QUARTO  TROVÁRIO

 

 

                    COM  AQUILO  QUE  DEFINE  A  CAMINHAR

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 381 e 559, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                381 – Com aquilo que define a caminhar

 

                                                Com aquilo que define a caminhar

                                                Vai o poema desbravando a rota,

                                                A medir com metro regular

                                                O que, dum lado e doutro, lhe rimar

                                                Com cada nível da cota.

 

                                                Para a pegada

                                                Marcar o chão que pisa,

                                                De tactear cada palmo da jornada

                                                Cada verso precisa.

 

                                                Na terra lisa ou em ruga

                                                Despistado o que a enforma,

                                                Desvendo o campo de ataque ou de fuga,

 

                                                Senhor fico de talhar a norma,

                                                Imprimo à pegada minha forma.

 

 


382 – Interior

 

No interior há preconceitos,

Mas tradições são mantidas,

Estabilizam os preitos

Que estruturam mundo e vidas.

 

Se houvera só capitais,

Cidades no mundo inteiro

Sem interiores tais,

A moral era um lameiro

 

Que, na primeira enxurrada,

Se escoa pela levada.

 

 

383 – Eventos

 

Aquilo que nos moldou

Não é só quanto ocorreu

Mas antes quanto mudou

Dentro em mim, do que sou eu.

 

Foi antes quanto senti,

Como reagi dentro e fora,

Que me fez o que eis aqui,

Mais que os eventos de outrora.

 

Não é uma infância infeliz

Que adultos faz depravados:

Muito há quem tem cicatriz

E que cura em muitos lados.

 

 

384 – Brota

 

O trabalho criativo

Brota dum envolvimento

Forte, apaixonado, vivo,

Como o dum amante atento,

 

Quando um artista ou alguém

Com um certo outro interage

E à luz algo novo vem.

Tal outro pode ser laje,

 

Tela, dança ou escultura,

Melodia ou manuscrito,

O barro que a mão tortura,

Teoria, invento aflito,

 

- Que durante um tempo absorvem

E fascinam totalmente.

Para aqueles que se envolvem

A criatividade sente,

 

É uma trama sensual,

Colhe momento a momento

Vivência sensorial,

Envolve som, movimento,

 

Tacto, imagens, mesmo olfacto

E acaso até paladar…

Como um amante de facto,

O artista absorto a criar

 

Descobre que estão alerta

Dele todos os sentidos

E esta teia é que desperta

De arte os efeitos nascidos.

 

 

385 – Crescimento

 

Crescimento de sementes

Depende de solo e clima,

De haver ou não nutrientes,

Do cuidado que os estima

 

Por parte dos jardineiros,

Depois, do recipiente,

Da robustez dos viveiros

Na variedade pendente…

 

Mesmo assim uma semente

Pode ou não desenvolver-se

Então pura e simplesmente

Do rebento que ali verse.

 

Mesmo se desenvolvendo,

Vai magnificentemente

Crescer ou ir-se tolhendo,

Por má sorte, eventualmente.

 

Tudo, pois, afectará

O aspecto particular

Do que a semente dará,

Mas a forma há-de lá estar

 

Ainda então reconhecível,

A identificar a planta.

O arquétipo em nós vivível

É mesmo assim que se implanta.

 

Basilar padrão humano,

Destreza inata maior

Terá, num ou noutro plano,

Nalguns, como é de supor:

 

É uma aptidão musical,

Do tempo um sentido inato,

Um dom psíquico especial,

Mental destreza a recato…

 

Uns parecem incarnar

Desde que mal respiraram

O arquétipo singular,

Com ele outros mal deparam.

 

Nuns será rumo de vida,

Noutros, de agora explosão

Que marcará de seguida

As pegadas pelo chão.

 

Mas é o ausente presente

Dentro em nós eternamente.

 

 

386 – Abaixo

 

São as coisas mais grandiosas,

São as árvores mais altas

Que abaixo vão, estrondosas,

Dos raios, mal as exaltas.

 

Adora contrariar

Da natureza o apresto

Ao que maior se antolhar

Cá por baixo do que o resto;

 

Não suporta nunca orgulho,

A não ser o dela mesma.

Tudo o mais será gorgulho,

Pisa-o no chão como à lesma.

 

 

387 – Resiste

 

Um corpo robusto

Resiste à doença

E cura depressa,

Faz com menos custo

Que o íntimo vença

Mal em que tropeça

 

Quando são enfrenta,

Quer uma tragédia,

Quer nova que o tenta.

Quando fraco, em média,

 

Todo mais se agita

E a turvação dura,

Perdura, infinita,

E ao fim nada apura.

 

 

388 – Mentira

 

Quando minha plenitude

É doutrem o sofrimento

É mentira que me ilude.

Então, a qualquer momento,

Chega, sem me aperceber,

A minha vez de sofrer.

 

 

389 – Escumalha

 

Bem mais que a incompreensão

Dos heterossexuais

A escumalha atira ao chão

E aterroriza demais

O jovem que se persuade

De homossexualidade.

 

É impressão devastadora

De que ser homossexual

É ser à margem, de fora,

Mesmo caricatural,

Degradante, se calhar,

E sempre a se exacerbar.

 

Este terror fulgurante

É o das neuroses profundas

Que aos mui jovens adiante

Presas fáceis, infecundas,

Das serpentes vai gerar

Que tais pardais vão caçar.

 

O gosto pela abjecção,

Para a corrupção tendência,

Queda na degradação…

Por quanta mais decadência

Tal imagem responsável

Não é no que é vulnerável?

 

Detém um deles na rua,

Procura-lhe a confidência:

Quanta depressão actua

E que terrível ausência!

E por trás uma palavra:

Angústia – que o escalavra.

 

 

390 – Escrita

 

A escrita dum escritor

É tal qual um palimpsesto,

Camafeu de alto valor,

Um gesto sobre outro gesto.

 

É um texto sobre outro texto

Que já existe anteriormente

Mas que não é, no contexto,

De ver-se imediatamente.

 

Ao escrevê-lo é que à vista

Salta o que antes lá resista.

 

 

391 – Leitor

 

Sempre o leitor subestima

A própria dele importância:

Se com o escritor não lima

De cada frase a elegância,

 

Se o livro não cria junto,

Nunca o livro terá vida.

Envolvimento no assunto,

Ao ler, impõe outra lida,

 

É o que vai distinguir ler

De olhar a televisão:

Nesta passivo há-de ser,

Uma esponja de absorção,

 

Não poderá mexer nada.

Ao ler, somos criadores,

Imaginamos a estrada,

Os cenários, os amores,

 

Vemos rostos a falar,

Ouvimos inflectir vozes…

Autor e leitor vão dar

Um ao outro o rosto e as poses,

 

Encontram-se as duas lavras

Numa ponte de palavras.

 

 

392 – Triste

 

O mais triste de hoje em dia

É que a ciência mais lesta

É, no saber que enuncia,

Do que a Humanidade atesta

Degraus de sabedoria.

 

É por esta discrepância

Que (quanto maior ciência,

Maior o fosso, na instância,

Para a minha conveniência)

Vivo numa inerme infância.

 

Este suplemento de alma

Que anda sempre em falta aqui

É que nos traria a calma:

A par o que em ciência li,

Deste imo que tudo acalma.

 

 

393 – Arte

 

Mesmo em arte a que um artista

É todo vocacionado,

Sobre a qual inteiro invista,

Para a qual vive apontado,

Mesmo ali qualquer ensejo

Aquém fica do desejo,

 

Nunca atinge o patamar

Que era então de desejar.

 

Estamos sempre a tentar,

Tentar a proximidade

Do limite em que apostar

Nossa possibilidade.

No fundo, busco o conduto

De que é feito um absoluto.

 

É o que ninguém nunca atinge,

Que ignora, mesmo se o finge.

 

O que sabemos ao certo

É ninguém nascer senão

Para morrer, longe ou perto:

Só a morte nos tem à mão.

É num além da esperança

Que a vida sempre balança.

 

Quem a esperança perdeu

Liquidou a terra e o céu.

 

 

394 – Tempo

 

O militar tem a glória,

No combate, da vitória

 

E tem-na o comerciante

No lucro somado adiante,

 

Mas um pintor, um artista,

Onde é que a vai ter à vista?

 

Não há nada exactamente

Que determine onde assente.

 

Qualquer arte é especial,

Só tem uma lei geral:

 

O tempo que a percorrer.

O tempo irá preencher

 

Papel final de juiz

Do fruto até à raiz.

 

 

395 – Horizonte

 

A força das circunstâncias

Os horizontes reduz

De cada um a distâncias

A tal ponto que traduz

 

Qualquer barraca em palácio

Que a palácio não convém.

Tudo é relativo, trace-o

Embora o sonho também.

Quando preso numa cela,

Qualquer tenda é liberdade;

Quando o tédio me atropela,

Não há palácio que agrade.

 

 

396 – Corpos

 

Vivemos aqui na terra

E nossos corpos são tudo

Que temos para viver.

Sem o corpo a que se aferra

Esta vida a que me grudo,

Sem suporte, a que me ater?

 

Mera chama sem chamiço,

Não fui feito para isso.

 

 

397 – Ténues

 

Ao longo cambaleamos

De nossas ténues cordas

Individuais que agarramos,

Estendidas pelas bordas

 

Do escuro abismo do medo,

Em meio ao negror da noite,

A oscilar, na boca o credo,

Sem canto que nos acoite,

 

Os dedos enclavinhados

De equilíbrio numa vara

Instável de ambos os lados

Da preocupação que a tara,

 

Dum lado com os temores,

Do outro com os desejos

Que não dão entre os pendores

Ao equilíbrio ensejos,

 

E sempre de ouvido atento

Ao estalido que marca

O brusco quebrar do vento

No fio que corta a Parca.

 

E depois é o sono eterno

Sem mais Verão nem Inverno,

 

Ou daquele em luz perene

Ou deste no escuro infrene,

 

À espera de que algum dia

Se nos desempate a via

 

E que seja para a Festa

Que se nos abra esta fresta.

 

 

398 – Cegos

 

O medo da solidão

Medo de ficar sozinho,

É o responsável malsão

De actos cegos que adivinho,

 

Actos sem os olhos de alma,

Só de forças de matéria,

De temor que nunca acalma,

A nos levar à miséria,

 

Quando a esvair começamos,

Tarde ou cedo, em mera perda,

Tudo o que mais estimamos,

Emprego, filhos, a esquerda

Saúde arrastada em queda,

Da vida desfeita a meda…

 

- E no fim, retrospectiva,

Vence a solidão esquiva.

 

 

399 – Atinge

 

Quenquer sabe tudo

O que há-de fazer

Tomando o conteúdo:

- Consciência do ser

Que alcança a verdade

Quando o Todo a invade.

 

Ao querer saber,

O que vier aceita

E sabe ir perder

E perde sem peita

E uma e outra vez

Perde sem revés:

 

Isto fará parte

Do que sempre é vida.

Consciência que acarte

A fundura haurida

Sabe resumir

Passado e porvir,

 

Nos céus funde na terra.

E o que isso traduz

É que a luz encerra

Toda a terra em luz.

 

 

400 – Artista

 

Todo o artista é um avatar,

Alma que irrompeu no mundo

Para fazer avançar

A Humanidade no fundo

Leito daquela mensagem

Por onde ele faz viagem.

 

Nenhum artista tem medo

Da vida e do seu segredo.

 

Então consegue trepar

Mais alto e trazer mensagens

Inspiradas naquele ar

Que respira nas paragens

Das alturas que reparte

Depois em criações de arte.

 

E o público, quando vê,

Toca qualquer obra de arte

(A que deveras tal é),

Se eleva, à aventura parte:

A espiritual energia

Arrebata o dia-a-dia.

 

 

401 – Funduras

 

Todo o mal que me fizerem

A si próprios fazem antes,

Que as funduras que me gerem

São de abismos mais distantes:

Moro sempre muito além

Do sofrimento que advém.

 

Quem ódio tiver-me a mim,

É dele que o ódio tem,

Que nele reside, enfim,

Ferida a infectar também:

Cada qual projecta fora

O que dentro dele mora.

 

Sempre dum peito magoado

É que o ódio é semeado.

 

 

402 – Gera

 

O sentimento de pena

Gera civilização

De gente muito pequena

Que diz: “Cristo é salvação

 

E por isso sofreu tanto,

Propugnou dele o ideal

E atraiu a dor e o pranto.

Ora, a me escapar de tal,

 

Nenhum ideal vou ter

Nem quero salvar ninguém.”

É a massa amorfa a crescer,

Nem missão nem fito tem,

 

Não tem foco de verdade,

Voga ao sabor da corrente.

Sem visão de eternidade,

Voa ao vento que então vente.

 

 

403 – Fé

 

Ter fé será mesmo crer

Que algo nos há-de ocorrer

E que tal algo, por certo,

É o melhor para aprender

E para evoluir, desperto,

 

Mesmo que, à primeira vista,

Julgue que não e resista.

 

É acolhimento de vez

Contra ventos e marés,

 

É sem condições entrega,

Qualquer que seja a refrega.

 

 

404 – Religiões

 

As religiões já não vão

Da vida espiritual

Ser jamais o coração:

A Humanidade é que vale.

 

Filosofia de vida

É que à espiritualidade

Nos vai levar de seguida

Cada vez mais de verdade.

 

A hora do entendimento

Que nos ajude a viver

Melhor a cada momento

Chegou já para quenquer.

 

É o que ajuda a conectar

Com o divino além, fundo,

Sacra força a nos guiar,

A nos proteger no mundo.

 

 

405 – Espiritualidade

 

A espiritualidade é perceber

E praticar que o que sentimos dentro,

No coração, vai sendo mais o centro,

Cada vez mais em nossa vida e ser.

A certa altura só se quer sentir

Aquele amor, aquela paz de vez,

Aquele estado unido com que um és

Com o Cosmos inteiro no devir.

 

E todos os apelos da matéria,

Bens de cotio, consumo e todo o ter

Deixam então sentido de fazer.

Espiritualizar-se em via séria

 

É o mundo encontrar novo, a prometida

Terra que aguardaremos cada dia.

Questão é deixar o ego que enfuria,

Com os desejos dele a que convida:

 

Jamais “eu quero aquilo” ou “de tal modo”.

É não levar ao céu mente pesada

De matéria, tropeço nesta estrada.

A comunicação com o céu todo

 

É muito mais subtil que a ligação

Com a matéria que é muito mais densa.

Quem não abandonar esta presença

Petrificada e dura, preso ao chão,

 

Já não se eleva acima e não percebe

A subtileza fina de ir ao céu,

Não o atinge, de ansioso, o medo ao léu,

Mais denso acaba e mais grilhões recebe,

 

Remata cada dia mais ligado

À matéria a que vive aprisionado.

 

 

406 – Silêncio

 

Do silêncio de mim mesmo ando a fugir

E através deste silêncio é que sentir

 

A mim mesmo vou poder, saber quem sou,

Para após ir escolher por onde vou.

 

Só sabendo quem eu sou posso escolher

Com o meu arbítrio livre o que fazer

 

 

Sem receio de que a escolha seja ao fim

Contra minha natureza, contra mim

 

E o caminho que na terra vim trilhar.

Respeitando quem eu sou posso triar,

 

Escolher com tal de acordo e os horizontes

No infinito ilimitar criando pontes,

 

Ampliando mais e mais minha energia

Radical, que era a de origem que se amplia.

 

A que é do ego, a que pretende isto ou aquilo,

Por convir a mim mais sê-lo, onde perfilo

 

A defesa de quem vibra pelo medo,

Não se amplia, retrocede, reduz cedo.

 

Ser é a chave da questão: se sou, se ouvir

O silêncio que em mim more, entro em devir,

 

Invencível findarei, que a força vem

Cá de dentro, da impulsão que a crença tem

 

De mover quaisquer montanhas, por poder

De quem crê que pode alar o que quiser.

 

 

407 – Retirar

 

Nunca podes retirar ninguém

Do lugar onde estiver presente,

Conjuntura que o colher além,

Dum parceiro em que ele a vida assente,

- Só porque ele é tal lugar, evento

E o parceiro do comum intento.

 

Retirar não poderás quenquer

Do que ele é, que só lá está por ser

Tudo aquilo e tanto assim que atrai

Para ele quanto houver ali:

Semelhante ao semelhante vai

Atrair, como fatal, a si.

 

Não adianta ocasiões de fora

Dares todas para alguém cá vir,

Sendo quem num outro sítio mora,

Que virá sem o daqui sentir,

Iguais vícios vai de lá trazer,

Tarde ou cedo volta a igual viver.

 

É deixar onde estiver quem for

E ajudá-lo a se moldar melhor,

O que pensa em relação a tudo

Ir mudando, em relação à vida

Como a si, para se olhar desnudo,

De escolher ter a ocasião devida

 

Quem ele é, mas sê-lo então deveras

E parar de ser quem outrem quer.

Com a ajuda nesta crença, as heras

Devagar irão então fazer

As raízes (em que crê) furar

Entre as pedras do anterior lugar.

 

Tal ambiente de ser deixa então,

Pois o choca na novel feição.

Preparado agora a estar começa

Para já dali sair ligeiro,

Já se não confunde mais, tropeça

Contra as bermas que ele foi primeiro.

 

 

408 – Harmonia

 

Deus não é castigador

Mas harmonia entre tudo.

Se o homem desarmoniza,

Desequilibra um pendor,

Do Universo o conteúdo

Todo então se mobiliza

Para tornar a repor

Tudo em devido lugar:

Nada pode isto alterar.

 

O Universo apenas pode

Se expandir, evoluir,

Porque mantém a harmonia

A qualquer custo e fasquia,

Este equilíbrio que acode

Entre opostos em devir.

 

A matéria é de oponentes:

Saúde versus doença,

Riqueza versus pobreza,

Bem e mal sempre evidentes.

Opostos cuja sentença

É equilibrar com presteza.

 

É que o homem vem à terra

Para vivenciar os dois,

Não só aquilo a que se aferra

Nem só o outro que há depois.

 

Quando um ego humano escolhe

Um dos lados dos opostos,

Toda a força do Universo

Se junta e tudo recolhe

A lhe enviar, contrapostos,

Os jeitos do lado inverso.

 

Quem só quer saudável ser

Então, mais cedo ou mais tarde,

Doença irá conceber:

Tem de a vivenciar como arde.

Quando de opostos me teço

O Universo inteiro meço.

 

 

409 – Morrer

 

Não, morrer não é o que pensas,

O que todos cuidam, gritam.

Morrer das matérias densas

É se libertar, que incitam

 

Leis fatais a retornar

Para um uno original,

Voltar à raiz, voltar

Ao sentir mais radical.

 

Quem agiu dele a missão,

Se desenvolveu a termo,

Chegou ao fim da função,

É de partir, deixar ermo

 

Tudo aí, para ensinar

Os mais através da perda.

Apenas é de o limpar

De quantos pesos ele herda,

 

Para que, após a partida,

Apesar do sofrimento,

Para voar na subida

Mantenha o discernimento.

 

É um divino protegido,

Ensina-nos muito a todos:

Da vida e morte o sentido,

Os espirituais engodos.

 

Chegou a hora fatal

De vivenciar a sorte

Da vera perda real:

A perda final da morte.

 

 

410 – Assustaste-te

 

Assustaste-te e tiveste medo,

Fez-te o medo aqui voltar à terra

E prendeu-te num subtil degredo.

Quem tem medo nunca mais desferra

 

E vogar nunca mais vai mar fora

E subir nunca consegue mais.

Quem tem medo fica em baixo agora

Agarrado às ânsias vãs que trais.

 

Fugir de algo atrair vai tal algo:

Quando alguém foge do medo, ausência

Vai sofrer do só jardim fidalgo

Que de medo não tem mais essência,

 

O Infinito, o céu imenso, enfim.

Quando tem medo é sempre um ego a impor-se,

Qualquer alma não tem medo assim.

Quanto mais espiritual se esforce

Por devir, menos alguém tem medo.

Não confundas, todavia, este

Com quem finge e o medo tapa, tredo,

De atributos de que falso o veste.

 

Quem tem medo nunca sobe além,

Quem tem medo não se eleva nunca,

Quem tem medo nunca sonhos tem,

Nunca voa: pobre o solo junca.

 

 

411 – Aliadas

 

Ciência e religião,

Longe de inimigas serem,

Antes aliadas são,

Duas linguagens que auferem,

Diferentes na lição,

A mesma história em função.

 

História de simetria,

Tensão entre céu e inferno,

Quente e frio, noite e dia,

Deus e Satanás no averno.

Assim rejubilaria

Saber de hoje, a fé em dia,

 

Na simetria divina,

Na eterna competição,

Ante que tudo se inclina,

Entre luz e escuridão.

É tudo o que mais fascina

No que na história domina.

 

 

412 – Contraditórias

 

Ciência e religião

Contraditórias não são.

 

Mas, simplesmente, hoje em dia

O que nos é dado ver

É a ciência em demasia

Jovem para o entender.

 

 

Se a contradição subsiste

É estreiteza do que viste.

 

A crise da juventude

Aqui, tal na vida, ilude.

 

 

413 – Facto

 

Em Deus acreditarás?

A ciência diz que Deus,

Se existir, é lá por trás.

A mente, em limites seus,

Diz que jamais é capaz

De entender o que há nos céus.

O coração, ao intuir

O que vislumbra dos véus,

Diz-me que nunca é eficaz,

Não deverei conseguir…

- Deus é o facto que revelo

De nunca vir a entendê-lo.

 

 

414 – Modelo

 

Não pergunto se acreditas

No que o homem diz de Deus,

Mas em Deus, que não debitas

Nenhum modelo dos céus.

 

Há uma diferença ali:

As escrituras sagradas

São lendas, contos que li,

São, história além, pegadas

 

Do esforço da Humanidade

Para poder entender

A própria necessidade

De significado ter.

 

Não te peço, pois, juízos

Sobre uma literatura

Mas se crês em Deus nos visos,

Além de qualquer figura.

 

Quando ficas estendido

De costas num campo em flor,

Sob as estrelas rendido,

Sentes o divino odor?

 

Sentirás lá bem no fundo,

Olhando o esplendor dos céus,

Que estás vendo, aqui do mundo,

O toque, afinal, de Deus?

 

 

415 – Religião

 

Religião, como a linguagem

Ou maneira de vestir,

Atrair-nos-á na imagem

Das práticas a seguir

Em que, infantes descuidados,

Fomos todos educados.

 

No fim, todos proclamamos

O mesmo: que a vida tem

Um significado. Estamos

Gratos ao poder também

Que nos impele e criou

Na magia que engendrou.

 

Muçulmanos ou cristãos

Depende só do lugar

Onde nascemos, que irmãos

Somos todos sempre a par.

É só ver como difundo

As religiões no mundo.

 

Não é a fé que é aleatória,

A fé sempre é universal.

Os métodos e a memória

De entendê-la é que, afinal,

Têm muito de arbitrário,

Que qualquer trilho é sumário.

 

A Jesus rezam alguns,

Outros vão antes a Meca,

E não encontras nenhuns

Que água não busquem à seca

Boca acaso tragicómica,

Mesmo numa bomba atómica.

 

No fundo, mui simplesmente,

Todos andam à procura

Da verdade evanescente,

Uma verdade segura

Que obriga a correr após

E que é maior do que nós.

 

 

416 – Depende

 

A ciência pode curar,

Pode matar a ciência:

Depende, no que a usar,

De que alma põe na ocorrência.

É o imo que mais importa,

Pois decide qual a porta.

 

 

417 – Cava

 

A meta do terrorismo

É criar terror e medo.

O medo cava um abismo,

Mina a fé de qualquer credo,

 

Enfraquece a instituição

E debilita o inimigo

De dentro, do coração,

Agitando sem abrigo

 

As massas que lhe aderiam.

O terror não manifesta

A raiva dos que enfuriam,

Tem mais testa do que atesta,

 

Frecha a infalibilidade

Dum governo e, ao removê-la,

Remove a fé na verdade

Em que o povo houver de tê-la.

Com brechas toda a fachada,

Prestes vem a derrocada.

 

 

418 – Revelação

 

A revelação divina

Às vezes significar

Quer que a mente se te inclina

De vez a sintonizar

 

Teu cérebro para ouvir

O que, em fundura, lá cabe:

O mistério que, ao sentir,

O teu coração já sabe.

 

 

419 – Excesso

 

O excesso de informação,

Longe de satisfazer

Interiormente quenquer,

Esvazia à exaustão.

No meio termo, a virtude

É o que afinal nunca ilude.

 

 

420 – Fujo-me

 

Pouco importa se me grudo,

Se rezo todos os credos,

Se prendo o tempo, se o travo:

- Por mais que me agarre a tudo,

Fujo-me por entre os dedos

Sem apelo nem agravo.

 

 

421 – Falta

 

Não será falta de fé

Que os homens leva a temer

O escrutínio da razão?

Se o fado irregular é,

Então a via há-de ser

De medo por todo o chão.

 

Uma fé robusta não

Precisa de ter receio,

Que, se Deus existe, então,

Fuja embora pelo meio,

Não pode a razão deixar

De até Ele nos levar.

 

Penso, o que implica, o que insiste,

Que, portanto, Deus existe.

 

 

422 – Máquina

 

Máquina a democracia

Não é que vá funcionar

Por si própria, por magia.

Sempre há-de solicitar

Quem o valor aprecia

Tudo dentro a fermentar.

 

Como a livre economia,

Sistema em mercado aberto,

Por si nunca operaria:

Alguém tem de andar por perto

Orientando a energia,

Refreando o desacerto.

 

Para termos a certeza

De que o que ali persuade

É um aumento de bondade

Mais que apenas de riqueza.

 

 

423 – Erro

 

Um erro fundamental

É o de nos havermos posto

No mundo só com cabeça.

Doutro lado, nem sinal:

Vamos arrastando o gosto

Como algo em que se tropeça.

 

Doravante estoutras partes

Se orientam só de acordo

Com animalescas artes

- E é por isto que o chão mordo:

Não cultivámos, primeiro,

Em nós o homem inteiro.

 

 

424 – Carrossel

 

Não é um acto a diversão,

É de espírito um estado.

Não é um carrossel no chão,

Que este pode ter girado,

 

No fundo, bem deprimido.

Diversão é andar à mão

No carrossel assumido

Como festa até mais não.

 

Assim é que é festa a vida

Quando é do fundo assumida.

 

 

425 – Fiéis

 

Gostaria de pensar

Que é Deus mais iluminado

Que os fiéis que conquistar.

Para Deus, recém-chegado

 

Qualquer pagão curioso,

Seria logo benvindo,

Pois descobriria o gozo,

Em tudo o dele provindo,

 

Doutra forma de ser crente.

De estranhar é, nesta jeira,

Que o altar jamais o sente,

Não lavra desta maneira.

 

 

426 – Ancestrais

 

Todas as normas e regras

Vão trazer raiva e tristeza,

Mesmo se delas te alegras

Por virem de quem se preza,

De Moisés, de Jesus Cristo,

De Buda ou Madre Teresa,

De ancestrais por quem subsisto.

 

Mas não era intuito deles

Que foram interpretadas

De forma tão rigorosa.

O que torna um homem reles,

Que o leva a abrir as portadas

À fachada mentirosa,

Às invejas, à violência,

É o que há dele na vivência,

 

É o que dentro cultivar.

É o que dentro dele preza

Que o há-de contaminar,

Não é o que é da natureza.

Nunca o que lhe vem de fora

Marca dentro o que ali mora.

 

 

427 – Fidelidade

 

A fidelidade a Deus

É sempre a mais importante

E Deus nunca aos filhos seus

Gosta de ferir constante.

 

Todavia, optar por ele

Causa dor frequentemente

E ele então conforta aquele

Que, por fiel, tal dor sente.

 

Não é que isto anule a dor:

- O fiel é dela senhor!

 

De senhor força dorida

Menos fere na ferida.

 

 

428 – Sofrimento

 

Sofrimento não é só

Dos cegos que não entendem,

Mas dos que vêem o pó

E depois nunca propendem

 

A deixar que ninguém mais

Partilhe de tal visão.

Da maioria os sinais

Tudo aquilo que nos dão

 

É que é muito confortável

O bom que todos conhecem.

Se outro caminho é viável,

Os que o seguem logo o empecem.

 

 

429 – Usufruir

 

Usufruir da riqueza

É difícil quando os mais

Consideram sobre a mesa

Suja a moeda em que tocais,

 

Às vezes, nem mesmo a aceitam.

É o mesmo então que ser pobre,

Mas ainda pior, que suspeitam

Que nem de vós nada sobre.

 

 

430 – Cerimónias

 

Nem cerimónias nem ritos

Nos aproximam de Deus,

O nosso pai, quando aflitos

A ordenar a terra e os céus.

 

Dos rituais a pureza

Não basta, nem oferendas,

Que o que toca a Deus não preza

Nem mede o teor das prendas.

 

O que Deus deseja são

Apenas os corações.

Isto apenas e mais não:

Sempre o mais são ilusões.

 

 

431 – Promessas

 

Deus às vezes nos concede

Promessas para podermos

Ir resistindo ao que impede

Vias em melhores termos.

 

Só que ele nunca revela

A vontade aos curiosos,

Mas apenas a quem vela

Por apelos misteriosos.

 

E àqueles que lhe obedecem

Que precisa revelar?

Coisa alguma: nunca esquecem

Que nele têm seu lar.

 

 

432 – Alma

 

Alma, que é que te moldou?

O sofrimento vivido.

É triste ver que não vou,

Sem sofrer, ver meu sentido.

 

Os olhos espirituais

Não se chegam muitas vezes

A abrir a nenhuns sinais

Senão ao sofrer reveses.

 

Estes mudam quem atingem

Como as árvores podadas

Renovam e nunca fingem

Que ficam fragilizadas.

 

 

433 – Achegar-me

 

Como achegar-me de Deus

Numa peregrinação?

Quero é meu dedo nos céus,

Tenho é de Deus precisão.

 

Não são nunca meus destinos

Multidões de peregrinos.

 

E é no silêncio que fala

O que a multidão me cala.

 

 

434 – Enganado

 

Andas enganado, amigo,

O mundo não vai findar

Hoje à noite, sem abrigo,

Nem amanhã. E o castigo

Ninguém o pode evitar

 

Com reservas, mantimentos,

Que um fim nunca tem sustentos.

 

Crês que era a vida comum

De abandonar, dedicando

Todo o tempo e as energias

De todos e cada um

A depurar, meditando

No que importa, ao fim dos dias,

 

Deixar de lado o cotio,

As querelas materiais,

E votar-se ao desafio

Do que eterno dá sinais.

 

Mas sempre o eterno se vê

Nos nadas do dia-a-dia.

Sem este, fica sem pé,

É uma mera fantasia,

Embora seja a tendência

Que temos nesta pendência.

 

Nosso derradeiro dia

Ser passado deveria

Tal e qual como qualquer

Outro momento que houver,

 

Com freimas do quotidiano,

Com amor e desengano,

 

Com a honestidade certa

Que o gosto à vida desperta.

 

Não há mais forma de ser:

O comum dia comum,

Mais sagrado que qualquer

Dos dias e outro nenhum,

Se impõe assim a quenquer.

 

Aqui se encarna então Deus:

Cá ou lá, os mesmos céus.

 

 

435 – Milagre

 

Um milagre bem maior

Que sobre água caminhar,

Água em vinho transmudar,

Que magias sobrepor,

Comida multiplicar,

 

É um homem fraco e falível

Transformar num herói grado

Para além do que é credível

No imaginário castrado.

 

Este, sim, é que é o primeiro:

- O milagre verdadeiro.

 

 

436 – Dezoito

 

Aos dezoito anos tocamos

As fronteiras da ilusão:

Para trás abandonamos

A terra dos sonhos, chão

Onde os germes fanarão,

 

E à frente então divisamos

Contornos de realidade

No horizonte, além dos ramos,

Com o granito que a invade.

 

Toda a alegria da vida

Vai doravante ser ganha

Bem antes de ser obtida.

Só quem lutar é que a apanha

 

E os das grandes recompensas

Sabem das custas imensas

 

Que pagaram para as ter

Mesmo um momento qualquer.

 

Aos dezoito anitos, não,

Ninguém sabe nada disto.

Na esperança antes crerão

Que lhes sorri no registo,

 

Promete a felicidade.

Se o amor lhes aparece

Como um anjo de verdade,

A esvoaçar na verde messe,

 

Em torno da porta aberta,

É acolhido, festejado,

Ninguém faz nenhum alerta,

Será logo acarinhado.

 

De repente o chão explode

E então quem será que acode?

 

Tantas vidas que se afundam

Nas transições que as inundam!

 

 

437 – Continuamente

 

Decerto Deus não nos criou,

Nos fez viver para ansiarmos

Continuamente pela morte.

A amar a vida destinou

Nosso querer, para a gozarmos

Enquanto é dada a cada em sorte.

Ao conceder-nos a existência

Não vai querer que deviera

Pálida assim, sensaborona,

Dum triste ocaso uma opulência

Que numa sombra se perdera

E ninguém mais dela se adona.

 

Deus quer a vida e a nós com ela

Na calmaria ou na procela,

 

No gozo ou luta a que incentiva,

Mas sempre, sempre em festa viva.

 

 

438 – Monstros

 

Carreira, eficácia e glória

São três monstros que criámos

E hoje contra nós vitória

Buscam quando nos fanamos.

 

Eficientes procuramos ser

A fim de conseguir maior sucesso.

Por tal motivo acelerou quenquer,

Buscando ganhar tempo sem tropeço:

 

Comem à pressa, à pressa lêem,

Falam à pressa , à pressa escrevem,

Têm à pressa a fé que vêem

De tal cariz que mal se atrevem…

 

O engraçado é que este tempo

A tal custo ali poupado

Nunca nestas vinhas que empo

Me aparece ao fim de lado.

 

 

439 – Visão

 

Um artista com futuro

Terá uma visão mais clara,

Mais feliz, com mais apuro,

Da magia branca e rara

 

Que qualquer arte em si for.

Ele é hermético, lunar,

Um alado intercessor

Entre a vida a borbotar

 

E o espírito escondido.

E já toda a mediação

Nela mesma terá sido

Sempre espírito em acção.

 

 

440 – Mudaram

 

Os tempos mudaram mas, no fundo,

Os homens os mesmos são de facto.

Nenhuma cidade em pé no mundo

Permanecerá, se erecta ao pacto

 

De materialmente prosperar

Sem voltar os olhos para trás,

Sem raízes fundas enterrar

Num ancestral solo, húmus que a faz.

 

Cidade com fibra de aguentar

Só quando amparada em tradição:

Se acaso tiverem de lutar

Sabem porque irão lutar então.

 

Não defendem só casas, jardins,

Monumentos, lojas, mansões, bancos…

Irão defender, em seus confins,

Sonhos, sentimentos, jeitos francos,

 

As imemoriais comuns ideias…

Um arranha-céus milhões o fazem,

Mas os campanários das aldeias

Argamassam tempo e sonhos trazem,

 

Juntam sacrifício, sofrimento,

São mais que o que são: são um fermento.

 

 

441 – Estabilidade

 

A estabilidade do concreto mundo

De que a segurança em alto grau depende

Depende daquilo em que a mudança é lenta:

Regularidade deste céu profundo,

Reacção química que a ser mesma tende,

Orgânico impulso por que a vida aumenta…

 

Mas no mundo humano divergente é tudo,

O ritmo das mudas acelera vasto,

Civilizações caem num beco mudo,

Florescem, decaem, perdem logo o pasto.

 

A própria carreira de homem é imprevista,

A reacção de hoje a diferir da de ontem.

Contrasta o que é humano, tendo tal em vista,

Onde o imprevisível, o inseguro apontem.

 

A crença é escolhida num transcurso curto,

As aplicações são de milénios surto.

 

E é nestes contrastes que tomamos pé,

Tenhamos nós crenças ou nos falte a fé.

 

 

442 – Adiante

 

Adiante de nós caminham nossos actos

E nunca lhes podemos nós sustar a marcha.

E antes de os praticarmos, consumados factos,

Nada nos fez prever a vida que se escarcha,

Nada nos impediu de os praticar coactos.

 

Da culpa as consequências são irremediáveis:

Logo que radicada, vai desenrolando

De efeitos a meada enredada e fatal.

E é inviável ao homem (nas incontroláveis

Paixões que o encegueiram, falha de comando

Dos instintos) guiar-se pelo tremedal,

 

Em passos vacilantes, na escuridão crua

Da vida armadilhada, traiçoeira e nua.

 

 

443 – Mal

 

O mal feito não limita

Estragos a quem o fez

Nem a quem o não evita.

Ele alastra como o pez,

 

Invisível, subterrâneo,

Comunica-se em cadeia,

Mata a fé e o sucedâneo,

Apaga a luz da candeia

 

Noutros muitos corações

Até onde o nem supões.

 

Este vírus invisível

É na vida o que é terrível.

 

 

444 – Futuro

 

O que o futuro reserva

Ninguém saberá, ninguém.

Lá fora a noite conserva

O negror medonho bem

 

Mas tal não impede o sol

De nascer de manhãzinha.

Além do mais, há no rol

Do infortúnio uma outra vinha,

 

Há sempre um bago de luz,

Se nós o quisermos ver.

A vida é boa e seduz

Deveras, haja o que houver.

 

 

445 – Activar

 

A nos activar as pernas

E fazer-nos avançar

A motivação de eternas

Aguilhadas vem picar.

 

Quando ela desaparece,

Passo a passo, devagar,

O gosto em viver fenece,

Só perda fica em lugar.

 

 

446 – Clínica

 

Nem o médico melhor,

De clínica apetrechada,

De instrumentos com um ror

De precisão apurada

 

Há-de conseguir salvar

Quem esteja a desistir

De viver, por se cansar

De persistir, persistir,

 

De família rodeado

Com o medo de o perder.

Nada vai mudar o fado

Que o desespero vencer.

 

 

447 – Mexe

 

A palavra é uma energia

E mexe em nós como tal.

Significando, inicia

Na atitude a dar sinal,

 

A qual provoca, em seguida,

O nosso comportamento.

Em serenidade, a vida

Tem um outro seguimento

 

Diverso do que seria

Se ele fora realizado

Tendo um agressivo guia

Como um rumo emocionado.

 

Às palavras reagimos

Que criam disposições:

A força elevam aos cimos

Ou cansam, aos tropeções.

 

 

448 – Cuida

 

Ninguém cuida da verdade,

Que é triste, não tem poesia:

Quando ela nos persuade,

A imagem da pátria esfria

 

E este mundo em que vivemos

Não é bom, de modo algum.

Então de lado a pusemos,

Fizemos dela jejum.

 

Em compensação, porém,

Exigimos tudo aquilo

De que fiámos além

O mais íntimo sigilo:

 

Nossos heróis, nossos santos,

Nossos mártires e génios…

Nem pés de barro nem prantos

Abalam estes convénios.

 

 

449 – Píncaros

 

Quando um homem colocarem

Lá nos píncaros da Lua,

Se ele crer, por tal julgarem,

Que é príncipe e se enfatua,

 

Deixa de ver, orgulhoso,

Que os mais irão detestá-lo

Ao tornar-se presunçoso,

E vão por outrem trocá-lo.

 

É tão vulgar ocorrer

E mal há como aprender!

 

 

450 – Néscios

 

Os populares heróis

Como são néscios, mesquinhos!

Humanos brilhando, sóis,

Como ídolos adivinhos,

 

Não podem ser transmudados

Sem demonstrar nos trejeitos

O barro a que estão grudados,

O barro de que são feitos.

 

Luzam embora arrebóis

Com prendas nos sapatinhos,

Os populares heróis

Como são néscios, mesquinhos!

 

 

451 – Presta

 

É sabedoria velha,

Com tempo mais toma vulto:

Sempre o povo se assemelha

Ao deus a que presta culto.

 

Pode ser vaca sagrada,

O porco, o bezerro de oiro…

- Desde o jardim à fachada,

Talha-o da medula ao coiro.

 

Por isso qualquer herói,

Ídolo de referência,

Não é inócuo no que dói:

Mede-lhe bem a valência.

 

 

452 – Milhões

 

A admirar, seguir um homem

Andam milhões de pessoas,

A torná-lo herói de loas,

E como um deus o consomem.

 

É o efeito inevitável

Da destruição dos deuses:

Consumados os adeuses,

É um igual que é o adorável.

 

Mas os deuses mais antigos

Eram prudentes, fiáveis.

Dos crentes eram abrigos,

De virtudes desejáveis

 

Dotados por que se anseia.

Poder e sabedoria

Cada qual lhos concedia

E nenhum risco lhe ameia,

 

Tal se pusera uma espada

Duma imagem entre as mãos,

Sem medo de que ela usada

Venha a ser contra os pagãos.

 

Mas, se o povo adora um homem

E uma espada deposita

Na mão ágil que lhe excita,

Quando ao fim contas se tomem

 

Com que contará senão

Vir a morrer dela à mão?

 

 

453 – Ceia

 

- Tenho minha casa pronta,

Ordenhei minhas ovelhas,

Tranco a porta, sob as telhas,

A lareira ardendo à conta.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

- Nenhuma comida ou leito

Eu requeiro agora mais,

Os ventos são meus casais,

Da lareira o lume enjeito.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

- Tenho carro e conta em banco,

Tenho searas e gado,

De meus pais herdei meu prado,

Mesa farta onde me abanco.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

- Eu não tenho bois nem vacas,

Não tenho prados, não tenho

Nada, nada e cá me avenho,

De ar puro cheias as sacas.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

- Tenho dócil e fiel

Um amor de anos infindos.

Sou feliz dos olhos lindos

E de mil horas de mel.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

- Livre e dócil alma tenho,

Há decénios a exercito,

Comigo a folgar a incito

Na festa que em mim contenho.

E tu, céu, podes chover

Quando bem te apetecer.

 

 

454 – Paixão

 

Ter uma paixão é a liberdade,

Juntar peças de oiro e, de repente,

Vencer a paixão impenitente,

Jogar o tesoiro à soledade:

Livrar-se da paixão e obedecer

Àquela mais nobre que advier.

 

Não é, porém, isto escravatura?

Em prol duma ideia, raça ou deus

Ir sacrificar-se, oferta aos céus?

Ou será que quão maior altura

For a do senhor mais se dilata

Do escravo a corrente que o empata?

 

Pode então folgar e debater-se

Em mais espaçosa, larga arena

E morrer até, que não lhe acena

A corda que o prende. Eis no que verse

Pois, ao fim e ao cabo, a saciedade

Do que nós chamamos liberdade.

 

 

455 – Plantas

 

- Plantas uma amendoeira,

Avozinho centenário?

- Ando a agir nesta canseira

Tal se não morra, sumário.

- E eu a agir tal se tiver

De em cada instante morrer!

 

Qual dos dois terá razão?

Dois trilhos a vida assume

E ambos vão levar ao cume:

Agir tal se a morte não

 

Existira e agir pensando

Em cada instante na morte

São, no fundo, a mesma sorte,

Se a fundo for meditando.

 

 

456 – Oculto

 

Todo um sentido oculto há neste mundo:

Animais, homens, árvores, estrelas,

Hieróglifos são todos. Bem jucundo,

Feliz, o que começa em tais estelas

 

Acaso a os decifrar, a adivinhar

O que dizem. Mas ai, quando ele os vê

Não os entende, não. A acreditar

Desata que são homens, de boa fé,

 

Árvores ou estrelas… Tarde a mais

Colhe o significado dos sinais.

 

Então já não terá mesmo maneira

Que refaça a perdida vida inteira.

 

 

457 – Espadeirada

 

Quem à espadeirada corta

Qualquer problema da vida

Não cairá de lado à porta,

Que inteiro é que sempre lida.

 

Completamente se apoia

Dos pés até à cabeça

Na terra que dele é a jóia.

À serpente se confessa

 

Muito africano selvagem

Porque toca em corpo inteiro

A terra: tem dela a imagem,

Do mundo o segredo e o cheiro,

 

Conhece-os com a barriga,

Com a cabeça e a cauda,

Em contacto se interliga,

É o verso da mesma lauda,

 

Mistura-se num só ser

Com a terra-mãe que adora.

Só um intelectual qualquer

É um desmiolado de fora.

 

 

458 – Estrago

 

Eu estrago a minha vida,

Insecto, vivo um segundo

Sob o sol, em despedida,

De vez morro para o mundo.

E nunca mais, nunca mais

Ergo asas aos vendavais.

 

 

459 – Perdem

 

Como nas religiões

Que a inspiração criadora

Perdem pelos tempos fora,

Os deuses decorações

 

Passam a ser e mais nada,

São poéticos motivos,

Ornamentos na fachada

Da solidão dos cativos

Que nós somos à chegada,

 

Assim é com a poesia

Que em jornada se esgotou.

Tropeça na fantasia,

Já não é capaz de voo,

Brinca, porém, todo o dia.

 

A veemente aspiração,

Cheia de terra e sementes,

Que carrega o coração

Ali devém, entrementes,

 

Um jogo intelectual,

Sofisticado, perfeito,

Arquitectura de jeito

Complicado mas irreal.

 

No meio deste vazio

Sempre choro quando rio.

 

 

460 – Crepúsculo

 

No crepúsculo dos deuses

Morrem civilizações

E, de angústia nos adeuses,

Brota o homem de ilusões.

 

É um prestidigitador,

Jogos plenos de mestria,

Poesia em furta-cor,

De puro pensar um guia.

 

Qualquer homem derradeiro

Que se libertou de crenças,

De enganos do mundo inteiro,

Que não teme nem quer tenças,

 

A argila vê de que é feito

A jogo só reduzida

Que não quer nem toma a peito

Lançar raízes na vida

 

A beber, se alimentar.

O homem final se anulou,

Nem semente há que plantar

Nem sangue a fremir num voo,

 

Nem excrementos sequer.

Tudo se torna em palavras,

Musicais truques a ter

E vai mais longe em tais lavras:

 

No termo da solidão

Senta-se a olhar as temáticas,

Decompõe o cantochão

Em equações matemáticas.

 

Nesta final abstracção

Mata o que restar de chão.

 

 

461 – Ritmo

 

Como mesmo em decadência

De vida um ritmo elevado

Pode conservar a forma

Exterior mas sem a essência,

Num imponente e apurado

Penhor de nobreza, em norma!

 

Qualquer alma se evadiu

Mas deixa intacta a morada

Em que séculos viveu,

Que modelou, aturada,

 

Tal se fora a concha vasta,

Complicada e paciente,

Onde outrora morou casta,

À vontade e competente.

 

Esplêndidas catedrais

Que encontramos nas cidades

Ateias e ruidosas

São conchas ocas que amais,

Fósseis, em nossas idades,

De anciãs crenças escamosas.

 

 

462 – Ideia

 

A ideia é tudo. Tens fé?

A lasca da porta velha

É relíquia santa até.

Não tens nem uma centelha?

 

Mesmo a Santa Cruz completa

Porta velha é o que introjecta.

 

 

463 – Arrastar-se

 

Nós somos pequenos vermes

A arrastar-nos na folhinha

De árvore que é gigantesca.

São as folhas epidermes

De nossa Terra maninha.

Outras são esta dantesca

 

Visão da noite estrelada

A mover os céus em volta.

Na folha nos arrastamos,

Medrosos com tal estrada,

Testamo-la, quando à solta,

Provamo-la e saboreamos,

 

Batemos-lhe, ela ressoa

E grita como um ser vivo.

Alguns, intrépidos mais,

Vão ao fim da folha à toa,

Debruçam-se, em jeito esquivo,

Nos vazios abismais.

 

Adivinhamos debaixo

O medonho precipício,

Doutras folhas o ruído,

Na seiva ouvimos o sacho

A escavar qualquer resquício

De árvore que houver vivido.

 

Então é que debruçados

Sobre o abismo em corpo inteiro,

Maravilhado nosso imo,

Trememos sempre aterrados.

A partir dali me abeiro

Da poesia do cimo.

 

Começa o grande perigo.

Uns, com vertigens, deliram,

Outros, com medo, se esforçam

Por encontrar um abrigo

Ao coração que embaíram

E é por Deus que no fim torçam.

 

Outros, na ponta da folha,

Olham corajosamente,

Calmamente, o precipício:

“Agrada-me estoutra escolha”.

E dão logo um passo em frente,

De hesitar sem mais resquício.

 

 

464 – Engarrafado

 

Nunca posso conhecer

Senão o que for passado,

Tal se engarrafado houver

A liberdade em traslado

Que respeita o chão e as ervas,

Mas em frascos de conservas.

 

 

465 – Flor

 

Nada, senão existir

Como flor que se movera

E desabrochara ao ir!...

Mas minha flor é quimera,

 

Não logro que desabroche,

Ou estiola em botão,

Ou bichos cria em deboche,

Ou morre de sede então…

 

Nunca chega a despontar,

Sou esta fatalidade:

Caminha, de mim a par,

Sempre uma dificuldade.

 

 

466 – Invólucros

 

Por que é que invólucros somos

Todos de poeira amarga?

Porque não tombamos, pomos

Da fruteira, quando a carga

 

Já toda estiver madura.

Ficamos dependurados

Com a cauda lá segura

Quando disto quaisquer dados

 

Já não servem doravante.

Então os vermes invadem

Logo as vidas num instante

E apodrecem quanto fadem.

 

 

467 - Exprimir-se

 

Saber exprimir-se é já

Um meio caminho andado,

Da prisão ter escalado

Os muros que houvera lá,

 

Como a criança no parto

Franqueia, pura e fatal,

Paredes da maternal

Cela em que a vida lhe acarto.

 

 

468 – Anormais

 

Anormais como nós todos,

As pessoas mais sensatas

À vista são doutros modos,

Se de mais perto as desatas.

Roçar da estranheza a espuma?

- É só vê-las uma a uma!

 

 

469 Trepar

 

Trepar na sociedade

É só mudar de aparência.

A vantagem, na verdade,

Não é a da melhor essência:

Troca moeda falsa bem

Por nota, falsa também!

 

Nem moeda nem sentença

São de lei na diferença.

 

 

470 - Instantâneo

 

Que pessoas e locais

Mais nos marcaram na vida?

O Verão tem os sinais,

Instantâneo, à medida:

 

A primeira que me beija,

Aquele primeiro emprego,

Minha primeira cerveja…

- E hoje é um mar de ontem meu pego!

 

 

471 - Coisas

 

As coisas nós possuímos

Até que elas nos possuem

E agarrados nelas imos:

Raízes fundas incluem

Que prendem da base aos cimos.

 

 

472 - Óptica

 

De óptica são contra as leis

As imagens da saudade:

Engrandecem quem perdeis

Quanto mais longe se evade.

 

E sempre há-de doloroso

Devir o fatal retorno

Que à evocação então coso

Na realidade em torno.

 

 

473 - Negócio

 

O negócio não é um urso,

Não foge para a floresta?

Arrasta-nos no percurso,

Sujeita-nos o que resta.

 

É, para o homem, um amo:

O ganho é escravo do dano.

 

 

474 - Intelecto

 

O intelecto é uma criança

Para quem tudo é brinquedo,

Diverte-o tudo o que alcança,

Quer saber, não pára quedo,

 

Como é que as coisas são feitas,

O que é que por dentro têm.

Tais posturas são atreitas,

Naturalmente convêm

 

A quebrar para ver tudo.

Pode ao fim ficar lesado,

De mãos vazias e mudo

Por demais haver brincado.

 

 

475 - Indivíduos

 

Os indivíduos trabalham,

Procuram encadear

Empresas e mais empresas,

Não no acaso em que elas calham,

Mas de modo a amealhar

Do maior ganho as represas.

 

Mas depois queimam dinheiro

Ou vão atirá-lo aos pés

De prostitutas perdidas…

Fá-lo mesmo o homem cimeiro,

Respeitado em rapapés,

Dono de importantes vidas!

 

Matam-se para ganhar,

Matam-se para perder…

- Quem nos há-de iluminar

A senda estreita de ser?

 

 

476 - Insegurança

 

A insegurança perverte

Todos os significados,

Finda a confiança inerte,

Todos envenena os dados.

 

Uma cidade apertada

De assédio na teia crua,

Na sentinela acordada

Traidor em potência acua.

 

E ao próprio libertador

Que conjuga os conjurados

É com suspeita e temor

Que a urbe lhe entrega os fados.

 

 

477 - Multidão

 

Quando a multidão fanatizada

A esperança-mor sente frustrada,

 

Tende facilmente a dirigir

Contra o antigo herói que ela erigir

 

Inteiro o seu ódio e com fúria

Tanto maior quanto mais penúria,

 

Quão maior lhe dói a frustração.

Os espias sabem a lição

 

Do teor volúvel destas massas

E ao herói, dali, matam-lhe as traças.

 

 

478 - Juízo

 

Ser Deus-no-mundo, ao contrário

Do que é juízo comum,

É de Paixão ter fadário,

Débil mais que qualquer um.

 

O Deus todo-poderoso

É o das leis que o Cosmos tem,

Não o dum pretensioso

Que aqui julgue ser alguém.

 

Por ser Deus é que Jesus

Acabou morto na cruz.

 

E assim acaba quenquer

Que por igual Deus vá ser.

 

 

479 - Conhecemo-nos

 

Não vivemos em hotéis,

Antes em comunidades.

Conhecemo-nos, fiéis,

Doamos felicidades,

 

Muito nos preocupamos

Uns com outros, mutuamente.

Comunidade em que vamos

Para o jardim adjacente

 

Onde as crianças, à noite,

Poderão brincar na rua

Sem temer que lá se acoite

O estranho de faca nua.

 

O problema é a vida urbana

Dela com o anonimato:

Como pode ser humana

E tolher o desacato?

 

 

480 - Grandeza

 

A celebridade e a fama

Quem com grandeza confunde?

Famosos que o mundo aclama

Não há grandeza que os funde.

 

Obtêm fama e fortuna

De méritos sempre aparte.

E há quem, grande, se coaduna

Com o que nada lhe acarte.

 

A grandeza é uma medida

Do espírito que alguém tem,

Não é a posição vivida

Do mundo em palcos de alguém.

 

Ninguém confere a ninguém

A grandeza que atingir,

Não é um prémio que lhe advém,

É conquista a prosseguir.

 

Tanto pode coroar

A cabeça dum porteiro

Como autêntica brilhar

No imperador mais cimeiro.

 

 

481 - Projectam-se

 

Projectam-se as ideias na razão directa

Da força que as concebe, indo bater aonde

A razão as dirige, pela lei secreta

Que ao tiro do canhão certo lugar responde.

 

Divergem os efeitos: naturezas brandas

Farão que as ideias lá desbastem tudo,

Porém as vigorosas, de couraças pandas,

A bala alheia achatam com desdém de entrudo.

 

E as naturezas bambas, de sombrio fumo,

As ideias dos outros de igual modo matam,

Que as balas de canhão irão morrer no rumo

Dos areões à solta que ali as acatam.

 

 

482 - Afiada

 

Ir para a Universidade

Nunca muda um coração,

Fornece a oportunidade

Duma novel arma à mão

 

Mais afiada que a antiga,

Para dela fazer uso

Por ou contra o povo, em briga,

Conforme o que no imo acuso.

 

O que o coração me pede

É o que ao fim a mão me mede.

 

 

483 - Entretanto

 

Algumas horas antes estive eu ali.

Pois entretanto alguém, humano ser, morrera.

Mas que importância tinha? São milhões que vi

Que a cada instante morrem, uma conta mera.

 

Àquele alguém em questão

A morte quis dizer tudo:

Mais lhe importa, na ocasião,

Do que o mundo cego e mudo

Que indiferente a girar

Lhe ali continua a par.

 

A tragédia é que este muro

Para o outro nunca furo.

 

 

484 - Custar

 

A fé torna-nos fanáticos

Com muita facilidade.

Eis, portanto, em termos práticos,

Porque a religião nos há-de

 

Custar tanto sangue, tanto.

Sempre é filha a tolerância

Da dúvida tida ao canto

Da fé mais firme, com ânsia.

 

Quem com toda a fé viver

É muito mais agressivo

Do que um infiel qualquer,

Fiel apenas ao que é vivo.

 

 

485 - Cépticos

 

Por que razão os piedosos

Raramente são leais?

São idealistas nervosos,

Intolerantes demais.

 

Os cépticos são quem tem,

Sejam crentes ou descrentes,

Melhor carácter também:

Duvidam de quaisquer mentes.

 

Mantêm assim a terra

Aberta a qualquer semente

E qualquer que ali se aferra

Tem adubo suficiente.

 

 

486 - Segunda

 

Nunca sabemos de nada,

Tudo é sempre diferente

E vez segunda é jornada

Que jamais nos é presente.

 

É sempre, sempre a primeira

Que nos é proposta assim.

Qualquer outra é derradeira,

Segunda vez, nem no fim.

 

Mas vivemos na ilusão

De repetir igual chão.

 

 

487 - Hospital

 

Um hospital é um convento,

Ensina-nos a apreciar

Coisas simples a contento:

Andar, ver ou respirar…

Nisto anda a felicidade

Em torno de nós, sem gala.

Sabedoria, em verdade,

É apenas isto: agarrá-la!

 

 

488 - Destino

 

Nunca o destino é mais forte

Que a coragem de enfrentá-lo.

Se aguentar não pode o abalo

Alguém, é que cede à morte.

 

É muito bom saber isto

Como é bom saber também

Que jamais de vez desisto,

- E a vida em mim se mantém!

 

 

489 - Encantamentos

 

Nos livros encontramos companhia,

Conselho, encantamentos e consolos:

Na sala horas sozinhas, cada dia,

Gozar posso a silente melodia

Dos termos em que voo pelos pólos.

 

 

490 - Gostar

 

Gostar de ler e ler bem

São os maiores factores

Que o sucesso escolar tem.

Bons estudantes, leitores

Serão bons sempre também.

 

Terão sempre melhor nota

Em teste ao conhecimento,

Em qualquer ano da rota,

Dum tema em todo o elemento,

Mesmo quando o que se anota

De matemática é evento.

 

Ler tem um poder tão sério

Que nos faz reis dum império.

 

 

491 - Mentais

 

Não é micróbio nem fome,

Não é cancro nem é peste,

É o homem que se consome,

Que contra si mesmo investe:

 

Não tem grande protecção

Das mentais epidemias,

De maior devastação

Que naturais vilanias:

 

Catástrofes naturais

Marcam por fora os sinais

 

E deixam por dentro intacto

Dos corações todo o pacto.

 

Porém, na peste mental,

Dentro e fora tudo é mal.

 

 

492 - Lei

 

Metade da lei magia

É de tigres de papel

A guardarem noite e dia

O templo para o fiel

 

Duma deusa de maus fados

Por ter sempre olhos vendados.

 

 

493 - Instrumento

 

É um instrumento a linguagem,

O mais subtil inventado,

Da inteligência uma imagem,

Reflexo puro e traslado.

 

Antes da roda ou martelo,

Barco à vela ou violino,

Termo a termo invento um elo

Que lhes impõe o destino.

 

Dos homens a inteligência

Pela linguagem lha meço:

O falsário, de evidência,

A empola como um tropeço…

 

Os pais como os professores,

Os linguistas que a ensinam

São os jardineiros-mores

Da razão que disseminam.

 

 

494 - Líder

 

Apenas quem outrem serve

Pode ser líder genuíno,

Que é servindo que preserve

Ao comando o rosto e o tino.

 

Das coisas na natureza,

O maior habitualmente

Serve o pequeno a quem preza

E bem se a servi-lo sente.

 

O docente serve o aluno

Como ao filho serve o pai

E o treinador coaduno

À equipa se a servir vai.

 

Autoridade, portanto,

Privilégio pessoal

Não é jamais: é o recanto

De servir mais radical.

 

 

495 - Inteligência

 

A inteligência avançada

- Em hipóteses pensar,

Planos levar de empreitada -

É um efeito singular

De ao faz-de-conta brincar.

 

O imaginário pedido

Mantém a mente aguçada,

Aberta, um flexível fluído,

Instrumento destemido,

Pronto a qualquer empreitada.

 

Toda a semente dum génio

De faz-de-conta é um convénio

 

Ocorrido em pequenino

Que a porta abriu ao destino.

 

 

496 - Mérito

 

Quem tem muito abonador

Muito tem com que o comprar

E, se o busca, é tal propor

Por não ter mérito a par.

 

Quem pretende sem padrinho

Fia da verdade o intento,

De justiça quer caminho,

Aposta em próprio talento.

 

 

497 - Fingida

 

Paz fingida é bem pior

Do que guerra verdadeira.

E esta acaba a se antepor

Porque impõe uma joeira:

O que a vera guerra faz

É que gera a boa paz.

 

 

498 - Perversidade

 

Perversidade não há

Que ninguém possa emendar,

Não haver pode acolá

É quem a emenda aplicar:

Quando a unha é poderosa

Quem da tesoira se goza

Com que a poderá cortar?

 

 

499 - Garras

 

São as garras de rapina

Enxertos de mato bravo,

Urtigas, tojos, de sina

Que enxameia como favo

 

Sem que ninguém as semeie.

Não me vejo livre delas:

Por mais que as corte e tenteie

Soltam sempre em mim as velas.

 

 

500 - Pequenos

 

Pequenos erros que não

Se irão de início sentir

Mais perigosos serão

Que os grandes que cada vir,

Que perigo que se entende

Busca a cura e nela rende.

 

Os erros que se não sentem,

Dissimulam, crescem tanto,

Pouco a pouco, enquanto mentem,

Que, quando os topo no canto,

Já tão largos vão no assédio

Que não terão mais remédio.

 

 

501 - Razões

 

Não aparecem talentos

Por três razões comezinhas:

Primeira, quem aos portentos

Procure não adivinhas,

Que os não há por terras nossas

E os génios murcham nas fossas;

 

Segunda, é que há sempre quem

Os jogue para a valeta

Porque o lugar lhe convém

(E que ninguém se intrometa!)

E depois deste desvio

Não há como atar o fio;

 

Terceira, é que nunca são

Os génios intrometidos.

Nisto cada qual é bom:

Sempre os bons são comedidos

E, ao contrário, o não serão

Os que furam tal furão.

 

Não há quem aos génios busca,

Pois não há quem os estime.

Mas mão que os desvia injusta

Há sempre, a dar por sublime

O inútil cujo lugar

Era junto ao lupanar.

 

Nunca se oferta o talento

Para não sofrer repulsa

Daquele de cujo intento

Corre a vida sempre insulsa.

Este, porém, é que manda

Do mundo em toda a demanda.

 

 

502 - Antes

 

Ver o mal antes que chegue

É bom, leva-me a escapar.

Mas um raio, quando adregue,

Ou bala como enxergar?

 

Só quando já for ferido,

São males irremediáveis.

Tal da rapina é o sentido

Quando são indetectáveis

 

As garras que furtam bens

Se fé delas nunca tens.

 

 

503 - Engano

 

Vestido o engano de eloquência

E de arte atrai, mas a verdade,

Se mal polida em transparência,

Enfada mais do que persuade.

 

De errar fazemos nós vaidade,

Se em subtileza e vã premência,

E temos pejo se o certo há-de

Rústica ter dele a evidência.

 

 

504 - Veremos

 

Não é por estar mais perto

Que algo veremos melhor:

O herói dista no deserto

E a distância dá fulgor

Igual à desproporção

Dele ante dos mais a acção.

 

 

505 - Obrá-lo

 

Como se um acto generoso

Em o saber mais consistira

Do que em obrá-lo, o mui vaidoso

Pela virtude não agira

Mas busca apenas tal sequela

Por glória acaso que vier dela.

 

 

506 - Perverte

 

Só vaidade transformar

Sabe qualquer gosto em dor

E esta em prazer invulgar,

A alegria num horror

De tristeza singular,

Como esta em contentamento

Dum para outro momento.

 

A vaidade é muito estranha:

- Subverte tudo o que apanha.

 

 

507 - Influem

 

Nossa tristeza torna tudo triste,

Nossa alegria tudo mostra alegre,

Contentamento do que em nós existe

Agrado mostra do que à volta integre.

Menos influem sobre nós eventos

Que nós em nós a nos soprar os ventos.

 

 

508 - Pende

 

O movimento, a mudança

De que pende o ser de tudo

O início também alcança

Do fim de tal, sobretudo:

Sem se mover e mudar

Nada pode nem findar.

 

A própria origem da vida

Também é da morte a causa,

Tão certa é a morte à medida

E tão curta a vida, a pausa:

Um e outro extremo inverso

Criados no mesmo berço.

 

 

509 - Gosto

 

O gosto da vitória

É menos atractivo

Quando é uma realidade

Que quando for lembrado.

O comprazer da glória

Não é tão forte e vivo

Na prima identidade

Como em memória dado.

 

O susto do perigo

Sempre representado,

No momento em que brigo

Não é tão inimigo

Como quando evocado.

 

É tal o imaginário

Que nunca o entorpece

O tempo, por mais vário,

Nem o a vida amolece.

 

 

510 - Altos

 

Os mais altos montes

São os que se admiram,

Não porque horizontes

Deles mais se miram,

Mas porque ao subir

Mais custam a ir.

 

A facilidade

Resta aborrecida

Em toda a medida,

O lustre à verdade

Vem dum argumento

Contrário que tento.

 

É a contradição

Que dá coração:

 

Nela aduba a força

Que o destino torça.

 

 

511 - Suspiro

 

À vaidade pouco importa

Que um suspiro seja dado

Por quem com ele se exorta

Como estrela em céu nublado.

 

Uma ilustre actividade,

Quando for feita em segredo,

Não passa, para a vaidade,

Dum infeliz arremedo.

 

Uma virtude escondida

E que a ninguém bate à porta

É uma virtude perdida,

Para a vaidade está morta.

 

 

512 - Murcha

 

Por muito que o não sintamos,

Morre primeiro a razão:

Como a força que há nos ramos

Cresce um tempo em vigor são,

Durante outro se conserva,

Murcha, enfim, gasta a reserva.

 

Nós perdemos a inocência

Quando germina a razão

E desta finda a existência

Daquela ao tornar ao chão.

Uma e outra desejáveis,

São, portanto, inconciliáveis.

 

 

513 - Espelho

 

Nos homens o entendimento

É tal qual a formosura

Na mulher, da vida alento:

Não há nunca desventura

 

Que um espelho não console

E toda a tristura finda

No altar a que o mal imole

De ver-se no estado ainda

 

De inspirar algum amor.

A um infeliz homem serve

De alívio já se propor

Sábio ser no que preserve.

 

Ao tal se considerar,

Esta vaidade adormece

O mal que o sentir lesar

E a dor logo lhe arrefece.

 

Como se a mulher nascera

Só para ser bem-querida

E o homem apenas viera

Para o senso ter medida.

 

 

514 - Desterra

 

Se a melancolia

Para a solidão

Nos desterra do ermo,

Jamais deixa um dia

De ir connosco à mão

Da vaidade o termo.

 

Somos ave desgraçada:

Por mais que fuja ao lugar

Em que ficou lesionada,

Sempre leva atravessada

No peito a bala a sangrar:

Nunca podemos fugir

De nós, em nenhum porvir.

 

Para onde quer que vamos

É com nossos desvarios

Mesmo se no ermo onde entramos

Somos inocentes rios.

 

 

515 - Força

 

Ninguém força a que prometa,

A que cumpra, porém, sim.

No prometer tenho a meta,

No cumprir, levam-me a mim.

 

Num lado somos quem obra,

No outro, ao contrário, não,

Àquele iremos de sobra,

Aqui só iremos à mão.

 

Lá, foi nosso o prometer,

Aqui fazem-nos fazer.

 

 

516 - Fortuna

 

A fortuna e a vaidade

Que num instante nos viram

Os triunfos de verdade

Da vida donde floriram

Nos da morte e opacidade

Mudar onde se retiram,

Fogem tão precipitadas

Que já não são mais as fadas

 

Mas lugar pleno de horror,

De sombras e de pesar,

Onde só o luto é senhor

Com o desengano a par.

 

Assim, pois, acaba o homem,

Assim acabam as glórias

E as vaidades se consomem

Sem prazer e sem memórias.

 

 

517 - Fingir

 

A fortuna pode armar

Um homem com mil adornos,

De hieróglifos o dotar.

Mas com tudo o que o decora

Sempre os efeitos são mornos:

Só pode armá-lo por fora.

 

Quem as roupas levantar

Há-de ver o engano inteiro,

A suposição alvar:

Não há-de achar nos sinais

Senão um homem, primeiro,

Como homens são os demais,

 

Cujo ornato é fantasia

Arbitrária e separável.

A fortuna vestiria,

Porém não pode formar.

Sabe fingir, admirável,

Mas fazer não sabe, a par.

 

 

518 - Prendem

 

Prendem feras e mulheres,

Aquelas pela braveza,

Estas pela mansidão.

São contrários pareceres

De cada parte ali lesa

Em cada passo que dão:

Estas porque se enternecem,

Aquelas, pois se enfurecem;

 

Aquelas é porque assustam,

Estas porque nos agradam;

Dumas tenho de fugir,

Outras a fugir se ajustam

Porque os mais a tal as fadam,

Queiram ou não queiram ir;

Porque mata, uma é retida,

Outra porque gera a vida.

 

Mesma a prisão arbitrária

E a destinação, contrária.

 

 

519 - Tira-nos

 

A vaidade é um artifício,

Tira-nos da nossa vida

E nossa compreensão

Qualquer das coisas resquício,

Trocando-as por falsidão,

Por aparência fingida.

 

A púrpura de que serve

Mais que de encobrir o homem

A si próprio vida além?

A figura que preserve,

Comum e simples também,

Igual à dos que a consomem,

 

Mostra-se desfigurada,

Revela-se outra debaixo

Dum véu somente exterior.

Cara que escondo fechada

Fica um mistério maior,

De veneração a enfaixo.

A vaidade artesão foi

Que a distinção inventou

Entre homens pelos ornatos,

Pela cor e o que constrói.

Tais serão, portanto, os actos

Do que a vaidade buscou.

 

Distinção nenhuma pode

Ter em nós realidade

Mas nas coisas que nos cobrem.

Como é que então nos sacode

Tanto nada e tantos sobrem

Quando apenas são vaidade?

 

 

520 - Fundada

 

Por bem fundada que seja

A grande reputação,

Nem com fundamento almeja

Ter segura a opinião

Das gentes que houver em roda

E com que ela ao fim se engoda.

 

Fatigam-se de admirar

Aos primeiros movimentos

Em que o raro há-de lograr

Atrair, à voz dos ventos,

Aprovação e louvor

Que o coração quer propor.

 

Depois a vaidade logo

De quem admira é a primeira

Que desgosta e apaga o fogo,

Irrita-a ver a cimeira

Qualidade superior

E nisto mata o fervor.

 

A qualidade eminente

Que nos outros vemos fica

Adversária posta em frente,

Oposto espinho que pica

E que por dentro nos dói:

Mesmo sorrindo, remói.

 

A inveja que ela produz

Vai contra a opulência alheia,

Da sabedoria a luz

Que já mal vê na candeia.

E assim termina malquista

A reputação que exista.

 

 

521 - Heróis

 

Acabam os heróis como as memórias

Dos actos deles e o metal corrói-se

Em que se gravam do combate histórias,

Os mármores corrompem-se onde a foice

A seara cegou de mil vitórias

E, da imprensa apesar, a prosa foi-se

Em que de empresas se descrevem glórias

E o verso de harmonias já destrói-se:

Do tempo à voraz fome tudo cede,

Não há limite ao metro que isto mede.

 

Findam as tradições antes que acabe

O mundo, que os eventos nunca tocam

O infindo do universo onde não cabe

Tal perfil do exterior. E desembocam

Os monumentos, onde a história sabe

As partes mais visíveis que eles focam,

No estrago e destruição, por mais que os gabe,

E nem ruínas de os lembrar nos chocam.

E nem durarão mais cinzas de heróis

Que as próprias urnas de os velar depois.

 

Epitáfios, caixões se desfarão;

Por profundos que sejam caracteres,

Insensíveis fugindo aos olhos vão,

Até que totalmente, em quaisquer seres,

Se acabam apagando em ilusão.

Parece o inanimado que tem teres

Que um tempo certo, enfim, garantirão

Para vida durável em lazeres,

Mas as pedras que formam os padrões

Entre arestas já perdem uniões.

 

A dureza da rocha consistente,

A montanha altaneira coroada

Da neve mais eterna, alvinitente,

O mar convulso ou manso, quase estrada,

O rio eternamente na corrente,

Busca perene duma foz sonhada,

O Sol, as nuvens, a Galáxia ingente,

Sempre além de qualquer nossa morada,

- Tudo enfim se reduz, nas finais telas,

A mero aglomerado pó de estrelas.

 

 

522 - Mudam-se

 

Mudam-se os homens quando se vestem

Como se o hábito natureza

Nova infundisse às demais que restem.

Não muda o homem, porém, na empresa,

 

Muda-se o efeito do hábito em nós:

Militar farda sonha o guerreiro,

Veste talar traz juiz após,

Tez macilenta é de frade inteiro…

 

Não vem ao mundo ninguém mostrar

Aquilo que é mas o que parece:

Não vem já feito, vem-se moldar

Não vem ser homem, vem ser quermesse

 

De qualidades - de graduado,

De ilustre ser, ter inspiração…

E os atributos de que é pintado

Se substituem ao homem chão,

 

De forma que este fica acidente

Superficial, estranho e alheio.

Tudo o que encobre, então, de repente

É do encoberto e em vez dele cheio,

 

O véu que esconde é a coisa escondida:

E não olhamos já para o homem,

Mas para a manta a encobrir cingida.

A guarnição é pelo que o tomem

O homem de fora é o que tem respeitos

Como atenções e o de dentro, não:

Este despreza-se, que os eleitos

Coisa comum e vulgar não são.

 

 

523 - Antecipa-nos

 

Antecipa-nos tudo o imaginário,

Nosso contentamento ou nossa pena

Atingem-nos primeiro que o primário

Objecto deles: quando vem, sumário,

Alegre ou triste dantes já me acena.

 

De tão sensíveis nós não precisamos,

Para em nós influírem, que os eventos

Em nós estejam, pássaros nos ramos:

Basta-nos só que longe os já vejamos,

Mais força têm se os sonhar nos ventos.

 

Então o mal que se receia, espera,

Não pode alívio ter, que a fantasia

Numa extensão maior logo o envolvera.

O mal que já se sente, ao invés, era

De consolar-se, que um limite via.

 

Mal o imagino, o facto se me entrega,

Dele a eficácia se incorpora em nós,

Antes que chegue logo a mim se apega,

Assim às coisas tudo me congrega,

Já foram minhas quando as tenho após,

 

Chegando a causa, já vivi o efeito.

Então ignoro quanto eu alcançar

E me parece haver falhanço a eito:

Quanto me alcança me acha satisfeito,

Já que o desejo é um modo de gozar

 

Mais activo e durável e mais forte

E mais contínuo que a consumação.

Daqui decorre ser deleite e sorte

Toda a esperança com que me conforte,

Que do que espero é já uma possessão.

 

Quem imagina quanto desejar

Tudo pintar irá de lisonjeiro,

De cores vivas e a verdade, a par,

É mal polida, tem grosseiro um ar,

É sem adorno tudo por inteiro,

 

Desvanecer fará toda a aparência

Feliz e alegre com que ver primeiro

Se deixam factos na ideada essência.

A realidade mostra na existência

Quase um percalço ser num atoleiro.

 

 

524 - Véu

 

As mais das coisas se admiram

Porque não as conhecemos.

Porque dum véu se encobriram,

O exterior brilhante vemos

 

Que serve muitas das vezes

A esconder horrendo abismo.

A luz tem raios soezes

Que me atacam, num baptismo,

 

Proibindo de examinar

Donde vem-lhe o resplendor,

Atrai a formosa a amar,

Não salta além nosso ardor,

 

Onde a encontrar aí fica

Suspenso e cego de vez.

Aos actos de homens se aplica:

Os mais sublimes que vês

 

Talvez foram detestáveis,

Não fora a causa ignorarmos.

Actos grandes e notáveis

A fantasia, se olharmos,

 

Nos prendem, de tal maneira

Que livre não fica mais

Para discorrer certeira

Senão em grandezas tais

 

E já não vai indagar

Donde vieram nem como.

Dum rochedo água a saltar

E que corre num assomo

 

Mui ligeira para o mar,

Antes que chegue passando

Irá por muito lugar,

Nuns mal cabe, se alargando,

 

Noutros acaba tão funda

Que caminha brandamente,

Além areias inunda,

Aqui rugirá fremente…

 

No fim, porém, será mar

E quem olha a imensidade

Já não irá recordar

Qual foi a anterior verdade.

 

São os homens por igual:

Caem, buscam e à grandeza

Chegam, acaso, ao final.

Ora, a vaidade que os preza

 

Logo lhes rouba à memória

O lugar donde vieram,

Trilhos pisados sem glória,

Mostra o que são, não o que eram.

 

Há muito que não queremos

Nem podemos vislumbrar

Nem a origem que tivemos

Nem o progresso, ao andar.

 

As excelências do fim

Nos prendem inteiramente,

Impedem de ver assim

A fatalidade ingente,

 

A indignidade dos meios.

Até nosso pensamento

Repara com mil asseios,

Respeito, vénias de atento,

 

A fortuna que não tem

Nenhum critério de escolha:

É do primeiro que vem,

Dela perante a recolha

 

Todos são iguais e valem

O mesmo, sejam quem forem.

Às regras que lhe intercalem

Faz que só no acaso morem.

 

A vaidade nos ensina

Que qualquer meio e caminho

É bom quando é boa a sina:

Regula-se este cadinho

 

Do sucesso pela glória

E não por outro pendor,

Qualidade da vitória

E nunca a do vencedor.

 

Pouco importa já o vencido

Nem como é que aconteceu,

Mas tão somente o alarido

De quem é que, enfim, venceu.

 

O mérito só se pesa

Naqueles que caem, fracos,

Não nos que detêm presa,

Que sobem, mesmo velhacos.

 

Os caminhos se examinam

Se neles se não chegou

E os meios se nos malsinam

Quando nada se logrou.

 

A fortuna o que costuma

É ter o merecimento

Por justificado, em suma.

A desgraça é o elemento

 

Que o vai deixar duvidoso,

Sujeito a exame, portanto.

O que ao fim grande e vistoso

Conduziu tem tal encanto

 

Que, mesmo que seja injusto,

É menos aborrecido:

Como a luz, não terá custo

Ao clarear o escuro havido.

 

Haja algum usurpador,

Será sempre quem olhamos,

Não a usurpação que for.

O alto do trono visamos,

 

Não se vêem os degraus

Por onde lá se trepou.

Meios, embora nem maus,

Ninguém neles reparou,

 

Como os degraus que se pisam,

O que importa é o fim feliz.

Se as vaidades o que visam

Fora virtude em raiz,

 

Houveram só de inspirar

Meios que são virtuosos.

Sendo vício, de ensinar

Tratam bons como maldosos:

 

Ser cruel, traidor, tirano

Pouco importa a quem precisa

De traição, furor insano,

E o fim com tal realiza.

 

Um estado de grandeza

Bem poucas vezes se adquire

Justamente numa empresa,

Quando a fortuna se inquire.

 

Parece que esta se irrita

Quando a não buscam por todas,

Todas, mesmo a mais maldita,

Por todas e quaisquer modas.

 

 

525 - Prisioneiro

 

Por mor da culpa obcecado,

Prisioneiro do passado,

 

Atira o peso de tudo

Em redor, ansioso e mudo,

 

Sempre a tentar-se esconder

Dele mesmo e de quenquer.

 

Tentar, porém, ocultar

Não é viável, a par.

 

Cuidamos que a roupa suja

Em lugar seguro, cuja

 

Privacidade moldemos,

É onde bem a escondemos.

 

Porém, algum tempo após

O cheiro fede de nós.

 

 

526 - Rirem

 

Quando um homem dá motivos

Para os outros rirem dele

E não só deixa festivos

Os mais, sem que os atropele,

 

Como ainda os acompanha

Nesta alegria com gosto,

A certeza então nos ganha

De que este homem vale, aposto,

 

Seja o que for que ele intenta,

Muito mais do que aparenta.

 

 

527 - Maldade

 

Do mundo a maldade é igual

Em qualquer meridiano:

Crente ou pagão, bem e mal

Pintam por igual o pano.

 

Não é aquela distinção,

Mas esta que é divisão.

 

 

528 - Pensamento

 

O pensamento mais fundo

É um esforço corajoso

Do íntimo para, fecundo,

Manter plena independência

Dele ante o mar tenebroso,

Enquanto em fúria a cadência

Dos ventos de céu e terra

Conspiram a projectá-lo

Para a costa que o aterra

Traiçoeira, com o abalo

Que o irá manter servil

Se não lhe escapar viril.

 

Mas, se ergue a própria bandeira,

De autónomo ser se abeira.

 

 

529 - Coragem

 

A coragem mais fiável,

Eficaz, em que eu insisto

É a de quem é inexpugnável

Ante um perigo previsto.

 

É que quem for destemido

Com um incontido alarde

Mais perigoso e perdido

Será sempre que um cobarde.

 

 

530 - Maravilha

 

Da terra todas as cores,

Maravilha embelezada,

Do céu matizes, das flores,

Sol-pôr no bosque, na estrada,

 

Toda a cor da borboleta,

Do rosto da rapariga,

- Tudo engano é que eu cometa,

Nenhum ser à cor se liga.

 

 

 

Natura deificada

Pinta como a meretriz:

A sedução cobre nada

Mais do que ossos de raiz.

 

 

531 - Linhas

 

Todo o homem vive envolto

Em linhas de pesca atadas.

Ao nascer, o corpo solto,

Tem ao pescoço enleadas

 

Muitas cordas invisíveis.

Somente quando envolvidos

Nos remoinhos terríveis

Da morte é que, surpreendidos,

 

Tomaremos consciência

Dos silenciosos, subtis,

Omnipresentes, na essência,

Perigos da vida vis.

 

Não sentirei mais terror

Em meu frio coração

Da baleeira ao furor

Que da lareira ao clarão:

 

É igual ter o atiçador

Ou ao meu lado um arpão.

As teias em meu redor

Iguais me ataram ao chão.

 

 

532 - Quenquer

 

Minha conjuntura é igual

À de quenquer que respire,

Mortal,

Por onde quer que se vire.

 

Todos estamos unidos

Por ligação siamesa,

Fundidos

Na trama que à rede é presa:

 

Se teu banqueiro falir,

Darás em doido, por certo;

Porvir

Vai trocar por morte perto

 

Quem por remédio veneno

Na farmácia recolheu…

Pequeno

Do cuidado que for meu

 

Há-de ser o efeito havido,

Por mais que o manancial

Haurido

Eu o aumente, radical.

 

Por mais prudente que eu fora

Manejando a corda à vida,

Agora

Já baloiça desprendida

 

E borda fora escorrego:

Não consigo, haja o que houver,

Sossego,

Por só uma ponta à mão ter.

 

 

533 - Lançadeira

 

Lançadeira voadora

É o Sol tecendo a verdura.

Quem é que o manto decora,

Que palácio, que clausura?

 

Voa a lançadeira, voa,

As figuras do tear

Flutuam como que à toa,

Fresco o tapete a espalhar.

 

O deus tecelão tecendo

Dele com a tecedura

Mais e mais ensurdecendo

Vai ante quem lhe murmura.

 

E, habituados ao tear,

Também nós ensurdecemos.

Só quando calha escapar

As mil vozes ouviremos

 

Que falam através dele.

As palavras proferidas

São inaudíveis daquele

Que entre elas distrair idas.

 

As mesmas são claramente

Ouvidas sem as paredes,

Da janela a olhar em frente,

Vizinhos são que não vedes.

 

No meio do reboliço

Do grande tear do mundo

Do pensamento o feitiço

Pode ouvir-se longe e fundo.

 

 

534 - Arraste

 

A calmaria é cruzada

Em fúria por tempestades

E a tempestade anda arada

De calmarias por grades.

 

Não há nunca nesta vida

De vez um fixo progresso

Que não arraste em seguida

Um inverso retrocesso.

 

Não há gradação constante,

Salto dum aos outros ramos,

Até o derradeiro instante

Quando, em último, paramos.

 

Saltamos do encantamento

Da infância para a infundada

Fé do púbere momento,

Vem a dúvida alargada

 

Da adolescência depois,

Do cepticismo seguida,

Do pesar dos arrebóis

Que são da adultez medida.

 

E após volto a percorrer

O caminho novamente,

Somos sempre o mesmo ser,

Igual muda eternamente.

 

Onde o derradeiro porto,

Donde âncora não erguer?

De que mundo vivo ou morto

Não se enfastia o querer?

 

Onde se encontra escondido

O pai do filho enjeitado?

Sou este órfão preterido

De mãe solteira gerado,

 

Morta ao me trazer ao mundo.

Paternidade secreta

Ficou no túmulo fundo:

Só na derradeira meta,

 

Ao lá chegar, finalmente

Ficarei dela ciente.

 

 

535 - Entra

 

Qualquer rico ou avarento

Apenas entra no Reino

Sujeito, a cada momento,

À intercessão do elemento

Dum pobre, carente e leino:

 

O peregrino a acolher,

O sedento a saciar,

O encarcerado a atender,

O litigante a prover,

O adoentado a curar…

 

Sem estes medianeiros

Do Reino ficarão fora.

"Nos termos mais verdadeiros,

Ignoro-vos, sobranceiros!"

- Dir-lhes-á Deus sem demora.

 

 

536 - Servidor

 

Um servidor bem moldado

Devém um palaciano,

Como convém, afectado.

 

Já não vai desfraldar pano

De funcionário do Estado

De direito, sem engano,

 

Cujos súbditos, iguais

Hão-de ser perante a lei.

Logo uns serão mais que os mais

 

Iguais diante do rei.

Tais serão sempre os sinais

Do servo servil da grei.

 

 

537 - Recorre

 

Quem der ordens, gritar leis,

Recorre gostosamente

De Deus à voz e aos papéis,

 

Atento O identificando

Com seu querer evidente

E a forma que for usando.

 

Tudo parece divino:

Então todo o subalterno

Submeter-se-lhe com tino

 

Crê dever, que vem do Eterno:

- Quem limite clandestino

Impõe ao que é um bem superno?

 

E eis como Deus é instrumento,

Em blasfemo desatino,

De qualquer humano intento.

 

 

538 - Contrariando

 

Quando o mal-intencionado

Vai contrariando o bem,

Natural e descuidado,

Os indulgentes também

 

O afastam, cuidando assim

Culto a Deus dar de abulia.

De bem tudo, então, ao fim

A consciência teria.

 

E Deus torna-se impotente

Com quem justifica a pele

Do modo surpreendente

De, afinal, passar sem Ele.

 

 

539 - Domina

 

Que a mente domina a língua

Cremos repetidamente,

Compreendendo, muito à míngua

Que a língua domina a mente.

 

A palavra a tirania

Nos impõe e com tal teia

Que até nos vitimaria,

Incônscios, da mente alheia.

 

Quando menos precatar-nos,

Anda na rua a arrastar-nos.

 

E crermos nós, ao invés,

Que somos quem lhe dá os pés!

 

 

540 - Relações

 

São relações invertidas:

O mundo quer multidão,

Deus, pessoas definidas.

Para ter a massa à mão,

 

O indivíduo se atropela,

Cada qual muito em concreto

Perde o que quer na sequela,

Não tem dramas no trajecto.

 

A multidão é que importa,

O número, a quantidade.

Mas a quem Deus abre a porta

Era à singularidade,

 

Ao que é marginalizado,

Longe ali de toda a gente,

Com quem chora lado a lado

Sempre solidariamente.

 

 

541 - Mundo

 

Tudo aquilo que observamos

Neste mundo material,

Átomos que combinamos,

Nos tornam um ser real,

Há muito tempo uma origem

Teve em cósmica vertigem,

 

Entre grandes explosões,

Gigantescas supernovas.

A melhor das conclusões

Provindas daquelas provas

É que somos, nas sequelas,

Todos filhos das estrelas.

 

 

542 - Impenetrável

 

Esta porta emparedada

Da imbele alma endurecida,

Impenetrável, trancada,

 

É o dogma religioso,

A ideologia sabida,

Frágil, mas a que me entroso.

 

São o que tem separado

Os povos de fé no mundo

Desde imemorial passado.

 

O dogma raro nos serve

Para esclarecer, fecundo.

Nele a intransigência ferve,

 

Nos acaba a emparedar

Uns dos outros, poço fundo,

E o Messias a afastar.

 

De luz como é que eu inundo

Ali preso no lugar

Que me tem fora do mundo?

 

 

543 - Memória

 

A memória faz de nós

Tudo aquilo que nós somos.

Se a perdêramos, após,

Ao adormecermos, fomos

 

Mortos ali já de vez.

Ao acordar de manhã

No mesmo corpo, talvez

Meu irmão seja ou irmã,

 

Mas eu não sou de certeza.

Nesta linha, a História, então,

É a memória que me preza

O que tece uma Nação.

 

 

544 - Queimar

 

Se mostrar minha emoção

E me queimar por fulgir,

Adentro-me à concha então

Para já não mais sair.

 

Não posso ser obrigado

Nem sequer persuadido

A partilhar nalgum lado

A emoção que houver sentido.

 

Só se me sentir seguro

Acabo a saltar o muro.

 

É a pobreza e a riqueza

De eu montar minha defesa.

 

 

545 - Ouvido

 

Como fazer outrem falar?

Da dignidade sob o manto,

Da discrição que lhe anda a par,

Da relutância sob o encanto,

Todos desejam, no fundo,

Falar no ouvido do mundo.

 

Quão mais bizarro for o assunto,

Mais remendado, mais terão

Necessidade de, por junto,

Falar do tema e da função.

Somos comunicação,

Queiramo-lo nós ou não.

 

 

546 - Dados

 

Teoria e realidade

São dois dados diferentes

Que sobre todas as gentes

Cumulam diversidade,

Tendo efeitos divergentes.

 

Por mais que uma noutra incidam

Não há como coincidam.

 

 

547 - Enfeites

 

Enfeites e bugigangas,

Gestos cerimoniais,

São a capa a disfarçar

Do poder carência e gangas

Que dele nem dão sinais

Ou são para alimentar

Os egos dos celebrantes

Ou então impressionar

Bocas na plateia hiantes.

 

O dom que haja em cada qual

É tão forte que então fica

Para além de tudo aquilo:

É capaz dum vendaval

Ou duma brisa que aplica

A um peito doce e tranquilo…

 

Há, porém, motivo forte

De manter o ritual,

Os gestos e a tradição.

A cerimónia é um transporte,

Os gestos, no principal,

A focar ajudarão

Como a concentrar a mente

No poder que o dom tiver

E serão sempre um sinal

De respeito aqui presente

Pela fonte que nascer

Da matriz primordial.

 

Imprescindíveis, porém,

Não são, quando o dom nos vem.

 

 

548 - Época

 

Existe uma idade apenas

Para nós sermos felizes,

Época das mais pequenas

De sonhar com mil matizes,

 

Fazer planos, de energia

Dispor bem suficiente

Para cumprir dia a dia

Apesar do muro em frente,

 

Idade de me encantar

Da vida com todo o evento,

De apaixonado voar,

Embebedar o momento,

 

Sem culpa sentir nem medo

Do prazer que então fruir.

Fase de oiro em que arremedo,

Recrio a vida que vir

 

À imagem do que quiser,

Visto em mim todas as cores,

Experimento o que houver

No mundo em quaisquer sabores,

 

Entrego-me a todo o amor

Sem pudor nem preconceito.

Com euforia e fervor,

É o tempo de tudo a eito

 

Levar, num convite à luta

Que enfrento no desafio,

De tentar nova disputa,

Que sempre, sempre confio.

 

- Esta idade tão fugaz

Na nossa vida é o Presente:

Tem a duração falaz

Do instante a ir na corrente.

 

 

549 - Ultrapassará

 

Pêsames e parabéns,

O mel amargo da vida,

Fazem vir, contra os desdéns

Que os provam, a paz contida

Que ultrapassará o que quer

Que seja que for prazer.

 

Todo o que reconciliou

Os contrários dentro em si,

Dentro em si logo matou

A fonte que houvera ali

Donde se ouviam os gritos:

- Toda a fonte dos conflitos.

 

 

550 - Vez

 

Toda a vez que um recomeço

Apenas repetição

É do que já foi vivido,

Nada tem ali começo,

Senão alguma ilusão:

- De vida sou desprovido.

 

 

551 - Preso

 

Ficar preso do desejo

De algo que já se acabou

Leva a que ali já não vejo

Que esta falta a que me dou

 

Não é deveras real,

Pois aquilo que se esvai

A realidade, afinal,

Deixou quando dela sai.

 

E então interiormente

Não me abrirei para aquilo

Que a vida traz de presente

Dela no fluir tranquilo.

 

 

552 - Real

 

Real é o que existe agora,

Não é o passado, esgotado,

Bem ou mal, nesta demora

De existência de finado.

Este só pode ajudar

Se, embora sem lhe negar

 

Aquilo em que enriqueceu,

Não fico a ele agarrado,

Tal se nada mais do céu

Ocorrer me pode em fado.

Nem é o futuro que vemos

Que, por mais que o desejemos

 

Ainda chão construído

Não tem dando consistência

E também só num sentido

Pode ajudar-me a vivência:

Se estiver bem consciente

De que nada, eventualmente,

 

Que fora de tempo nasça

Irá ter harmonioso

Crescimento, quando o faça.

Irá ser dificultoso

Do real o enfrentamento

Por me obrigar, no momento,

 

A ver como ele, por norma,

Jamais corresponde inteiro

À espera que tomou forma.

Pinto-o então no tinteiro

Do passado ou do futuro

E na ilusão me seguro.

 

 

553 - Flui

 

Tudo na vida flui continuamente,

Tudo é feito de estádios encadeados.

Poderei saborear bem o presente,

Do instante conhecer alegremente

Toda a felicidade atrás dos dados,

Tudo recomeçar, seguir em frente,

Se souber esquecer os bens passados.

 

É o passado, em memória bem real,

Que um muro contra mim ergue afinal.

 

 

554 - Perene

 

Vivo aqui preocupado,

Sempre em perene tensão,

Indisponibilizado

A acolher dor, desagrado

Que a vida me traga à mão,

 

Vendo em tudo uma ameaça

Àquela felicidade

A que me agarro e congraça

De meus fitos toda a traça,

A inteira individualidade.

 

Da mera dor de cabeça

Farei então um tumor;

Se alguém contra mim tropeça,

É que insólito encabeça

Perseguir-me com furor;

 

Se ninguém me telefona,

Fico sozinho no mundo…

Preocupação à tona

Confiança não abona,

De falta dela é que abundo,

 

Necessidade excessiva

De me sentir bem seguro,

De me esforçar sem esquiva,

De ter protecção massiva.

Frente à vida, o gesto auguro

 

De receio ante a surpresa,

O imprevisto além dos planos;

De medo ante o que me lesa

Dos esquemas a beleza,

Não vá tolhê-los de enganos.

 

Atitude que traduz

Um medo grande demais

De não ter algo que luz

Como o fado que me impus

Para dar de mim sinais.

 

Um medo por demais grande

De perder e me perder

E que, no fundo, o que mande

Em tudo o que em mim comande

É só medo de viver.

 

 

555 - Pondero

 

Tudo aquilo que, na altura,

Pondero como importante,

Decisivo, terminante,

Imprescindível figura,

Nunca o é, como produto,

Nunca, nunca, em absoluto.

 

Conseguir, perder, falhar,

Tudo isto é mui relativo,

Que aparente e de mudar

É o que em nós sempre é o mais vivo:

A vida, no que é inefável,

Continua imperturbável.

 

 

556 - Inteiramente

 

Nada inteiramente bom,

Nada inteiramente mau:

Uma mesma situação

Tanto à bênção dará o tom

Como pede o varapau.

 

Qualquer copo de água meio

São dois juízos que crio:

Um de que ele é meio cheio,

Outro, ao invés, sem enleio,

De que ele é meio vazio.

 

 

557 - Doença

 

Em perspectiva encarada

Diversa da habitual,

Doença é cotovelada,

Sacudidela forçada,

Muitas vezes bem brutal,

 

Que nos faz tomar consciência

De como tudo na vida

É efémera evanescência.

E de como, ante a evidência,

O que acontece ou se envida

 

Acaba, em valor cativo,

Sendo apenas relativo.

 

 

558 - Tradições

 

O facto de a multidão

Se importar por diferentes

Tradições de religião

Não significa, entrementes,

 

Que nelas creia deveras,

Mas apenas que procura

Conhecimento de esferas

Onde se realiza ou cura:

 

Experiência emocional,

Comunhão com o Universo,

A consciência, afinal,

Do que une, em fundo reverso,

 

Todas as religiões

Num lastro fundamental,

Para lá das diversões

Que as dividem por igual.

 

 

559 - Vítimas

 

Tanto mais vítimas somos

De eventos, doutrem, da sorte,

Quanto mais tais nos sentirmos,

Quanto menos nos dispomos

À vida a fazer a corte,

Por dela a mais divergirmos.

Por só me centrar, refece,

No mal que nos acontece.