QUARTO TROVÁRIO
COM AQUILO QUE DEFINE A CAMINHAR
Escolha ao acaso um número entre 381 e 559, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
381 – Com aquilo que define a caminhar
Com aquilo que define a caminhar
Vai o poema desbravando a rota,
A medir com metro regular
O que, dum lado e doutro, lhe rimar
Com cada nível da cota.
Para a pegada
Marcar o chão que pisa,
De tactear cada palmo da jornada
Cada verso precisa.
Na terra lisa ou em ruga
Despistado o que a enforma,
Desvendo o campo de ataque ou de fuga,
Senhor fico de talhar a norma,
Imprimo à pegada minha forma.
382 – Interior
No interior há preconceitos,
Mas tradições são mantidas,
Estabilizam os preitos
Que estruturam mundo e vidas.
Se houvera só capitais,
Cidades no mundo inteiro
Sem interiores tais,
A moral era um lameiro
Que, na primeira enxurrada,
Se escoa pela levada.
383 – Eventos
Aquilo que nos moldou
Não é só quanto ocorreu
Mas antes quanto mudou
Dentro em mim, do que sou eu.
Foi antes quanto senti,
Como reagi dentro e fora,
Que me fez o que eis aqui,
Mais que os eventos de outrora.
Não é uma infância infeliz
Que adultos faz depravados:
Muito há quem tem cicatriz
E que cura em muitos lados.
384 – Brota
O trabalho criativo
Brota dum envolvimento
Forte, apaixonado, vivo,
Como o dum amante atento,
Quando um artista ou alguém
Com um certo outro interage
E à luz algo novo vem.
Tal outro pode ser laje,
Tela, dança ou escultura,
Melodia ou manuscrito,
O barro que a mão tortura,
Teoria, invento aflito,
- Que durante um tempo absorvem
E fascinam totalmente.
Para aqueles que se envolvem
A criatividade sente,
É uma trama sensual,
Colhe momento a momento
Vivência sensorial,
Envolve som, movimento,
Tacto, imagens, mesmo olfacto
E acaso até paladar…
Como um amante de facto,
O artista absorto a criar
Descobre que estão alerta
Dele todos os sentidos
E esta teia é que desperta
De arte os efeitos nascidos.
385 – Crescimento
Crescimento de sementes
Depende de solo e clima,
De haver ou não nutrientes,
Do cuidado que os estima
Por parte dos jardineiros,
Depois, do recipiente,
Da robustez dos viveiros
Na variedade pendente…
Mesmo assim uma semente
Pode ou não desenvolver-se
Então pura e simplesmente
Do rebento que ali verse.
Mesmo se desenvolvendo,
Vai magnificentemente
Crescer ou ir-se tolhendo,
Por má sorte, eventualmente.
Tudo, pois, afectará
O aspecto particular
Do que a semente dará,
Mas a forma há-de lá estar
Ainda então reconhecível,
A identificar a planta.
O arquétipo em nós vivível
É mesmo assim que se implanta.
Basilar padrão humano,
Destreza inata maior
Terá, num ou noutro plano,
Nalguns, como é de supor:
É uma aptidão musical,
Do tempo um sentido inato,
Um dom psíquico especial,
Mental destreza a recato…
Uns parecem incarnar
Desde que mal respiraram
O arquétipo singular,
Com ele outros mal deparam.
Nuns será rumo de vida,
Noutros, de agora explosão
Que marcará de seguida
As pegadas pelo chão.
Mas é o ausente presente
Dentro em nós eternamente.
386 – Abaixo
São as coisas mais grandiosas,
São as árvores mais altas
Que abaixo vão, estrondosas,
Dos raios, mal as exaltas.
Adora contrariar
Da natureza o apresto
Ao que maior se antolhar
Cá por baixo do que o resto;
Não suporta nunca orgulho,
A não ser o dela mesma.
Tudo o mais será gorgulho,
Pisa-o no chão como à lesma.
387 – Resiste
Um corpo robusto
Resiste à doença
E cura depressa,
Faz com menos custo
Que o íntimo vença
Mal em que tropeça
Quando são enfrenta,
Quer uma tragédia,
Quer nova que o tenta.
Quando fraco, em média,
Todo mais se agita
E a turvação dura,
Perdura, infinita,
E ao fim nada apura.
388 – Mentira
Quando minha plenitude
É doutrem o sofrimento
É mentira que me ilude.
Então, a qualquer momento,
Chega, sem me aperceber,
A minha vez de sofrer.
389 – Escumalha
Bem mais que a incompreensão
Dos heterossexuais
A escumalha atira ao chão
E aterroriza demais
O jovem que se persuade
De homossexualidade.
É impressão devastadora
De que ser homossexual
É ser à margem, de fora,
Mesmo caricatural,
Degradante, se calhar,
E sempre a se exacerbar.
Este terror fulgurante
É o das neuroses profundas
Que aos mui jovens adiante
Presas fáceis, infecundas,
Das serpentes vai gerar
Que tais pardais vão caçar.
O gosto pela abjecção,
Para a corrupção tendência,
Queda na degradação…
Por quanta mais decadência
Tal imagem responsável
Não é no que é vulnerável?
Detém um deles na rua,
Procura-lhe a confidência:
Quanta depressão actua
E que terrível ausência!
E por trás uma palavra:
Angústia – que o escalavra.
390 – Escrita
A escrita dum escritor
É tal qual um palimpsesto,
Camafeu de alto valor,
Um gesto sobre outro gesto.
É um texto sobre outro texto
Que já existe anteriormente
Mas que não é, no contexto,
De ver-se imediatamente.
Ao escrevê-lo é que à vista
Salta o que antes lá resista.
391 – Leitor
Sempre o leitor subestima
A própria dele importância:
Se com o escritor não lima
De cada frase a elegância,
Se o livro não cria junto,
Nunca o livro terá vida.
Envolvimento no assunto,
Ao ler, impõe outra lida,
É o que vai distinguir ler
De olhar a televisão:
Nesta passivo há-de ser,
Uma esponja de absorção,
Não poderá mexer nada.
Ao ler, somos criadores,
Imaginamos a estrada,
Os cenários, os amores,
Vemos rostos a falar,
Ouvimos inflectir vozes…
Autor e leitor vão dar
Um ao outro o rosto e as poses,
Encontram-se as duas lavras
Numa ponte de palavras.
392 – Triste
O mais triste de hoje em dia
É que a ciência mais lesta
É, no saber que enuncia,
Do que a Humanidade atesta
Degraus de sabedoria.
É por esta discrepância
Que (quanto maior ciência,
Maior o fosso, na instância,
Para a minha conveniência)
Vivo numa inerme infância.
Este suplemento de alma
Que anda sempre em falta aqui
É que nos traria a calma:
A par o que em ciência li,
Deste imo que tudo acalma.
393 – Arte
Mesmo em arte a que um artista
É todo vocacionado,
Sobre a qual inteiro invista,
Para a qual vive apontado,
Mesmo ali qualquer ensejo
Aquém fica do desejo,
Nunca atinge o patamar
Que era então de desejar.
Estamos sempre a tentar,
Tentar a proximidade
Do limite em que apostar
Nossa possibilidade.
No fundo, busco o conduto
De que é feito um absoluto.
É o que ninguém nunca atinge,
Que ignora, mesmo se o finge.
O que sabemos ao certo
É ninguém nascer senão
Para morrer, longe ou perto:
Só a morte nos tem à mão.
É num além da esperança
Que a vida sempre balança.
Quem a esperança perdeu
Liquidou a terra e o céu.
394 – Tempo
O militar tem a glória,
No combate, da vitória
E tem-na o comerciante
No lucro somado adiante,
Mas um pintor, um artista,
Onde é que a vai ter à vista?
Não há nada exactamente
Que determine onde assente.
Qualquer arte é especial,
Só tem uma lei geral:
O tempo que a percorrer.
O tempo irá preencher
Papel final de juiz
Do fruto até à raiz.
395 – Horizonte
A força das circunstâncias
Os horizontes reduz
De cada um a distâncias
A tal ponto que traduz
Qualquer barraca em palácio
Que a palácio não convém.
Tudo é relativo, trace-o
Embora o sonho também.
Quando preso numa cela,
Qualquer tenda é liberdade;
Quando o tédio me atropela,
Não há palácio que agrade.
396 – Corpos
Vivemos aqui na terra
E nossos corpos são tudo
Que temos para viver.
Sem o corpo a que se aferra
Esta vida a que me grudo,
Sem suporte, a que me ater?
Mera chama sem chamiço,
Não fui feito para isso.
397 – Ténues
Ao longo cambaleamos
De nossas ténues cordas
Individuais que agarramos,
Estendidas pelas bordas
Do escuro abismo do medo,
Em meio ao negror da noite,
A oscilar, na boca o credo,
Sem canto que nos acoite,
Os dedos enclavinhados
De equilíbrio numa vara
Instável de ambos os lados
Da preocupação que a tara,
Dum lado com os temores,
Do outro com os desejos
Que não dão entre os pendores
Ao equilíbrio ensejos,
E sempre de ouvido atento
Ao estalido que marca
O brusco quebrar do vento
No fio que corta a Parca.
E depois é o sono eterno
Sem mais Verão nem Inverno,
Ou daquele em luz perene
Ou deste no escuro infrene,
À espera de que algum dia
Se nos desempate a via
E que seja para a Festa
Que se nos abra esta fresta.
398 – Cegos
O medo da solidão
Medo de ficar sozinho,
É o responsável malsão
De actos cegos que adivinho,
Actos sem os olhos de alma,
Só de forças de matéria,
De temor que nunca acalma,
A nos levar à miséria,
Quando a esvair começamos,
Tarde ou cedo, em mera perda,
Tudo o que mais estimamos,
Emprego, filhos, a esquerda
Saúde arrastada em queda,
Da vida desfeita a meda…
- E no fim, retrospectiva,
Vence a solidão esquiva.
399 – Atinge
Quenquer sabe tudo
O que há-de fazer
Tomando o conteúdo:
- Consciência do ser
Que alcança a verdade
Quando o Todo a invade.
Ao querer saber,
O que vier aceita
E sabe ir perder
E perde sem peita
E uma e outra vez
Perde sem revés:
Isto fará parte
Do que sempre é vida.
Consciência que acarte
A fundura haurida
Sabe resumir
Passado e porvir,
Nos céus funde na terra.
E o que isso traduz
É que a luz encerra
Toda a terra em luz.
400 – Artista
Todo o artista é um avatar,
Alma que irrompeu no mundo
Para fazer avançar
A Humanidade no fundo
Leito daquela mensagem
Por onde ele faz viagem.
Nenhum artista tem medo
Da vida e do seu segredo.
Então consegue trepar
Mais alto e trazer mensagens
Inspiradas naquele ar
Que respira nas paragens
Das alturas que reparte
Depois em criações de arte.
E o público, quando vê,
Toca qualquer obra de arte
(A que deveras tal é),
Se eleva, à aventura parte:
A espiritual energia
Arrebata o dia-a-dia.
401 – Funduras
Todo o mal que me fizerem
A si próprios fazem antes,
Que as funduras que me gerem
São de abismos mais distantes:
Moro sempre muito além
Do sofrimento que advém.
Quem ódio tiver-me a mim,
É dele que o ódio tem,
Que nele reside, enfim,
Ferida a infectar também:
Cada qual projecta fora
O que dentro dele mora.
Sempre dum peito magoado
É que o ódio é semeado.
402 – Gera
O sentimento de pena
Gera civilização
De gente muito pequena
Que diz: “Cristo é salvação
E por isso sofreu tanto,
Propugnou dele o ideal
E atraiu a dor e o pranto.
Ora, a me escapar de tal,
Nenhum ideal vou ter
Nem quero salvar ninguém.”
É a massa amorfa a crescer,
Nem missão nem fito tem,
Não tem foco de verdade,
Voga ao sabor da corrente.
Sem visão de eternidade,
Voa ao vento que então vente.
403 – Fé
Ter fé será mesmo crer
Que algo nos há-de ocorrer
E que tal algo, por certo,
É o melhor para aprender
E para evoluir, desperto,
Mesmo que, à primeira vista,
Julgue que não e resista.
É acolhimento de vez
Contra ventos e marés,
É sem condições entrega,
Qualquer que seja a refrega.
404 – Religiões
As religiões já não vão
Da vida espiritual
Ser jamais o coração:
A Humanidade é que vale.
Filosofia de vida
É que à espiritualidade
Nos vai levar de seguida
Cada vez mais de verdade.
A hora do entendimento
Que nos ajude a viver
Melhor a cada momento
Chegou já para quenquer.
É o que ajuda a conectar
Com o divino além, fundo,
Sacra força a nos guiar,
A nos proteger no mundo.
405 – Espiritualidade
A espiritualidade é perceber
E praticar que o que sentimos dentro,
No coração, vai sendo mais o centro,
Cada vez mais em nossa vida e ser.
A certa altura só se quer sentir
Aquele amor, aquela paz de vez,
Aquele estado unido com que um és
Com o Cosmos inteiro no devir.
E todos os apelos da matéria,
Bens de cotio, consumo e todo o ter
Deixam então sentido de fazer.
Espiritualizar-se em via séria
É o mundo encontrar novo, a prometida
Terra que aguardaremos cada dia.
Questão é deixar o ego que enfuria,
Com os desejos dele a que convida:
Jamais “eu quero aquilo” ou “de tal modo”.
É não levar ao céu mente pesada
De matéria, tropeço nesta estrada.
A comunicação com o céu todo
É muito mais subtil que a ligação
Com a matéria que é muito mais densa.
Quem não abandonar esta presença
Petrificada e dura, preso ao chão,
Já não se eleva acima e não percebe
A subtileza fina de ir ao céu,
Não o atinge, de ansioso, o medo ao léu,
Mais denso acaba e mais grilhões recebe,
Remata cada dia mais ligado
À matéria a que vive aprisionado.
406 – Silêncio
Do silêncio de mim mesmo ando a fugir
E através deste silêncio é que sentir
A mim mesmo vou poder, saber quem sou,
Para após ir escolher por onde vou.
Só sabendo quem eu sou posso escolher
Com o meu arbítrio livre o que fazer
Sem receio de que a escolha seja ao fim
Contra minha natureza, contra mim
E o caminho que na terra vim trilhar.
Respeitando quem eu sou posso triar,
Escolher com tal de acordo e os horizontes
No infinito ilimitar criando pontes,
Ampliando mais e mais minha energia
Radical, que era a de origem que se amplia.
A que é do ego, a que pretende isto ou aquilo,
Por convir a mim mais sê-lo, onde perfilo
A defesa de quem vibra pelo medo,
Não se amplia, retrocede, reduz cedo.
Ser é a chave da questão: se sou, se ouvir
O silêncio que em mim more, entro em devir,
Invencível findarei, que a força vem
Cá de dentro, da impulsão que a crença tem
De mover quaisquer montanhas, por poder
De quem crê que pode alar o que quiser.
407 – Retirar
Nunca podes retirar ninguém
Do lugar onde estiver presente,
Conjuntura que o colher além,
Dum parceiro em que ele a vida assente,
- Só porque ele é tal lugar, evento
E o parceiro do comum intento.
Retirar não poderás quenquer
Do que ele é, que só lá está por ser
Tudo aquilo e tanto assim que atrai
Para ele quanto houver ali:
Semelhante ao semelhante vai
Atrair, como fatal, a si.
Não adianta ocasiões de fora
Dares todas para alguém cá vir,
Sendo quem num outro sítio mora,
Que virá sem o daqui sentir,
Iguais vícios vai de lá trazer,
Tarde ou cedo volta a igual viver.
É deixar onde estiver quem for
E ajudá-lo a se moldar melhor,
O que pensa em relação a tudo
Ir mudando, em relação à vida
Como a si, para se olhar desnudo,
De escolher ter a ocasião devida
Quem ele é, mas sê-lo então deveras
E parar de ser quem outrem quer.
Com a ajuda nesta crença, as heras
Devagar irão então fazer
As raízes (em que crê) furar
Entre as pedras do anterior lugar.
Tal ambiente de ser deixa então,
Pois o choca na novel feição.
Preparado agora a estar começa
Para já dali sair ligeiro,
Já se não confunde mais, tropeça
Contra as bermas que ele foi primeiro.
408 – Harmonia
Deus não é castigador
Mas harmonia entre tudo.
Se o homem desarmoniza,
Desequilibra um pendor,
Do Universo o conteúdo
Todo então se mobiliza
Para tornar a repor
Tudo em devido lugar:
Nada pode isto alterar.
O Universo apenas pode
Se expandir, evoluir,
Porque mantém a harmonia
A qualquer custo e fasquia,
Este equilíbrio que acode
Entre opostos em devir.
A matéria é de oponentes:
Saúde versus doença,
Riqueza versus pobreza,
Bem e mal sempre evidentes.
Opostos cuja sentença
É equilibrar com presteza.
É que o homem vem à terra
Para vivenciar os dois,
Não só aquilo a que se aferra
Nem só o outro que há depois.
Quando um ego humano escolhe
Um dos lados dos opostos,
Toda a força do Universo
Se junta e tudo recolhe
A lhe enviar, contrapostos,
Os jeitos do lado inverso.
Quem só quer saudável ser
Então, mais cedo ou mais tarde,
Doença irá conceber:
Tem de a vivenciar como arde.
Quando de opostos me teço
O Universo inteiro meço.
409 – Morrer
Não, morrer não é o que pensas,
O que todos cuidam, gritam.
Morrer das matérias densas
É se libertar, que incitam
Leis fatais a retornar
Para um uno original,
Voltar à raiz, voltar
Ao sentir mais radical.
Quem agiu dele a missão,
Se desenvolveu a termo,
Chegou ao fim da função,
É de partir, deixar ermo
Tudo aí, para ensinar
Os mais através da perda.
Apenas é de o limpar
De quantos pesos ele herda,
Para que, após a partida,
Apesar do sofrimento,
Para voar na subida
Mantenha o discernimento.
É um divino protegido,
Ensina-nos muito a todos:
Da vida e morte o sentido,
Os espirituais engodos.
Chegou a hora fatal
De vivenciar a sorte
Da vera perda real:
A perda final da morte.
410 – Assustaste-te
Assustaste-te e tiveste medo,
Fez-te o medo aqui voltar à terra
E prendeu-te num subtil degredo.
Quem tem medo nunca mais desferra
E vogar nunca mais vai mar fora
E subir nunca consegue mais.
Quem tem medo fica em baixo agora
Agarrado às ânsias vãs que trais.
Fugir de algo atrair vai tal algo:
Quando alguém foge do medo, ausência
Vai sofrer do só jardim fidalgo
Que de medo não tem mais essência,
O Infinito, o céu imenso, enfim.
Quando tem medo é sempre um ego a impor-se,
Qualquer alma não tem medo assim.
Quanto mais espiritual se esforce
Por devir, menos alguém tem medo.
Não confundas, todavia, este
Com quem finge e o medo tapa, tredo,
De atributos de que falso o veste.
Quem tem medo nunca sobe além,
Quem tem medo não se eleva nunca,
Quem tem medo nunca sonhos tem,
Nunca voa: pobre o solo junca.
411 – Aliadas
Ciência e religião,
Longe de inimigas serem,
Antes aliadas são,
Duas linguagens que auferem,
Diferentes na lição,
A mesma história em função.
História de simetria,
Tensão entre céu e inferno,
Quente e frio, noite e dia,
Deus e Satanás no averno.
Assim rejubilaria
Saber de hoje, a fé em dia,
Na simetria divina,
Na eterna competição,
Ante que tudo se inclina,
Entre luz e escuridão.
É tudo o que mais fascina
No que na história domina.
412 – Contraditórias
Ciência e religião
Contraditórias não são.
Mas, simplesmente, hoje em dia
O que nos é dado ver
É a ciência em demasia
Jovem para o entender.
Se a contradição subsiste
É estreiteza do que viste.
A crise da juventude
Aqui, tal na vida, ilude.
413 – Facto
Em Deus acreditarás?
A ciência diz que Deus,
Se existir, é lá por trás.
A mente, em limites seus,
Diz que jamais é capaz
De entender o que há nos céus.
O coração, ao intuir
O que vislumbra dos véus,
Diz-me que nunca é eficaz,
Não deverei conseguir…
- Deus é o facto que revelo
De nunca vir a entendê-lo.
414 – Modelo
Não pergunto se acreditas
No que o homem diz de Deus,
Mas em Deus, que não debitas
Nenhum modelo dos céus.
Há uma diferença ali:
As escrituras sagradas
São lendas, contos que li,
São, história além, pegadas
Do esforço da Humanidade
Para poder entender
A própria necessidade
De significado ter.
Não te peço, pois, juízos
Sobre uma literatura
Mas se crês em Deus nos visos,
Além de qualquer figura.
Quando ficas estendido
De costas num campo em flor,
Sob as estrelas rendido,
Sentes o divino odor?
Sentirás lá bem no fundo,
Olhando o esplendor dos céus,
Que estás vendo, aqui do mundo,
O toque, afinal, de Deus?
415 – Religião
Religião, como a linguagem
Ou maneira de vestir,
Atrair-nos-á na imagem
Das práticas a seguir
Em que, infantes descuidados,
Fomos todos educados.
No fim, todos proclamamos
O mesmo: que a vida tem
Um significado. Estamos
Gratos ao poder também
Que nos impele e criou
Na magia que engendrou.
Muçulmanos ou cristãos
Depende só do lugar
Onde nascemos, que irmãos
Somos todos sempre a par.
É só ver como difundo
As religiões no mundo.
Não é a fé que é aleatória,
A fé sempre é universal.
Os métodos e a memória
De entendê-la é que, afinal,
Têm muito de arbitrário,
Que qualquer trilho é sumário.
A Jesus rezam alguns,
Outros vão antes a Meca,
E não encontras nenhuns
Que água não busquem à seca
Boca acaso tragicómica,
Mesmo numa bomba atómica.
No fundo, mui simplesmente,
Todos andam à procura
Da verdade evanescente,
Uma verdade segura
Que obriga a correr após
E que é maior do que nós.
416 – Depende
A ciência pode curar,
Pode matar a ciência:
Depende, no que a usar,
De que alma põe na ocorrência.
É o imo que mais importa,
Pois decide qual a porta.
417 – Cava
A meta do terrorismo
É criar terror e medo.
O medo cava um abismo,
Mina a fé de qualquer credo,
Enfraquece a instituição
E debilita o inimigo
De dentro, do coração,
Agitando sem abrigo
As massas que lhe aderiam.
O terror não manifesta
A raiva dos que enfuriam,
Tem mais testa do que atesta,
Frecha a infalibilidade
Dum governo e, ao removê-la,
Remove a fé na verdade
Em que o povo houver de tê-la.
Com brechas toda a fachada,
Prestes vem a derrocada.
418 – Revelação
A revelação divina
Às vezes significar
Quer que a mente se te inclina
De vez a sintonizar
Teu cérebro para ouvir
O que, em fundura, lá cabe:
O mistério que, ao sentir,
O teu coração já sabe.
419 – Excesso
O excesso de informação,
Longe de satisfazer
Interiormente quenquer,
Esvazia à exaustão.
No meio termo, a virtude
É o que afinal nunca ilude.
420 – Fujo-me
Pouco importa se me grudo,
Se rezo todos os credos,
Se prendo o tempo, se o travo:
- Por mais que me agarre a tudo,
Fujo-me por entre os dedos
Sem apelo nem agravo.
421 – Falta
Não será falta de fé
Que os homens leva a temer
O escrutínio da razão?
Se o fado irregular é,
Então a via há-de ser
De medo por todo o chão.
Uma fé robusta não
Precisa de ter receio,
Que, se Deus existe, então,
Fuja embora pelo meio,
Não pode a razão deixar
De até Ele nos levar.
Penso, o que implica, o que insiste,
Que, portanto, Deus existe.
422 – Máquina
Máquina a democracia
Não é que vá funcionar
Por si própria, por magia.
Sempre há-de solicitar
Quem o valor aprecia
Tudo dentro a fermentar.
Como a livre economia,
Sistema em mercado aberto,
Por si nunca operaria:
Alguém tem de andar por perto
Orientando a energia,
Refreando o desacerto.
Para termos a certeza
De que o que ali persuade
É um aumento de bondade
Mais que apenas de riqueza.
423 – Erro
Um erro fundamental
É o de nos havermos posto
No mundo só com cabeça.
Doutro lado, nem sinal:
Vamos arrastando o gosto
Como algo em que se tropeça.
Doravante estoutras partes
Se orientam só de acordo
Com animalescas artes
- E é por isto que o chão mordo:
Não cultivámos, primeiro,
Em nós o homem inteiro.
424 – Carrossel
Não é um acto a diversão,
É de espírito um estado.
Não é um carrossel no chão,
Que este pode ter girado,
No fundo, bem deprimido.
Diversão é andar à mão
No carrossel assumido
Como festa até mais não.
Assim é que é festa a vida
Quando é do fundo assumida.
425 – Fiéis
Gostaria de pensar
Que é Deus mais iluminado
Que os fiéis que conquistar.
Para Deus, recém-chegado
Qualquer pagão curioso,
Seria logo benvindo,
Pois descobriria o gozo,
Em tudo o dele provindo,
Doutra forma de ser crente.
De estranhar é, nesta jeira,
Que o altar jamais o sente,
Não lavra desta maneira.
426 – Ancestrais
Todas as normas e regras
Vão trazer raiva e tristeza,
Mesmo se delas te alegras
Por virem de quem se preza,
De Moisés, de Jesus Cristo,
De Buda ou Madre Teresa,
De ancestrais por quem subsisto.
Mas não era intuito deles
Que foram interpretadas
De forma tão rigorosa.
O que torna um homem reles,
Que o leva a abrir as portadas
À fachada mentirosa,
Às invejas, à violência,
É o que há dele na vivência,
É o que dentro cultivar.
É o que dentro dele preza
Que o há-de contaminar,
Não é o que é da natureza.
Nunca o que lhe vem de fora
Marca dentro o que ali mora.
427 – Fidelidade
A fidelidade a Deus
É sempre a mais importante
E Deus nunca aos filhos seus
Gosta de ferir constante.
Todavia, optar por ele
Causa dor frequentemente
E ele então conforta aquele
Que, por fiel, tal dor sente.
Não é que isto anule a dor:
- O fiel é dela senhor!
De senhor força dorida
Menos fere na ferida.
428 – Sofrimento
Sofrimento não é só
Dos cegos que não entendem,
Mas dos que vêem o pó
E depois nunca propendem
A deixar que ninguém mais
Partilhe de tal visão.
Da maioria os sinais
Tudo aquilo que nos dão
É que é muito confortável
O bom que todos conhecem.
Se outro caminho é viável,
Os que o seguem logo o empecem.
429 – Usufruir
Usufruir da riqueza
É difícil quando os mais
Consideram sobre a mesa
Suja a moeda em que tocais,
Às vezes, nem mesmo a aceitam.
É o mesmo então que ser pobre,
Mas ainda pior, que suspeitam
Que nem de vós nada sobre.
430 – Cerimónias
Nem cerimónias nem ritos
Nos aproximam de Deus,
O nosso pai, quando aflitos
A ordenar a terra e os céus.
Dos rituais a pureza
Não basta, nem oferendas,
Que o que toca a Deus não preza
Nem mede o teor das prendas.
O que Deus deseja são
Apenas os corações.
Isto apenas e mais não:
Sempre o mais são ilusões.
431 – Promessas
Deus às vezes nos concede
Promessas para podermos
Ir resistindo ao que impede
Vias em melhores termos.
Só que ele nunca revela
A vontade aos curiosos,
Mas apenas a quem vela
Por apelos misteriosos.
E àqueles que lhe obedecem
Que precisa revelar?
Coisa alguma: nunca esquecem
Que nele têm seu lar.
432 – Alma
Alma, que é que te moldou?
O sofrimento vivido.
É triste ver que não vou,
Sem sofrer, ver meu sentido.
Os olhos espirituais
Não se chegam muitas vezes
A abrir a nenhuns sinais
Senão ao sofrer reveses.
Estes mudam quem atingem
Como as árvores podadas
Renovam e nunca fingem
Que ficam fragilizadas.
433 – Achegar-me
Como achegar-me de Deus
Numa peregrinação?
Quero é meu dedo nos céus,
Tenho é de Deus precisão.
Não são nunca meus destinos
Multidões de peregrinos.
E é no silêncio que fala
O que a multidão me cala.
434 – Enganado
Andas enganado, amigo,
O mundo não vai findar
Hoje à noite, sem abrigo,
Nem amanhã. E o castigo
Ninguém o pode evitar
Com reservas, mantimentos,
Que um fim nunca tem sustentos.
Crês que era a vida comum
De abandonar, dedicando
Todo o tempo e as energias
De todos e cada um
A depurar, meditando
No que importa, ao fim dos dias,
Deixar de lado o cotio,
As querelas materiais,
E votar-se ao desafio
Do que eterno dá sinais.
Mas sempre o eterno se vê
Nos nadas do dia-a-dia.
Sem este, fica sem pé,
É uma mera fantasia,
Embora seja a tendência
Que temos nesta pendência.
Nosso derradeiro dia
Ser passado deveria
Tal e qual como qualquer
Outro momento que houver,
Com freimas do quotidiano,
Com amor e desengano,
Com a honestidade certa
Que o gosto à vida desperta.
Não há mais forma de ser:
O comum dia comum,
Mais sagrado que qualquer
Dos dias e outro nenhum,
Se impõe assim a quenquer.
Aqui se encarna então Deus:
Cá ou lá, os mesmos céus.
435 – Milagre
Um milagre bem maior
Que sobre água caminhar,
Água em vinho transmudar,
Que magias sobrepor,
Comida multiplicar,
É um homem fraco e falível
Transformar num herói grado
Para além do que é credível
No imaginário castrado.
Este, sim, é que é o primeiro:
- O milagre verdadeiro.
436 – Dezoito
Aos dezoito anos tocamos
As fronteiras da ilusão:
Para trás abandonamos
A terra dos sonhos, chão
Onde os germes fanarão,
E à frente então divisamos
Contornos de realidade
No horizonte, além dos ramos,
Com o granito que a invade.
Toda a alegria da vida
Vai doravante ser ganha
Bem antes de ser obtida.
Só quem lutar é que a apanha
E os das grandes recompensas
Sabem das custas imensas
Que pagaram para as ter
Mesmo um momento qualquer.
Aos dezoito anitos, não,
Ninguém sabe nada disto.
Na esperança antes crerão
Que lhes sorri no registo,
Promete a felicidade.
Se o amor lhes aparece
Como um anjo de verdade,
A esvoaçar na verde messe,
Em torno da porta aberta,
É acolhido, festejado,
Ninguém faz nenhum alerta,
Será logo acarinhado.
De repente o chão explode
E então quem será que acode?
Tantas vidas que se afundam
Nas transições que as inundam!
437 – Continuamente
Decerto Deus não nos criou,
Nos fez viver para ansiarmos
Continuamente pela morte.
A amar a vida destinou
Nosso querer, para a gozarmos
Enquanto é dada a cada em sorte.
Ao conceder-nos a existência
Não vai querer que deviera
Pálida assim, sensaborona,
Dum triste ocaso uma opulência
Que numa sombra se perdera
E ninguém mais dela se adona.
Deus quer a vida e a nós com ela
Na calmaria ou na procela,
No gozo ou luta a que incentiva,
Mas sempre, sempre em festa viva.
438 – Monstros
Carreira, eficácia e glória
São três monstros que criámos
E hoje contra nós vitória
Buscam quando nos fanamos.
Eficientes procuramos ser
A fim de conseguir maior sucesso.
Por tal motivo acelerou quenquer,
Buscando ganhar tempo sem tropeço:
Comem à pressa, à pressa lêem,
Falam à pressa , à pressa escrevem,
Têm à pressa a fé que vêem
De tal cariz que mal se atrevem…
O engraçado é que este tempo
A tal custo ali poupado
Nunca nestas vinhas que empo
Me aparece ao fim de lado.
439 – Visão
Um artista com futuro
Terá uma visão mais clara,
Mais feliz, com mais apuro,
Da magia branca e rara
Que qualquer arte em si for.
Ele é hermético, lunar,
Um alado intercessor
Entre a vida a borbotar
E o espírito escondido.
E já toda a mediação
Nela mesma terá sido
Sempre espírito em acção.
440 – Mudaram
Os tempos mudaram mas, no fundo,
Os homens os mesmos são de facto.
Nenhuma cidade em pé no mundo
Permanecerá, se erecta ao pacto
De materialmente prosperar
Sem voltar os olhos para trás,
Sem raízes fundas enterrar
Num ancestral solo, húmus que a faz.
Cidade com fibra de aguentar
Só quando amparada em tradição:
Se acaso tiverem de lutar
Sabem porque irão lutar então.
Não defendem só casas, jardins,
Monumentos, lojas, mansões, bancos…
Irão defender, em seus confins,
Sonhos, sentimentos, jeitos francos,
As imemoriais comuns ideias…
Um arranha-céus milhões o fazem,
Mas os campanários das aldeias
Argamassam tempo e sonhos trazem,
Juntam sacrifício, sofrimento,
São mais que o que são: são um fermento.
441 – Estabilidade
A estabilidade do concreto mundo
De que a segurança em alto grau depende
Depende daquilo em que a mudança é lenta:
Regularidade deste céu profundo,
Reacção química que a ser mesma tende,
Orgânico impulso por que a vida aumenta…
Mas no mundo humano divergente é tudo,
O ritmo das mudas acelera vasto,
Civilizações caem num beco mudo,
Florescem, decaem, perdem logo o pasto.
A própria carreira de homem é imprevista,
A reacção de hoje a diferir da de ontem.
Contrasta o que é humano, tendo tal em vista,
Onde o imprevisível, o inseguro apontem.
A crença é escolhida num transcurso curto,
As aplicações são de milénios surto.
E é nestes contrastes que tomamos pé,
Tenhamos nós crenças ou nos falte a fé.
442 – Adiante
Adiante de nós caminham nossos actos
E nunca lhes podemos nós sustar a marcha.
E antes de os praticarmos, consumados factos,
Nada nos fez prever a vida que se escarcha,
Nada nos impediu de os praticar coactos.
Da culpa as consequências são irremediáveis:
Logo que radicada, vai desenrolando
De efeitos a meada enredada e fatal.
E é inviável ao homem (nas incontroláveis
Paixões que o encegueiram, falha de comando
Dos instintos) guiar-se pelo tremedal,
Em passos vacilantes, na escuridão crua
Da vida armadilhada, traiçoeira e nua.
443 – Mal
O mal feito não limita
Estragos a quem o fez
Nem a quem o não evita.
Ele alastra como o pez,
Invisível, subterrâneo,
Comunica-se em cadeia,
Mata a fé e o sucedâneo,
Apaga a luz da candeia
Noutros muitos corações
Até onde o nem supões.
Este vírus invisível
É na vida o que é terrível.
444 – Futuro
O que o futuro reserva
Ninguém saberá, ninguém.
Lá fora a noite conserva
O negror medonho bem
Mas tal não impede o sol
De nascer de manhãzinha.
Além do mais, há no rol
Do infortúnio uma outra vinha,
Há sempre um bago de luz,
Se nós o quisermos ver.
A vida é boa e seduz
Deveras, haja o que houver.
445 – Activar
A nos activar as pernas
E fazer-nos avançar
A motivação de eternas
Aguilhadas vem picar.
Quando ela desaparece,
Passo a passo, devagar,
O gosto em viver fenece,
Só perda fica em lugar.
446 – Clínica
Nem o médico melhor,
De clínica apetrechada,
De instrumentos com um ror
De precisão apurada
Há-de conseguir salvar
Quem esteja a desistir
De viver, por se cansar
De persistir, persistir,
De família rodeado
Com o medo de o perder.
Nada vai mudar o fado
Que o desespero vencer.
447 – Mexe
A palavra é uma energia
E mexe em nós como tal.
Significando, inicia
Na atitude a dar sinal,
A qual provoca, em seguida,
O nosso comportamento.
Em serenidade, a vida
Tem um outro seguimento
Diverso do que seria
Se ele fora realizado
Tendo um agressivo guia
Como um rumo emocionado.
Às palavras reagimos
Que criam disposições:
A força elevam aos cimos
Ou cansam, aos tropeções.
448 – Cuida
Ninguém cuida da verdade,
Que é triste, não tem poesia:
Quando ela nos persuade,
A imagem da pátria esfria
E este mundo em que vivemos
Não é bom, de modo algum.
Então de lado a pusemos,
Fizemos dela jejum.
Em compensação, porém,
Exigimos tudo aquilo
De que fiámos além
O mais íntimo sigilo:
Nossos heróis, nossos santos,
Nossos mártires e génios…
Nem pés de barro nem prantos
Abalam estes convénios.
449 – Píncaros
Quando um homem colocarem
Lá nos píncaros da Lua,
Se ele crer, por tal julgarem,
Que é príncipe e se enfatua,
Deixa de ver, orgulhoso,
Que os mais irão detestá-lo
Ao tornar-se presunçoso,
E vão por outrem trocá-lo.
É tão vulgar ocorrer
E mal há como aprender!
450 – Néscios
Os populares heróis
Como são néscios, mesquinhos!
Humanos brilhando, sóis,
Como ídolos adivinhos,
Não podem ser transmudados
Sem demonstrar nos trejeitos
O barro a que estão grudados,
O barro de que são feitos.
Luzam embora arrebóis
Com prendas nos sapatinhos,
Os populares heróis
Como são néscios, mesquinhos!
451 – Presta
É sabedoria velha,
Com tempo mais toma vulto:
Sempre o povo se assemelha
Ao deus a que presta culto.
Pode ser vaca sagrada,
O porco, o bezerro de oiro…
- Desde o jardim à fachada,
Talha-o da medula ao coiro.
Por isso qualquer herói,
Ídolo de referência,
Não é inócuo no que dói:
Mede-lhe bem a valência.
452 – Milhões
A admirar, seguir um homem
Andam milhões de pessoas,
A torná-lo herói de loas,
E como um deus o consomem.
É o efeito inevitável
Da destruição dos deuses:
Consumados os adeuses,
É um igual que é o adorável.
Mas os deuses mais antigos
Eram prudentes, fiáveis.
Dos crentes eram abrigos,
De virtudes desejáveis
Dotados por que se anseia.
Poder e sabedoria
Cada qual lhos concedia
E nenhum risco lhe ameia,
Tal se pusera uma espada
Duma imagem entre as mãos,
Sem medo de que ela usada
Venha a ser contra os pagãos.
Mas, se o povo adora um homem
E uma espada deposita
Na mão ágil que lhe excita,
Quando ao fim contas se tomem
Com que contará senão
Vir a morrer dela à mão?
453 – Ceia
- Tenho minha casa pronta,
Ordenhei minhas ovelhas,
Tranco a porta, sob as telhas,
A lareira ardendo à conta.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
- Nenhuma comida ou leito
Eu requeiro agora mais,
Os ventos são meus casais,
Da lareira o lume enjeito.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
- Tenho carro e conta em banco,
Tenho searas e gado,
De meus pais herdei meu prado,
Mesa farta onde me abanco.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
- Eu não tenho bois nem vacas,
Não tenho prados, não tenho
Nada, nada e cá me avenho,
De ar puro cheias as sacas.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
- Tenho dócil e fiel
Um amor de anos infindos.
Sou feliz dos olhos lindos
E de mil horas de mel.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
- Livre e dócil alma tenho,
Há decénios a exercito,
Comigo a folgar a incito
Na festa que em mim contenho.
E tu, céu, podes chover
Quando bem te apetecer.
454 – Paixão
Ter uma paixão é a liberdade,
Juntar peças de oiro e, de repente,
Vencer a paixão impenitente,
Jogar o tesoiro à soledade:
Livrar-se da paixão e obedecer
Àquela mais nobre que advier.
Não é, porém, isto escravatura?
Em prol duma ideia, raça ou deus
Ir sacrificar-se, oferta aos céus?
Ou será que quão maior altura
For a do senhor mais se dilata
Do escravo a corrente que o empata?
Pode então folgar e debater-se
Em mais espaçosa, larga arena
E morrer até, que não lhe acena
A corda que o prende. Eis no que verse
Pois, ao fim e ao cabo, a saciedade
Do que nós chamamos liberdade.
455 – Plantas
- Plantas uma amendoeira,
Avozinho centenário?
- Ando a agir nesta canseira
Tal se não morra, sumário.
- E eu a agir tal se tiver
De em cada instante morrer!
Qual dos dois terá razão?
Dois trilhos a vida assume
E ambos vão levar ao cume:
Agir tal se a morte não
Existira e agir pensando
Em cada instante na morte
São, no fundo, a mesma sorte,
Se a fundo for meditando.
456 – Oculto
Todo um sentido oculto há neste mundo:
Animais, homens, árvores, estrelas,
Hieróglifos são todos. Bem jucundo,
Feliz, o que começa em tais estelas
Acaso a os decifrar, a adivinhar
O que dizem. Mas ai, quando ele os vê
Não os entende, não. A acreditar
Desata que são homens, de boa fé,
Árvores ou estrelas… Tarde a mais
Colhe o significado dos sinais.
Então já não terá mesmo maneira
Que refaça a perdida vida inteira.
457 – Espadeirada
Quem à espadeirada corta
Qualquer problema da vida
Não cairá de lado à porta,
Que inteiro é que sempre lida.
Completamente se apoia
Dos pés até à cabeça
Na terra que dele é a jóia.
À serpente se confessa
Muito africano selvagem
Porque toca em corpo inteiro
A terra: tem dela a imagem,
Do mundo o segredo e o cheiro,
Conhece-os com a barriga,
Com a cabeça e a cauda,
Em contacto se interliga,
É o verso da mesma lauda,
Mistura-se num só ser
Com a terra-mãe que adora.
Só um intelectual qualquer
É um desmiolado de fora.
458 – Estrago
Eu estrago a minha vida,
Insecto, vivo um segundo
Sob o sol, em despedida,
De vez morro para o mundo.
E nunca mais, nunca mais
Ergo asas aos vendavais.
459 – Perdem
Como nas religiões
Que a inspiração criadora
Perdem pelos tempos fora,
Os deuses decorações
Passam a ser e mais nada,
São poéticos motivos,
Ornamentos na fachada
Da solidão dos cativos
Que nós somos à chegada,
Assim é com a poesia
Que em jornada se esgotou.
Tropeça na fantasia,
Já não é capaz de voo,
Brinca, porém, todo o dia.
A veemente aspiração,
Cheia de terra e sementes,
Que carrega o coração
Ali devém, entrementes,
Um jogo intelectual,
Sofisticado, perfeito,
Arquitectura de jeito
Complicado mas irreal.
No meio deste vazio
Sempre choro quando rio.
460 – Crepúsculo
No crepúsculo dos deuses
Morrem civilizações
E, de angústia nos adeuses,
Brota o homem de ilusões.
É um prestidigitador,
Jogos plenos de mestria,
Poesia em furta-cor,
De puro pensar um guia.
Qualquer homem derradeiro
Que se libertou de crenças,
De enganos do mundo inteiro,
Que não teme nem quer tenças,
A argila vê de que é feito
A jogo só reduzida
Que não quer nem toma a peito
Lançar raízes na vida
A beber, se alimentar.
O homem final se anulou,
Nem semente há que plantar
Nem sangue a fremir num voo,
Nem excrementos sequer.
Tudo se torna em palavras,
Musicais truques a ter
E vai mais longe em tais lavras:
No termo da solidão
Senta-se a olhar as temáticas,
Decompõe o cantochão
Em equações matemáticas.
Nesta final abstracção
Mata o que restar de chão.
461 – Ritmo
Como mesmo em decadência
De vida um ritmo elevado
Pode conservar a forma
Exterior mas sem a essência,
Num imponente e apurado
Penhor de nobreza, em norma!
Qualquer alma se evadiu
Mas deixa intacta a morada
Em que séculos viveu,
Que modelou, aturada,
Tal se fora a concha vasta,
Complicada e paciente,
Onde outrora morou casta,
À vontade e competente.
Esplêndidas catedrais
Que encontramos nas cidades
Ateias e ruidosas
São conchas ocas que amais,
Fósseis, em nossas idades,
De anciãs crenças escamosas.
462 – Ideia
A ideia é tudo. Tens fé?
A lasca da porta velha
É relíquia santa até.
Não tens nem uma centelha?
Mesmo a Santa Cruz completa
Porta velha é o que introjecta.
463 – Arrastar-se
Nós somos pequenos vermes
A arrastar-nos na folhinha
De árvore que é gigantesca.
São as folhas epidermes
De nossa Terra maninha.
Outras são esta dantesca
Visão da noite estrelada
A mover os céus em volta.
Na folha nos arrastamos,
Medrosos com tal estrada,
Testamo-la, quando à solta,
Provamo-la e saboreamos,
Batemos-lhe, ela ressoa
E grita como um ser vivo.
Alguns, intrépidos mais,
Vão ao fim da folha à toa,
Debruçam-se, em jeito esquivo,
Nos vazios abismais.
Adivinhamos debaixo
O medonho precipício,
Doutras folhas o ruído,
Na seiva ouvimos o sacho
A escavar qualquer resquício
De árvore que houver vivido.
Então é que debruçados
Sobre o abismo em corpo inteiro,
Maravilhado nosso imo,
Trememos sempre aterrados.
A partir dali me abeiro
Da poesia do cimo.
Começa o grande perigo.
Uns, com vertigens, deliram,
Outros, com medo, se esforçam
Por encontrar um abrigo
Ao coração que embaíram
E é por Deus que no fim torçam.
Outros, na ponta da folha,
Olham corajosamente,
Calmamente, o precipício:
“Agrada-me estoutra escolha”.
E dão logo um passo em frente,
De hesitar sem mais resquício.
464 – Engarrafado
Nunca posso conhecer
Senão o que for passado,
Tal se engarrafado houver
A liberdade em traslado
Que respeita o chão e as ervas,
Mas em frascos de conservas.
465 – Flor
Nada, senão existir
Como flor que se movera
E desabrochara ao ir!...
Mas minha flor é quimera,
Não logro que desabroche,
Ou estiola em botão,
Ou bichos cria em deboche,
Ou morre de sede então…
Nunca chega a despontar,
Sou esta fatalidade:
Caminha, de mim a par,
Sempre uma dificuldade.
466 – Invólucros
Por que é que invólucros somos
Todos de poeira amarga?
Porque não tombamos, pomos
Da fruteira, quando a carga
Já toda estiver madura.
Ficamos dependurados
Com a cauda lá segura
Quando disto quaisquer dados
Já não servem doravante.
Então os vermes invadem
Logo as vidas num instante
E apodrecem quanto fadem.
467 - Exprimir-se
Saber exprimir-se é já
Um meio caminho andado,
Da prisão ter escalado
Os muros que houvera lá,
Como a criança no parto
Franqueia, pura e fatal,
Paredes da maternal
Cela em que a vida lhe acarto.
468 – Anormais
Anormais como nós todos,
As pessoas mais sensatas
À vista são doutros modos,
Se de mais perto as desatas.
Roçar da estranheza a espuma?
- É só vê-las uma a uma!
469 – Trepar
Trepar na sociedade
É só mudar de aparência.
A vantagem, na verdade,
Não é a da melhor essência:
Troca moeda falsa bem
Por nota, falsa também!
Nem moeda nem sentença
São de lei na diferença.
470 - Instantâneo
Que pessoas e locais
Mais nos marcaram na vida?
O Verão tem os sinais,
Instantâneo, à medida:
A primeira que me beija,
Aquele primeiro emprego,
Minha primeira cerveja…
- E hoje é um mar de ontem meu pego!
471 - Coisas
As coisas nós possuímos
Até que elas nos possuem
E agarrados nelas imos:
Raízes fundas incluem
Que prendem da base aos cimos.
472 - Óptica
De óptica são contra as leis
As imagens da saudade:
Engrandecem quem perdeis
Quanto mais longe se evade.
E sempre há-de doloroso
Devir o fatal retorno
Que à evocação então coso
Na realidade em torno.
473 - Negócio
O negócio não é um urso,
Não foge para a floresta?
Arrasta-nos no percurso,
Sujeita-nos o que resta.
É, para o homem, um amo:
O ganho é escravo do dano.
474 - Intelecto
O intelecto é uma criança
Para quem tudo é brinquedo,
Diverte-o tudo o que alcança,
Quer saber, não pára quedo,
Como é que as coisas são feitas,
O que é que por dentro têm.
Tais posturas são atreitas,
Naturalmente convêm
A quebrar para ver tudo.
Pode ao fim ficar lesado,
De mãos vazias e mudo
Por demais haver brincado.
475 - Indivíduos
Os indivíduos trabalham,
Procuram encadear
Empresas e mais empresas,
Não no acaso em que elas calham,
Mas de modo a amealhar
Do maior ganho as represas.
Mas depois queimam dinheiro
Ou vão atirá-lo aos pés
De prostitutas perdidas…
Fá-lo mesmo o homem cimeiro,
Respeitado em rapapés,
Dono de importantes vidas!
Matam-se para ganhar,
Matam-se para perder…
- Quem nos há-de iluminar
A senda estreita de ser?
476 - Insegurança
A insegurança perverte
Todos os significados,
Finda a confiança inerte,
Todos envenena os dados.
Uma cidade apertada
De assédio na teia crua,
Na sentinela acordada
Traidor em potência acua.
E ao próprio libertador
Que conjuga os conjurados
É com suspeita e temor
Que a urbe lhe entrega os fados.
477 - Multidão
Quando a multidão fanatizada
A esperança-mor sente frustrada,
Tende facilmente a dirigir
Contra o antigo herói que ela erigir
Inteiro o seu ódio e com fúria
Tanto maior quanto mais penúria,
Quão maior lhe dói a frustração.
Os espias sabem a lição
Do teor volúvel destas massas
E ao herói, dali, matam-lhe as traças.
478 - Juízo
Ser Deus-no-mundo, ao contrário
Do que é juízo comum,
É de Paixão ter fadário,
Débil mais que qualquer um.
O Deus todo-poderoso
É o das leis que o Cosmos tem,
Não o dum pretensioso
Que aqui julgue ser alguém.
Por ser Deus é que Jesus
Acabou morto na cruz.
E assim acaba quenquer
Que por igual Deus vá ser.
479 - Conhecemo-nos
Não vivemos em hotéis,
Antes em comunidades.
Conhecemo-nos, fiéis,
Doamos felicidades,
Muito nos preocupamos
Uns com outros, mutuamente.
Comunidade em que vamos
Para o jardim adjacente
Onde as crianças, à noite,
Poderão brincar na rua
Sem temer que lá se acoite
O estranho de faca nua.
O problema é a vida urbana
Dela com o anonimato:
Como pode ser humana
E tolher o desacato?
480 - Grandeza
A celebridade e a fama
Quem com grandeza confunde?
Famosos que o mundo aclama
Não há grandeza que os funde.
Obtêm fama e fortuna
De méritos sempre aparte.
E há quem, grande, se coaduna
Com o que nada lhe acarte.
A grandeza é uma medida
Do espírito que alguém tem,
Não é a posição vivida
Do mundo em palcos de alguém.
Ninguém confere a ninguém
A grandeza que atingir,
Não é um prémio que lhe advém,
É conquista a prosseguir.
Tanto pode coroar
A cabeça dum porteiro
Como autêntica brilhar
No imperador mais cimeiro.
481 - Projectam-se
Projectam-se as ideias na razão directa
Da força que as concebe, indo bater aonde
A razão as dirige, pela lei secreta
Que ao tiro do canhão certo lugar responde.
Divergem os efeitos: naturezas brandas
Farão que as ideias lá desbastem tudo,
Porém as vigorosas, de couraças pandas,
A bala alheia achatam com desdém de entrudo.
E as naturezas bambas, de sombrio fumo,
As ideias dos outros de igual modo matam,
Que as balas de canhão irão morrer no rumo
Dos areões à solta que ali as acatam.
482 - Afiada
Ir para a Universidade
Nunca muda um coração,
Fornece a oportunidade
Duma novel arma à mão
Mais afiada que a antiga,
Para dela fazer uso
Por ou contra o povo, em briga,
Conforme o que no imo acuso.
O que o coração me pede
É o que ao fim a mão me mede.
483 - Entretanto
Algumas horas antes estive eu ali.
Pois entretanto alguém, humano ser, morrera.
Mas que importância tinha? São milhões que vi
Que a cada instante morrem, uma conta mera.
Àquele alguém em questão
A morte quis dizer tudo:
Mais lhe importa, na ocasião,
Do que o mundo cego e mudo
Que indiferente a girar
Lhe ali continua a par.
A tragédia é que este muro
Para o outro nunca furo.
484 - Custar
A fé torna-nos fanáticos
Com muita facilidade.
Eis, portanto, em termos práticos,
Porque a religião nos há-de
Custar tanto sangue, tanto.
Sempre é filha a tolerância
Da dúvida tida ao canto
Da fé mais firme, com ânsia.
Quem com toda a fé viver
É muito mais agressivo
Do que um infiel qualquer,
Fiel apenas ao que é vivo.
485 - Cépticos
Por que razão os piedosos
Raramente são leais?
São idealistas nervosos,
Intolerantes demais.
Os cépticos são quem tem,
Sejam crentes ou descrentes,
Melhor carácter também:
Duvidam de quaisquer mentes.
Mantêm assim a terra
Aberta a qualquer semente
E qualquer que ali se aferra
Tem adubo suficiente.
486 - Segunda
Nunca sabemos de nada,
Tudo é sempre diferente
E vez segunda é jornada
Que jamais nos é presente.
É sempre, sempre a primeira
Que nos é proposta assim.
Qualquer outra é derradeira,
Segunda vez, nem no fim.
Mas vivemos na ilusão
De repetir igual chão.
487 - Hospital
Um hospital é um convento,
Ensina-nos a apreciar
Coisas simples a contento:
Andar, ver ou respirar…
Nisto anda a felicidade
Em torno de nós, sem gala.
Sabedoria, em verdade,
É apenas isto: agarrá-la!
488 - Destino
Nunca o destino é mais forte
Que a coragem de enfrentá-lo.
Se aguentar não pode o abalo
Alguém, é que cede à morte.
É muito bom saber isto
Como é bom saber também
Que jamais de vez desisto,
- E a vida em mim se mantém!
489 - Encantamentos
Nos livros encontramos companhia,
Conselho, encantamentos e consolos:
Na sala horas sozinhas, cada dia,
Gozar posso a silente melodia
Dos termos em que voo pelos pólos.
490 - Gostar
Gostar de ler e ler bem
São os maiores factores
Que o sucesso escolar tem.
Bons estudantes, leitores
Serão bons sempre também.
Terão sempre melhor nota
Em teste ao conhecimento,
Em qualquer ano da rota,
Dum tema em todo o elemento,
Mesmo quando o que se anota
De matemática é evento.
Ler tem um poder tão sério
Que nos faz reis dum império.
491 - Mentais
Não é micróbio nem fome,
Não é cancro nem é peste,
É o homem que se consome,
Que contra si mesmo investe:
Não tem grande protecção
Das mentais epidemias,
De maior devastação
Que naturais vilanias:
Catástrofes naturais
Marcam por fora os sinais
E deixam por dentro intacto
Dos corações todo o pacto.
Porém, na peste mental,
Dentro e fora tudo é mal.
492 - Lei
Metade da lei magia
É de tigres de papel
A guardarem noite e dia
O templo para o fiel
Duma deusa de maus fados
Por ter sempre olhos vendados.
493 - Instrumento
É um instrumento a linguagem,
O mais subtil inventado,
Da inteligência uma imagem,
Reflexo puro e traslado.
Antes da roda ou martelo,
Barco à vela ou violino,
Termo a termo invento um elo
Que lhes impõe o destino.
Dos homens a inteligência
Pela linguagem lha meço:
O falsário, de evidência,
A empola como um tropeço…
Os pais como os professores,
Os linguistas que a ensinam
São os jardineiros-mores
Da razão que disseminam.
494 - Líder
Apenas quem outrem serve
Pode ser líder genuíno,
Que é servindo que preserve
Ao comando o rosto e o tino.
Das coisas na natureza,
O maior habitualmente
Serve o pequeno a quem preza
E bem se a servi-lo sente.
O docente serve o aluno
Como ao filho serve o pai
E o treinador coaduno
À equipa se a servir vai.
Autoridade, portanto,
Privilégio pessoal
Não é jamais: é o recanto
De servir mais radical.
495 - Inteligência
A inteligência avançada
- Em hipóteses pensar,
Planos levar de empreitada -
É um efeito singular
De ao faz-de-conta brincar.
O imaginário pedido
Mantém a mente aguçada,
Aberta, um flexível fluído,
Instrumento destemido,
Pronto a qualquer empreitada.
Toda a semente dum génio
De faz-de-conta é um convénio
Ocorrido em pequenino
Que a porta abriu ao destino.
496 - Mérito
Quem tem muito abonador
Muito tem com que o comprar
E, se o busca, é tal propor
Por não ter mérito a par.
Quem pretende sem padrinho
Fia da verdade o intento,
De justiça quer caminho,
Aposta em próprio talento.
497 - Fingida
Paz fingida é bem pior
Do que guerra verdadeira.
E esta acaba a se antepor
Porque impõe uma joeira:
O que a vera guerra faz
É que gera a boa paz.
498 - Perversidade
Perversidade não há
Que ninguém possa emendar,
Não haver pode acolá
É quem a emenda aplicar:
Quando a unha é poderosa
Quem da tesoira se goza
Com que a poderá cortar?
499 - Garras
São as garras de rapina
Enxertos de mato bravo,
Urtigas, tojos, de sina
Que enxameia como favo
Sem que ninguém as semeie.
Não me vejo livre delas:
Por mais que as corte e tenteie
Soltam sempre em mim as velas.
500 - Pequenos
Pequenos erros que não
Se irão de início sentir
Mais perigosos serão
Que os grandes que cada vir,
Que perigo que se entende
Busca a cura e nela rende.
Os erros que se não sentem,
Dissimulam, crescem tanto,
Pouco a pouco, enquanto mentem,
Que, quando os topo no canto,
Já tão largos vão no assédio
Que não terão mais remédio.
501 - Razões
Não aparecem talentos
Por três razões comezinhas:
Primeira, quem aos portentos
Procure não adivinhas,
Que os não há por terras nossas
E os génios murcham nas fossas;
Segunda, é que há sempre quem
Os jogue para a valeta
Porque o lugar lhe convém
(E que ninguém se intrometa!)
E depois deste desvio
Não há como atar o fio;
Terceira, é que nunca são
Os génios intrometidos.
Nisto cada qual é bom:
Sempre os bons são comedidos
E, ao contrário, o não serão
Os que furam tal furão.
Não há quem aos génios busca,
Pois não há quem os estime.
Mas mão que os desvia injusta
Há sempre, a dar por sublime
O inútil cujo lugar
Era junto ao lupanar.
Nunca se oferta o talento
Para não sofrer repulsa
Daquele de cujo intento
Corre a vida sempre insulsa.
Este, porém, é que manda
Do mundo em toda a demanda.
502 - Antes
Ver o mal antes que chegue
É bom, leva-me a escapar.
Mas um raio, quando adregue,
Ou bala como enxergar?
Só quando já for ferido,
São males irremediáveis.
Tal da rapina é o sentido
Quando são indetectáveis
As garras que furtam bens
Se fé delas nunca tens.
503 - Engano
Vestido o engano de eloquência
E de arte atrai, mas a verdade,
Se mal polida em transparência,
Enfada mais do que persuade.
De errar fazemos nós vaidade,
Se em subtileza e vã premência,
E temos pejo se o certo há-de
Rústica ter dele a evidência.
504 - Veremos
Não é por estar mais perto
Que algo veremos melhor:
O herói dista no deserto
E a distância dá fulgor
Igual à desproporção
Dele ante dos mais a acção.
505 - Obrá-lo
Como se um acto generoso
Em o saber mais consistira
Do que em obrá-lo, o mui vaidoso
Pela virtude não agira
Mas busca apenas tal sequela
Por glória acaso que vier dela.
506 - Perverte
Só vaidade transformar
Sabe qualquer gosto em dor
E esta em prazer invulgar,
A alegria num horror
De tristeza singular,
Como esta em contentamento
Dum para outro momento.
A vaidade é muito estranha:
- Subverte tudo o que apanha.
507 - Influem
Nossa tristeza torna tudo triste,
Nossa alegria tudo mostra alegre,
Contentamento do que em nós existe
Agrado mostra do que à volta integre.
Menos influem sobre nós eventos
Que nós em nós a nos soprar os ventos.
508 - Pende
O movimento, a mudança
De que pende o ser de tudo
O início também alcança
Do fim de tal, sobretudo:
Sem se mover e mudar
Nada pode nem findar.
A própria origem da vida
Também é da morte a causa,
Tão certa é a morte à medida
E tão curta a vida, a pausa:
Um e outro extremo inverso
Criados no mesmo berço.
509 - Gosto
O gosto da vitória
É menos atractivo
Quando é uma realidade
Que quando for lembrado.
O comprazer da glória
Não é tão forte e vivo
Na prima identidade
Como em memória dado.
O susto do perigo
Sempre representado,
No momento em que brigo
Não é tão inimigo
Como quando evocado.
É tal o imaginário
Que nunca o entorpece
O tempo, por mais vário,
Nem o a vida amolece.
510 - Altos
Os mais altos montes
São os que se admiram,
Não porque horizontes
Deles mais se miram,
Mas porque ao subir
Mais custam a ir.
A facilidade
Resta aborrecida
Em toda a medida,
O lustre à verdade
Vem dum argumento
Contrário que tento.
É a contradição
Que dá coração:
Nela aduba a força
Que o destino torça.
511 - Suspiro
À vaidade pouco importa
Que um suspiro seja dado
Por quem com ele se exorta
Como estrela em céu nublado.
Uma ilustre actividade,
Quando for feita em segredo,
Não passa, para a vaidade,
Dum infeliz arremedo.
Uma virtude escondida
E que a ninguém bate à porta
É uma virtude perdida,
Para a vaidade está morta.
512 - Murcha
Por muito que o não sintamos,
Morre primeiro a razão:
Como a força que há nos ramos
Cresce um tempo em vigor são,
Durante outro se conserva,
Murcha, enfim, gasta a reserva.
Nós perdemos a inocência
Quando germina a razão
E desta finda a existência
Daquela ao tornar ao chão.
Uma e outra desejáveis,
São, portanto, inconciliáveis.
513 - Espelho
Nos homens o entendimento
É tal qual a formosura
Na mulher, da vida alento:
Não há nunca desventura
Que um espelho não console
E toda a tristura finda
No altar a que o mal imole
De ver-se no estado ainda
De inspirar algum amor.
A um infeliz homem serve
De alívio já se propor
Sábio ser no que preserve.
Ao tal se considerar,
Esta vaidade adormece
O mal que o sentir lesar
E a dor logo lhe arrefece.
Como se a mulher nascera
Só para ser bem-querida
E o homem apenas viera
Para o senso ter medida.
514 - Desterra
Se a melancolia
Para a solidão
Nos desterra do ermo,
Jamais deixa um dia
De ir connosco à mão
Da vaidade o termo.
Somos ave desgraçada:
Por mais que fuja ao lugar
Em que ficou lesionada,
Sempre leva atravessada
No peito a bala a sangrar:
Nunca podemos fugir
De nós, em nenhum porvir.
Para onde quer que vamos
É com nossos desvarios
Mesmo se no ermo onde entramos
Somos inocentes rios.
515 - Força
Ninguém força a que prometa,
A que cumpra, porém, sim.
No prometer tenho a meta,
No cumprir, levam-me a mim.
Num lado somos quem obra,
No outro, ao contrário, não,
Àquele iremos de sobra,
Aqui só iremos à mão.
Lá, foi nosso o prometer,
Aqui fazem-nos fazer.
516 - Fortuna
A fortuna e a vaidade
Que num instante nos viram
Os triunfos de verdade
Da vida donde floriram
Nos da morte e opacidade
Mudar onde se retiram,
Fogem tão precipitadas
Que já não são mais as fadas
Mas lugar pleno de horror,
De sombras e de pesar,
Onde só o luto é senhor
Com o desengano a par.
Assim, pois, acaba o homem,
Assim acabam as glórias
E as vaidades se consomem
Sem prazer e sem memórias.
517 - Fingir
A fortuna pode armar
Um homem com mil adornos,
De hieróglifos o dotar.
Mas com tudo o que o decora
Sempre os efeitos são mornos:
Só pode armá-lo por fora.
Quem as roupas levantar
Há-de ver o engano inteiro,
A suposição alvar:
Não há-de achar nos sinais
Senão um homem, primeiro,
Como homens são os demais,
Cujo ornato é fantasia
Arbitrária e separável.
A fortuna vestiria,
Porém não pode formar.
Sabe fingir, admirável,
Mas fazer não sabe, a par.
518 - Prendem
Prendem feras e mulheres,
Aquelas pela braveza,
Estas pela mansidão.
São contrários pareceres
De cada parte ali lesa
Em cada passo que dão:
Estas porque se enternecem,
Aquelas, pois se enfurecem;
Aquelas é porque assustam,
Estas porque nos agradam;
Dumas tenho de fugir,
Outras a fugir se ajustam
Porque os mais a tal as fadam,
Queiram ou não queiram ir;
Porque mata, uma é retida,
Outra porque gera a vida.
Mesma a prisão arbitrária
E a destinação, contrária.
519 - Tira-nos
A vaidade é um artifício,
Tira-nos da nossa vida
E nossa compreensão
Qualquer das coisas resquício,
Trocando-as por falsidão,
Por aparência fingida.
A púrpura de que serve
Mais que de encobrir o homem
A si próprio vida além?
A figura que preserve,
Comum e simples também,
Igual à dos que a consomem,
Mostra-se desfigurada,
Revela-se outra debaixo
Dum véu somente exterior.
Cara que escondo fechada
Fica um mistério maior,
De veneração a enfaixo.
A vaidade artesão foi
Que a distinção inventou
Entre homens pelos ornatos,
Pela cor e o que constrói.
Tais serão, portanto, os actos
Do que a vaidade buscou.
Distinção nenhuma pode
Ter em nós realidade
Mas nas coisas que nos cobrem.
Como é que então nos sacode
Tanto nada e tantos sobrem
Quando apenas são vaidade?
520 - Fundada
Por bem fundada que seja
A grande reputação,
Nem com fundamento almeja
Ter segura a opinião
Das gentes que houver em roda
E com que ela ao fim se engoda.
Fatigam-se de admirar
Aos primeiros movimentos
Em que o raro há-de lograr
Atrair, à voz dos ventos,
Aprovação e louvor
Que o coração quer propor.
Depois a vaidade logo
De quem admira é a primeira
Que desgosta e apaga o fogo,
Irrita-a ver a cimeira
Qualidade superior
E nisto mata o fervor.
A qualidade eminente
Que nos outros vemos fica
Adversária posta em frente,
Oposto espinho que pica
E que por dentro nos dói:
Mesmo sorrindo, remói.
A inveja que ela produz
Vai contra a opulência alheia,
Da sabedoria a luz
Que já mal vê na candeia.
E assim termina malquista
A reputação que exista.
521 - Heróis
Acabam os heróis como as memórias
Dos actos deles e o metal corrói-se
Em que se gravam do combate histórias,
Os mármores corrompem-se onde a foice
A seara cegou de mil vitórias
E, da imprensa apesar, a prosa foi-se
Em que de empresas se descrevem glórias
E o verso de harmonias já destrói-se:
Do tempo à voraz fome tudo cede,
Não há limite ao metro que isto mede.
Findam as tradições antes que acabe
O mundo, que os eventos nunca tocam
O infindo do universo onde não cabe
Tal perfil do exterior. E desembocam
Os monumentos, onde a história sabe
As partes mais visíveis que eles focam,
No estrago e destruição, por mais que os gabe,
E nem ruínas de os lembrar nos chocam.
E nem durarão mais cinzas de heróis
Que as próprias urnas de os velar depois.
Epitáfios, caixões se desfarão;
Por profundos que sejam caracteres,
Insensíveis fugindo aos olhos vão,
Até que totalmente, em quaisquer seres,
Se acabam apagando em ilusão.
Parece o inanimado que tem teres
Que um tempo certo, enfim, garantirão
Para vida durável em lazeres,
Mas as pedras que formam os padrões
Entre arestas já perdem uniões.
A dureza da rocha consistente,
A montanha altaneira coroada
Da neve mais eterna, alvinitente,
O mar convulso ou manso, quase estrada,
O rio eternamente na corrente,
Busca perene duma foz sonhada,
O Sol, as nuvens, a Galáxia ingente,
Sempre além de qualquer nossa morada,
- Tudo enfim se reduz, nas finais telas,
A mero aglomerado pó de estrelas.
522 - Mudam-se
Mudam-se os homens quando se vestem
Como se o hábito natureza
Nova infundisse às demais que restem.
Não muda o homem, porém, na empresa,
Muda-se o efeito do hábito em nós:
Militar farda sonha o guerreiro,
Veste talar traz juiz após,
Tez macilenta é de frade inteiro…
Não vem ao mundo ninguém mostrar
Aquilo que é mas o que parece:
Não vem já feito, vem-se moldar
Não vem ser homem, vem ser quermesse
De qualidades - de graduado,
De ilustre ser, ter inspiração…
E os atributos de que é pintado
Se substituem ao homem chão,
De forma que este fica acidente
Superficial, estranho e alheio.
Tudo o que encobre, então, de repente
É do encoberto e em vez dele cheio,
O véu que esconde é a coisa escondida:
E não olhamos já para o homem,
Mas para a manta a encobrir cingida.
A guarnição é pelo que o tomem
O homem de fora é o que tem respeitos
Como atenções e o de dentro, não:
Este despreza-se, que os eleitos
Coisa comum e vulgar não são.
523 - Antecipa-nos
Antecipa-nos tudo o imaginário,
Nosso contentamento ou nossa pena
Atingem-nos primeiro que o primário
Objecto deles: quando vem, sumário,
Alegre ou triste dantes já me acena.
De tão sensíveis nós não precisamos,
Para em nós influírem, que os eventos
Em nós estejam, pássaros nos ramos:
Basta-nos só que longe os já vejamos,
Mais força têm se os sonhar nos ventos.
Então o mal que se receia, espera,
Não pode alívio ter, que a fantasia
Numa extensão maior logo o envolvera.
O mal que já se sente, ao invés, era
De consolar-se, que um limite via.
Mal o imagino, o facto se me entrega,
Dele a eficácia se incorpora em nós,
Antes que chegue logo a mim se apega,
Assim às coisas tudo me congrega,
Já foram minhas quando as tenho após,
Chegando a causa, já vivi o efeito.
Então ignoro quanto eu alcançar
E me parece haver falhanço a eito:
Quanto me alcança me acha satisfeito,
Já que o desejo é um modo de gozar
Mais activo e durável e mais forte
E mais contínuo que a consumação.
Daqui decorre ser deleite e sorte
Toda a esperança com que me conforte,
Que do que espero é já uma possessão.
Quem imagina quanto desejar
Tudo pintar irá de lisonjeiro,
De cores vivas e a verdade, a par,
É mal polida, tem grosseiro um ar,
É sem adorno tudo por inteiro,
Desvanecer fará toda a aparência
Feliz e alegre com que ver primeiro
Se deixam factos na ideada essência.
A realidade mostra na existência
Quase um percalço ser num atoleiro.
524 - Véu
As mais das coisas se admiram
Porque não as conhecemos.
Porque dum véu se encobriram,
O exterior brilhante vemos
Que serve muitas das vezes
A esconder horrendo abismo.
A luz tem raios soezes
Que me atacam, num baptismo,
Proibindo de examinar
Donde vem-lhe o resplendor,
Atrai a formosa a amar,
Não salta além nosso ardor,
Onde a encontrar aí fica
Suspenso e cego de vez.
Aos actos de homens se aplica:
Os mais sublimes que vês
Talvez foram detestáveis,
Não fora a causa ignorarmos.
Actos grandes e notáveis
A fantasia, se olharmos,
Nos prendem, de tal maneira
Que livre não fica mais
Para discorrer certeira
Senão em grandezas tais
E já não vai indagar
Donde vieram nem como.
Dum rochedo água a saltar
E que corre num assomo
Mui ligeira para o mar,
Antes que chegue passando
Irá por muito lugar,
Nuns mal cabe, se alargando,
Noutros acaba tão funda
Que caminha brandamente,
Além areias inunda,
Aqui rugirá fremente…
No fim, porém, será mar
E quem olha a imensidade
Já não irá recordar
Qual foi a anterior verdade.
São os homens por igual:
Caem, buscam e à grandeza
Chegam, acaso, ao final.
Ora, a vaidade que os preza
Logo lhes rouba à memória
O lugar donde vieram,
Trilhos pisados sem glória,
Mostra o que são, não o que eram.
Há muito que não queremos
Nem podemos vislumbrar
Nem a origem que tivemos
Nem o progresso, ao andar.
As excelências do fim
Nos prendem inteiramente,
Impedem de ver assim
A fatalidade ingente,
A indignidade dos meios.
Até nosso pensamento
Repara com mil asseios,
Respeito, vénias de atento,
A fortuna que não tem
Nenhum critério de escolha:
É do primeiro que vem,
Dela perante a recolha
Todos são iguais e valem
O mesmo, sejam quem forem.
Às regras que lhe intercalem
Faz que só no acaso morem.
A vaidade nos ensina
Que qualquer meio e caminho
É bom quando é boa a sina:
Regula-se este cadinho
Do sucesso pela glória
E não por outro pendor,
Qualidade da vitória
E nunca a do vencedor.
Pouco importa já o vencido
Nem como é que aconteceu,
Mas tão somente o alarido
De quem é que, enfim, venceu.
O mérito só se pesa
Naqueles que caem, fracos,
Não nos que detêm presa,
Que sobem, mesmo velhacos.
Os caminhos se examinam
Se neles se não chegou
E os meios se nos malsinam
Quando nada se logrou.
A fortuna o que costuma
É ter o merecimento
Por justificado, em suma.
A desgraça é o elemento
Que o vai deixar duvidoso,
Sujeito a exame, portanto.
O que ao fim grande e vistoso
Conduziu tem tal encanto
Que, mesmo que seja injusto,
É menos aborrecido:
Como a luz, não terá custo
Ao clarear o escuro havido.
Haja algum usurpador,
Será sempre quem olhamos,
Não a usurpação que for.
O alto do trono visamos,
Não se vêem os degraus
Por onde lá se trepou.
Meios, embora nem maus,
Ninguém neles reparou,
Como os degraus que se pisam,
O que importa é o fim feliz.
Se as vaidades o que visam
Fora virtude em raiz,
Houveram só de inspirar
Meios que são virtuosos.
Sendo vício, de ensinar
Tratam bons como maldosos:
Ser cruel, traidor, tirano
Pouco importa a quem precisa
De traição, furor insano,
E o fim com tal realiza.
Um estado de grandeza
Bem poucas vezes se adquire
Justamente numa empresa,
Quando a fortuna se inquire.
Parece que esta se irrita
Quando a não buscam por todas,
Todas, mesmo a mais maldita,
Por todas e quaisquer modas.
525 - Prisioneiro
Por mor da culpa obcecado,
Prisioneiro do passado,
Atira o peso de tudo
Em redor, ansioso e mudo,
Sempre a tentar-se esconder
Dele mesmo e de quenquer.
Tentar, porém, ocultar
Não é viável, a par.
Cuidamos que a roupa suja
Em lugar seguro, cuja
Privacidade moldemos,
É onde bem a escondemos.
Porém, algum tempo após
O cheiro fede de nós.
526 - Rirem
Quando um homem dá motivos
Para os outros rirem dele
E não só deixa festivos
Os mais, sem que os atropele,
Como ainda os acompanha
Nesta alegria com gosto,
A certeza então nos ganha
De que este homem vale, aposto,
Seja o que for que ele intenta,
Muito mais do que aparenta.
527 - Maldade
Do mundo a maldade é igual
Em qualquer meridiano:
Crente ou pagão, bem e mal
Pintam por igual o pano.
Não é aquela distinção,
Mas esta que é divisão.
528 - Pensamento
O pensamento mais fundo
É um esforço corajoso
Do íntimo para, fecundo,
Manter plena independência
Dele ante o mar tenebroso,
Enquanto em fúria a cadência
Dos ventos de céu e terra
Conspiram a projectá-lo
Para a costa que o aterra
Traiçoeira, com o abalo
Que o irá manter servil
Se não lhe escapar viril.
Mas, se ergue a própria bandeira,
De autónomo ser se abeira.
529 - Coragem
A coragem mais fiável,
Eficaz, em que eu insisto
É a de quem é inexpugnável
Ante um perigo previsto.
É que quem for destemido
Com um incontido alarde
Mais perigoso e perdido
Será sempre que um cobarde.
530 - Maravilha
Da terra todas as cores,
Maravilha embelezada,
Do céu matizes, das flores,
Sol-pôr no bosque, na estrada,
Toda a cor da borboleta,
Do rosto da rapariga,
- Tudo engano é que eu cometa,
Nenhum ser à cor se liga.
Natura deificada
Pinta como a meretriz:
A sedução cobre nada
Mais do que ossos de raiz.
531 - Linhas
Todo o homem vive envolto
Em linhas de pesca atadas.
Ao nascer, o corpo solto,
Tem ao pescoço enleadas
Muitas cordas invisíveis.
Somente quando envolvidos
Nos remoinhos terríveis
Da morte é que, surpreendidos,
Tomaremos consciência
Dos silenciosos, subtis,
Omnipresentes, na essência,
Perigos da vida vis.
Não sentirei mais terror
Em meu frio coração
Da baleeira ao furor
Que da lareira ao clarão:
É igual ter o atiçador
Ou ao meu lado um arpão.
As teias em meu redor
Iguais me ataram ao chão.
532 - Quenquer
Minha conjuntura é igual
À de quenquer que respire,
Mortal,
Por onde quer que se vire.
Todos estamos unidos
Por ligação siamesa,
Fundidos
Na trama que à rede é presa:
Se teu banqueiro falir,
Darás em doido, por certo;
Porvir
Vai trocar por morte perto
Quem por remédio veneno
Na farmácia recolheu…
Pequeno
Do cuidado que for meu
Há-de ser o efeito havido,
Por mais que o manancial
Haurido
Eu o aumente, radical.
Por mais prudente que eu fora
Manejando a corda à vida,
Agora
Já baloiça desprendida
E borda fora escorrego:
Não consigo, haja o que houver,
Sossego,
Por só uma ponta à mão ter.
533 - Lançadeira
Lançadeira voadora
É o Sol tecendo a verdura.
Quem é que o manto decora,
Que palácio, que clausura?
Voa a lançadeira, voa,
As figuras do tear
Flutuam como que à toa,
Fresco o tapete a espalhar.
O deus tecelão tecendo
Dele com a tecedura
Mais e mais ensurdecendo
Vai ante quem lhe murmura.
E, habituados ao tear,
Também nós ensurdecemos.
Só quando calha escapar
As mil vozes ouviremos
Que falam através dele.
As palavras proferidas
São inaudíveis daquele
Que entre elas distrair idas.
As mesmas são claramente
Ouvidas sem as paredes,
Da janela a olhar em frente,
Vizinhos são que não vedes.
No meio do reboliço
Do grande tear do mundo
Do pensamento o feitiço
Pode ouvir-se longe e fundo.
534 - Arraste
A calmaria é cruzada
Em fúria por tempestades
E a tempestade anda arada
De calmarias por grades.
Não há nunca nesta vida
De vez um fixo progresso
Que não arraste em seguida
Um inverso retrocesso.
Não há gradação constante,
Salto dum aos outros ramos,
Até o derradeiro instante
Quando, em último, paramos.
Saltamos do encantamento
Da infância para a infundada
Fé do púbere momento,
Vem a dúvida alargada
Da adolescência depois,
Do cepticismo seguida,
Do pesar dos arrebóis
Que são da adultez medida.
E após volto a percorrer
O caminho novamente,
Somos sempre o mesmo ser,
Igual muda eternamente.
Onde o derradeiro porto,
Donde âncora não erguer?
De que mundo vivo ou morto
Não se enfastia o querer?
Onde se encontra escondido
O pai do filho enjeitado?
Sou este órfão preterido
De mãe solteira gerado,
Morta ao me trazer ao mundo.
Paternidade secreta
Ficou no túmulo fundo:
Só na derradeira meta,
Ao lá chegar, finalmente
Ficarei dela ciente.
535 - Entra
Qualquer rico ou avarento
Apenas entra no Reino
Sujeito, a cada momento,
À intercessão do elemento
Dum pobre, carente e leino:
O peregrino a acolher,
O sedento a saciar,
O encarcerado a atender,
O litigante a prover,
O adoentado a curar…
Sem estes medianeiros
Do Reino ficarão fora.
"Nos termos mais verdadeiros,
Ignoro-vos, sobranceiros!"
- Dir-lhes-á Deus sem demora.
536 - Servidor
Um servidor bem moldado
Devém um palaciano,
Como convém, afectado.
Já não vai desfraldar pano
De funcionário do Estado
De direito, sem engano,
Cujos súbditos, iguais
Hão-de ser perante a lei.
Logo uns serão mais que os mais
Iguais diante do rei.
Tais serão sempre os sinais
Do servo servil da grei.
537 - Recorre
Quem der ordens, gritar leis,
Recorre gostosamente
De Deus à voz e aos papéis,
Atento O identificando
Com seu querer evidente
E a forma que for usando.
Tudo parece divino:
Então todo o subalterno
Submeter-se-lhe com tino
Crê dever, que vem do Eterno:
- Quem limite clandestino
Impõe ao que é um bem superno?
E eis como Deus é instrumento,
Em blasfemo desatino,
De qualquer humano intento.
538 - Contrariando
Quando o mal-intencionado
Vai contrariando o bem,
Natural e descuidado,
Os indulgentes também
O afastam, cuidando assim
Culto a Deus dar de abulia.
De bem tudo, então, ao fim
A consciência teria.
E Deus torna-se impotente
Com quem justifica a pele
Do modo surpreendente
De, afinal, passar sem Ele.
539 - Domina
Que a mente domina a língua
Cremos repetidamente,
Compreendendo, muito à míngua
Que a língua domina a mente.
A palavra a tirania
Nos impõe e com tal teia
Que até nos vitimaria,
Incônscios, da mente alheia.
Quando menos precatar-nos,
Anda na rua a arrastar-nos.
E crermos nós, ao invés,
Que somos quem lhe dá os pés!
540 - Relações
São relações invertidas:
O mundo quer multidão,
Deus, pessoas definidas.
Para ter a massa à mão,
O indivíduo se atropela,
Cada qual muito em concreto
Perde o que quer na sequela,
Não tem dramas no trajecto.
A multidão é que importa,
O número, a quantidade.
Mas a quem Deus abre a porta
Era à singularidade,
Ao que é marginalizado,
Longe ali de toda a gente,
Com quem chora lado a lado
Sempre solidariamente.
541 - Mundo
Tudo aquilo que observamos
Neste mundo material,
Átomos que combinamos,
Nos tornam um ser real,
Há muito tempo uma origem
Teve em cósmica vertigem,
Entre grandes explosões,
Gigantescas supernovas.
A melhor das conclusões
Provindas daquelas provas
É que somos, nas sequelas,
Todos filhos das estrelas.
542 - Impenetrável
Esta porta emparedada
Da imbele alma endurecida,
Impenetrável, trancada,
É o dogma religioso,
A ideologia sabida,
Frágil, mas a que me entroso.
São o que tem separado
Os povos de fé no mundo
Desde imemorial passado.
O dogma raro nos serve
Para esclarecer, fecundo.
Nele a intransigência ferve,
Nos acaba a emparedar
Uns dos outros, poço fundo,
E o Messias a afastar.
De luz como é que eu inundo
Ali preso no lugar
Que me tem fora do mundo?
543 - Memória
A memória faz de nós
Tudo aquilo que nós somos.
Se a perdêramos, após,
Ao adormecermos, fomos
Mortos ali já de vez.
Ao acordar de manhã
No mesmo corpo, talvez
Meu irmão seja ou irmã,
Mas eu não sou de certeza.
Nesta linha, a História, então,
É a memória que me preza
O que tece uma Nação.
544 - Queimar
Se mostrar minha emoção
E me queimar por fulgir,
Adentro-me à concha então
Para já não mais sair.
Não posso ser obrigado
Nem sequer persuadido
A partilhar nalgum lado
A emoção que houver sentido.
Só se me sentir seguro
Acabo a saltar o muro.
É a pobreza e a riqueza
De eu montar minha defesa.
545 - Ouvido
Como fazer outrem falar?
Da dignidade sob o manto,
Da discrição que lhe anda a par,
Da relutância sob o encanto,
Todos desejam, no fundo,
Falar no ouvido do mundo.
Quão mais bizarro for o assunto,
Mais remendado, mais terão
Necessidade de, por junto,
Falar do tema e da função.
Somos comunicação,
Queiramo-lo nós ou não.
546 - Dados
Teoria e realidade
São dois dados diferentes
Que sobre todas as gentes
Cumulam diversidade,
Tendo efeitos divergentes.
Por mais que uma noutra incidam
Não há como coincidam.
547 - Enfeites
Enfeites e bugigangas,
Gestos cerimoniais,
São a capa a disfarçar
Do poder carência e gangas
Que dele nem dão sinais
Ou são para alimentar
Os egos dos celebrantes
Ou então impressionar
Bocas na plateia hiantes.
O dom que haja em cada qual
É tão forte que então fica
Para além de tudo aquilo:
É capaz dum vendaval
Ou duma brisa que aplica
A um peito doce e tranquilo…
Há, porém, motivo forte
De manter o ritual,
Os gestos e a tradição.
A cerimónia é um transporte,
Os gestos, no principal,
A focar ajudarão
Como a concentrar a mente
No poder que o dom tiver
E serão sempre um sinal
De respeito aqui presente
Pela fonte que nascer
Da matriz primordial.
Imprescindíveis, porém,
Não são, quando o dom nos vem.
548 - Época
Existe uma idade apenas
Para nós sermos felizes,
Época das mais pequenas
De sonhar com mil matizes,
Fazer planos, de energia
Dispor bem suficiente
Para cumprir dia a dia
Apesar do muro em frente,
Idade de me encantar
Da vida com todo o evento,
De apaixonado voar,
Embebedar o momento,
Sem culpa sentir nem medo
Do prazer que então fruir.
Fase de oiro em que arremedo,
Recrio a vida que vir
À imagem do que quiser,
Visto em mim todas as cores,
Experimento o que houver
No mundo em quaisquer sabores,
Entrego-me a todo o amor
Sem pudor nem preconceito.
Com euforia e fervor,
É o tempo de tudo a eito
Levar, num convite à luta
Que enfrento no desafio,
De tentar nova disputa,
Que sempre, sempre confio.
- Esta idade tão fugaz
Na nossa vida é o Presente:
Tem a duração falaz
Do instante a ir na corrente.
549 - Ultrapassará
Pêsames e parabéns,
O mel amargo da vida,
Fazem vir, contra os desdéns
Que os provam, a paz contida
Que ultrapassará o que quer
Que seja que for prazer.
Todo o que reconciliou
Os contrários dentro em si,
Dentro em si logo matou
A fonte que houvera ali
Donde se ouviam os gritos:
- Toda a fonte dos conflitos.
550 - Vez
Toda a vez que um recomeço
Apenas repetição
É do que já foi vivido,
Nada tem ali começo,
Senão alguma ilusão:
- De vida sou desprovido.
551 - Preso
Ficar preso do desejo
De algo que já se acabou
Leva a que ali já não vejo
Que esta falta a que me dou
Não é deveras real,
Pois aquilo que se esvai
A realidade, afinal,
Deixou quando dela sai.
E então interiormente
Não me abrirei para aquilo
Que a vida traz de presente
Dela no fluir tranquilo.
552 - Real
Real é o que existe agora,
Não é o passado, esgotado,
Bem ou mal, nesta demora
De existência de finado.
Este só pode ajudar
Se, embora sem lhe negar
Aquilo em que enriqueceu,
Não fico a ele agarrado,
Tal se nada mais do céu
Ocorrer me pode em fado.
Nem é o futuro que vemos
Que, por mais que o desejemos
Ainda chão construído
Não tem dando consistência
E também só num sentido
Pode ajudar-me a vivência:
Se estiver bem consciente
De que nada, eventualmente,
Que fora de tempo nasça
Irá ter harmonioso
Crescimento, quando o faça.
Irá ser dificultoso
Do real o enfrentamento
Por me obrigar, no momento,
A ver como ele, por norma,
Jamais corresponde inteiro
À espera que tomou forma.
Pinto-o então no tinteiro
Do passado ou do futuro
E na ilusão me seguro.
553 - Flui
Tudo na vida flui continuamente,
Tudo é feito de estádios encadeados.
Poderei saborear bem o presente,
Do instante conhecer alegremente
Toda a felicidade atrás dos dados,
Tudo recomeçar, seguir em frente,
Se souber esquecer os bens passados.
É o passado, em memória bem real,
Que um muro contra mim ergue afinal.
554 - Perene
Vivo aqui preocupado,
Sempre em perene tensão,
Indisponibilizado
A acolher dor, desagrado
Que a vida me traga à mão,
Vendo em tudo uma ameaça
Àquela felicidade
A que me agarro e congraça
De meus fitos toda a traça,
A inteira individualidade.
Da mera dor de cabeça
Farei então um tumor;
Se alguém contra mim tropeça,
É que insólito encabeça
Perseguir-me com furor;
Se ninguém me telefona,
Fico sozinho no mundo…
Preocupação à tona
Confiança não abona,
De falta dela é que abundo,
Necessidade excessiva
De me sentir bem seguro,
De me esforçar sem esquiva,
De ter protecção massiva.
Frente à vida, o gesto auguro
De receio ante a surpresa,
O imprevisto além dos planos;
De medo ante o que me lesa
Dos esquemas a beleza,
Não vá tolhê-los de enganos.
Atitude que traduz
Um medo grande demais
De não ter algo que luz
Como o fado que me impus
Para dar de mim sinais.
Um medo por demais grande
De perder e me perder
E que, no fundo, o que mande
Em tudo o que em mim comande
É só medo de viver.
555 - Pondero
Tudo aquilo que, na altura,
Pondero como importante,
Decisivo, terminante,
Imprescindível figura,
Nunca o é, como produto,
Nunca, nunca, em absoluto.
Conseguir, perder, falhar,
Tudo isto é mui relativo,
Que aparente e de mudar
É o que em nós sempre é o mais vivo:
A vida, no que é inefável,
Continua imperturbável.
556 - Inteiramente
Nada inteiramente bom,
Nada inteiramente mau:
Uma mesma situação
Tanto à bênção dará o tom
Como pede o varapau.
Qualquer copo de água meio
São dois juízos que crio:
Um de que ele é meio cheio,
Outro, ao invés, sem enleio,
De que ele é meio vazio.
557 - Doença
Em perspectiva encarada
Diversa da habitual,
Doença é cotovelada,
Sacudidela forçada,
Muitas vezes bem brutal,
Que nos faz tomar consciência
De como tudo na vida
É efémera evanescência.
E de como, ante a evidência,
O que acontece ou se envida
Acaba, em valor cativo,
Sendo apenas relativo.
558 - Tradições
O facto de a multidão
Se importar por diferentes
Tradições de religião
Não significa, entrementes,
Que nelas creia deveras,
Mas apenas que procura
Conhecimento de esferas
Onde se realiza ou cura:
Experiência emocional,
Comunhão com o Universo,
A consciência, afinal,
Do que une, em fundo reverso,
Todas as religiões
Num lastro fundamental,
Para lá das diversões
Que as dividem por igual.
559 - Vítimas
Tanto mais vítimas somos
De eventos, doutrem, da sorte,
Quanto mais tais nos sentirmos,
Quanto menos nos dispomos
À vida a fazer a corte,
Por dela a mais divergirmos.
Por só me centrar, refece,
No mal que nos acontece.