso um número entre 241 e 380, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
241 – Normativo logo após se há-de tornar
Normativo logo após se há-de tornar
O poema regular, se de alheado
Não se pretende apodar
Ante a vida que o crismar
Sagrado.
São regras de bem viver,
De bem conviver, de estar,
As atitudes a ter
Como um íman a inspirar.
Mapa traçado dos dias
Com o roteiro lá inscrito
Das ilhas das especiarias
Que ancestralmente concito
Na trilha que rumar ao Infinito.
242 – Estacionamento
Se em noite de temporal
Vais a conduzir sozinho
E cruzas, ocasional,
O estacionamento vizinho
Dos transportes colectivos
Onde três pessoas vês:
A despedir-se dos vivos
Uma anciã sem mercês;
De longa data um amigo
Que outrora salvou-te a vida;
E a pessoa a cujo abrigo
O amor ideal te convida,
- Se um só podes abrigar
A quem é que abrigarias?
A velhota a se finar,
O amigo de comuns vias?
Podes não mais encontrar
A criatura de sonho…
O melhor, neste lugar,
É se tudo assim disponho:
Ao amigo empresto o carro
Que a anciã põe no hospital,
E eu aguardo o autocarro
De amor com o ente ideal.
243 – Repetir
Como é sempre caminhando
Que o caminho se revela
Por dentro ou por fora, é quando
Solto ao vento minha vela,
Se repetir o bastante
O meu gesto motivado
Por atitude fundante,
Por princípio radicado,
É quando a me transformar
Acabo então por me ver,
Bem além do que sonhar,
Pelo que a sério fizer.
244 – Orgulho
De orgulho o pior defeito
É impedir de aperfeiçoar
Quem se lhe moldar ao jeito.
“Já sei tudo!” – vai pensar
E nunca aprende mais nada.
O pior para quenquer,
Da vida em toda a jornada,
É de orgulho entorpecer.
Por mais ruas que haja em branco,
Sempre as vai arrastar manco.
245 – Eleve
Tudo tem o seu limite
E, se queremos ser ricos,
Talvez qualquer bom palpite
Eleve o dinheiro aos picos,
Mas, mais dia menos dia,
A conjuntura impedir
Há-de qualquer demasia
E a frustração há-de vir.
Ora, em vez de suportar
A fronteira do exterior,
Mais nos vale a nós fixar
A que se ali tem de impor.
Deveremos reduzir
Nossos desejos prementes
E aprender, para o porvir,
A ficar de vez contentes.
246 – Causas
Quanto mais fizer sofrer
Mais as causas acumulo
De a mim próprio me doer.
Como a sociedade anulo,
Prejudicando-a destarte,
A mim próprio duplamente
Prejudico e ponho aparte
A sofrer infindamente.
247 – Perdermos
Se perdermos os instantes
Desta vida a fazer mal,
De nada agora nem antes
Serviu a vida, afinal.
Toda a gente tem direito,
Direito à felicidade,
Nunca, porém, de tal jeito
Que a doutrem com tal degrade.
Em caso algum duma vida
A finalidade pode
Ser noutra causar ferida,
Seja quem for quem acode.
248 – Ajudar
Outrem ajudar, ser bom
E moderar os desejos,
Satisfazer-se do dom
Que haja em todos os ensejos
Não é da religião,
Meio de agradar a Deus,
Vida eterna ter à mão,
- É de crentes e de ateus.
Quem quer paz interior
Há-de tais virtudes tê-las,
Não pode outro agir propor,
Não pode viver sem elas.
249 – Tendência
A tendência integrativa
Em nós é tão requerida
Quanto a auto-afirmativa,
Para a relação vivida
Com os outros e o ambiente
Ser de harmonia semente.
Auto-afirmação demais
É poder, dominação,
É controlo sobre os mais
Pela força que haja à mão.
Hoje é o padrão que domina
Nos povos que assim destina.
O político-económico
É da classe dominante
O poder trágico-cómico
De descriminar, impante,
Por orientações racistas,
Locais, regionais, sexistas…
A violação deveio
A metáfora fulcral
Duma cultura ante o meio:
Viola a mulher, por igual,
Quem pode (e é minoritário)
E da terra o santuário.
Ciência e tecnologia
Têm a crença secular
De que a terra só veria
Quem a terra dominar.
E o modelo mecanista
Só me exacerbou tal pista.
Hoje a técnica é malsã
E linearmente inumana,
Troca a natureza chã
E a complexidade humana
Por qualquer pré-fabricado
Ambiente simplificado.
A meta dela é o controle,
Produção massificada,
Padronização do rol
E gestão centralizada,
Na ilusão de dar recado
Dum crescer ilimitado.
A tendência afirmativa
Continua assim crescendo,
À submissão não há esquiva,
Que não completa, bem vendo,
Qualquer auto-afirmação,
Antes dela é a reversão.
A atitude afirmativa
É dos homens o ideal.
Que a mulher submissa viva
Mas também o pessoal,
O empregado, o executivo,
Cujo eu ficará no arquivo:
Neguem sua identidade
Individual e adoptem
Padrões em conformidade
Com o grupo em que se cotem.
Mesmo em campo educativo
Só vale o competitivo,
Mas também com restrições,
Já que é desencorajado
Ter ideias, são senões,
E questionar é vedado
A escolar autoridade,
Mesmo se não persuade.
Promover comportamento
De perfil competitivo
Em lugar, em detrimento
Do que for cooperativo,
Auto-afirmação à vista
É deste mundo em conquista.
É o erro de conceber
Que em comunidade a vida
É lutar para vencer,
Por que o mais apto progrida.
A economia compete
E o negócio tal repete.
Comportamento agressivo
A vida torna impossível:
Se for único, exclusivo,
O dia fica invivível.
Mesmo o mais ambicioso
Busca um abraço amoroso.
Quer apoio compreensivo,
Contacto humano bem quente,
De espontaneidade o esquivo
Momento que o acalente.
E então se obriga a mulher
Tudo isto a satisfazer.
Secretárias, enfermeiras,
Mães-do-lar, recepcionistas
Dedicam vidas inteiras
Vidas a tornar benquistas,
Confortáveis, de atmosfera
Onde após compete a fera.
Elas alegram patrões,
Fazem-lhes o cafezinho,
Pacificam confusões,
Acolhem qualquer vizinho
E entretêm-no, serenas,
Com as falas mais amenas.
Consultórios e hospitais
Têm o contacto humano
Dado a mulheres que tais
Que a cura encetam sem dano.
Servem chá, bolo às fatias,
Não discutem teorias.
Tudo actos integrativos,
De estatuto inferior
Nestes degenerativos
Vãos sistemas de valor
Comuns ao mundo presente
Que auto-afirmação só sente.
Então quem os desempenha
De miséria só salários
Recebe do que os desdenha.
São roteiros temerários
Que não pagam dons nem bens
A donas de casa ou mães.
250 – Viver
A Humanidade não pode
Viver sem as utopias,
Embora o que sempre acode
Na História, todos os dias,
É que tentar construir
A utopia fatalmente
Leva à violência a seguir,
Ao inferno em toda a frente.
Temos de renunciar
Às utopias mortais
Que são as que irão tentar
Transmudar-se em sociais,
Que ínvio sempre é organizar
Por inteiro a sociedade
Num modelo a idealizar,
Sem a individualidade
Destruir em tal parada.
Vamos gerar utopias
No lugar onde, de entrada,
Têm abertas as vias:
É do indivíduo no reino
Onde toda a diferença
É permitida e tem treino.
Cada qual, de si pertença,
Tem direito a construir
A vida pelos seus gostos,
Por desejos que sentir,
Carências que tenha a postos,
Desde que ele não afecte
Doutrem a soberania
Nem os passos intercepte
Que outrem dê na própria via.
Alguns têm conseguido
Utopias pessoais,
Místicos do além vivido,
Atletas que além vão mais,
Quantos logram perfeição
Em áreas donde dimana
Que as fronteiras outras são
Que as da condição humana.
251 – Preocupadas
Passam a vida preocupadas as pessoas
Com o futuro e passar deixam o importante.
Sempre a cuidar no êxito estão, em ganhar broas
Num ordenado ou num papel que se agigante
Na sociedade, até nas férias que hão-de vir,
Até se os filhos, ao crescerem, honrarão
Progenitores que se orgulhem do porvir…
Ninguém dedica tempo além o tempo então
Numa medida que nos deixe o suficiente
A saborear como é tão belo este presente.
252 – Conforme
Cometemos muitos erros neste mundo
E fazemos muito mal ficando impunes;
Praticamos muito bem que é bem fecundo,
Concertamos muita perda (unes, desunes…)
E pagamos isto caro muitas vezes:
É conforme tudo calha, sem remédio.
Importância nunca têm sorte ou reveses,
Que auferimos só num fim sempre intermédio.
O que importa é que aceitemos o que temos,
Que saibamos, o melhor que for possível,
Saboreá-lo, aproveitá-lo, que o vivemos
Como a prenda inesperada que é vivível.
253 – Corpo
Corpo não é mau nem bom,
Corpo é neutro, é nada nisto,
É um instrumento de som,
Ferramenta com que existo.
É tal qual como um machado
Com que posso rachar lenha
Para ao lar prestar cuidado
Mas que, se me não contenha,
Também serve para abrir
A cabeça dum vizinho.
Na forma como o gerir
O bom e o mau adivinho:
Posso amar e é construtivo
Tudo o que dele dimana;
Odiar e é destrutivo
O gesto onde invista a gana.
254 – Cara
Tudo está na cara suja,
Assustada e consumida,
Extasiada e perdida,
Mas que a tudo sobrepuja,
Dum miúdo seminu.
Não, ele não me conhece
Nem o trato eu por tu,
Língua comum nos falece
E viveu a vida dele
A dez mil milhas da minha:
Mesmo assim é minha pele,
É um cacho da minha vinha.
Nós somos uma unidade,
Importante, indissolúvel,
Unificada entidade,
E ele um auxílio volúvel
De mim precisa e requer
Tal como eu preciso, a par,
Como outro homem qualquer,
De acorrer e auxiliar.
É isto o que justifica
O destino a cada um,
Isto, não o que complica,
A verborreia comum,
Raciocínios petulantes,
De pensar máscara fria,
Nem qualquer ideologia
De fitos humanizantes.
Meu destino é confortar
Um homem quando ele sofre.
Tudo sofre, singular,
E a chave está neste cofre.
Todos vivemos nas trevas,
Sonâmbulos como somos,
A arrastar pesadas grevas
Que em cada pegada pomos,
Na direcção que traduz
Caminharmos rumo à luz.
255 – Intrusos
O que vem atrapalhar,
Que é de intrusos confundir,
Deve fazer repensar:
Confuso fica quenquer
Apenas, ao reagir,
Se não souber o que quer.
Importa, então, ver o fundo
Ou perdemos pé no mundo.
256 – Voo
Faças lá quanto fizeres,
Não te prendas, não te prendas!
Quanto mais livre estiveres
Para que ao voo te rendas,
Melhor: voa num projecto
Que concilie ajudar
O mundo aqui, sob o tecto,
Sem deixar de o projectar
Para cima, ao céu directo.
O de cima e o de baixo
Um só serão, se os encaixo.
257 – Fundo
A vida remoço
No que tem de plástica:
No fundo do poço
Há uma cama elástica.
Quando ao lado oposto
De ti próprio vais,
Se vês só desgosto,
Tropeças e cais.
Quando ao que negaste
E de que tens medo
Já te abalançaste,
- Tens um novo credo,
És um homem novo,
Bem polarizado,
Evoluis do ovo,
Já revigorado.
258 – Energia
A energia da violência
Que hoje a terra nos domina
Não inverte a recorrência,
Mais e mais à força inclina.
O homem anda violento
Como violento anda o mundo.
Urge mudar o elemento
Desta energia infecundo
Para a terra vir mudar.
Não adianta alguém querer
A terra noutra trocar
Se a energia mantiver.
Andamos sempre a tentar
Lutar contra quem o medo
Nos homens ande a causar.
Esquecemos, no degredo,
Contra o medo em nós vivido
Em nós mesmos de lutar.
Ora, pior que o infligido
Por um homem a seu par,
É o medo (que o não aflige)
Que a si próprio cada inflige.
259 – Experiência
Uma experiência quando não aceitas
Que o universo te proponha acaso,
Cada vez mais rumo a atrair te ajeitas
Eventos tais e no mais curto prazo,
Mais fortes, mais, até que os tomes bem,
Os vivencies, preparado enfim
Por encerrada para dar também
Tua vivência, agora em teu confim.
Mas não terás só de aceitar o evento,
Deves querer o que te vem de além:
Teu ego serve a controlar o intento,
Não a ser vítima, evolui também.
260 – Rumos
Tenta fazer com que mudem
As energias internas,
Os rumos a que se grudem,
Trilhos a que emprestem pernas,
Por que passem a atrair
Eventos não negativos,
A gerar e a gerir
Menos sofrimento aos vivos.
Enquanto não se alterar
O que dentro de ti vem,
Atrair não vai lograr
Vidas outras que convêm.
Muda os íntimos valores
Eliminando bloqueios,
A percepção de anteriores
Eventos, de hoje recheios…
- Noutra perspectiva ao veres
Mudas tudo o que quiseres.
261 – Harmonizar
Harmonizar os opostos
Eis das questões a questão:
Como unir o sim e o não?
O bom e o mau contrapostos
Como pôr em união?
Positivo e negativo
Como fundir no que vivo?
- Harmonizando os contrários,
Aceitando as diferenças
Sem juízos temerários,
Sem julgamento ou sentenças,
Sem uma via melhor
Achar que é e outra pior.
Na perspectiva dos céus
Tudo é mesmo indiferente,
Tudo é igual perante Deus
A nós é que o rumo assente
Traz remanso ou escarcéus
Nas rotas do mar ingente.
Se como Deus vivo em mim,
Fico em paz com tudo assim:
Só então fico preparado
Ao trilho a nós adequado.
262 – Repete
Esta norma de teu fado
Repete idades além:
- Para mim só destinado
Para sempre foi o bem.
Contra o que te causa medo,
Sentimento preferido
Do mal, de todo o degredo,
Joga a lei de teu sentido.
O mal amedronta as gentes
Com ideias negativas,
Obscenas e deprimentes.
Por um nada mentes vivas
Fazem a escolha contrária
Àquela que elas fariam
Em tendência solidária
Com o imo de que partiam.
Na terra o medo corrói
Quem mais espiritual
Mesmo toda a vida foi,
Tal fermento tem o mal.
A norma então de teu fado
Repete idades além:
- Para mim só destinado
Para sempre foi o bem.
263 – Intermediários
Intermediários, não:
Sempre foram responsáveis
Pela modificação
De espirituais e fiáveis
Leis que à vida rumo dão.
Cada qual pode ir lá acima,
Às profundezas do imo,
Buscar o que fundo o anima,
As leis que são dele arrimo,
Vivenciais, em que prima.
Não precisa de ninguém
Que lhe diga quais as leis
Que são dele e lhe convêm
Ao estatuto e papéis,
Que em si cada qual as tem.
Intermediários, não:
Não dão luz, só confusão.
264 – Desenvolvimento
Quando alma não há presente
Numa decisão qualquer,
O caminho a percorrer
Jamais é o da evolução,
Desenvolvimento são
Que nos for conveniente.
Caminho de teimosia,
Só pode levar à perca,
À tristeza que irradia,
Que de escuridão nos cerca.
Quanto mais alguém fizer
Conexão ao superior
Que do imo lhe dá vigor,
Mais vai poder esperar
Que alma presente há-de estar
Nas decisões que escolher.
Decidindo consoante
Os olhos que em alma tem
Caminha para diante,
Além rompe sempre e bem.
265 – Digamo-lo
Podemos dizer a todos
O que nunca lhes dissemos:
- Digamo-lo em pensamento!
Trocando os mais comuns modos,
Cheguemos onde cheguemos,
Tudo atinge estoutro intento:
Quero dizer a meus filhos
Quanto, afinal, gosto deles,
Dizer a minha mulher,
Num dia acaso qualquer,
Quão preciosos cadilhos
Nos atam, mesmo se imbeles
Continuam os meus lábios,
Por mais que se antolhem sábios?
Fecho os olhos e lhes digo.
Vejo-os sorrir e abraçar-me:
Ficam então ao postigo
Sempre, afinal, de meu carme.
E mesmo quando incomoda
É de partilhar assim:
Conversa de andar em roda
Melhor atinge o seu fim.
Algo ali finda a mudar
Na relação tida a par.
Poderá ser um mistério
Mas ocorre sempre a sério.
266 – Medo
Não é nunca a perda em si
Que nós temos de aceitar,
Mas o medo de perder,
A dor de alma que sofri
Da perda que me rasgar
- Que de aceitar hei-de ter.
Será sempre o medo e a dor
E jamais o evento em si.
E a diferença é maior
Do que tudo o que previ.
Que eu só tenho medo e dor
Se me não souber propor
Na perspectiva superna
Da visão que for eterna.
267 – Regridem
Apenas um dos caminhos
Dá bom desenvolvimento.
Os outros são descaminhos,
Regridem, vão contra o vento,
São atalhos na jornada
Para onde não há nada.
Quem seu caminho encontrar,
Evolui, trepa os degraus,
Para a frente a caminhar
Sem tropeçar nos calhaus.
Mas topar a via tem
Que se lhe diga também:
Ao infindo tem de ser
Por inteiro conectada:
Anseios de alma viver,
O que esta quer da jornada,
Evoluir e limpar
Quanto o passo lhe encurtar.
Quem não escolha o caminho
Conforme a própria energia,
Quem material talha o ninho,
Porque outrem o quer um dia,
Por segurança ou dinheiro,
Perde a força por inteiro.
Perdendo o favor da vida,
Vêm males e doenças.
São avisos à medida,
À navegação sentenças:
Convidam o rumo dado
A mudar de vez de lado.
268 – Sofrimento
Sofrimento, guerra, fome,
Azar, guerrilha, acidentes,
Toda a dor que nos consome,
Que os humanos crua tome,
Tem motivos, entrementes.
Cada qual capacidade
De anular-se por inteiro,
Sem defesa inermidade,
Sem resguardo ante a maldade,
Só tem quando, já leveiro,
Centro é da fragilidade,
É o núcleo do sofrimento:
Sente o uno, a unidade,
Ser e não ser na igualdade,
Ao mesmo tempo e momento.
Só nesta altura do zero,
Daquele zero absoluto,
Quando tudo é fumo mero,
O que se é já não é vero
Nem se tem nenhum produto,
É neste momento exacto
Que se opera a transfusão:
A cósmica força em acto,
Do sábio Cosmos o impacto,
De entrar encontra o portão.
O espaço que ocupa o ego
É o mesmo das almas todas.
Quando ele o ocupa, o sossego
Nunca advém de tal emprego.
A escolha é tua: qual podas?
269 – Acolhes
Sem julgamento acolhes o que vem:
Em vez de olhar a dor como o que é mau,
É apenas o que vem e o rio a vau,
Ao vivê-la, transpões, como convém.
Quando de processar a dor acabas,
Pronto então ficarás para acolher
A maior alegria que couber
Em teu íntimo, enfim de abertas abas.
Se encobres tua dor e a julgas má,
Recusas-te a vivê-la, encapotar-te
Irás de mil defesas com tal arte
Que não vais permitir que a força vá
De ti livre fluir e o sofrimento
Começas a atrair em tua esteira.
Este, porém, é tal que nunca à beira
De findar se mostrou nalgum momento.
Uma dor natural acaba ao fim
De algum tempo e releva o que é precário.
A dor pelo bloqueio do primário
Afecto que nos move nunca assim
Acaba: jamais finda. No que escolhes,
Entre a curta e a longa, qual acolhes?
270 – Gostar
Podes gostar de mim, de estar comigo,
Daquilo que te ensino, do que digo,
Do que passámos juntos, da fusão,
Desta nossa energia e protecção,
De quanto represento para ti
Como para os demais com que vivi…
Mas não dependas nunca, não dependas
De mim nem de ninguém. Convém que aprendas
Pela tua cabeça a pensar, são,
E a sentir pelo teu bom coração.
Não há no mundo nada, mesmo nada,
Que valha uma centelha iluminada
Divina, um imo a sós que aqui vagueia,
Germinando na terra onde tenteia
Vezes sem fim, tentando ser feliz.
Contigo amor, não medo, é o que condiz,
O alto e não o baixo é o atavio,
É o calor que acalenta e não o frio.
271 – Desbloquear
Desbloquear as energias,
Evitar a perda tem
Um segredo de ousadias:
Polarizar-se convém
Ao oposto de si mesmo
Ir em íntima viagem,
Retiro em que me ensimesmo,
Meditação da triagem,
Conexão ao superior…
Quem viver acompanhado,
Se a estar só não dá valor,
Tem de ir ao oposto lado
Estar consigo sozinho:
Melhor é sair durante
Uns dias, para, em caminho,
De si próprio ficar diante.
Quem às coisas materiais
Vive preso, aprisionado,
Para vidas sem reais
Faça então voluntariado,
Que nada de material
Aí encontra, só gente.
É simples o trilho ideal:
De que é que pavor se sente
É ver e depois seguir,
Denodado, ao seu encontro.
Da ferida ao lugar ir,
Sofrer daquilo o recontro.
Quando sair, livre está.
É o Calvário que fez Cristo:
Ir ao oposto que lá
Mais doía, tudo visto.
Quando acabar, evoluo,
Já que fui ao meu oposto
Tão negado em meu recuo,
Tenho agora novo rosto.
Como em mim já mora o Todo,
Nisto do Infindo sou modo.
272 – Batuques
Os batuques do deserto,
Das florestas tropicais…
Que longe nos fica o perto,
Com tanto barulho certo
A encobrir do íntimo o cais,
O silêncio a violar
Que houver dentro em cada um!
Milénios a batucar,
Cantarolar e dançar,
Para evocar no zunzum
As forças superiores
A nós próprios, para ter
Apoios que, redentores,
Se revelem os melhores,
Para se escapar quenquer
Dele mesmo, mundo fora,
Do próprio silêncio dele.
O silêncio que em nós mora
É tão fundo, sempre e agora,
Como o do deserto imbele.
É o mais profundo e mais denso,
O mais sepulcral que existe,
De suportar, por intenso,
O mais difícil, no censo
Que o homem conte e que liste.
Na maior parte das vezes,
Tenta, não aguenta e vai
O homem fugindo aos reveses,
Segue em frente nos conveses
Doutra aventura em que cai,
Sempre dele longe e fora.
É o silêncio para ouvir-se,
Barulhos cala na hora.
Só quem ouve sabe agora,
Só quem sabe há-de intuir-se,
Só quem se intui é que sente,
Quem sente vive: é o presente!
273 – Rótulos
Há quanto tempo é que andamos
A pôr rótulos nas coisas,
Nas gentes com que topamos?
Quantas guerras há nas loisas
Por os homens terem dito
Palavras em que não poisas
Jamais o que for teu fito?
O homem tem de parar
De falar sem ver o grito
Que virá de não pensar.
E tem de tomar o pulso
À própria vida, acabar
De encarar como algo avulso
Qualquer pensamento alheio,
De abusar matar o impulso.
De criticarem o meio
Achem de parar e parem
De achar, findem com o enleio.
Quanto menos opinarem
Sobre outrem tanto outrem menos
De quantos gestos vos arem
Irá julgar os acenos.
Ter opinião é julgar,
É crer que sabemos plenos
O bem e o mal de operar,
Que estaremos para além
De humano saber e estar,
Mais que tudo é saber bem
E mais que todos saber.
Quem julga é Deus, mais ninguém,
Ainda por cima absolver
É o que a quenquer sempre faz.
Que direito tem quenquer
De os mais julgar, ferrabrás,
De ter tanta opinião
E de os criticar por trás?
Convite à separação
É sempre a crítica feita.
E separados, então,
À trilha ninguém se ajeita,
A lado nenhum irão
E nada mais se aproveita.
274 – Julgado
Se tu não agradeceres,
Da ajuda se ao ideal
Ao fim não corresponderes,
Serás julgado, afinal,
Condenado de imediato,
Mal-agradecido, ingrato!
Cuidado com as ajudas,
Há lobos ante o rafeiro
Que, mal tu de pasto mudas,
Vestem pele de cordeiro.
275 – Resposta
Para a questão insolúvel,
Lembra-te da solução!
Não é o cérebro volúvel
Que resposta te dá, não,
Para aquele desafio
Que inviável desconfio.
Pede-lhe apenas, portanto,
Que ta recorde entretanto.
Se pressupões que soubeste
Em tempos qual a resposta,
Convicção íntima deste
De que existe e agora exposta
Pode ser com evidência,
Já não sentes a impotência.
Então, de escano escondido,
Vem-te uma luz com sentido.
276 – Abrir
Cada um de nós é um Deus,
Cada qual já sabe tudo.
O que temos, ante os céus,
De fazer é, sobretudo,
Abrir a mente vazia
E ouvir, rasgados os véus,
A própria sabedoria.
277 – Trocarei
Não trocarei as tristezas
Que houver em meu coração
Por festas da multidão.
Não gostarei que as represas
De lágrimas que as feridas
Fizerem brotar de mim
Se transformem, desabridas,
Em risos ocos por fim.
Gostarei que minha vida
Seja o encontro conciso
Da lágrima e do sorriso,
Sempre na justa medida.
278 – Culpas
Atribuir culpas, explicar,
É por demais simples, errado:
Pois cada qual é que acabar
Há-de a escolher qual o traçado
Do rumo que ele quer trilhar.
Todos nós temos a gaiola
Que os tubarões nos mantém fora,
Longe de quanto nos imola.
Quem abre a porta e que em tal hora
Se atreve a ir deles na cola
Fá-lo então sempre â própria conta,
Correndo o risco a que tal monta.
279 – Interessado
Poderei sempre esconder
Doutrem o que ele estiver
Interessado em não ver.
Até de mim poderei
Esconder o que já sei
Que acatar não lograrei.
Questão é o custo em saúde
De tudo o que nos ilude
E em vida desperdiçada
Pelas valetas da estrada.
280 – Tempo
Tens de ao tempo tempo dar,
Já que o mundo ser refeito
Nunca pode num só dia.
Se, porém, ninguém tentar
Refazê-lo, pô-lo a jeito,
Jamais refeito estaria.
Teremos de começar
A modelar-lhe o traçado
Algum dia nalgum lado.
E cada dia é o momento,
O momento adequado
De tal empreendimento.
281 – Pesca
Bem mais frequentemente
Que outras técnicas na vida
Compensa a pesca, ao presente,
A esperança com que lida.
Nem um peixe embora morda
Meu isco, irei retomar,
Na sediela ou na corda,
Um contacto com o mar.
E, feito isto, não me fica
Longe o contacto que acalma
E mais fundo pontifica
Com a minha própria alma.
282 – Pés
A maneira de assentar
Os pés aqui no presente
Consiste em descortinar
Actividade que assente
Naquilo em que desafias
A aceleração dos dias:
Leitura, meditação,
Jardinagem, um passeio,
Ou de aves observação,
Ou conversa de recreio…
- Reencontrar a natureza
Das tensões abre a represa,
Das águas no turbilhão
Ao fim é irrigado o chão
283 – Educação
A educação deve ser
Natural e com prazer,
Que, sem prazer educar,
É uma entorse a magoar
E o que apenas junta ao rol
É sempre um dia sem sol.
284 – Privação
Devemo-nos despojar
De tudo aquilo que temos?
Vai ser este o patamar
Que Deus quer que nós pisemos?
Antes só estarei disposto
A me despojar de tudo.
Nisto vejo um pressuposto
De privação sobretudo,
Mas a maior privação
É continuar vivendo
Deste mundo a sedução:
Dele escravo, não me ofendo,
Sirvo os bens, sirvo as riquezas,
Todos aqueles senhores.
Satanás, atento, as presas
Persegue, doirando as cores.
Se a fundo eu me despojar,
Menos lugar há-de ter
(Quando me tenta apanhar)
Onde se possa esconder.
285 – Riqueza
Pode a riqueza demais
Confundir mesmo as pessoas,
Enquanto escassos caudais
De cores, de bens, de broas,
Aumentam nosso poder
De concentrarmos a mente.
Mas Deus criou todo o ser
Connosco já conivente
Para que saibamos bem
Com ele viver também.
Se és cego pelo excessivo,
Pouco a pouco te habitua
À glória do mundo vivo,
Lento alarga a tua rua.
Então é que identificas
Bem como é que ao fim tu ficas.
286 – Néctar
As pessoas apressadas
Todo o néctar da existência
Saboreiam a ferver.
Só quem com calmas pegadas
Lhe saborear a essência
Fresco orvalha o amanhecer.
287 – Noutrem
Ninguém pode outrem mudar.
Mudar a própria atitude
É que noutrem vai criar
Novo impulso com que mude.
Melhor comunicação,
Trabalho de equipa a sério,
Saudável mesmo emoção
- Só dali ganham império.
A mudança só por mim
Corre do começo ao fim.
288 – Hábito
O nosso hábito de ver
Unicamente o pior
No trabalho, em cada ser,
Em nós, em nosso interior,
Leva a relação humana
A ser a dor que nos fana.
É urgente mudar os jeitos,
Que há tempo demasiado
Não vemos senão defeitos.
Importa deixar de lado
A ideia de ter razão
E acolher outra visão:
É que há mesmo outros caminhos.
Em vez de nos retirar
Do mundo em campos maninhos,
De acordo por nunca andar,
Apostemos na mudança:
No termo que a muda entrança.
Vamos usar as palavras
Mais positivas, suaves,
E no talhão que escalavras
Gorgeios trilarão de aves.
A colheita, ao fim, concreta,
Mostra a via quanto é recta.
289 – Sorte
Quem tem muito e não trabalha,
Tendo embora o que quiser,
Não é rumo que nos talha:
Primeiro há que desejar
E só depois conquistar.
- Tal é a via para ser.
290 – Vencer
Vencer o mar ninguém pode,
Como a eternidade é imenso,
Como o destino, imutável.
A ilação que então acode,
Se perante o mar me penso,
É que o homem mais fiável
Menor é que o menor peixe.
Contra o mar não lute, deixe,
Não combata contra as vagas!
Entreguemo-nos, portanto,
Abandonados, nas plagas,
Das ondas ao tredo encanto
E, à medida que fluírem,
Acompanhemos, ao irem,
Seu movimento, entretanto.
Seremos então, a par,
Sustentados pelo mar.
Assim, no mar e na vida,
Este é o segredo da ida.
291 – Nomeia
Nomeia a tua desgraça,
Podes vencê-la melhor:
Já não é vaga fumaça,
Um incorpóreo pendor.
Entrou então em palavras,
Tomou corpo na procela:
Mesmo quando te escalavras,
Lutas mais fácil com ela.
292 – Saber
Não procures saber, se for demais,
Se te afoga o saber nos tremedais.
Se pegas numa lupa para ver
Água que bebes, vês que anda pejada
De bichos e corpúsculos quaisquer:
Vês os bichos e já não bebes nada!
Não bebes e depois morres de sede.
Pois estilhaça a lupa, que não vejas,
Que os bichos se diluam, nada o impede,
Para que vás beber e fresco estejas.
E por igual em tudo o mais na vida:
Sabes demais se a morte te convida.
293 – Adquirir
Ao adquirir conhecimento,
Não é verdade que perdemos
Todo o restante, no momento?
Se a saber tudo nós nos vemos
No que respeita a qualquer flor
Será que a flor em vista temos
Ou só guardamos o valor
Das científicas noções?
Na troca não iremos pôr
A sombra à frente dos balcões
Das veras flores da campina?
Não atraiçoamos, aos serões,
A vida a sério pela sina
Do que é uma estéril, fria ciência?
Que representa aquela fina
Dissecação rumo à evidência,
No fim de contas, para nós?
Para que serve tal sapiência?
- No fim do trilho estamos sós!
294 – Acordo
Adormecido, sonhei
Que a vida era uma alegria.
Acordo e verifiquei
Que um serviço é que seria.
Ao agir, descortinei
Que serviço era alegria.
295 – Queimar-se
Queimou-se o computador,
Televisão não opera.
Sem mulher nem namorada,
Nem para um copo o sabor,
Se um amigo não me espera
Nem a rádio me dá nada,
Agora, então, que fazer?
É hora de perceber
O papel que um livro tem
Então na vida de alguém.
296 – Apraza
Quando tudo vacilar,
Não te apraza construir
O que é fadado a tombar
Em ruínas sem porvir.
Antes deixa-te levar
Pela corrente da vida,
Não vás tu malbaratar
Energias sem medida.
Sobreviver significa
Tudo nesta conjuntura,
Até que se verifica
Nova meta e o que a inaugura.
Quanto menos energia
Alguém despender, melhor.
Assim a reservaria
Para após a vir propor.
Uma avalanche não pode,
Uma vez em movimento,
Detida por quem acode
Ser logo ali no momento.
Quenquer que o venha a tentar
Será por ela esmagado.
É bem melhor esperar
E mais tarde o vitimado
Desenterrar dos destroços.
Em longa marcha, é bagagem
Pouca e leve, em torno aos fossos,
Como de fuga em viagem.
Só vida em paz cimentada
Nos permite outra jogada.
297 – Ajude
Ajude quando puder,
Todo o esforço então empenhe.
Quando não puder fazer
Mais nada ao que se desenhe,
Esqueça-se então de tudo,
Vire as costas, reagindo.
A compaixão, sobretudo,
É da calma o tempo advindo.
Se a vida estiver em jogo,
Os mortos enterre, beba
Em haustos da vida o fogo,
Dela importa que se embeba.
Vai precisar dela ainda:
Um problema é lamentar,
Outro os factos que haja à vinda.
Não é menos conta dar,
Vendo os factos, aceitá-los.
Assim é que sobrevive
Quem da vida sofre abalos:
Saltando-os sem que se esquive.
298 – Poucos
Um quarto, umas poucas malas,
Parcos objectos pessoais,
Alguns livros que intercalas,
Já lidos até demais,
- Um homem pouco requer
Para, enfim, sobreviver.
É bom nunca se apegar
A muito quando se tem
Vida instável que aguentar.
Mui frequentemente advém
Que nos vemos obrigados
A largar tudo, apressados.
Ou então arrebatado
Tudo nos é de repente.
Cumpre estar sempre aprontado
Para partir, vida em frente.
Quem leva uma vida errante
Nunca o que o prenda adiante
Deve manter em carteira,
O que mova o coração.
Dá-se mas nunca se abeira
De abandonar-se em prisão.
A vida dá-lhe sinais
De aventura e nada mais.
299 – Biombo
Um biombo há sempre atrás
De que se pode esconder:
- Um superior, capataz,
Que, por sua vez, vai ter
Outro superior qualquer
E este um outro mais capaz
E mais ordens que cumprir,
Dever, instruções, mandatos,
E o monstro que irá brandir
Mil rostos de desacatos,
- A moral que rege os actos,
Necessidade a impelir,
A realidade dura,
A responsabilidade,
Seja o que for que se apura
Por nome em vez da verdade:
Há sempre um biombo em grade
Atrás do qual se assegura
Fugir com impunidade
Ao que é ter humanidade!
300 – Alicerce
Quem nada espera não fica
Nunca mais desapontado:
Ser feliz sempre se explica
No alicerce ali talhado.
Tudo o mais que então vier
É a festa de lhe acrescer.
301 – Enquanto
Enquanto Deus não disser
Claramente o que Ele pensa,
Nós devemos combater
Quem matar, sem mais sentença,
Quer em nome da justiça,
Do capital, do fascismo,
Quer da pátria em que se enliça,
Da família ou comunismo,
De preconceitos ateus,
Quer mesmo em nome de Deus.
Quenquer que assim funcione
Nada bom tem que o abone.
302 – Parcial
Toda a verdade? Era bom,
Mas jamais poderá ser.
Só que uma aproximação,
Parcial verdade qualquer,
Mais do que a conspiração
Do silêncio vai valer,
Que nesta é que a corrupção
Com vigor quer florescer.
Com a verdade se cava
O fosso que os podres trava.
É de proclamá-la então,
Pequena embora ela seja,
A nos adubar o chão,
Mesmo quando mal se veja.
303 – Bebe
Quem bebe o vinho do rei
Tem de lhe sofrer as dores
De cabeça – tal é a lei.
E ficar-lhe agradecido
Por ele não lhe enviar,
Ao acaso dos humores,
O carrasco a lhas curar
De vez, depois de bebido.
Muito cuidado, portanto,
Do poder com o atractivo,
Do poder com todo o encanto,
Se manter-te queres vivo.
304 – Danos
Tantos danos a um país
Não fazem os inimigos
Como os regalos que quis,
Os deleites e os pascigos.
Ter as armas, quando em paz,
E as forças armadas prestes
O inimigo enfreia atrás,
Tolhido do que ali vestes.
Deveras paz desarmada
Será do que a própria guerra
Mais, muito mais arriscada,
Do risco que houver na terra.
De ócio não andam os barcos
No estaleiro, nem no cais,
Nem os gatilhos são parcos
Nos armazéns se os guardais.
Sem se moverem, dali
Os ímpetos do inimigo
Reprimem, contendo-o em si,
Acanhado ante o perigo.
305 – Corpos
Todos os corpos terrenos
Nascem, crescem, depois morrem.
E, se fora não há drenos
Que a matéria lhes escorrem,
Dentro de si vão criar
O que os consome, em lugar.
E assim é com os países:
Quando de fora inimigos
Os não têm nas matrizes,
Criam nos próprios umbigos
Tudo aquilo que os destrói
No que hoje é, no que ontem foi.
Como a ferrugem ao ferro
O desgasta se o não usam,
O gorgulho ao pão que encerro
O come quando o recusam,
O próprio mar apodrece
Se a maré dele se esquece,
Assim num país os bandos
Dissidentes o corroem,
O consumirão, nefandos,
Se com a paz se não doem
De abrir portais na cidade
A toda a ociosidade.
306 – Ricos
Mais mal fazem ao país
Ricos em tempo de paz
Do que os pobres mais servis,
Que o poder que o oiro traz
Exime da obediência
À lei, à justa pendência.
E, com a ociosidade,
Prestes se atira ao motim
E, com a riqueza, ele há-de
Sustentá-lo até ao fim,
Impede qualquer reforma
De costumes, como norma.
Relaxa o rico a modéstia
Com todo o supérfluo gasto
No comer como na véstia,
Incita o vulgo a igual pasto.
Se o governo o não vigia
Para regra ter em dia,
Com temor e com amor,
Joga-lhe o país ao charco.
Crimes públicos supor
Tolerados leva o barco
A ser assolado logo
Da proa à ré pelo fogo.
307 – Canídeo
É perigoso bulir
Com o canídeo que dorme?
Por isso, logo a seguir,
Acaba tudo conforme,
Os erros passam por alto
Ignotos no catafalco,
Sepultos no esquecimento.
Não tira ser furto ou crime
O que em tal envolvimento
Se arrasta e da lei se exime.
São tais unhas proteladas
Que mais urge ser lembradas.
É perigoso bulir?
Mais perigoso é fugir!
308 – Virtude
Se um governo é virtuoso,
Todos trabalham por ser
De virtude; se é vicioso
Todos ao vício vão ter.
O farol é precioso:
Dá rumos ao mar brumoso.
309 – Muda
Muda-te, mas com razão,
Que não muda nem varia
De conselho, opinião,
Quem muda, até cada dia,
Para escolher e propor
Sempre quanto for melhor.
310 – Aproveita
Mais aproveita ao ministro
Dos sábios quanto é conselho
Que as armas de som sinistro
De valente moço ou velho.
Mais ilustres se obram obras
Com o saber das cabeças
Que do braço com as sobras
Que andarem a pedir meças.
311 – Longe
Como o que de longe vem
Sempre parece melhor,
O que nasce em casa nem
Agrada nem tem sabor.
Desprezamos nossos panos,
As nossas sedas e vinhos,
Mesmo se bons, sem os danos
Que sofremos dos vizinhos.
É sempre insânia marcada
Antepor a nós o alheio:
Serve a política errada,
Anda a encher um prato cheio.
312 – Cravo
Há quem chore por poupar
O cravo da ferradura,
Que a vitória a lhe roubar
Acabou com tal usura.
É que por falta do cravo
A ferradura caiu,
O cavalo desconchavo
Nunca como tal sofreu,
O capitão tomba ao chão,
Perde a batalha, o governo,
Perde tudo o mais em vão:
Dum tal nada veio o inferno.
Ora, quem quer prevenir
Tem de olhar então que invista
Nos nadas onde sentir
Que o fim dali pouco dista.
313 – Faísca
Uma faísca de nada
Pode causar grande incêndio
Quando ficar desprezada.
O que de perto nem sinto
Pode ao longe um estipêndio
Danado, que nem pressinto,
Vir a cobrar, de longada.
Importa, então, ir atento
Ao rumo a que sopra o vento.
314 – Vaidade
Não sente a vaidade as coisas
Por serem mas se dizerem:
Que narras se a mão lá poisas?
Mil vinganças se suprimem,
Não vão delas perceberem
Desacatos mil (que oprimem)
Outros que os ignoram todos:
Para os mais os não saberem
Contêm-se o gesto e os modos.
Nisto devém positiva
A vaidade que tiverem
Os que agirem por outiva.
Ao calar o inconveniente
Mostram quão fundo entenderem
Do bem onde anda a semente.
315 – Desvendar
Para tudo somos sábios,
Só para nós, ignorantes.
Nunca vem a nossos lábios
Saber de nós por instantes.
Não que nos faltem preceitos
De desvendar o que somos,
Mas a vaidade tem preitos
Por ciência doutros tomos.
Opõe-se a qualquer saber
Que humilde faz a quem sabe:
Dificultoso é vencer
Onde só presunção cabe
316 – Sábio
Dum sábio na mão um erro
É uma lança penetrante.
Na mão, porém, do ignorante
Será como arma sem ferro,
Quebrada em qualquer sequência,
Sem mais uso ou consequência.
Cuidado, pois, com quem erra,
Pode dar paz ou dar guerra.
Ser sábio nem sempre é bom:
De mal e bem tem condão.
317 – Sentir
Se a formosura recreia,
Toda a injúria nos irrita,
Se convida o agrado à teia,
O desprezo nunca incita.
Se o amor enfim nos chama,
A ofensa dele retira,
Quanto aquele nos inflama
Esta nos apaga a pira.
Quem tem sensibilidade
Para amar também a tem
Para sentir de verdade:
- Cuidado, pois, ao que vem!
318 – Continuamente
Continuamente promete
O amor que há-de-nos findar
A recusa que repete
Quem não corresponde a amar:
Diz-nos que cedo há-de vir
Uma resposta a anuir.
Os ódios nos asseguram
Que o dia vem da vingança
E as vaidades nos apuram
Que a grandeza nos alcança…
- Tudo faz que não vivamos,
Só pela vida esperamos.
319 – Lance
Nunca pode haver justiça
Quando esta se acotovela
Por algo que não por ela
Em todo o lance da liça.
E ninguém pode ser justo
Quando o objecto principal
Fora uma glória final
De o parecer, mesmo a custo.
O que é por ostentação,
Por qualquer meio que for
Se busca e se finda a impor,
Seja injusta ou justa a mão.
Quem procura a voz da fama
Pouco lhe importa a figura
Do instrumento com que a apura,
Vai pelo que a mais proclama.
Pouco importa a voz que a aflora
Ser porventura mais certa,
Forte a quer e bem aberta
A gritar, ave canora.
Quem à vaidade do nome
Como à duma opinião
For mais sensível, então
Realidade não consome.
Esta finda desprezada
Se se puder desprezar
Sem receio de ficar
Ignoto à margem da estrada.
320 – Equilíbrio
Não há jamais nada melhor
Que não levar a vida a sério,
Entre o prazer e um bom labor
Há um equilíbrio cujo império
Diz que é preciso divertir-me
Para o juízo manter firme.
Arranja emprego com agrado:
Se do que gostas de raiz
Fazes aquilo que é teu fado,
Tornas-te ao fim bem mais feliz
E a prenda tens inesperada:
- Não envelheces na jornada!
321 – Mover
Ninguém tempo anda a poupar
Por se mover mais depressa.
Do nascer até findar
Foi de vez escrita a peça.
Temos de tirar partido,
Partido que persuade,
Do tempo que for corrido
E não da velocidade.
322 – Compete
Em vez de sentir inveja
Segue em frente por ti fora,
Melhora o que em ti se almeja,
Melhora.
Compete contigo mesmo,
Deixa de preocupar-te
Em ver defeitos a esmo
Aparte,
Nas obras que outros operam.
Porém, não funciona assim:
No fim o contrário geram,
No fim,
Quase todos vida além.
Custa bem mais trabalhar
Que desfiar, pedro-sem,
Desfiar
Rios de lamentações.
Ser coitadinho quem pensa
Dispensa as boas lições
De quem corre: “com licença!”
323 – Dois
Sempre há dois indicadores
Em quem tem maturidade.
O primeiro são pendores
De rir de si com vontade.
Todos quase a si se levam,
Bem como deles à vida,
Mais a sério do que devam
As conjunturas da lida
Exigir. Dificuldade
Têm de ver a suprema,
A suprema absurdidade
Que é de toda a vida o tema.
Divirto-me a rir de todas
As parvoíces que faço
E faço muitas, nas rodas
Em que eu alegre me enlaço.
O segundo indicador
É o poder de me sorrir
Com admirado estupor
Perante obra que luzir
Por mão de outrem, em lugar
De fazer cara de inveja.
Quem tem poder de admirar
Há-de crescer que se veja.
324 - Doar
Quando tu dizes a alguém
O que ele deve fazer
Não estás a doar bem
Mas a provocar também
O peso que ele irá ter
Por culpa que irá sentir
Por não poder, se calhar,
Ou então não conseguir
Fazer o que a sugerir
Lhe andas em todo o lugar.
Doar é não exigir,
É não sujar os afectos.
Quem culpado se sentir
De si que é que anda a exigir
Que não consegue em correctos
Termos, nem incapaz
Aceita ser para tal?
A limitação que traz
Que encontre em visão veraz
E aceite o que for real.
Então não exige mais,
Não se culpa do não feito.
Se assim ages, não atrais
Negatividades tais
A que hoje andarás atreito.
Quando doutrem exigir
Queres algo cuida então
Primeiro de conferir:
Onde ando a forçá-lo a ir
Sem haver aceitação
Em mim de que ele é incapaz?
Encontra a limitação
Que em si próprio nele traz
E aceita-o sereno, em paz,
Que a partir daí, então,
Não lhe exiges mais fazer,
Nem culpas de não ter feito.
Pesadume não vai ter,
Não atrai nuvens sequer
Ao céu que tiver no peito.
325 – Farás
Farás tudo o que puderes
E aceita não poder mais.
Normalmente os afazeres
São mais fáceis, como tais,
De extravasar dos poderes
(Criando culpa demais
E pesadume, por fim)
Do que a mera aceitação
De que fazer mais, enfim,
Se não logra, é esforço vão.
Só que acolher meu confim
É que me aligeira a mão,
Deixa-me as asas libertas
Para novas descobertas.
Doutro modo fico preso:
Jamais sigo o que mais prezo.
326 – Intuição
Tua intuição te diz
Que fazer, como ligar
Teu agora ao mais-além,
De modo que em ti condiz
Teu degrau ao patamar
Supremo que te convém.
Depois fazes o que podes.
Se começas a sentir
Culpa por não lograr mais,
Aceita-o: tu não acodes
Aonde não podes ir,
Lá não chegam teus sinais.
Deixarás de sentir culpa,
De atrair o pesadume,
Sentimentos negativos.
Toda a culpa se desculpa,
Ficas limpo de azedume,
Sem mais mal em teus arquivos.
Corta a negatividade,
Aceita a limitação,
Não te exijas demasiado,
Mas alerta a intuição que há-de
Trazer-te a programação
No que a vida te houver dado.
Executa o que tiver
De ser feito até o limite
E tal limite percebe
E aceita o que te impuser.
Limpa e que teu gesto evite
Sujar o que te recebe.
327 – Escapa
Ninguém escapa ao destino
Mas podemos fazer muito
Para nossa marca, intuito,
Nele gravarmos com tino:
Usá-lo a nosso favor
Ou a nós o contrapor.
Tal escolha escolhe a vida
Com ou sem nossa medida.
328 – Gaba
Quem se gaba de gozar
Da vida de bem-estar
É o primeiro que não sabe
Dar o valor que lhe cabe
Ao bem-estar que tiver.
Nada por si há-de ser,
Tudo pende dum contraste
Para um sabor que lhe baste:
Como sentir bom calor
Sem frio lhe contrapor?
Quem dum só lado viver,
Já não vive, anda a morrer.
329 – Comanda
Quando alguém comanda os mais
E entre eles encontra um
Que o supera nos sinais,
De orgulho ferido, num
Assomo de poderio,
Invadido de aversão
Invencível pelo ousio,
Logo vai tratar então
De o derrubar na poeira,
De o aniquilar tão-só,
Reduzindo-o a mera esteira,
Punhado mero de pó.
É o poder do próprio culto,
Não o poder do serviço.
E assim de vez fica inulto
O que apagou no chamiço.
330 – Braço
Qualidade redentora
De quem é mais violento
É que ele, nalguma hora,
Usa com igual alento
O braço para aguentar
Um pobre desconhecido
Como usou para roubar
O rico que haja ofendido.
É o que questiona a tez
Das condenações de vez.
É o que nos requer a porta
Que à reconversão exorta.
331 – Verde
Tal como o infinito oceano
Nos rodeia a verde terra,
Em nosso imo anda um chão plano,
Insular, a erguer a serra
Da interior paz e alegria,
Mas rodeado dos horrores
Dum pélago sem magia,
Ignoto e cheio de dores.
Não te aventures demais:
Fora de tal ilha ao ir-me
Posso, afinal, nunca mais
Retornar a terra firme.
332 – Controlo
Em vez de os outros culpar,
Ter responsabilidade.
Sempre uma parte encontrar,
Se algo mal corre e me invade,
Pela qual sou responsável,
É o que o evento transforma
Naquilo que é manobrável,
Que controlo, a que dou forma.
Quando algo mau me acontece,
Para que se não repita
Que farei, para que cesse
Que gesto em mim me concita?
Porventura irei sofrer,
Porém toda a conjuntura
Sempre posso reverter
A partir de tal postura.
333 – Governar
Governar torna tranquilo
O que for bom cidadão.
Ao invés, torna intranquilo
O desonesto malsão.
Quem isto inverte anda mal:
Mata a ordem natural.
334 – Contrária
Sempre que há uma ideia nova
Contrária ao uso normal,
É rejeitada na prova
De quem for tradicional.
A maioria recusa
Vê-la com seriedade.
É que comummente se usa
Ver na habitualidade
Vivida no próprio meio
Um carácter de sagrado:
O contrário já deveio
Atentatório pecado.
O bem nunca pode estar
A si em oposição,
Apenas o mal, lugar
A que importa impor um não!
A confusão é grosseira
Dos termos de bem e mal:
Bem é a tradição useira,
Mal, de novo algum sinal.
Assim se nos joga a sorte:
- Este é o caminho da morte.
335 – Atenção
Para quem disse não olhes,
Presta atenção ao que disse:
Se a realidade lá colhes,
Que o triunfo então se enlice
Do vero em revelação
E não em ocultação.
Quem atira a pedra ao lago
Que preveja o movimento
Que ondulará lento e vago
Rumo às margens de momento.
A pedra será levada
Mas finda ao fundo grudada.
Quando uma a outra a seguir
Lá se vão acumulando,
Formam um dique a subir,
O curso ao rio alterando.
Denúncias então pequenas
Podem findar muitas penas.
Um percurso secular
Pode então ser corrigido
Num desvio singular
Que doravante ferido
Não deixe alguém no caminho
Abandonado sozinho.
336 – Reconduz
Pluralidade extravio
Há-de ser quando à unidade
Não reconduz sempre o fio.
E é tirania a unidade
Que à pluralidade não
Reconduz dela o pendão.
337 – Circo
Deixemos de lado as tricas
Do circo dos elegantes.
Retiremo-nos, futricas,
Para os campos mais distantes,
Para o deserto preciso…
Da natureza aos cipós
Voltemos no acto conciso:
- Voltemos, enfim, a nós!
338 – Envolve
Deveremos aceitar
Qualquer luta ou turbulência,
Que envolvo sempre, ao mudar,
Sofrimento, por essência.
Porventura não é morte
Que nós recearemos mais
Mas a dor que caiba em sorte,
Inerente a casos tais.
Só através do sofrimento
Se torna a vida melhor,
Como a dor do nascimento
A abrir a todos o alvor.
339 – Endoutrinam
Endoutrinam seguidores
No pecado original
E depravação total,
Para os deixar, entre as dores,
Fracos e bem indefesos,
À manipulação presos.
Sacerdotes, pregadores
Vivem tão preocupados
Em divulgar tais pecados
Que esquecem outros pendores:
- A existência primordial
Da inocência original.
340 – Afectos
Meus afectos me convencem
Muitas vezes de que falta
Algo em alvos que me vencem.
De certeza, na ribalta,
O nosso maior desejo
Défice fundamental
Sofre num qualquer ensejo
De que conta darei mal.
Uma voz interior
Diz, porém, do gineceu:
- Não vem de fora o sabor,
Eu terei é que ser eu!
341 – Harmonia
Quando nos compreendemos
E ao mundo que nos rodeia,
Em harmonia podemos
Agir por dentro da teia
Do que andar à nossa volta,
Em vez do ataque e revolta.
Podemos seguir as leis
Naturais para o controlo
Ter de todos os papéis.
Quando assim me desenrolo,
Terei então de fazer
De casa o labor que houver.
O funcionamento interno
De compreender terei
Da cumeeira ao inferno,
Até lhe apreender a lei
Para, quando lhe responda,
Então lhe furar a onda.
342 – Bastante
Achava que não serei
Quanto basta jamais bom.
Somente isto ultrapassei
Quando de vez me deixei
De julgar segundo o tom
Daquelas expectativas
Que outros sobre mim terão,
Quando vi deles que os vivas
Felicidades cativas
É aquilo que apenas dão.
A felicidade advém,
Não daquilo que fazemos,
É de não ser mais refém.
De dar não tenho a ninguém
Provas de quanto valemos:
- Basta-me ir por onde vou
A ser aquilo que sou.
343 – Demónios
É certo que a boa acção
Raramente é premiada,
Mas vingar disto a lesão
Joga os demónios na estrada,
Perpetua sem igual
Pelo mundo inteiro o mal.
Não é, pois, compensador
Bom trocar e o mau impor.
A boa acção não o implica
E, no íntimo, gratifica.
344 – Impor
Impor a própria vontade
Não é nunca solução.
Dominar, se me persuade,
Magoa-me o coração
Tanto quanto o dos demais,
Porque neles causo estragos
Do divino à imagem, tais
Que matam promessa e afagos.
Se eu deixar os factos ser,
Viver posso em harmonia
Comigo e os deuses que houver
Nos outros em cada dia.
345 – Normais
Jesus, Buda ou Maomé
São tão normais nos humores
Como qualquer de nós é.
As emoções, os amores,
As falhas, as ignorâncias
São as das nossas infâncias.
O projecto redentor
É no que se vão mudando,
Passo a passo e ao sabor
De aprender de quando em quando:
É a lenta levedação
De qualquer transformação.
Não te preocupes, pois,
Se não és mesmo perfeito.
A vida é toda arrebóis
E não tem mesmo outro jeito:
Embarquemos na viagem,
Tudo, enfim, é aprendizagem.
346 – Energia
Quanto mais coisas tivermos,
Mais tempo, energia gasto
A tratar delas em termos.
O valor da vida é o pasto
(Seja embora duradoiro
Como importante demais)
Da busca ao falso tesoiro
De adquirir bens materiais.
347 – Sociedade
A sociedade nos incita
A nos tornarmos importantes,
A circunstância, a pompa fita,
Orgulho e fama são gritantes.
Os bens da terra, com frequência,
São do estatuto toda a essência,
Já concebidos a desviar
Toda a tenção das multidões
Para o vazio medular
E natural de ocos balões.
Tais bens são roupa conspurcada,
Sobre a nudez, a mascarada.
É bem precisa uma criança,
Tribo perdida em virgem selva,
Para um olhar que o fundo alcança
E que devolva o orvalho à relva.
Ele é que dita a sã sentença
Que ali perceba a diferença.
348 – Movimento
O movimento, actuar,
Era a melhor terapia:
Ou me dedico a viver,
Ou me dedico a morrer.
Então, para me curar,
Trato-me e corro na via.
Resulta que o sentimento
Virá responder à acção:
Sentimento e movimento
Ligados, portanto, estão.
Quão mais activa a atadura,
Mais a vida e melhor dura.
349 – Ciclo
Do ciclo da vida parte
Faz que o novo é construído
Sobre as ruínas que acarte
Do antigo antes derruído.
Brota a alegria ao tempero
Dos vales do desespero,
Quando saltam renovados
Sobre montes e valados.
350 – Medo
Há indivíduos que receiam
De tal maneira morrer
Que têm medo de viver.
Tanto outros viver receiam
Que morrer então preferem.
Depois há quantos medeiam
Entre ambos o que é que querem,
Que viver tanto receiam
Quanto receiam morrer.
Uma escassa minoria
É sábia bastantemente
Para aceitar vida e morte
Com serenidade fria.
Ficam livres, de repente,
Para apreciar a sorte
Desta valsa sideral
Da vivência corporal.
351 – Próprio
A ti próprio te conhece
E depois sê verdadeiro
Para contigo e a quermesse
Da imagem divina, esteiro
Que em ti rega a tua messe.
Autêntico te revela
Através dos sentimentos.
Atreve-te a erguer a estrela
Alta dos empreendimentos
Que te impetre o coração
Quando te envolver na acção.
A norma de ser feliz
É só inteira tal matriz.
352 – Canora
Quem é que quer entender
Duma ave canora o canto?
Escuta-o sempre quenquer,
Julga-o ou não um encanto.
- Por que obras de arte, em lugar
De entender, não contemplar?
353 – Fraca
Arte, livros ou pintura
Terão fraca qualidade,
Quando a banca se inaugura,
Mas vendem em quantidade.
Para a comunicação,
Bom é o que for novidade,
Mesmo que importar-lhe não
Lhe importe nada, em verdade.
O editor, o galerista
Querem é ter lucro algum
Com os produtos em vista,
Conta é conta em cada um.
O impressor se está nas tintas
Para aquilo que imprimir,
Pouco lhe importa o que pintas
Mas o que venha a auferir.
Donos de lojas após,
Embora não satisfeitos,
Não se atrevem contra os nós
A dizer nada em tais pleitos.
Por fim vem o fruidor
Que sente má consciência
Se não revelar fervor
Por obras más de evidência.
De equívocos é cadeia,
Uma falta de coragem
De assumir a própria ideia,
Convictos, quando reagem.
Sofrem do medo de ser
Acusados de modernos
Não serem ante quenquer,
- E os lixos reinam eternos.
354 – Crença
Tantos modos há de olhar
Para a vida e para a morte!
E ninguém pode afirmar
Que uma crença tem a sorte
De estar certa e que outra é errada,
Na tessitura embrulhada.
O problema radical
De nosso tempo é o de haver
Quem diga: “só o meu fanal
Religioso é que há-de ser
Certo e quem não concordar
No Céu não terá lugar”.
Então a religião,
Em vez de nos religar,
Irmão desliga de irmão
E os povos desliga a par:
A guerra ao fim prenuncia
Que nos matar algum dia.
Não pode ser verdadeira
A crença que me atirar
Ao fundo da ribanceira,
Sem na vida mais singrar:
Pelos frutos a conheço,
À crença com que tropeço.
355 – Dúvida
Nunca na religião
Dúvida se opõe a fé.
Quando alguém duvida, não
Somente aberto e de pé
Perante a fé se mantém,
Como a dirigir-se está
De facto já para lá,
No provável passo além.
Quem não crê já não duvida,
Mas o que duvida faz
Perguntas que logo atrás
Podem levá-lo, em seguida,
A acreditar, fundo e sério.
Então irá caminhar
Vida além pelo mistério,
E molda o próprio lugar.
356 – Caos
Do caos salvar-nos podem
Conhecimento e verdade.
Quando com eles acodem
Tolerância e compaixão,
É maior a humanidade
Que partilho no meu chão.
Sem tal matiz do ingrediente,
Resta só medo, ignorância
Que o fanático alimente.
Do que é humano finda a instância,
Volta-se ao dente por dente,
Da fera humana constância
Só nos caboucos presente.
357 – Direcção
Sei o que é ser empurrado
Numa direcção na qual
Não quero ir, ou num caminho
Sem me encontrar preparado.
Os mais dizem que, afinal,
Sabem melhor o cadinho
A mim mesmo apropriado.
Acaso uma ou outra vez
Tal é verdade, talvez…
Pouco importa que a forçar
Continuem, a não ser
Se o poder vão retirar
A cada qual de escolher.
Desde que o poder mantenha,
Tira um lado o que outro apanha.
O ganho da resistência
É que cada qual se amanha
Mais e mais da própria essência
E então é que tudo ganha.
358 – Assumir
Quando fazemos a asneira,
Há que assumir, enfrentar
Dela a consequência inteira.
Então a nos respeitar
Mais os outros passarão,
Mais o que é mais singular:
É que a nós, na ocasião,
Nós próprios vamos passar
A mais respeitar então.
359 – Espectáculo
Não quero ser atracção,
Espectáculo nenhum,
Não sou uma aberração,
Sou um milagre comum.
Nenhum dos dois quereria,
Nem dos outros ser olhado
Como um ou outro, na via,
Nem como os dois, doutro lado.
Mas o que posso na vida
É ser aquilo que sou
E quem sou. E na medida
Em que o for, é que aqui estou.
360 – Força
Agora e sempre, a escolha é tua,
Sentes a força do Poder.
Estica o braço, prende à tua
A mão que acena a se perder,
Oferta a ponte para a luz,
Ou permanece no negror
E satisfaz, que te seduz,
Teu apetite de furor.
Agora e sempre, a escolha é tua:
Ou noite escura, ou nasce a Lua.
361 – Fuga
Não poderás modificar
Aquilo que antes ocorreu
Mas o que está pode mudar,
Dele outro ser o gineceu.
O que não podes é esconder-te
Nem dum nem doutro, tens de agir.
Teu ser é quanto em ti desperte
E não há fuga, há que seguir.
Tentas fugir tempo demais:
Agindo assim, não vês que trais?
362 – Abrigar
Estamos entre o céu e a terra
Que fazem mais que simplesmente
Nos abrigar, em paz ou guerra,
Entre eles, manto mais semente:
Eles esperam que possamos
Nós merecer, em nossos tramos.
Teremos, pois, que decidir:
- Que me proponho, até onde ir?
363 – Esquecimento
Procurar viver em paz
É cada vez mais urgente.
E o que o dia-a-dia traz
É o esquecimento atrás.
A relação que é presente,
Em vez de base no amor,
Tem a base no poder:
De bens materiais um ror,
De competição valor,
De sedução de quenquer,
Do que temos a ganhar
Em agir duma maneira
E não doutra que, em lugar,
No fundo vemos, a par,
Que cremos que era a certeira.
364 – Farás
Podes fazer com a vida
O que com água farás:
Em concha as mãos à medida
Sob a bica desprendida
Coloca e recebe-a em paz,
Cria o espaço adequado
A poder permanecer.
Se mudar não posso o dado,
Posso ter sempre alterado
O modo de o receber,
A maneira de lidar,
De acolhê-lo no interior.
O que importa é preservar
A não-resistência ao ar,
À vida que acolher for.
365 – Relaxa-te
Relaxa-te interiormente
Perante o evento de que antes
Te defendeste, veemente,
Num combate sem guantes,
Evitando-o, se for caso,
Ou controlando-o a prazo.
Não vais negar o que sentes
Nem desistir dos afectos.
Vais relaxar-te, entrementes,
Apenas, sem mais projectos:
Sem medo, deixa que o facto
Se aproxime de teu tacto.
As reacções emocionais
Tuas aceita, cordato,
Observa-lhes os sinais
Sem lhes ir atrás do trato.
Colhe o evento sem julgá-lo:
Não lhe sentes mais o abalo.
366 – Programa
Sempre algo a ter que fazer,
(Programa profissional,
Alguém com quem conviver,
Um labor outro qualquer…)
Sempre acolho como um mal
Que há tempo de actividade
Como de meditação,
De inteira passividade.
E, por mais que não me agrade,
Qualquer deles, em tensão,
Como pólo que é dum eixo,
Tem de ser por mim vivido.
Só com tal a tensão deixo
Dissolver-se no que enfeixo
Em meu cotio aguerrido.
367 – Atraímos
Quanto mais agradecermos
Aquilo que nos é dado
Mais se atrai, naqueles termos,
Quem mais nos dê por contado.
Ter boa vontade alguém
Com outrem, casos da vida,
Faz aparecer também
Quem nele use igual medida,
Quem para com ele a tenha,
E conjunturas prováveis
Que os feixes juntem da lenha
Dos lumes mais favoráveis.
368 – Abertura
Tal como um primeiro passo
Na abertura da consciência,
No agradecimento traço
Da libertação a essência,
Na medida em que liberta
A boa vontade alerta
Que em todos nós pré-existe,
Mesmo naqueles em quem
Não seja, que nunca a viste,
Captável como convém.
Mesmo quando a agradecer
Nada venha a aparecer,
Que a vida apenas nos pede
Paciência, resignação,
Posso aproveitar tal sede
Para me livrar do vão
Sentimento de injustiça,
Do desejo que me enliça,
Insatisfeito, da inveja
Que me torna prisioneiro.
A gratidão que se almeja
Aproveito-a por inteiro
Quando preferencialmente
Olho o que tiver em frente,
Por pouco ou nada que seja,
E não o que não tiver.
Que o bom da vida se veja,
Não o mau que nela houver.
Focar a nossa atenção
No banal da ocasião
Que tendo a nem ter em conta.
Não lhe aproveito a energia,
Jamais sei a quanto monta
Dele a esbanjada alegria.
Perco dali o alimento
Que pode ser meu sustento.
É o sorriso da criança
Que, banal, me é dirigido,
A mão de alguém que me alcança,
Um encontro surpreendido
Com quem eu descubro, atento,
Quão comum é nosso alento,
É abraçar poder alguém
Com quem vou sentir a força
Que dum abraço nos vem,
Conversa que me reforça
Por alguém só que me diz
Com quanto agrado me quis,
O mero facto de ter
Um envoltório de amigos,
Um alvor que vai nascer,
Um pôr-de-sol nos pascigos,
Um dia que é cintilante,
Um canto de ave distante…
Desenvolvo a gratidão
Se, em vez de me lamentar
Pelo que não tenho à mão,
De apenas valorizar
O que gostava de ter,
Antes procuro reter
Que tudo isso é relativo,
Deveras pouco importante
E sempre menor motivo
Que o que tendo a pôr-lhe diante.
Porém, abro-me ao apelo
De algum dia recebê-lo.
369 – Desperdiço
Grande parte da energia
Desperdiço no passado
Ou a investir no futuro.
Entretanto, doutro lado,
O só tempo que me fia
É o presente que inauguro,
Aquele que está passando
No instante em que vou estando.
É apenas a apreciá-lo
Que aqui vou podendo estar
Contente com o regalo
Do que sou e tenho a par.
É a medida de raiz,
A única que é credível,
De eu poder viver feliz
Na medida do possível.
370 – Consciência
A consciência existencial
É pouco valorizada
Por vivermos no irreal,
Do presente além da estrada.
Temos saudades demais
Daquilo que já tivemos,
Muitas desgraças fatais
Recordamos que vivemos,
Pesam-nos recalcamentos,
Mil cicatrizes de antanho…
Ou sofremos os tormentos
De não termos outro ganho,
Do não retido é o desejo,
Uma enorme ansiedade
Do que ocorrerá no ensejo
Que não controlo em verdade…
Preocupo-me com quanto
Não existe em realidade,
Mas incomoda, entretanto.
Que o amanhã que me invade
Seja como o dia de hoje,
Que bem o conheço, ao menos.
A espontaneidade foge,
Os afectos não são plenos,
Que medo, dentro de nós,
Temos de que algo nos saia
Sem mais controlar-se após.
Que outrem a inovar não caia,
Dou-me mal na inovação…
Não vivemos no presente
E tudo isto ocorre então.
É o Ter no píncaro assente,
Com a urgência de lutar
Contra quem o território
Me venha então disputar:
- Reduzo-me a um somatório!
371 – Ter
O que importa é o desapego
Em relação aos objectos,
Posses, território cego,
Ao Ter e do ter projectos.
Não é não usufruir
Aquilo que a vida dá,
Mas a paz não se puir
Quando falte algo acolá.
372 – Diluir
Não pode fazer ninguém
Diluir o sentimento
De ajuda em falta em alguém,
Que é no mais fundo elemento
Do mesmo alguém que ela mora
E aí só chega o intento
De si próprio, sempre e agora.
Se viver na expectativa
Ilusória duma hora
Em que há-de vir o conviva
Capaz de me substituir
No dever, na iniciativa
De me cuidar a seguir,
Nunca estarei satisfeito
Do que em meu íntimo vir.
Iludo-me, no meu peito,
Todo o tempo, sem porvir,
E iludo todos a eito.
373 – Tarefa
Tanto mais preocupados
Vivemos com o que ocorre
A nós como aos mais chegados,
Quanto mais à vida atados
Como tarefa que corre
E que tem de ser cumprida
E de que não desistimos,
Atletas numa corrida,
A batalha desmedida
Que ter de ganhar sentimos.
Mas na vida acreditar
É sorrir-lhe tão somente,
Abrirmo-nos ao luar
Que dela pode emanar
Para encantar toda a gente.
É mergulhar na corrente
Fluída que acaricia
Ou me arrepela, contente,
Como quem me ferra o dente
Ou me abre a janela ao dia.
Quanto menos agarrar
Coisas, pessoas, eventos,
Menos prender o luar,
Mais atrair, em lugar,
Irei eu da sorte os ventos.
374 – Pendor
Os eventos nunca mudam
Pelo facto de os olharmos
Do pendor bom ou do mau.
O que, porém, a nós grudam
Vem de nós os encararmos
Dum bordo ou outro da nau:
Se navego em positivo,
Dão-me o positivo em tudo,
Mas, se for em negativo,
Eu é que em negação mudo.
Cabe-me a mim escolher
Que rota é que irei querer.
375 – Fruir-lhe
Aqueles que têm sorte
Não ignoram o trabalho
Que dá fruir-lhe o recorte:
Ser fiel até à morte
A mim mesmo, entre o baralho
De quanto me entalha o corte.
Interiormente erecto
Manter-me, mesmo também
Se em cima me cai o tecto
E o momento desafecto
O desalento contém
De reduzir-me a um objecto.
Atenção, honestidade,
Discernimento constante
Ante os desafios que há-de
Trazer a vida que invade
Cada hora, instante a instante,
A minar-me a identidade.
Às vezes, uma ousadia,
Outras vezes, paciência.
De sorte quem tem magia
Mas que preço pagaria
Por trás daquela evidência,
Toda a noite, todo o dia!
376 – Stresse
Sem stresse quem o melhor
Irá dele próprio dar?
Ninguém vai lograr-se impor
Na eficácia culminar.
Mas stresse a mais nos encerra
Num círculo vicioso,
A nos atirar por terra,
Num sem sentido viscoso.
É o caos interiormente,
Exteriormente é falhanço.
Entre ambos é ter presente
Que ao meio termo me alcanço.
377 – Tempo
Pouco tempo o essencial leva,
O acessório leva muito.
Suspendido, o labor ceva
Mais tempo, pago ou gratuito.
E, quanto mais tempo temos,
Mais então nos demoramos.
E, além do limite, vemos
Que de insistir não ganhamos.
É um acto de cada vez
E tratar de obrá-lo bem,
Respeitar nosso jaez
No ritmo que mais convém.
-Quanto menos interesse,
Mais o tempo despendido
A fazer o que merece,
Afinal, outro sentido.
378 – Criança
Em todos nós, mesmo adultos,
Há uma criança que pede,
Frequentemente, aos estultos
Ajuda, que chora e cede,
Que barafusta, que grita,
Mas que, à medida que vamos
Crescendo, se cala, aflita,
Que nos ensinam os amos
A não ouvi-la de vez.
E, por ser bem educados,
Nada ouvimos, mês a mês,
Sufocamo-la em cuidados.
Aquilo a ser que não é
Nós a obrigamos acaso
E mesmo a gostar até
Do que não gosta, sem prazo,
A rir quando, eventualmente,
De chorar só tem vontade…
Conformada, evanescente,
Cala-se, ao ter certa idade,
Desiste de reagir.
Chamam-lhe maturação
Ao sufoco, ao não ouvir,
Quando é só mutilação.
379 – Nefasto
Quando alguém nos magoar,
Por mais nefasto que seja,
Ao mesmo tempo vem dar
Uma ocasião de olhar
Mais fundo dentro, onde eu veja
A vulnerabilidade
Que àquele nível tiver.
Por mais que me desagrade
Da mensagem tal verdade,
Enquanto me faz crescer,
Pode então minha alegria
Não me vir a retirar,
O encantamento que havia
Pela vida que vivia
Pode-me ao fim aumentar.
380 – Cuidar
Se fizer todos os dias
Coisas que o tornam feliz
Em vez do que não lhe agrada,
Lhe aborrece as fantasias
E consigo não condiz,
Anda a cuidar da raiz,
De confiança encontrada.
Tudo então irá correr
De maneira diferente,
Sem a tensão lhe crescer
No coração, de repente:
A raiz vai germinar,
O ser toma então lugar.