QUINTO  TROVÁRIO

 

 

               E,  POEMA  IRREGULAR,  DE  AMOR  DISPONHO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 560 e 657, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                560 - E, poema irregular, de Amor disponho

 

                                                E, poema irregular, de Amor disponho

                                                Rimando apesar da irregularidade,

                                                Que o amor que proponho

                                                É que traz a norma ao sonho

                                                Que há-de um dia devir realidade.

 

                                                O acerto no desacerto

                                                É do amor a regra

                                                Com que todo o longe perto

                                                Integra.

 

                                                Fermento na massa,

                                                É sempre no longe e na distância

                                                Que o amor que aqui me toca ao fim perpassa.

 

                                                Mais que homenagem à beleza e à elegância,

                                                O amor sacia do infindo qualquer ânsia.

 

 


561 - Espiritualidade

 

Será que amei, que amo deveras,

Não daquele amor que cobra,

Que quer em troca as quimeras

Ali mesmo feitas obra,

 

Mas daquele amor infinito

Que recebo ao exercitar

A espiritualidade que em mim concito

E que distribuo ao calhar,

 

Com gratuita generosidade,

Por toda, toda a humanidade?

 

 

562 - Adivinha

 

Quem pelo Amor se oriente e deixa atrair

Adivinha que lá em cima algo deve existir.

 

Mesmo que não veja seu Eu Superior

Há-de-o pressupor

Instintivamente

A ajudar nas árduas tarefas

De viver, presente

Da matéria entre as ambíguas sinalefas.

 

Os que por aqui vão

Farão menos perguntas,

A ser limitar-se-ão:

És tanto mais quanto mais juntas

Mente e coração.

 

Ser é saber que sentir

Determina tudo:

A missão a prosseguir,

O foco a que me grudo

E como chegar ao cume do nadir.

 

Aponta se estás no rumo certo,

Se ainda o não encontraste,

Se corres longe ou perto

Quanto baste.

 

Ser é saber sentir,

Utilizar a mente

Para dar vida, as portas ao abrir,

Eficaz, ao que se sente.

E, para tal,

Se entregar,

Total,

Confiar.

 

Acreditar

Que nas alturas da interioridade

Tudo e todos andam atentos

A enviar sinais em continuidade

E que estes apenas são

Argumentos

Compreendidos pelo coração.

 

Os sinais enviados

Não são lógicos traslados:

 

Aos lógicos somente

Os entende a mente.

 

Ora, o que pela mente é descodificado

É um arremedo:

Anda inexoravelmente

Camuflado

Pelo medo.

 

Os sinais que a profundeza relata

Dela no vulcão

Têm leitura imediata

No coração.

 

 

563 - Provável

 

A mulher tem razão:

É mais provável findar condenada

Uma relação

Se não houver a camaradagem que lhe agrada.

 

E o homem tem razão:

Maior perigo

Corre a relação

Se não houver de independência algum abrigo.

Demasiado afastamento

Acabará por matar, sem resquício,

O amor que acalento

De início.

 

Demasiada proximidade

Que ao outro não permite

Ser ele próprio de verdade

Mata o casamento num desquite.

 

A chave do sucesso

É abrirem juntos, com tino,

Caminho às energias do progresso

Masculino e feminino.

 

 

564 - Rituais

 

Casal feliz em casamento feliz

Cria rituais de ligação:

Para sair, noites de fadas com cariz,

De família serões de atar a união,

Por telefone conversas,

Por electrónico correio,

Quando um deles viaja pelo meio

Das berças…

 

Tais rituais devirão o pilar

De sustentação do lar.

 

Nem todos os momentos da relação

Íntimos terão de ser.

Marido e mulher

Sabem quais

Os rituais

De ligação

Que do amor

Mantêm o poder

Quando a vida se agitar com mais furor,

Tensa.

 

E nela não há mais imprevisto nem furacão

Que os vença.

 

 

565 - Domínios

 

Felizes os que um ao outro permitem

Domínios conjugais privados diferentes

Que os não limitem,

Antes incitem

Contentes.

 

Criam grupos de amigos diferentes

E um ao outro incentivam

As amizades que, separados, cultivam.

 

Se um projecto, um passatempo, um desporto,

Uma forma de socialização,

É para qualquer deles o porto

De salvação,

O outro, sem mais apelos,

Logo ajuda a promovê-los.

 

Deste modo, cada parceiro

Tem o próprio domínio,

O tempo dele por inteiro,

A actividade de fascínio

Que lhe transmitem poder

E o sentimento de ser.

 

É deixar a biologia

Dar o rumo, ser o guia

 

Do amor que mais se preza

Natural e duradoiro.

Em seu peloiro,

Muito sábia, muito sábia é a natureza!

 

 

566 - Acabando

 

Ela pode apaixonar-se

Por um homem forte

E depois perde o norte

Por não conseguir

Manter nenhuma competição

Que aos dois os não esgarce

Fora da relação,

Acabando por a destruir.

 

Se ele obtém reconhecimento

E ela, em lugar

De com o facto se alegrar,

Do êxito dele fica com ressentimento

E descobre maneira de o ofuscar,

Tal competitividade atropela

E destrói o amor do marido por ela.

 

Se aos êxitos dela ele reagir

Como se ela o estivera a vencer

Ou superar, a seguir

É dela o amor por ele que irá morrer.

 

Se ambos forem incapazes

De pôr cobro à competição,

Qualquer desafio traz as tenazes

Que lhes estrangulam o coração.

 

Do irrelevante ficarão sob o império

Quando tomado demasiado a sério.

 

 

567 - Silentes

 

Como águas silentes são profundas,

Afectos introvertidos à superfície não bolem.

Tais vivências, por mais jucundas,

Ao não ser demonstrativas,

Levam a que nelas se atolem

As pessoas acaso mais significativas

Para alguém,

Porque poderão

Jamais descobrir que o são.

 

A solidão valorizada

Devém,

Então, abandono,

Quando a pessoa amada

Ignora tais afectos

E deles o dono

Larga sem tectos.

 

Também

É triste quando alguém

Quer ser amado por este amor das profundezas

E o consegue,

Mas, das represas

Irremediavelmente incerto,

Quando ele adregue

Nunca o sabe ao certo.

 

 

568 - Possessiva

 

A possessiva mulher

Cresce quando se liberta

Da urgência de manter

Os mais dependentes, sob a coberta

De mentores, tutores e aias,

Debaixo das saias.

 

A dependência mútua, ao fazê-lo,

Pode transmudar-se em apreciação

E afecto mútuos, num singelo

E permanente da vida serão.

 

 

569 - Sonho

 

Tanto o homem como a mulher

Precisam de imaginar

Que o sonho deles é viável

E de ter

Outra pessoa qualquer

A olhar

Para eles e para o sonho inefável

Com a vontade estimuladora

Do desenvolvimento que demora.

 

Tão poucas mulheres líderes, artistas,

Maestrinas, filósofas, escritoras!

Faltaram-lhes nas pistas

Mãos do sonho portadoras.

 

As mulheres têm

O sonho dos homens alimentado.

Os homens, por seu lado,

Não têm muito bem

Tido na conta devida

O sonho das mulheres de sua vida.

 

 

570 - Atraídos

 

Sentimos a alquimia

Quando somos atraídos por alguém

E nos apaixonamos da noite para o dia.

Sentimo-la também

Quando somos tocados dela pelo poder

De transformar, criar e surpreender.

 

Sentimo-la quando avaliamos

A magia de transmudar

Aquilo em que nos focamos

Num belo, valioso, pleno de fulgor

Raio de luar

Quando o imbuímos de amor.

 

O mais vulgar e tosco,

O material vil da vida quotidiana,

Porventura de mau agoiro,

Pode, afinal, de fosco

Transmudar-se em fulgor de oiro,

Quando de mim dimana

A faísca de pasmo

Pela alquimia de meu entusiasmo.

 

 

571 - Dançámos

 

Dançámos a melodia que deveio

Nossa naquele instante.

Mantivemo-nos calados no meio

Das vagas do mundo, para trás, para diante,

Enquanto eu a fazia de leve girar,

Numa rapariga a transformando a me olhar

Como nenhuma outra me olhara,

Para além, infinitamente para além de minha cara.

Perante isto senti-me mais que um príncipe qualquer,

De minha patrulha à vida nas rondas,

Acabado de nascer

Na crista das ondas.

Conferiu-me a beleza

Que eu não detinha.

Minha alma orgulhosa ficou e surpresa

Da fúria de gavinha

Com que me desejava

E a meu imo se enrolava.

Senti-lhe o ardor

A criar

Algo de luminescente

Em redor

E o mundo desatou a meus olhos a brilhar

Até à fímbria do horizonte infinitamente.

 

 

572 - Palavra

 

A palavra ajuda mas não é precisa,

Amor é limpar o vómito da camisa

E da cama da mãe,

A diarreia dela que o chão tem.

É voar todo um continente

Ao saber que ela está doente.

É ir buscar

Um irmão inacessível

E trazê-lo sem o magoar

Do chão até ao nível.

É trazer um pai bêbado a casa

Centenas de vezes, centenas,

Durante uma vida que se abrasa

Nestas penas.

É criar sozinho e com brilho

Uma filha, um filho…

 

Amor é agir, que isto é que dói.

- Não é conversa nem nunca o foi.

 

 

573 - Mulher

 

A mulher mais precisada

Urgentemente,

Não de arrimo,

Mas de ser libertada

É a mulher presente

De cada homem no imo:

Quem é

Nem ele nem ninguém vê

Da terra ao cimo.

 

 

574 - Forja

 

Um amor não consumado,

A mulher inatingível,

O afecto não retribuído

Têm sempre alimentado

O fogo da forja imarcescível

Que transforma o íntimo sentido,

Quando em mim a vivo

Como um arquétipo activo.

 

O fogo da forja é a paixão

Irrealizada, sem chão,

Que inspira muito do trabalho criativo.

 

 

575 - Ferida

 

Nossos pais são quem nos fere:

Todos temos uma ferida parental

E um progenitor ferido, por igual,

Cuja ferida com a nossa confere.

 

A ferida tornada mito

E o ferido progenitor

Transmudam-se no modelo inscrito

Como regulador,

Em seguida,

Em que o progenitor é lido como a ferida:

Responsabilidades tais

Atribuímo-las a nossos pais.

 

O dito, porém,

De que o progenitor é a ferida

Pode significar também,

Doutro modo a palavra entendida,

Que feridas tais

Podem-nos, afinal, servir de pais:

Poderão devir, se não tomarmos tino,

No pai e na mãe de nosso destino.

 

 

576 - Privilegia

 

Vivemos num patriarcado

Que privilegia os preferidos

E o favoritismo vive incorporado

De nossa psique em todos os sentidos.

 

Nossas atitudes

De repúdio ou de acolhimento

De partes de nós como vícios ou virtudes

São moldadas a todo o momento

Pela família ou pela cultura,

Na espontaneidade incônscia que as apura.

 

Com quem nos assemelhamos

Individualmente mais,

Dos arquétipos quais

São mais nós, são nossos ramos,

Eis das predisposições as vertentes

A nós naturalmente inerentes.

 

Depois

Serão bem ou mal aceites,

O que cada um retalha em dois

Quando bem de perto o espreites.

 

 

577 - Nível

 

A nível privado,

Individual,

O patriarcado

Molda, em geral,

A relação entre pai e filho,

O modelo, o nó e o cadilho.

 

A nível mais exterior,

Dos costumes,

Os critérios patriarcais de valor

Determinam os traços, os portões e os tapumes,

Os padrões estimulados e recompensados,

E, portanto,

Os arquétipos que primarão, sobrelevados,

Sobre outros que perderão encantos,

Tanto dentro dum homem como entre todos.

 

Para melhor

Se conhecer

E então dispor

De mais poder,

Um homem tem de descobrir os modos

De ganhar consciência

Desta influência

Nas atitudes e comportamentos:

Tem de compreender o patriarcado,

Como dele sopram os ventos,

Como o modela por todo o lado,

Como, com ilusórios brilhos,

Lhe molda os filhos…

 

Apenas então a viabilidade vislumbra

De qualquer lonjura que o deslumbra.

 

 

578 - Cólera

 

Quando a cólera e os punhos

Se viram contra mulheres e crianças,

Os testemunhos

Que do homem belicoso alcanças

 

É que foi espancado e humilhado

Em miúdo

E se transformou então, depois de tudo,

Num maltratado

Que maltrata:

 

Dele qualquer emoção,

Fera na mata,

Desencadeia uma agressiva reacção.

 

No corpo dum homem destes

Habita

Uma criança maltratada,

Aterrorizada,

Humilhada,

Sempre doravante prestes

À desdita

De fustigar ou espancar

Quenquer:

Basta congeminar

Que pô-lo de lado há-de querer.

 

Perpetuam-se em cordões

Os pecados dos pais

Ao longo das gerações,

Repetindo obsessivos gestos iguais.

Para sobreviver à temível infância

Cada qual reprimiu o terror e a impotência

E, em consequência,

Não reconhece a importância

De se colocar

Da vítima no lugar.

 

Melhor que ninguém deveria

Imaginar o que é ser espancado

Por alguém descontrolado,

Capaz duma razia

De danos,

Já que nas feridas tanta vez infectou panos.

Não consegue, porém,

Empatizar com a vítima sem

Correr o risco de revelar

A vítima que foi no antigo lar.

Então o actual devém

Campo de batalha onde pode maltratar

A família que tiver formado,

Mal suspeite que é posto de lado.

 

Da guerra o arquétipo raivoso

Age em nome da criança que o habita,

Do garoto humilhado, maltratado, que, desgostoso,

Se tornou, do lar para desdita,

Bastante poderoso

Para toda a violência que o agita.

 

 

579 - Separe

 

O mundo patriarcal requer

Que o homem se separe a vida inteira.

Cada ruptura há-de-o romper

De dupla maneira.

O menino que é da mãe afastado

Separa-se dela emocionalmente

E de seu pendor íntimo é separado

Que próximo dela vivera presente.

 

O menino que vai para a escola

E descobre que não pode revelar

A inocência ou ignorância que leva na sacola,

Que dele irão troçar,

À postura se molda aceitável:

Rompe com o inocente

Que lhe vivia agradável

No corpo e na mente.

O rapaz cujo melhor amigo

Não lhe acompanha a passada

Rompe com a amizade no primeiro abrigo

E com a parte dele que se condoía a cada topada.

 

O que chorava quando triste

E aprendeu a não chorar

Pôs cobro à língua que já não existe

E contra as emoções teve de se barricar.

 

Na ruptura entre homens e rapazes

Sacrifica-se dos jovens a inocência inteira

Para eles serem capazes

De integrar dos homens a fileira.

 

Num mundo onde o valor é definido

Pela económica recompensa,

O maior êxito é exercido,

Contra o que a maioria sente e pensa,

Em escritórios e gabinetes

Onde esforçado te metes.

 

Há muito quem germine

Neste ambiente

Mas é normal que ele à maioria mine

A semente.

 

Uns a terra gostariam de trabalhar,

De laborar com as mãos,

De música gerar,

De educar crianças, do mundo pelos desvãos,

Mas nunca o protagonizam:

Deles próprios romperam com esta parte

E o que visam

É meramente de escritórios e gabinetes arte.

 

Acumulam a perda

E, pela meia idade,

O que cada qual herda

É a depressão que o invade

Com sentimentos de mágoa e solidão

E o aguilhão afiado

Duma sensação

De falta de significado.

 

 

580 - Amigo

 

O bom amigo vimos

No trilho de nossa dificuldade

Quando lho pedimos.

O grande amigo, sem o sentirmos,

Agrade-lhe ou não lhe agrade,

Fá-lo sem lho pedirmos.

 

 

581 - Filho

 

Um filho é uma promessa

Que o tempo faz a um homem,

A garantia em que cada pai tropeça

De que sejam quais forem as freimas que o consomem,

 

Aquilo a que tenha mais apego

Será um dia tido por loucura.

E aquele a quem mais ama, do mundo no pego,

Nunca o irá compreender, finalmente, porventura.

 

 

582 - Perca

 

Há muito quem perca a vida

A querer o que não deve.

O mundo confunde a lida

E faz que leve

Quenquer a dirigir-se, nas jornadas,

Para as metas erradas.

 

O requisito-mor

Que ser feliz acoberta

É amar o que é digno de amor

Na medida certa.

 

Não os livros nem dinheiro,

Nem qualquer coral de loas,

Nem da carreira o sendeiro,

- Mas apenas as pessoas!

 

Adultos

Que não entendam tais matrizes

São estultos

E nunca serão felizes.

 

 

583 - Perdemos

 

Perdemos a vida a correr

Dum para outro lado

Atrás do prazer.

E ele sempre nos tem escapado

Por entre as mãos sem jeito,

Deixando cada qual insatisfeito.

 

Procuramos ser felizes

A todo o custo

Sem nos interrogarmos sobre os matizes

Do que é justo,

Se ao fazê-lo não estaremos também

A magoar alguém.

 

Dispostos a tudo,

Acumulamos e defendemos bens.

Nenhum é durável, por mais graúdo,

Nem é a fonte que tens

Jorrando à beira

A felicidade verdadeira.

Na vida o que te acende o calor

É por outrem ter amor.

 

 

584 - Pendor

 

Os que vêem todo o mundo

Pelo pendor pessimista

Em ninguém confiam, no fundo,

E sentem-se sós, no termo da lista.

 

Tudo somente

Porque nos mais não pensam

Bastantemente.

 

E então os apensam

Deles à medida,

Cuidando que os mais os apercebem,

Em seguida,

Como eles os olham na pessimista mira.

Não concebem,

Maninhos,

Que assim não admira

Que se sintam tão sozinhos.

 

 

585 - Preterir

 

Ao correr da idade

Todos temos a tendência

A preterir qualquer humana qualidade

Natural de evidência:

A compaixão, a bondade,

O bom entendimento,

De perdoar a capacidade,

O culto do bom sentimento…

 

Na infância

Ligámo-nos aos outros facilmente,

Sem ânsia,

Tudo foi água corrente.

Bastou rir uma vez

Com outrem juntamente

E ficámos amigos por um mês,

O que era então uma vida inteira em frente.

Que nos importou o trabalho ou raça dele!

Bastou ser humano

E termos criado a amizade que nos impele

Na aragem dos dias a todo o pano.

 

Crescemos, porém,

E cada vez demos menos importância

Ao afecto, à amizade, à entreajuda,

Veio o desdém,

Veio a ganância,

Veio a inveja mais bicuda…

 

Deveio fundamental

A raça, a religião,

O país donde cada um é natural,

A cultura, a feição…

 

- Obliterado o mais importante,

Passa o irrisório para diante.

 

 

586 - Solidão

 

A solidão que nos consterna

É por andarmos tão atarefados

Na vida moderna.

Por alguém sermos abordados,

Mesmo que apenas para um "olá!",

É sentir que foram esbanjados

Dois segundos, já!

Ainda mal findámos de trabalhar

E já mergulhamos no jornal,

As notícias a verificar.

 

Ignoramos o principal:

Conversar com um amigo

O tempo equivale a perder

A olhar para o próprio umbigo

E assim quenquer

Devém o seu próprio inimigo.

 

 

587 - Indiferença

 

A indiferença relativamente aos mais

É o pior dos piores defeitos.

Pensar em si apenas, sem mais eleitos,

Sem querer saber da várzeas nem pantanais,

São binóculos de olhar o mundo tão estreitos,

Envergadura de pensamento

Tão fraca, tão de vento,

Que a dimensão interior se adivinha

Maninha por inteiro e mesquinha.

 

Dos outros dependemos

Desde que fomos concebidos

E nascemos

Despidos.

 

O futuro e a felicidade

De que disponho e a que me fundo,

O mais pequeno objecto utilizado,

A mera sobrevivência quotidiana

Decorrem do trabalho acumulado

Da inteira raça humana.

 

A oração e outros rituais

Terão efeito garantido, porventura,

Do outro lado, noutra figura,

Mas é o acto que praticais

Que o mundo configura.

 

 

588 - Agitadamente

 

À cólera ao ceder

Jamais temos a certeza

De fazer mal ao inimigo.

Podemos, todavia, ver

Que o faremos, sem defesa,

A nós próprios, por castigo.

Perdemos a paz interior,

De agir correctamente não somos capazes,

Digerimos mal e com dor,

Não dormimos, agitadamente tenazes,

Repelimos quem nos visita,

Enfuriamo-nos, em desalinho,

Contra quem tem a desdita

De nos cruzar o caminho.

 

Tornamo-nos impossíveis

Aos que vivem connosco

E os amigos mais credíveis

Com um esgar corremos tosco.

E como cada vez menos

Resta quem connosco simpatize,

Cada vez ficamos mais distantes e pequenos,

Sozinhos neste deslize.

 

Quanto ao suposto inimigo,

Tranquilo sentado em casa,

Se um vizinho lhe lobrigo

A contar como me arrasa,

 

Como ele fica contente!

E depois, se ele vislumbra

Que ao hospital mui doente

Fui parar, como o deslumbra!

 

Irritar não tem sentido:

Um inimigo punir

É calmo haver reflectido

No que fazer a seguir.

 

 

589 - Luz

 

O amor fortifica

Mas acaba por cegar

Quem por amor se deslumbrar:

A luz tão mais forte fica

Quão mais densas nos ameiam

As trevas que nos rodeiam.

 

 

590 - Impotência

 

A impotência desesperada partilhar

De ver crianças a morrer

Porque não há nada para lhes dar

Por parte de quenquer,

Sequer!

 

Assistir apenas,

Sem probabilidade de solucionar,

Como é difícil a nossas mãos pequenas,

Mas como é tão importante

Manter o lugar

Firme, constante!

 

Simplesmente estar lá,

Estrela apontada ao norte

Na noite má,

Para partilhar o sofrimento

Da vida e da morte,

Do nascimento.

 

Quando já nada temos para dar,

Somos forçados a abrir os corações

Para compartilhar

Dos outros a dor das emoções.

 

Que dizer,

Partilhar que sentido

Com a mulher

Cujo filho acaba de ser abatido

Ou cujo bebé morreu de subnutrição

Ou à que não tem dentro do lar

Uma côdea de pão,

Quando vivemos na mesma condição

De desespero singular?

 

Mais difícil é fugir,

Algo que por dentro nos aqueça

Tentar atingir

Por atacado ou à peça,

- Mas apenas na partilha silente da dor

Se revela o amor.

 

 

591 - Cuidado

 

Bem mais importante

Que fruir

De bens e de objectos

É descobrir

O amor, o cuidado constante

Com que, por mil trajectos

Mal adivinhados,

Foram sendo produzidos,

Reunidos,

Embalados.

 

Cada vez que reparo

Em minhas pobres

Riquezas,

Elas falam-me, nobres,

Do carinho e do amparo

Daqueles que, recolhendo as presas,

Tão cuidadosamente tiveram de pensar

No que eu haveria de precisar.

 

 

592 - Coragem

 

A coragem de morrer por suas ideias

É uma das sequelas

Dos que não viverem a meias,

Tiveram a coragem de viver por elas.

 

A vitória final sobre o medo e a dor

É a gloriosa etapa derradeira

De mil vitórias e derrotas, no fervor

Da luta travada diariamente, na canseira

De cada momento,

Na mente a das almas humanas no abismo:

A luta contra o fermento

Do egoísmo.

 

Batalha inglória e absurda

Para os que ficam de fora:

Negação constante do que o desejo urda,

Ficar na cama com demora,

 

Comer e beber para além do justificável,

Com os estúpidos ser intolerante,

Acumular bens em montanha interminável,

Da fome do vizinho passando adiante…

 

A liberdade é um trilho lento,

Radicalmente doloroso.

Não é frumento

Dos que não têm um horizonte luminoso

 

A atrair,

Uma bandeira por que lutar.

Liberdade é apenas de quem fremir,

Rendido à energia angular:

- O amor.

 

Amor aos homens que é o amor a Deus,

Unidos terra e céus,

Os dois lados do mesmo cimeiro

Fervor,

Quando o amor deveras for

Íntegro e verdadeiro.

 

 

593 - Amorosos

 

Quando amorosos um homem e uma mulher

Coabitam,

Deus está com eles,

Penetra-lhes as peles,

E o prazer

Que habitam,

Preciso,

É premonição do Paraíso.

 

Dum homem e duma mulher o amor

Que considerais acaso o pecado maior

É, por natureza,

Oração que reza,

As glórias conclamando seguras

Do Deus das alturas.

 

É da estupidez humana

A torpeza,

A sujidade,

A pecaminosidade

Que dele acaso dimana.

 

É um bloqueio na estrada,

Mais nada.

 

Removido,

Tudo volta a ter o originário sentido.

 

 

594 - Receber

 

Neste mundo o melhor

É receber algo de graça.

O pior

Que nos retraça

É dar algo que desemboca

Em nada, em troca.

 

Por isto é que o amor

Que é gratuito

Dói muito

Mas é tão compensador:

Inaugura sempre, no fundo,

Outro mundo.

 

 

595 - Operar

 

Quando alguém operar com o coração,

Temos de permitir-lhe que o faça,

Que o poder de amar expande-se-lhe então

E o ultrapassa.

 

Se lhe negar

A oportunidade,

Já de o alcançar

Não terá porventura mais capacidade.

 

 

596 - Enamorado

 

"Tendes a magia

Da luz da Lua"

- O enamorado confia,

Encantado, da rua.

 

"Não é minha a luz

Que vedes em mim.

Antes traduz,

Enfim,

A que, vinda de vós, concito

E, como um arrebol,

De mim após reflicto:

Não há Lua sem Sol."

 

Novos ou velhos,

O mesmo fulgor,

- É o jogo de espelhos

Do amor.

 

 

597 - Esperes

 

Não esperes amor

De quem o não souber sentir.

Não o odeies, apieda-te do negror

Que o cobrir,

Porque nem sequer

Pode sofrer,

Já que por ninguém nada sente

Nem por ele próprio tão somente.

 

Teu sofrimento

É amor, é sentimento,

Pois a dor

Do amor pela ausência

É verdadeiro amor,

É de amor essência.

 

Um dia há-de ele desejar

Ter como tu sofrido,

Ter podido

Vibrar

Alguma vez, com pudor furtivo,

Por alguém:

- Ter-se sentido também

Vivo, vivo, vivo!

 

 

598 - Alavanca

 

O amor é a alavanca do Universo,

Material de que tudo é construído,

Motor direito e inverso

De tudo o que é movido.

 

Quem o próprio íntimo dele enche

Participará do Todo

E da força que o preenche

E eis o seu melhor engodo.

 

 

599 - Carne

 

Um caso de amor,

Carne viva enxertada em carne viva,

É plástica cirurgia de tal teor

Que rompê-lo equivale, em recidiva,

De nós mesmos a vermos arrancados

Grandes bocados.

 

 

600 - Amado

 

É aquilo o amor,

De angústia aquele sentimento,

De amputação espiritual, a frio a dor,

Quando o ente amado está longe a todo o momento.

 

É aquele desejo louco,

Escaldante, de olhar

Com olhos de ver

A vastidão de experiência sempre de sabor a pouco,

De a sentir e o sabor saber

A um coração a pulsar.

 

Triunfo e desespero,

Auto-glorificação ou auto-humilhação

São as moedas falsas que circulam no atoleiro,

Constantemente e sem travão,

Sem peias na lei

Da humana relação

Nem da teia da grei.

 

O coração,

O coração apenas,

Sabe dar sem restrição,

Ilimitadamente, nas horas grandes e pequenas.

 

 

601 - Todos

 

Todos estamos perdidos

Como todos encontrados,

Todos caídos,

Todos levantados,

Os homúnculos tal qual

Os semideuses, tudo igual.

 

E nenhuma segurança

Existe, ao fim, neste mundo,

Nem nas armas que se alcança,

Nem no paiol que encho ao fundo,

 

No esplêndido isolamento,

Na riqueza de mil fados,

Num novel conhecimento,

Saberes ilimitados…

 

Não, nenhuma segurança,

Excepto no que há no amor,

Num auxílio que se avança

Gratuitamente em redor

E na generosidade

De espírito que me invade.

 

Eis a derradeira base,

Único rochedo imóvel.

Tudo o mais de sombras quase

Dança eternamente móvel,

 

É mera tela berrante

A esconder o abismo hiante.

 

 

602 - Julgamento

 

A vida não é um julgamento eterno

Perante um júri vingativo e celestial

Que apenas tolera liberdade condicional.

A vida é tentar viver, terno,

Entrelaçado com as outras pessoas,

Aceitá-las como forem, más ou boas,

 

Tentar discernir o bem que existe nelas,

Respeitá-las aí, amá-las…

- Reparar sempre do céu nas galas

Repleto de estrelas.

 

E este é que é o eterno julgamento

A desempatar pela delícia ou pelo tormento.

 

 

603 - Cuidar

 

O amor inspira

A termos mais compaixão

Que é cuidar doutrem na mira

De íntima sua evolução.

 

Compaixão não é ter pena,

É fundir o coração

Sem lhe a chama olhar pequena.

 

Um amante

É quem vive a condição

De levar, por atacado,

Um projecto por diante

Porque ama e por ser amado:

De fora não requer ter

Nada para o preencher.

 

Um amante tem de seu

Aquilo que lhe permite

O melhor palpite:

- Um bom trabalho de céu.

 

 

604 - Era

 

Chegou a era do Amor,

Em que os homens serão finalmente iguais

Em espírito, em energia e em valor,

Nas bênçãos, nos sinais.

 

Todo o aprisionamento na matéria

O peso irá perder:

Deixará de ser

Relevante, coisa séria.

 

Irá na rua irromper

O amor incondicional

E todo há-de ser

Mais sereno, tranquilo e fundamental.

 

O mundo poderá ser um lugar

Sem atilhos,

Melhor para estar

E criar os filhos,

 

Cheio de sol

Mesmo no pluvioso Inverno:

- Em cada arrebol,

Um gérmen de eterno.

 

Chegou a era da Utopia:

Semeia o sonho dentro em nós em cada dia.

 

 

605 - Compartilhar

 

É de nossa natureza

Compartilhar e ajudar.

Da energia a íntima represa

Enche só se esvaziar.

 

Porque parte da humanidade,

Cada homem tem um bocado doutro homem,

E assim encadeadamente.

A força que nos invade

É a dos elos que se somem

Tempo além, espaços fora, indefinidamente.

 

A dor dum homem dói

Em todos os outros desde o ADN

Em que o inconsciente remói

E por onde o todo drene.

 

Em cada qual estão todos

E a todos cada qual atinge.

Ler-nos doutros modos

Apenas nos mente e nos finge.

 

 

606 - Descubra

 

Que a criança descubra a diferença

Entre o que é e o que tem,

Entre o que for de sua pertença

E o ser que lhe convém!

 

Temos amor, sabedoria,

Temos mente, desejos,

Um corpo que se atavia,

Vestidos, serenatas e harpejos,

Propriedades em soma vária,

A conta bancária…

 

É o que temos

E diverge do que somos,

O que lemos

Não é nunca o que de nós no texto pomos.

 

O que somos é consciência,

Espírito, alma enfeixando os ramos.

E o que temos são viaturas com que, na ocorrência,

Vida fora viajamos.

 

Sobre o homem as informações

São, para os novos, o livro de instruções

Para desvendarem melhor

Como corpo e espírito conjugar e contrapor,

De modo a aprenderem a alinhar

Os vários vagões a ter de equilibrar.

 

Para ao fim ficarem bem

Felizes também.

 

 

607 - Conjuntura

 

A forma como enfrentamos

A conjuntura ocorrida

Provém de como encaramos

A vida.

 

Viver em felicidade

Vem de dentro de quenquer

E cada qual qualidade

Para activá-la há-de ter.

 

É um estado que depende

Dos próprios investimentos,

De escolhas que cada aprende,

De eventos

 

Pelos quais nos empenhamos,

Do modo particular

Como exprimi-los nós vamos

E partilhar.

 

Risco algum corre ninguém

Por saber que em sua mão

A felicidade tem

Em profusão,

 

A ponto de a poder dar

Aos outros que haja em redor.

O peso isto irá tirar

Que sobre os demais foi pôr

E, em particular,

 

Tira-o da pessoa amada

Com quem partilhar a vida.

Finda a dependência atada,

Substituída

Por uma interdependência

Vivida por excelência.

 

 

608 - Combinam

 

O amor, que é o amor?

Um rapaz e uma rapariga

Combinam um dia, ao alvor,

Ir passear juntos, ao som duma cantiga,

De barco, no rio apressado,

E rumam ao cais combinado.

 

Se remarem juntos e certos

Que importa donde provêm?

Ficam os longes abertos,

Já não conta mais ninguém

Quando para tudo, afinal, findam despertos.

Nos olhos deslumbrados

Abundam desertos fecundados.

 

 

609 - Santos

 

Eu estava em frente,

Junto ao altar,

E, de repente,

Vi os santos se iluminar,

 

O Cristo,

A Virgem Imaculada,

Dos Apóstolos o cariz misto,

- Tudo a fulgir num conto de fada.

 

"Que vem a ser isto?

O Sol, uma nova estrela?"

- Olho em volta e não resisto:

"É aquela moça, é Aquela…Ela, é ELA!"

 

 

610 - Trepar

 

Se o coração humano tem descanso

Ao trepar às alturas da afeição,

Raras vezes estaca num remanso

Na vertente veloz, em turbilhão,

Em que referve em tormento

De ódio o sentimento.

 

 

611 - Lembra-te

 

Lembra-te de que és, no mundo,

Um vagabundo.

 

Vagabundos não devem ter nenhuma aventura

Que o coração lhes vá destruir

Quando chegar a altura

De partir.

 

 

612 - Corda

 

Amor: quanto tem de acobertar

Este termo singular!

 

Desde a mais branda carícia de pele

Até ao que ao espírito mais remoto impele,

 

Do liminar desejo de construir família

Até da morte às convulsões da vigília,

 

Da paixão insaciável que jamais abranjo

À luta entre mim e meu anjo…

 

- Aqui estou, na tensa acorda de arco,

E no disparo do amor tudo abarco.

 

 

613 - Lucro

 

O amor não é o homem de negócios

Que quer ver o lucro dos capitais,

Não é cura de quaisquer bócios

Em doentes terminais.

 

E o imaginário quer apenas alguns pregos

Para pendurar o véu:

Sejam de oiro, de latão ou ferrugentos apegos,

Não diverge o céu.

 

Onde o véu se prender, ei-lo preso.

Espinheiro ou roseira,

Mal o véu pintado, ileso,

De luar e madrepérola se desenrole na ladeira,

Logo, enluarada,

Tudo devém uma lenda encantada.

E tudo isto em erro se traduz

Ante a razão discreta.

Mas até mesmo um fogo-fátuo é luz

Na escuridão completa.

 

 

614 - Teme

 

Sem amor não haveria

A autonomia

Da vida:

Quem lhe teme os fanais,

Quem o amor elida

Não é livre jamais.

 

 

615 - Trepo

 

Trepo, ignorando rigorosamente

Para onde vou,

Pela escadaria inclemente

Do desenvolvimento e da cultura

Entre cuja teia sou.

 

Continuo a trepar pela estrutura

E creio melhor viver

Em prol da feérica escadaria

De inventos,

Investimentos,

De bens a ter

Ao dispor de cada dia,

Do que viveria

Para aos outros me dedicar

Para os ninguém escravizar,

A pretender que o pintor

E o fabricante

Tenham, ao sol-pôr,

O mesmo jantar diante.

 

Este, porém, é o pendor

Cruento,

Lamentável

E cinzento

Da vida pelo mundo partilhável.

 

Quer os livremos ou não,

Aos insectos que mutuamente se comem,

Da escravidão,

É verdade que o homem

Sempre há-de morrer

E apodrecer.

 

Mas como cuidar

Dos milénios que auguro

À espera da humanidade

No mais remoto futuro,

Sem lutar

Deles pela humana qualidade?

 

O que tens

São meros bens.

O que torna cada hora morta ou viva,

O que sentes,

Deriva

Apenas do teor

Do amor

Que na mesa da vida apresentes.

 

 

616 - Liberdade

 

Dá liberdade a quem amas:

Se se for embora,

É que um para o outro não foram feitos

E, se voltar, é que chegou a hora

De prestarem às finas tramas

Do amor verdadeiro todos os preitos.

 

Trabalha tal se não

Tiveras de dinheiro precisão.

 

Ama como se, ao seres amado,

Nunca houveras sido magoado.

 

Dança tal se ninguém

Pudesse ver-te a voar pelo ar além.

 

Liberdade é outro termo para viver

A perspectiva de não ter nada a perder.

 

 

617 - Conjugal

 

Na vida conjugal é ter paciência

O que mais importa.

Da paixão não dura muito a ardência,

É um amor que apenas abre a porta.

 

A seguir,

É o amor paciente

Que nos garante o porvir:

Alimenta o permanente repartir

De nosso comum presente.

 

 

618 - Porto

 

O bem-querer

Não se compra nem se vende

Nem se impõe de faca ao peito

E nem se evita sequer.

Não há como se encomende

Dele o trejeito

Refece:

O bem-querer acontece.

 

Tudo o mais,

Quando ocorre,

É o que dele fazer vais:

Ou lhe dás porto em teu cais

Ou, tal como nasceu, morre.

 

 

619 - Indócil

 

O indócil coração

Dispara apaixonado.

Gostar é fácil, então,

Ocorre quando menos esperado:

Um olhar, uma palavra, um gesto,

E o fogo lavra da toca,

Lesto,

Queimando o peito e a boca.

 

Difícil é esquecer,

A saudade consome a vida.

O amor não é um espinho qualquer

Que arranco da ferida,

Tumor que espremo,

É dor rebelde e pertinaz

Com cujo curativo nunca atremo

E que vai matando por dentro, tenaz,

Num estrangulamento supremo.

 

Mata, mas desta lida

É que nasce a vida.

 

 

620 - Preza

 

Preza cada objecto, cada regalo, cada mimo,

Mas trata de poder viver sem eles.

Teu arrimo

A tais colunas não seles.

 

Apenas a ternura, dos afectos o calor,

A perene atenção, a amizade branda,

O amor

Te farão falta quando a vida comanda.

 

 

621 - Peito

 

O amor não pede licença

Ao conquistar um peito magoado,

À vontade própria um homem não lê sentença,

Ultrapassado, dominado.

 

Irrompe o afecto, violento, e domina,

Depois não há jeito a dar

E a vítima ou se inclina

Ou foge sem mais parar.

 

No frontispício,

Porém,

Arrastará eternamente um resquício

De quem um dia foi refém.

 

 

622 - Agonia

 

A agonia mais pura e sagrada

É desejar quem amamos

E ter de esperar, olhando a estrada,

Para a imagem lhe vislumbrar de novo, por entre os ramos.

 

E, quando partir,

É de novo o mesmo terror

A fremir.

Sinal contrário, igual teor.

 

Em nossa rota paradisíaca,

Êxtase sem dor

É indiferença demoníaca,

Não amor.

 

 

623 - Leva

 

Leva minha alma e meu corpo contigo.

Que uso lhes poderei dar

Nas horas em que comigo

Não vais ficar?

 

Nenhuma eternidade,

Nenhuma paz

É comparável à felicidade

Que me dás.

 

Quando perante mim

Te vejo ondular,

Viveria sem fim

A te abraçar.

 

E, quando não estás comigo,

O que opero, cogito e sou

É também um abraço, um abrigo,

Que te dou.

 

Contigo ausente,

Mais que tristura,

É como se tombara, de repente,

Em minha sepultura.

 

 

624 - Queixa

 

A queixa do passado

Não nos logra curar.

A História ocorreu, hoje é traslado,

Já findou num qualquer tempo e lugar.

 

O que podemos doravante é mudar-lhe o curso

Encorajando o que amamos, em vez do recurso

De ao que não amamos destruir,

Feito programa do porvir.

 

Ainda há beleza

No mundo brutal e ferido,

Oculta, feroz, imensa, uma reza

Que nos aponta o sentido,

Uma beleza nossa

Doutrem por nós recolhida,

Que valorizámos, reinventámos com a bossa

Particular de nossa medida.

 

Apenas de a procurar teremos,

De a alimentar

Com extremos

De quem amar.

 

 

625 - Peso

 

Conheces o ciúme?

A inultrapassável obsessão,

O peso que te rasga o peito

E esborracha o coração,

A certeza que resume

E te sangra o queixume

Pelo corpo todo a eito:

- Deixaste de existir!

 

Por toda a pele uma labareda

Que não há como impedir

O espírito de calcinar,

Como o fogaréu duma meda

Noite fora a chispar.

 

E, em redor, apenas noite,

E tu, para te acoitar,

Sem uma faúlha que além te afoite.

E, em redor, a noite…

 

 

626 - Corresponde

 

Estimar o que não tem valor

Corresponde a torná-lo estimável.

O que buscamos com fervor

Não é o que se dá, prestável,

Mas o que se nega:

A negaça nos apega.

 

O permitido desgosta,

O recusado atrai:

Um amor, ao dar à costa,

É que o mar é chão, não vem nem vai.

 

Tudo muda

Se houver lesão:

O amor não tem flecha mais aguda

Que a que se armou de proibição.

 

 

627 - Enganam

 

O amante ao supor que por amar merece,

A beleza ao crer que amor é merecimento,

Ambos se enganam: no amor o mérito fenece

Sem argumento.

 

O amor vem da formosura,

Não do amante.

Este mais não assegura

Que receber a faísca dum instante

A que, por mais que queira fugir,

Não logra resistir.

 

Por receber nele a figura,

Um bronze nada merece,

Que a maravilha não é dele que recebe,

Mas da mão que o talha e o mundo esquece

Ou não percebe.

 

Arte de facto não é do metal

Mas de quem burila e talha:

O bronze repudiar não pode tal,

Disponível fatalmente a quem trabalha.

 

Quando amamos, é que a formosura

Nos obriga a amar.

Que mérito pode haver em pagar

A sinecura

Quando o tributo natural

É obrigatório, fatal?

 

 

628 - Amigos

 

Amigos verdadeiros

Vêm compartilhar a felicidade

Quando chamados aos terreiros

E compartilharão, preocupados,

A contrariedade

Sem serem chamados.

 

 

629 - Transmuda

 

É tudo na vida dos homens o amor:

Quando ele germina,

O mundo se enfeita de cor,

De rosas tudo se ilumina,

O ar se perfuma

E os homens melhoram, em suma.

 

Todos pensam na amada

Durante o dia,

Do trabalho na jornada

A fadiga morre afogada

Em fantasia.

 

Quer o milionário que flutua, por lema,

Em ondas de numerário

Telefonema a telefonema,

 

Quer o dactilógrafo meritório

Que bate à tecla

No medíocre escritório,

Do patrão fiel assecla,

Quer o revolucionário

Semeado de ilusão

Que espera a morte, temerário,

No campo de concentração,

 

Quer o inútil, sem magia,

Que dorme sem alarde

Até ao meio-dia

E nem sabe que fazer de tarde,

 

Quer o mestre de saveiro

Cortando, parco,

As águas, ligeiro,

No barco,

 

- Todos pensam um momento

Cada qual em seu amor,

Com alegria e tormento.

É o que descansa e dá calor

Aos milhões,

À máquina de escrever,

À morte iminente nas solidões,

À inutilidade que pesa sem se ver…

 

Todos e todas acendem a mecha

Do amor na flecha.

 

 

630 - Cobertos

 

Não é fácil, num mundo mais e mais insensível,

Onde vivemos cobertos por carapaças

Contra a sensibilidade

Ameaçadora, temível,

Escondidos atrás de caraças

Que nos preservem a identidade,

- Não é fácil a fronteira

Entre a grande paixão

E o sentimentalismo de que ela se abeira

Em cada ocasião.

 

Sei lá bem onde uma acaba

E a outra principia!

Pior, porém, é que tudo desaba,

Por fim, em inútil ridicularia:

 

Ridicularizando a paixão,

Rotulando de piegas afectos genuínos

E profundos,

Dificultamos a visão

Dos estratos finos

E fecundos

Das leiras da delicadeza.

Ora,

Aqui é que mora e se preza

A toda a hora

A beleza.

 

E só aqui é que a vida

Toma sentido e tem medida.

 

 

631 - Análise

 

A análise destrói os conjuntos.

Alguns eventos mágicos foram feitos

Para permanecerem inteiros.

Olhados como vários assuntos,

Por partes, desaparecem, desfeitos,

E então matam-nos, ligeiros.

 

Tal é o amor, tal é a vida,

Tal é a paisagem do Universo desmedida.

 

A ciência, a tecnologia,

Ao dividi-los,

Matam-lhes a magia

E já nos não atraem os sigilos.

À vida, então,

Desmantelado o escrínio,

Como manter atracção,

Inefável fascínio?

 

 

632 - Casal

 

Por que é que um casal não sonha?

É o convívio prolongado.

O casamento ou relação

Que de alguns anos disponha

Vai ter este risco ao lado.

 

A habituação

Germina a previsibilidade

Com brandas vantagens:

É a segurança nas clivagens,

A fluidez da habitualidade.

Previsibilidade, porém, não deveria ser medo

De mudar.

 

Ora, basta que um perca o sossego,

Ao se alterar,

E de ambos o aconchego

Já desatou a se esboroar.

 

E os dois

São um mais um logo depois.

 

 

633 - Requer

 

Dum homem requer a mulher

Que seja poeta,

Amante arrebatador e apaixonado.

E nenhuma contradição há-de ver

Em tal meta,

O homem é que a vai viver

Contrariado.

 

O escorrido vestuário, as reuniões masculinas

O bilhar,

As tertúlias clandestinas

De que a mulher nem anda a par

São másculas facetas

De que a poesia,

A delicadeza se excluiria:

Lágrimas são neste homem incorrectas.

 

Se o erotismo é subtileza,

Uma forma de arte,

Contido deste morto naquela represa,

Acaba da vida aparte.

 

Então

Mantém o casal a conveniente

Representação,

Ambos afastados frente a frente.

 

E a mulher suspira,

Voltada para a parede,

Cheia da noite para onde se retira

Morta de sede.

 

 

634 - Rota

 

Estou neste planeta,

Neste momento

E não noutro tempo e lugar,

Não pelos trabalhos que acometa

Na rota livre do vento,

Mas para te amar.

 

Agora sei-o:

Tenho estado a tombar

Da beira dum lugar

Enorme.

Provindo de algures, do passado no seio,

De altura desconforme,

 

Sou chama desde a eternidade dirigida

A esta vida:

Desde sempre caí,

Desde sempre para ti.

 

 

635 - Contigo

 

Por mais que te queira

E que queira estar contigo,

Ser parte de ti mais que estar à tua beira

E a teu abrigo,

Não logro furtar-me à realidade

De minha responsabilidade.

 

Se contigo me obrigares a ir

Não poderei lutar contra,

Não tenho forças para resistir,

Vulnerável deste afecto em tua montra.

 

E não me obrigues, por favor,

Não me leves a desistir.

A tanto não me poderei propor

E viver cuidando nisto:

Se agora

Me for

Embora,

É de mim que desisto.

 

Transformar-me-ia em alguém diferente

De quem chegaste a amar,

De vez este meu lugar

Ficaria ausente.

 

Ao ganhar me perderias:

Era o derradeiro fim de nossas utopias.

 

 

636 - Adianta

 

Que adianta a razão recomendar

Quando o corpo, violentamente,

Anda a gritar

Por uma via diferente?

 

O amor é uma doença

Infecciosa,

Uma febre da bem-querença,

A doer de saborosa.

 

E o pior é que se apura

Que o doente

Nem quer ouvir falar em cura,

Do que sofre tão contente!

 

 

637 - Conta

 

Quem dera que o amor contasse

No mundo oficial!

Não conta, porém, porque o impasse

É que ele não é um lugar

Real

Dentre o que podem ver, medir e pesar…

 

Entendo o fundo de tal

Torpor:

Bem mais fácil é de amor falar

Que agir com amor.

 

 

638 - Esgotam-se

 

O amor à liberdade vive enraizado

Em cada indivíduo e nação.

Pode ser temporariamente negado

Mas para sempre, não.

 

A História ensina que as tiranias

Não perduram, esgotam-se em dias.

 

 

639 - Vazio

 

Como podes querer abandonar

Esta terra linda e rica

Para voltar ao vazio e descolorido lugar

Cuja aguilhada te pica?

 

É que não importa quão tristes e sem cor

Sejam nossas casas

Onde a cada um o lar lhe deu calor

E nos abriu as asas.

 

Prefiro viver lá

Entre gente de carne e osso

Mesmo se nenhum recanto há

Onde reclinar o pescoço.

 

Mesmo apagada, arde uma brasa

Na pedra do lar.

Definitivamente, igual a nossa casa

Não há nenhum lugar.

 

 

640 - Melhor

 

Guarda, no fim, o coração

Onde mergulharão

Tuas raízes

Fundo.

É que inteligência apenas não nos torna felizes

E a felicidade é o píncaro do mundo.

 

 

641 - Agrade

 

O amor é a verdade,

A verdade é o amor.

 

Todavia, agrade ou desagrade,

Quando fira

Sem pudor,

Pode ser uma inacreditável mentira.

 

Cuidado, pois,

Ao sinal dos arrebóis.

 

 

642 - Calor

 

A casa

É um monte de pedra, vidro e madeira

Quando sem calor lá dentro, lareira

Sem brasa.

 

Cobranças

Sempre tem havido em quantidade:

Para madeixa ser, da família nas tranças,

Para ser vitorioso, a sumidade,

Para superar nos vendavais

Todos os mais…

 

Vamos logrando realizar

O que de nós se espera.

Cabe-nos, porém, agora meditar

Em quanto nos custa a quimera.

 

 

643 - Opera

 

O casamento

Opera bem para alguns:

Compromisso, união de almas, promessas,

Sem tormento

Nem jejuns,

Direito, não às avessas.

 

Tudo feito, são

E arguto,

Não por conveniência ou estatuto,

Mas de coração.

 

De cada um dom gratuito,

Aberta a cara,

É uma dádiva muito,

Muito rara.

 

Em quanto lar de infância

Sempre foi rara a afeição!

Não há porventura negligência na educação,

Nem abusos, nem maldades com relevância.

 

São meros sócios, porém, os progenitores

E nunca um casal deveras:

Deles o casamento até pode escapar aos horrores,

Às coimas severas,

 

Mas é tão eficientemente frio

Nas tramas pretensamente ilesas

Como o desafio

Duma fusão de empresas.

 

 

644 - Conformam

 

Em que medida

Aqueles de quem viemos

Nos conformam e vida

Que temos e não temos?

 

Será que uma infância funcional

Nos predispõe a criar

Uma família própria operacional

A par?

 

Ou, ao invés, tudo seria

Mera lotaria?

 

Ou seremos,

Afinal,

O que de nós próprios fazemos

Por cada escolha ocasional

Que leva a outra escolha

E que incha, incha vida fora,

Como uma bolha,

Com a devida demora?

 

 

645 - Caminhar

 

O mais romântico é caminhar a vida

No meio das reviravoltas

Com alguém que amamos

E que nos ama na mesma medida

E nos compreende até nas notas soltas

Que desafinamos

Em qualquer esquina perdida.

 

Alguém que vai ficar ao nosso lado

Nos grandes momentos:

Filhos, netos, qualquer recém-nado,

A casa nova, a promoção, os aumentos…

 

E também nas más horas

Que saiam dos dias no baralho:

Doenças, demoras,

Um mau dia de trabalho…

 

Há quem se acostume a usufruir

Do bom e do mau sozinho.

Admiro a independência, livre a ir

Pelo caminho.

 

A vida era mais forte

Se fôramos capazes de lidar

Da vida com o norte

Por nossa mão singular.

 

Ser capaz, porém,

Não significa ser incompetente

Para compartilhar também

E aceitar ser interdependente.

 

Nunca deve significar, não,

Falta de determinação.

 

Ora, disto o verdadeiro alcance

É o romance.

 

 

646 - Simples

 

Não é simples o amor

Nem para ser colhido num impulso

Como um flor

Em canteiro avulso.

 

Crer que dá para o controlar,

Sendo ele imprevisível pulsação,

Para o moldar,

Determinar-lhe a direcção,

 

Acreditar que se tem

De cumprir tal desterro?

- Não, não é um bem,

É um erro.

 

 

647 - Conter-se

 

Deus não pode conter-se apenas

No finito e limitado dos dez mandamentos,

Parcelas pequenas,

Da infinitude meros momentos.

 

Transborda o amor infinito

Obrigatoriamente

Do bem circunscrito

No decálogo contingente.

 

Aos mandamentos cumprem muitos

E permanecem

De Deus bem afastados nos intuitos

Que esquecem.

 

E também se configura

O contrário.

Os obstáculos ao amor para cada criatura

São diferentes em cada itinerário.

 

 

648 - Facilmente

 

De Deus as derrotas

Mais facilmente aceitamos

Que as nossas.

A corrente cava a terra, baixa as cotas,

Arrasta pedras e ramos,

Cobre o abismo das fossas:

O fluir dos eventos temporais

Assim corrói as consciências.

 

A muitos ignoro,

Vendavais

E pestilências

Que escapam a meu foro.

 

Vários eventos descuro,

Outros esqueço,

Quando apuro

O que meço.

 

Alguns, porém,

Desconhecidos

Não convém

Que findem de intuitos nem sentidos.

 

O derradeiro não sejas

A enfrentar as desordens

Que te ocorrem em casa.

Ergue a mão contra o culpado que vejas,

Que a impunidade,

Transgredindo as ordens,

Apraza

A temeridade:

É o processo

Que abre caminho a todo o excesso.

 

Os de tua familiaridade

Ou são mais honestos,

Ou, com engodos,

Enchem os cestos

Dos mexericos e ouvidos de todos.

 

 

649 - Costas

 

O pior tipo de solidão

É o que me faz sentir sozinho

Quando estou no coração

Da vida e da multidão

E todos me viram costas no mundo maninho.

 

 

650 - Furtivos

 

Olhares furtivos a arder em fogo brando

Sobre panelas de caldo de galinha

A ferver lentamente, arfando;

Corações despedaçados na farinha,

Dentro da tigela

De natas batidas, à luz da vela:

A cozinha,

Do fogo na ardência,

É um foco de dor e violência.

 

A comida

Tem infinita sensualidade

Escondida.

O sabor, a textura, o perfume,

O jogo da cor e do volume,

Quando com tudo isto nos invade,

A comida, mais do que excitados,

Possui-nos por todos os lados.

 

 

651 - Canga

 

Alguns homens procuram uma mulher

Que possam trazer à trela,

Pela coleira,

Sob a canga manter,

A frio, prisioneira

Da vida na cela.

 

O relacionamento perde a graça

Rapidamente

Para ambos os lados e os deslaça

No coração e na mente.

 

A chama,

A fagulha inicial,

Nada a conclama,

Acaba por desaparecer.

Não há mais nenhum fanal

Que oriente quenquer.

 

Não precisarão dele?

Todos precisam,

Mesmo quem mais atropele,

Ou jamais se realizam.

 

Se a fagulha não explodir

De vez em quando,

Perde-se o ribombar delicioso que vem a seguir,

Com o fogo da explosão iluminando.

 

É cozinhar

Sem especiarias nem temperos:

Acabamos por produzir

Algo que para comer há-de dar

Mas não satisfaz apetites veros.

 

 

652 - Dança

 

Por mor da dança deles, coladinhos,

Dos olhares que um ao outro lançava,

Daquele jeito de ambos, como a desbravar maninhos,

O núcleo da festa era ali que repousava.

 

Não era a decoração,

Nem as luzinhas a piscar,

Nem os aperitivos de camarão,

Nem o riso a cascalhar.

 

O fundamental eram duas pessoas

Que ficaram conectadas

E acreditavam, deslumbradas,

Que tais novas eram boas.

 

Um noutro acreditavam

E o mundo assim inauguravam.

 

Se tivessem recuado

Ou ido embora,

Teriam perdido o céu escancarado,

O momento brando da demora,

A dança romântica do pátio de agora

Por eles iluminado

E tudo o mais que aconteceu,

Pela vida fora,

De sementes de céu.

 

 

653 - Agride

 

Um homem que agride a mulher,

Não é apenas a bofetada, o murro, o empurrão

Tais ferimentos duram pouco em quenquer,

Outros, porém, perdurarão.

 

Diminui sistematicamente dela a confiança,

Como a auto-estima,

A coragem que já não alcança,

As escolhas a que já nem se arrima…

 

Isto é feito de forma tão perita

Que tudo se vai embora de dentro dela

Antes que compreenda o que concita

Tal sequela.

 

Como é difícil reconstruir

Tudo a partir do zero!

Às vezes é preciso reunir

Todas as forças apenas para vir

Ter ao gesto mero

De procurar duma lareira a brasa

No apoio de qualquer casa.

 

 

654 - Deste-lhe

 

Deste-lhe o teu medalhão

Porque é o que mais te importa no mundo.

Usava-lo quando morreste no chão,

Usava-lo quando ressurgiste, fecundo,

Para a tua nova vida.

É o símbolo do lugar donde vieste,

Uma conexão fundida,

Celeste,

Com tua mãe, teu irmão, tua irmã…

- É o teu talismã.

 

Tem magia poderosa.

Ela vai usá-lo porque lho pediste:

Torna o amuleto mais forte.

Goza

De tanto laço de amor que nele existe,

Clandestino meio de transporte.

 

É apenas um medalhão?

Não!

 

O valor dele mora no significado

Que tem para ti,

No amor que sentias por teus pais,

Que mora ali,

Evocado,

Revivido na força dos sinais.

 

O mesmo amor

Que lhe ofertaste a ela ao dar-lhe tal penhor.

 

 

655 - Inaugura

 

Ler para os filhos inaugura a festa.

O livro pelo pai seleccionado,

A maneira de ele ler e comentar,

Empresta

Ao filho enlevado

A língua de imaginar:

É o desabrochamento da linguagem,

A habilidade de leitura

E a cultura geral

Que a magia da viagem

Apura

Em cada criança real.

 

Teu filho trepa às estrelas

Com tuas palavras, ao tu lê-las.

 

 

656 - Seio

 

A solidão mais violenta

É a do seio da família

Quando comunicar já ninguém tenta.

 

A forma como encaramos a solidão

Requer a vigília

Sobre como o amor viverão

 

Todos, em todos os ramos,

Sobre como ao amor nos entregamos.

Entregamos ou não…

 

 

657 - Sentir-me

 

Sentir-me aqui solitário

É sentir-me desligado,

Das pessoas separado

Que têm valor primário,

Que me importam, cada qual

Num pendor emocional.

 

É não ter com quem falar

Daquilo que me importar.

E solitário posso findar

No meio da multidão

Quando, no grupo em que me encontrar

Na ocasião,

Não conheço ninguém com quem converse

Enquanto todos parecem conhecer-se.