SEXTO TROVÁRIO
PELA UTOPIA ALÉM VERRUMANDO
Escolha ao acaso um número entre 658 e 762, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
658 - Pela Utopia além verrumando
Pela Utopia além verrumando,
O poema irregular alinha os passos
Rimando
Mesmo quando
Forem de tropeço quaisquer traços.
É que a utopia
Com razão
Nos escapa dia a dia
Deste chão.
É trôpego a caminhar
Pelo ignoto misterioso além
Que tenteio caminhos a trilhar.
E o sonho me advém
A me talhar à medida que convém.
659 - Moeda
Alma, espírito, os dois lados
Desta moeda de mim,
Ínfimo e supremo conjugados,
Quando se juntam assim,
Fazem explodir
Um astro de energia:
Ao se fundir,
Ocorre, em realidade,
Magia,
- Fazem crescer a eternidade.
660 - Melhor
Quando com o céu te relacionas,
Pede o que for melhor para ti
Sem discriminar de que te adonas.
Descobrirás que, dali,
O melhor no nível espiritual
Pode não sê-lo no económico ou social,
Ou poderá ser mais do que imaginas.
Ninguém sabe
Onde principie nem acabe
O dedo do infinito em nossas sinas.
661 - Mudar
Ao mudar a mente,
Ao compreender que tudo tem um preço
E que o preço de ir ao céu
É abandonar definitivamente
O ego de tropeço,
Dele o vácuo radical pondo ao léu
Mais a auto-suficiência de mentira
E o protagonismo em que delira,
- Então ficamos prontos para ir
E começamos a subir.
662 - Espiritualidade
Toda a espiritualidade vem de Deus
E Deus é tudo o que existe:
Os céus
São tudo o que vês, verás e viste
E tudo o que não vês mas pressentiste
Na vivência de teu imo,
Das profundezas até da cumeeira ao cimo.
A espiritualidade, então,
Com quanto existe no Universo
Provém da conexão:
Com tudo o que podemos ver mais o que não,
Com o que sentimos sempre além de cada verso
Do poema universal
Que prevejo e pressinto
Que é nossa raiz fundamental
A inspirar tudo o que pinto.
Além da conexão com o Todo, porém,
A espiritualidade é treino, empenho,
Comprometimento activo, desempenho,
- É viver a carne que àquilo convém.
Ser espiritual não é compreender
Que há espiritualidade e depois nada apronto:
No ser e no viver
Não há muda nem desconto.
Jamais, ser espiritual
Não significa tal.
Ao invés, se de meu ego me desquito,
Já pouco importa o meu e o teu,
Brotam outras precisões:
Abro as portas ao infinito.
Entregando-me ao céu,
Inauguro as surpreendentes dimensões
Que doravante misteriosas concito
E do nada daqui me desquito.
663 - Encontro
Para o encontro com teu imo superior
Quanto menos ideias preconcebidas,
Melhor.
Deixa que ele te mostre as avenidas
De que te não lembras mais,
Que te dê opinião,
Que interfira em tua vida com jograis
Que os poemas do porvir declamarão.
E vais ver, vais,
Inesperadamente,
A vida a borbotar à tua frente:
Acolhes uma mensagem,
De repente,
De que não estavas à espera,
Ou alguém distante ou em viagem
Recorda-te, traz-te um cheiro a Primavera…
É o céu a laborar
Pelo canal que lhe consagres.
E, como não deves ignorar,
- Dali operam milagres.
664 - Dotamo-lo
Primeiro imaginamos Deus,
Depois dotamo-lo das qualidades requeridas
Para aqui, debaixo dos céus,
Sobrevivermos desenvolvendo as vidas.
É, no mínimo, para descrever,
Analisar padrões de comportamento,
Perfis de personalidade quaisquer
A qualquer momento.
É, no máximo, forma de imaginar,
Invocar energias,
Qualidades que em nós há nalgum lugar,
Imprescindíveis como a luz para haver dias.
Assim, lentamente,
Haja e não haja tal Deus,
Vamos conquistando fatalmente
Os céus.
665 - Evocam
Sentimentos mais imaginário
Evocam os mitos,
Afloram temas do erário
Colectivo dos inscritos
No genoma da Humanidade.
Histórias de fadas e lendas,
Hoje ainda contadas na perenidade
De milhares de anos,
Permanecem actuais em todas as calendas,
Pessoalmente indicativas de abscônditos arcanos:
Com algum sentido, com algum,
Algo de verdadeiro nelas aflora
Acerca da experiência humana comum
De sempre e de agora.
Quando o mito é interpretado,
Ocorre um relâmpago de compreensão
Pela iluminação
Do que pelo intelecto é alcançado
Ou pela intuição,
Como um sonho que evocamos
Pelo dia adiante,
Mesmo quando o não compreendamos,
Só porque é simbolicamente importante.
Através da escuridão,
O vago cintilar
Acaba pegando-nos na mão
A nos guiar.
666 - Si-próprio
O si-próprio, íntima vivência
De nos sentirmos ancorados à unidade,
É que nos liga à essência
De tudo o que é exterior a nós, à infinidade.
A este nível espiritual,
Ligação e desapego
São o mesmo, no abismal
Pego.
Quando em contacto com a fonte interna
De calor e luz,
Quentes e iluminados pelo fogo da lanterna
Que nos conduz,
Este fogo acalenta
Os que amamos em nosso lar
E põe-nos em contacto, na mesma medida,
Com os que a lonjura ausenta,
A par,
Do lado de cá e de lá da vida.
667 - Prendas
As prendas inesperadas da solidão!
Como os primeiros e débeis raios de sol
Após a chuva do tufão,
Há um calor ténue e crescente de arrebol
Tão próprio da solidão voluntária
Como a tristeza precária.
É aquecido pela memória, pela saudade,
E também por um sentimento crescente
De nossa própria identidade,
Até então algures ausente:
Quando vivemos rodeados de gente,
Parte da paixão e perspicácia natural
Escoa-se na torrente
Do falatório irrelevante e banal.
Nos momentos mais audaciosos,
A solidão calma
Crê que a tarefa humana fundamental
É o que lhe vem ocorrendo nos transes dolorosos:
- Modelar alma.
O poder da vida mora dentro de nós.
É de ir ter com ele,
Orar, meditar, atar desatados nós:
Procurar
O numinoso lugar
Que há no imo de nossa própria pele,
Onde o deus fala
Quando tudo se cala.
668 - Morte
Da morte muito medo tenho às vezes,
Todavia, normalmente, sinto-me aliviado,
De resignação com um sentimento de agrado.
Pequenez entre infindas pequenezes,
Sinto-me parte de meu infinito pasto,
Sou algo em algo demasiado vasto.
Olho para a Lua
E vejo que em mim flutua.
669 - Abandono
Sou dionisíaco
Quando abandono a cidade,
Deixo para trás, genesíaco,
Preocupação e responsabilidade
Laboral
Ou pessoal
E procuro a comunhão
Com a natureza,
Raso ao chão.
O deus da íntima profundeza
Pode estar connosco
Quando mergulhamos na paisagem
Selvagem,
Quando no pinhal me embosco,
Quando com tudo me fundo
Unido ao mundo.
Quando nos libertamos
Da visão normal de tempo e espaço
E nos abandonamos
À espontaneidade, em cósmico abraço,
Somos transportados a um outro domínio,
De êxtase com emoções de fascínio.
670 - Divindade
Pela divindade tocado,
Ao criar,
Sou instrumento inspirado
Através do qual a beleza
Se vem a manifestar
Pelo corpo além da natureza.
671 - Desmembramento
Dos homens para a maioria
O desmembramento interior
É a primeira meia vida:
Cortam o que não se ajustaria
Da cidade ao molde em vigor
Que os convida.
O remembramento é urgente
Para sarar a ferida
E reconstituir o todo ausente.
Para reencontrar os pedaços
Em falta
E de volta os trazer em braços,
Teremos de descer da ribalta
E penetrar após
Por dentro de nós.
Tal é, por norma, a lida
Na segunda meia vida.
Quando chegaremos à beira
Da vida inteira?
A derradeira etapa,
Tremente,
É a que o mistério inacessível nos destapa,
Finalmente.
672 - Morte
Quando a morte é uma demorada
Trilha de perca,
Invariavelmente o moribundo
Se liberta da escalada
Do mundo
Que o cerca,
Desliga-se emotivamente
Dos eventos,
De toda a gente,
Dos objectos, dos momentos
E recolhe-se, discreto,
Além, fora de todo o tecto.
Alma que desce ao Hades interior
É naturalmente desapegada
E sente-se melhor
Do mundo subterrâneo na estrada
Que no mundo exterior.
Estará fruindo imagens,
A ouvir e a sentir,
Com o imo em estranhas viagens
Onde ninguém a logra mais seguir?
Talvez esteja a encontrar
De vultos luminosos o recorte
Dos que, se calhar,
A precederam na morte.
673 - Subterrâneo
Teremos de descer
Ao mundo subterrâneo do interior
Para nos familiarizarmos, ao menos sequer,
Com este reino sem palor.
Apenas então é viável intuir
Que, na obscuridade,
Há riquezas por descobrir
No frio, no escuro
Da noite que as almas invade,
No abismo profundo em que me muro.
Ali, no lugar
Onde quenquer se encontra isolado
Da realidade vulgar,
Incapaz de sentir e ser crestado
Pelo sol da vida
Do dia-a-dia,
Em tal guarida
Ocorre a alquimia:
De repente rasgo o véu
E vislumbro o céu.
674 - Viajante
Na antiguidade
O viajante podia visitar
O templo duma divindade,
Invocar ajuda, prestar homenagem,
Quando a estrada o conduzia, ao calhar,
A um santuário, ao correr da viagem.
De nossa vida na jornada
Somos tais caminheiros
Cruzando templos diferentes em diferentes carreiros
Da multímoda estrada.
As conjunturas conspiram
Por um arquétipo aqui,
Por outro além,
E tais deuses-padrões nos inspiram:
No que sentimos são o que agi,
O que convém,
Na complementaridade
De cada idade.
No centro de cada templo, porém,
Arde o fogo circular
Da comum a todos deusa do lar:
É o si-próprio, da personalidade
O centro a que tudo se grude,
Do significado a instância de verdade,
O arquétipo da plenitude.
É o que torna casa e templo
Lugar sagrado:
A noiva transportava, para exemplo,
O fogo no lar ateado
Para a nova casa que iria ser habitada:
Só a partir de então era sagrada.
O colono leva a chama
Para a colónia que sua proclama:
Apenas a sagrava
Por este fogo que nela ateava.
O fogo do lar,
O si-próprio bem fundo no imo,
São o centro da vida a protagonizar,
O vínculo comigo e o mundo a que me arrimo.
675 - Milhões
Cem milhões de estrelas contar
À média duma por segundo
Aparentemente é tarefa singular,
Tão desmedida
Neste mundo,
Que ninguém seria capaz de a executar
No decorrer de toda uma vida.
Calculada sem enganos,
Na realidade,
Levaria apenas três anos.
Era só focar a atenção
E ter bastante vontade
Para prosseguir
Com a função
Sem se deixar distrair.
- Quaisquer montanhas
Inultrapassáveis
São pedra a pedra ganhas
Por vontades indomáveis.
676 - Duros
São duros de contemplar
O fracasso e a idade
E ambos são um único exemplar
Olhado em profundidade.
A perfeição é o efeito natural
Da eternidade:
Aguardando o tempo requerido,
Tudo concretizará em realidade
O próprio potencial
Escondido.
O carvão devém diamante,
Em pérolas muda a areia,
O símio será homem adiante,
Após longa maré-cheia.
Apenas nos não é dado,
Na curteza duma vida,
Ver tudo aquilo transmudado.
Cada fracasso da sorte
Transforma-se, nesta medida,
Num aviso da morte.
677 - Romarias
Não ser fanático
Nas campinas religiosas
Requer o critério prático
De as romarias gostosas
Se respeitarem então
Em toda e qualquer religião,
Quando todos em alta estima
Têm doutrem a crença e o clima.
Para além disto poderão
Querer ainda praticá-las:
Seja qual for seu pendão,
Franqueiam-lhes do imo as salas.
E também isto é viável
A quem busque o que é fiável,
Ao menos até ao ponto
Em que em si não há desconto.
E mesmo aqui é de siso
Procurar com fervor
Conjugar juízo e juízo
Até encontrar um patamar superior
Que a contradição supere
E então já ninguém a ninguém fere.
A criadora utopia
É do não fanático a via.
678 - Sonhos
Cada qual tem seu feitio,
Sonhos e aspirações.
O que convém a um desafio
Para um outro são senões.
É urgente ter isto em conta
Ao julgar religiões,
Vias espirituais, partidos,
Ideologia, cultura,
- Tudo o que remonta
Aos sentidos vividos
Em que cada vida se apura.
Corresponde na variedade
À variedade dos seres,
Muitos encontram a ajuda que os persuade
Em tais haveres.
Tendo isto em mente,
Trataremos a teia dos caminhos
(Tão emaranhados que entontecem)
Devidamente,
Com o respeito e os carinhos
Que merecem.
É o fim
Do fanatismo,
Do sectarismo,
Do fundamentalismo,
Do extremismo,
Ultrapassados, enfim.
Todos poderemos dar as mãos
No jeito de vermos em todos os horizontes
As pontes
Para sermos irmãos.
679 - Emprego
O nosso emprego, a maneira
De nós ganharmos a vida,
Ao mesmo tempo emparceira
Cada qual com quem mais lida,
Germinando a comunidade
De que depende em verdade.
Há uma recíproca acção
Entre nós e a multidão.
Se esta prosperar,
Beneficio com isto,
Se, pelo contrário, descambar,
Sofro-lhe os efeitos em meu registo.
E a minha comunidade
Influi nas que a rodeiam
Até que em toda a humanidade
Todas a todas permeiam.
Se os habitantes desta região
Prosperam economicamente,
Todo o país sente
O empurrão.
Esta economia
Logo a do continente
Influencia
E o resto do mundo progride na corrente.
Importa compreender os elos
Da cadeia,
Senão depois os atropelos
Quem os desenleia?
680 - Originário
O prazer originário de qualquer obra de arte
Demonstra quanto a alegria interior
É o valor,
Em contraste com a parte
Dos prazeres dos sentidos banais,
De fruir bens materiais.
Aquela oferta uma ponte
Para além do horizonte.
Perante ela, o aqui-agora
É sempre a dor duma demora.
681 - Paz
A paz no mundo deriva
Da paz de espírito que advém
De reparar que toda a raça viva
A mesma humanidade contém:
Para além de todos os motivos de quezília,
Somos uma única e mesma família.
Pouco importa divergirem
Crenças, ideologias, sistemas
Políticos e económicos que surgirem
A ditar lemas:
São meros pormenores
Perante o que listamos em comum
De sonhos e de humores
De qualquer um.
Todos somos humanos
No mesmo minúsculo planeta.
Ao menos para sobreviver mais uns anos,
A meta
Implica colaborarmos mutuamente,
Dos indivíduos à escala
Mas mormente
À dos Estados que tão pouco abala
Até à hora presente.
682 - Abordável
Qualquer que seja a conjuntura
É sempre abordável num ângulo positivo.
E a tecnologia apura
Razões suplementares para o que vivo
O viver na esperança.
É impensável não haver maneira
De mudar o que perspectivo,
De modo que o olhar alcança
Reduzir a canseira,
Tolher o sofrimento
Oriundo das circunstâncias do momento.
Mudo o modo de olhar
E no meio do escuro vislumbro luar.
683 - Palavras
Que é um pai, uma mãe,
Uma mulher honesta?
Que é ser diferente: o que convém
Ou o que não presta?
Tudo palavras apenas!
Aqui na terra vivemos
Numa floresta inóspita, cheia de avenas
Que tocam palavras, frases, remos
Para tocaiar de seguida
O barco da vida.
Inventámos tudo,
Conjunturas belas e feias,
Tragédias, comédias de Entrudo,
Relações de abismos cheias,
Estados de alma, dramas,
Mil e uma tramas…
Inventámos tudo isto
Colocando termo após termo,
Organizando as palavras no previsto
Encadeado de frases, a recobrir cada ermo.
A palavra é nobre,
A frase é-o menos,
Quão mais a encadeio, mais pobre,
Perante os factos, únicos plenos.
O que conta é que, como os mais, sou:
Pegada incerta,
Tacteando por igual, por aqui vou
À descoberta.
684 - Dissimuladas
A história ensina
Que Deus se manifesta
Pouco a pouco à esquina
Da humanidade, fresta a fresta,
Por pequenas doses
E em dissimuladas poses.
Criou o tempo ou dele a ilusão
E nesta vem serpenteando indolentemente,
Rio a intérmina planura de nosso chão
Entrecruzando de meandros preguiçosamente.
De tempo a cada nova fracção
Revela-se um pouco mais claramente
A autenticidade
Que dEle nos invade.
Económico e metódico em extremo,
Nunca nos é mais estranho hoje,
Neste rio em que remo,
Do que ontem fora, na imagem que me foge.
Entre Deus e ciência não há contradição,
O saber acaba por desembocar em Deus.
Acaba, não principia: à partida não o tem à mão,
Tem de aguardar, paciente, a queda dos véus.
À luta
Atreita,
A sabedoria tem de manter-se à escuta,
De olho à espreita.
A aparição fugidia
Inaugura um novo dia.
685 - Frase
Há uma realidade
Para além da linguagem:
Aquela é que é verdade,
Esta é uma triagem.
Como tudo o que tria
Trai,
A realidade na palavra se esvai,
Vazia.
Uma realidade é verdade:
As coisas, o homem…
Quando isto nos invade,
Existe,
Nenhuns termos o somem,
Mesmo que o abulam, persiste.
O homem, como ser,
Não é frase nem depende de palavras.
Não o entravas
Por dizer ou não dizer,
Não deixa de existir
E de gerar porvir.
A linguagem nada pode
Contra o homem que existe.
Por isso acode,
O termo em riste,
A vingar a impotência:
Toda se encarniça
Do homem contra a ambiência,
Contra o que o rodeia.
A linguagem cria interpretações,
Postada na ameia,
Encurrala em situações.
E o homem sofre por mor delas,
Porque raramente lembra
Que são da linguagem sequelas,
Por ela inventadas como inimiga
Que o desmembra
Com quantas frases o consomem.
A linguagem que o homem abriga
É também a inimiga do homem.
Cuidado, pois, com as palavras:
Mais do que a charrua,
É com elas que te lavras
E te cavas um abismo ou rasgas uma rua.
686 - Fórmulas
Todos preferem caminhos trilhados,
Fórmulas do dogma, textos da lei,
Sem compreenderem que do código nos traslados
Não cabe a infinita grei
Dos redis da existência,
Nem dum dogma na identidade
A luminescência
Dos céus,
A realidade
De Deus.
687 - Captas
Se captas a beleza
De quanto te rodeia
E ficas grato, em íntima, infomal reza,
Terás
Paz
E a profunda felicidade te encandeia
De pertenceres a um todo, cuja imensidão
Bate como um único coração.
Respira, respira fundo,
Enche teus olhos de vida
No pulsar jucundo
Da natureza que te convida.
688 - Predisposta
Qualquer alma de artista é delicada
E predisposta a acolher música do Universo.
Deixa que em ti ecoe a toada
E então poderá ser ouvida por cada irmão converso.
Se tal alma foi feita
Para por deuses ser tangida,
Não permitas dos homens a desfeita
De a tocarem com velhacaria fementida,
Nem por afectos perversos te deixes invadir
Nem por ódio seduzir.
Onde este se aninha
Apaga o rastro do amor
Que é quem avizinha
As almas de artista ao estupor
Terso
Da música do Universo.
O perdão
A quem te causar dor
É o bálsamo para a ferida
Que te volta a colocar na posição
Devida
Para receberes inspiração.
689 - Reais
Tão reais como Ele,
Mas de matéria grosseira
A elevar-se da rugosa pele
A formas mais subtis, com canseira,
Até se poder reintegrar,
Rasgados os véus,
De novo de origem no lugar,
- Somos os sonhos de Deus!
690 - Rasteiras
Não me deixa morrer nem viver
O Deus que aqui me prosterna
Sob as rasteiras da sorte:
Obriga-me aqui a morrer
Uma vida eterna
E a viver uma eterna morte.
691 - Humor
Humor é mais
Do que rir piadas,
Gargalhar anedotas.
É ferramenta de sinais,
Poderosa nas mensagens cifradas
Aos mareantes das frotas:
É comunicação
Por baixo de mão.
Quando partilhas gargalhadas
Com um obstinado cliente,
Um difícil colega,
Num momento evanescente
A divergência a nada se relega,
O ressentimento abranda,
A tensão se desvanece.
Doravante o que comanda
A linha que os minutos tece
É de cada qual a iniciativa
Por engendrar uma resposta criativa.
Humor é o ninho
Onde choca o ovo do novo caminho.
692 - Abraçar
Abraçar a imagem,
Dar forma à visão
É a nossa tragédia, da vida na voragem:
Somos escultores sem mármore nem argila,
Não podemos dar expressão
Ao insistente clamor
Que na fundura do desejo se perfila.
Lábios, seios que acariciamos,
Não passaram de caminhos para o amor,
Mas sem eles onde ficamos?
De tão longe dos céus
Absurdos somos e pigmeus.
693 - Dor
Não é deveras nada
A física dor total
Comparada
À espiritual.
Se disto soubera
O custo medonho,
Quem desprezaria tanto a quimera
De seu íntimo sonho?
694 - Consciência
Consciência plena
É fazer a triagem
Da matéria com olhos de céu:
É ver a vida terrena
Como um grande campo de aprendizagem
De que trilho é o meu.
695 - Aceita
Quem aceita o inesperado e o esperado
Na vida, no mundo, no próprio imo,
Evolui em consciência e sabedoria, premiado,
Degrau a degrau, até ao cimo.
Quem se fica, teimoso e quezilento,
Evolui com a perda, o medo e o sofrimento.
De nosso momento
Qual o requisito,
Lá de cima, atento,
Espera o Infinito.
696 - Lógica
É viável entender
A lógica do céu
E aqui na terra viver:
É apenas rasgar o véu
Juntando cabeça e coração,
Pensamento e intuição.
A Festa, principalmente,
É casar alma com mente.
697 - Abertura
A abertura ao mais além,
Primícias da infinidade,
Ao que o imo me contém
De frestas de eternidade,
Abrir a porta
Por dentro de cada qual
- É o que importa,
O degrau fundamental.
O que for eficiente
Para alguém abrir-se mais
É benéfico e urgente
Para os rumos abismais.
Um ovni poderá ser,
De utopia um lema,
Uma cura milagrosa,
De quase-morte a vivência que ocorrer,
Uma música, um poema…
- Quanta invenção imaginosa
Pelo lado de além é usada
Para nos ir abrindo a estrada!
698 - Degraus
Trepaste degraus na tua escalada espiritual,
Atingiste o patamar dos ungidos:
Não os que Deus escolheu, que não há tal,
Antes os que O escolheram, decididos.
Deus não escolhe os capacitados,
Capacita os escolhidos
Que são os que O escolhem, abnegados,
Esclarecidos.
O fado,
Quem o destina
É quem para um lado
Ou para o outro se inclina.
699 - Realidade
O problema é que julgamos
Que somos o que pensamos.
Na realidade, afastados os limos,
Somos apenas o que sentimos.
Quem pensa e nos tira o sossego
É nosso ego.
E não o somos, não:
Não é ele que os milénios atravessa
Na busca confessa
De evolução.
No fundo mais profundo
Mora em nós um outro mundo.
E apenas o vislumbramos
Através do que sintamos.
700 - Primeiro
Primeiro, mudar a mentalidade,
Promover o desapego,
A perda de densidade,
A aceitação em que me entrego.
O que o céu me propõe, eu acolho:
Não quero nada, não desejo nada por mim,
Acolho o que vier, assim.
Sem expectativa, eis que me olho
Reduzido a zero por inteiro.
Vou-me então iniciando na magnífica viagem
Céu adentro, leveiro,
Com minha focagem
Na imensidão
Do mundo paralelo inabarcável
Do Infinito,
Em meu imo, apesar de tudo, à mão,
Simultaneamente inatingível e trilhável,
A Infinitude na finitude do finito:
Sementeira aqui neste chão
De que então
Jamais me desquito.
701 - Negativa
Quando estiveres perante
Uma conjuntura negativa, pesada,
Não fujas, mas garante
Que não te misturas com ela na levada.
Se tremes de medo, ficas pesadão,
Enclausurado na cerca,
Misturas-te com a situação
E atrais a perca.
Se tiveres fé, acreditas
Que irá para todos ocorrer o melhor,
Seja lá o que for,
E entregas o eventos ao céu,
Ditas ou desditas:
Já não é problema teu!
E então, das profundezas de além,
Protege-te Alguém,
Não, decerto, com o que pretenderias
Mas de certeza com a mais correcta das vias.
Com sofrimentos?
Com alegrias?
- Com os ventos
Com que, fiel, mais voarás todos os dias.
702 - Incompreendido
Incompreendido, o sofrimento
Provoca mais perda e, no encadeamento,
Mais recém-nados
Sofrerão
Do desvio a lesão,
Mais longe deslizam
Da plenitude que visam.
Da matéria a vivência
Por aí transcorre:
Vir à terra religar com persistência,
Intuir, através do que ocorre,
Quem sou enquanto ente interior, espiritual,
E na terra lograr ser
Meu imo fundo através da material
Densidade que advier.
Tudo começa
Quando vemos por trás do véu:
Vivenciar a matéria com a cabeça
E com o coração no céu.
A norma final
Que tudo encerra:
- Ser meu inteiro ser espiritual
A viver na terra.
703 - Águas
Deverás conhecer tudo,
Das águas da vida distinguir os movimentos,
O balanço, a onda, o murmúrio mudo…
Quando, a meio do rio, nos tormentos,
Tiveres medo,
Terror pânico do desconhecido,
Deverás fechar os olhos e, no segredo,
Confiar, comedido.
Confiar que as águas da vida só te levarão
Para onde for o teu caminho
E só demorarás no cachão
O tempo requerido
A lá chegar numa rota de carinho.
Isto é que é
Ter fé.
O que leva a que ali acabem
Quantos temores se atrevam:
É crer que as águas sabem
Sempre para onde nos levam.
704 - Lutar
Em vez de lutar por ver cumprida
A tarefa de aprender
A desbravar as margens da vida,
De tentar integrar-se com quenquer,
Com as gentes da planura distendida,
O homem é impelido a dominá-las.
O homem tem medo
E o medo fá-lo tentar, com boas ou más falas,
Dominar o semelhante, tarde ou cedo.
Descobre que o pode dominar
Se tiver o que ele não tem
E o que ele não tem acaba por descortinar:
É o que houver apenas na margem de além.
Quem as margens interligar
Nas trocas
Acaba por ambas dominar
- E aqui é que desembocas.
Grave é que acabas por te aprisionar
No tráfico do rio
E deixas de navegar
No desafio
Que a vida te faz
A sós
De ir desaguar no mar, em paz,
Na tua foz.
705 - Armadilha
Não caias na armadilha mais comum,
A de ficar.
Construída a casa em algum
Lugar,
Encontrado o recanto da fogueira,
Aceso o lar,
Decoradas as estrelas na viageira
Abóbada de qualquer céu,
É muito sugestivo parar,
Do palco descendo o véu,
E repousar.
Não é o momento de tal, porém,
O caminho clama por seguir,
A corrente chama para além
Continuar a jornada do porvir,
O sol pede para queimar
O corpo por igual,
Bate à porta para entrar,
E a chuva quer regá-lo, imparcial.
E o mar, lá no fundo, pede
Para o encontrar.
Tua pegada, pois, despede
Do actual patamar.
- Apenas então
Por ti há-de ocorrer a evolução.
706 - Sobreviver
Ninguém
Às noites frias da floresta
De sobreviver tem,
Nem de suportar na frágil testa
As águas geladas
Da chuva e do rio à margem das estradas.
Se chegar ao fim na hora certa,
Fez o percurso no tempo exacto,
Com a corrida pela força coberta
Requerida para o acto.
Chega ao mar,
Embebe-se no Todo,
A ser parte do Universo vai passar,
Migalha de algo que não tem fim de nenhum modo.
Agora é protegido,
Agora repousa em paz.
- Não é aquilo, porém, que, distraído,
O homem faz.
707 - Tempo
Tudo na vida um tempo tem,
Há um tempo para cada evento:
É a grande iniciação para quem
Aprende a fluir, boiar no vento:
Deixar que a corrente da vida
Traga cada experiência,
Cada margem na hora devida,
Sem apressar nem retardar o movimento,
Para que de tudo a cadência
Acabe pulsando em comunhão
Do Universo com o coração,
Vogando cada qual em frente
Como a bóia na corrente.
708 - Obra
Se o homem é de Deus imagem,
Na obra dum grande artista,
Saiba-o ele ou não, quando as mãos agem,
Recuse-o ou não na crença em que invista,
Não poderá nunca deixar
Deus de se manifestar.
Mesmo que o grande artista o não queira,
Andará sempre de Deus à beira.
709 - Confronta
A grande poesia apenas germina
Quando o homem se confronta radicalmente, de pé,
Com a própria sina,
Com o que é.
Quando o facto estético ocorre verdadeiro,
Aí rigorosamente cintila,
No sendeiro
Que perfila,
A fundura
Da abertura
Da insondável alma humana,
Profundidade em que respira
A marca arcana
Da palavra criadora de Deus:
Daí transpira
O infinito dos céus.
Inefável alma, capaz
De ser corpo na mais alta expressão carnal da viagem
Dum espírito perspicaz:
A linguagem.
710 - Humilde
Talvez nos demos conta, no fim do caminho,
De que o Senhor sempre estivera ao nosso lado,
Humilde e comezinho,
Sem o sabermos nem com Ele havermos contado.
Talvez não logremos também, apesar da fome,
Desvendar o mistério de seu nome.
A graça então há-de porventura consistir
Em continuar a andar
Com a teimosia humilde, prenhe de porvir,
De quem para sempre ficou ferido, singular,
Passando coxo a ser e se propor,
Simultaneamente vencido e vencedor.
711 - Força
É divina a força imperecível
Que em espírito a matéria transforma.
Cada homem tem dentro de si, por norma,
Um fragmento indefinível
Daquele divino vulcão
E por isto logra converter o pão,
Água, carne e peixe
Em pensamento em acção
Que a marca lhe deixe.
Na fartura ou nas fomes
A verdade é talvez:
Diz-me o que comes,
Dir-te-ei quem és.
712 - Forçar
Forçar a grande lei que envolve tudo
É pecado mortal, pois leva à morte.
Impacientar-me, mudo,
Ou apressar-me à sorte,
É esmagar-me contra o muro
E, no final, nada apuro.
Como à lei do infinito nada altera nem alcança,
Deverei seguir, obediente e terno,
Com respeitosa confiança,
O ritmo eterno.
713 - Grandes
Os grandes visionários,
Os grandes poetas
Vêem todos os cenários
Pela primeira vez.
Não guardam memórias concretas
De nenhum entremez.
Todas as manhãs
Vêem na frente,
Contra as repetições malsãs,
Um mundo novo, de repente,
Que eles próprios criam
…E nunca sabiam!
714 - Diamante
O dia resplandece,
Diamante de muitos carates.
À medida que trepamos à montanha,
O imo cresce,
Purifica-se em quanto o dilates,
Em dimensão tamanha
Que sinto novamente
A influência que sobre a interioridade
Tem o ar puro, quase semente,
A respiração leve da fecundidade,
O horizonte vasto infinitamente…
Alma é também animal
Com narinas e pulmões,
Com urgência real
De oxigénio e de respirações.
As poeiras que as almas tocam
E demais poluições
Sufocam.
715 - Andares
Deus não cabe
Nem nos sete andares do céu
Nem nos sete andares da terra.
Não há fronteira onde acabe
O que é seu,
Que nele se aferra.
Mas pode caber inteiro e chão
Do homem no coração.
716 - Imprimimos
Inconfundível impressão digital,
Imprimimos nos objectos
Nossa marca pessoal,
Sofrimentos, esperanças, projectos…
E quando os tornamos a encontrar,
Aos objectos desgarrados pelo mundo,
Eles desatam a murmurar,
Repetem-nos, triste ou jucundo,
Pela evocação, sumário,
Todo o nosso itinerário.
Vivo e à minha medida,
Neles espreito à janela
Nesta vida
E depois dela.
Mais que memória de mim
Sou eu no Cosmos a viver sem fim.
717 - Estribilho
Estar sozinho,
- Da vida o estribilho eterno.
Nem melhor nem pior que qualquer fado maninho,
Travamos demais sobre este inferno.
Sempre só restando, uma criatura
Nunca está só:
O sol fulgura
Em cada grão de pó.
E o som do vento
Vibra eterno no meu pensamento.
718 - Reveste
Tudo mais vivo colorido
Reveste à noite.
Difícil nada é sentido
A quem se afoite,
Julgamo-nos à altura
De qualquer aventura.
E o que não é conseguido
É pelos sonhos substituído.
Ao sonho nos entregamos,
Que, sem dele a falsidade,
Suportar não logramos
A verdade.
719 - Noite
À noite és diferente,
Estás sempre a retornar,
Surpreendente,
Dum qualquer lugar
De que, por mais que rebusquemos,
Nada sabemos…
720 - Remoinho
Apenas uma ilusão
Não é o bastante?
Pode alguém, nalguma ocasião,
Atingir algo mais securizante?
Quem desvenda
O negro remoinho da vida
Turbilhonando anónima sob a venda
Dos sentidos, desmedida?
Remoinho que um oco tumultuar
Transforma em coisas:
Uma mesa, uma lâmpada, um lar,
O banco onde repoisas,
A multidão,
Um coração…
Há um pressentimento apenas
E um dilúculo prometedor.
Não basta? Não basta às pequenas
Horas do dia de vida aterrador?
721 - Viciado
Não, não ficarás comigo,
Ninguém pode algemar o vento nem as águas.
Se prendes o vento, transforma-lo, no abrigo,
Em ar viciado, antro de mágoas.
Ninguém é feito para de vez ficar
Em nenhum lugar.
722 - Vazio
Vazio te permanece o coração,
Que ninguém pode conservar
O que dentro de si não tiver germinação.
E pouco pode germinar
No meio da tempestade.
É nas noites vazias,
De soledade,
Que a germinar te inicias.
Se não desesperares
De em ti haver,
Num recôndito qualquer,
Ignotos luares.
723 - Ligar-me
Tudo passa
E a vida também se irá.
Não devo ligar-me, feito carraça,
A nada que houver por cá.
Urgente é conservar
Da liberdade a consciência,
Que, quando assim livre ficar,
Um homem não tem carência
De nada, nada que tiver lugar.
Então livre voará
Sempre num mundo que não é de cá.
724 - Útil
Se queres ser útil deveras,
Sai da estreita roda familiar
Até às esferas
Da multidão,
Até o mundo inteiro abarcar
Em teu gesto e coração.
Por que é que as artes são tão vivas,
Tão populares, tão poderosas?
O romance, a música, o cinema
Não se enclausuram em redomas esquivas,
Atingem milhares e milhares
Com mensagens saborosas,
Tema a tema.
As obras de arte dão-nos asas,
Para a lonjura nos arrebatam,
Elevam-nos às alturas.
Delas as casas
Dão os nós que os tempos atam
E as figuras.
Quem estiver farto do lodo,
Do interesse rasteiro,
Que ferido, revoltado, de algum modo
Se sinta no atoleiro,
Pode encontrar a paz que preza
Na beleza.
725 - Coração
Do coração seguir
A livre inclinação
Nem sempre é fruir
Da felicidade o pão.
Para vivermos livres e felizes
Urge não escamotear
Que a vida é dura em todas as matrizes,
Grosseira em cada calcanhar,
Inexorável no pendor
Determinista-conservador,
E que importa lhe pagar
Na mesma moeda:
Sermos como ela
Duros, agressivos, implacáveis
Em nosso apego e queda
Pela estrela
Que nos invade
Com cintilações inadiáveis,
- A luta pela liberdade.
726 - Impele
O mar impele a canoa
Para trás.
Duas remadas damos para a frente e logo ele, à toa,
Uma delas desfaz.
Os remadores, porém, teimosos,
Remam sem parar,
Não temem os macaréus alterosos
Do mar.
Avança a canoa sempre em frente,
Já ninguém a vê.
Em breve os remadores avistarão a oriente
A luz em que têm fé.
Tal é a vida,
Ambígua e desvalida.
Em busca da verdade
Os homens dão dois passos em frente
E um que retrograde.
O sofrimento
Inclemente,
Os enganos, o aborrecimento
Para trás nos empurram permanentemente,
Mas na verdade a sede e a teimosia
Impelem-nos, constantes, para a meta.
Talvez um dia
Atinjamos a verdade completa.
727 - Faz
Faz, primeiro,
O que for imprescindível
E o que for possível depois.
Por derradeiro,
É, de repente, do impossível
Que andarás gerando os arrebóis.
728 - Molde
Perante o Infinito
Somos todos iguais,
Vazados em igual molde pelo mesmo perito.
Os eventos mais cruciais,
Da vida cada pegada,
Perante Ele não são nada.
Definitivamente
Apenas contarão
Os impulsos que alimente
O coração.
729 - Cumes
Nos cumes da vida ficamos muito sozinhos,
A única companhia que temos
Somos nós próprios, ante a solidão dos caminhos.
Nos limites extremos,
O melhor conselho
É que sejamos capazes de viver a sós
Com o indivíduo que olha para nós
De dentro do espelho.
730 - Visões
Dentro dos jardins murados
Podemos ter visões e sonhos.
Lá fora, no grande mundo dos ludibriados,
Há vigias nos telhados
E torcionários medonhos.
E temos de viver, entremeadas e seguidas,
As duas vidas.
731 - Precisamos
Precisamos nós de sonho
Tanto quanto de razão,
De poesia que nos tire os pés do chão
Como de cálculo a medir onde me ponho,
De fazer viver o imaginário
Como a lógica, ao dar conta do cenário.
Quando um lado é reprimido,
Logo explode, desmedido,
Mais tarde ou mais cedo.
E desta desproporção
É que importa ter medo
E precaução.
Os extremismos
Nas instituições ou nas atitudes,
Não são nunca virtudes,
São a queda nos abismos
Que, fatais,
Gerarão sempre outros que tais.
Apenas a tolerância,
Afinal,
Nos garante um alcance real
À nossa encegueirada ganância.
732 - Outro
Muito demora
O momento
Da claridade:
A vida é triste e encantadora
E, se é verdade
Que a pobreza é sofrimento,
A riqueza não dá felicidade!
- É sempre outro o caminho
E eu mal dele me avizinho.
733 - Enganam
Os homens se enganam com o que imaginam,
Se antolha imaginar o mesmo que criar,
Ao erro se inclinam
Do avatar:
Ser é idear.
Deste sonho na ilusão
Vão tornando o mundo vão.
E as vidas
Sem chão
Mal podem ser vividas.
734 - Olhamos
Para o passado olhamos com saudade,
Para o presente com desprezo,
Para o futuro com esperança.
Do passado ninguém diz mal, é de oiro idade,
Do presente continuamente me queixo, dele preso,
E o futuro que nunca mais se alcança
Apetece-nos que chegue
E de vez ao colo nos pegue.
O passado parece-nos um instante,
O presente mal o sentimos
E o futuro está muito distante
E nunca o vimos.
Para do tempo dizer bem
É preciso ter passado,
Para que o desejemos também
Tem de longe ser considerado.
A vaidade olha o passado com indiferença,
Que nele já não tem acção;
O presente que lhe pertença
E tem à mão,
Olha-o com desprezo
Porque nunca vive satisfeita;
O futuro que prezo,
Sempre à espreita,
Contempla-o com esperança,
Porque sempre se funda no que há-de vir,
O eterno porvir
Que não alcança.
Assim, apenas estimamos
O que não temos:
Pouco caso faremos
Do que possuímos
E cuidamos
De buscar arrimos
No que jamais vislumbramos
Se teremos.
735 - Parece
O permitido
Nunca parece tão bem
Como o proibido.
O muito que se retém
Não inibe
Nem consola
Do pouco que se proíbe,
Vaga esmola.
O alheio é que nos agrada,
Que nele há uma negação,
É uma valeta na estrada
Que sigo ao pisar meu chão,
Há nele o facto e o palpite
Do meu limite.
Com saudade olho o passado,
Com ânsias, olho o porvir.
Para o presente, é desgostado
Que olho o que dele surgir.
No vazio da ausência é que dança
Toda a carne da esperança.
736 - Foguetões
Todos os foguetões que treparam ao céu,
Todas as velas que se fizeram ao mar
Sou eu, sou eu!
Meu ser é andar:
Sou o caminho
Intérmino a caminhar,
O peregrino sozinho
Em busca do lar.
Todo o caminho
É provisório:
Correndo de idade em idade,
Sou o carreiro ilusório
Na busca eterna de realidade.
E toda a jornada
Da vida
É, à despedida,
Frustrada,
Até que minha mão toque de verdade,
Algures, a eternidade.
737 - Sonhos
Os velhos sonhos eram sonhos bons.
Não devieram realidade
Mas estou contente com os tons
Que reveste a saudade:
Que delícia tê-los tido
No caminho percorrido!
Que é que isto quer dizer?
Não sei bem,
Mas creio que te posso entender:
Também te falta um mais-além…
É quanto basta,
Já que a vida é tão vasta, tão vasta…
738 - Falam
Falam do tempo e das colheitas,
Dos recém-nados e dos mortos,
Do Governo e das maleitas,
Das vitórias nos desportos…
Não falam de arte e de sonhos,
De realidades que silenciam
A música além dos gestos enfadonhos,
Que enfiam
Em caixas secretas,
Bem guardados,
Os sonhos que decretas
Enlevados.
Vão-se, portanto, perdendo, dia a dia,
Da magia.
No vazio
Resultante,
É de si que perdem o fio,
Lentamente, vida adiante.
739 - Mata
Mais a paixão dita artística mata o mercado
Que outra mazela qualquer.
É o seguro garantido e qualificado
Que a maioria requer:
As revistas,
Os fabricantes,
As entrevistas,
Os anunciantes
Ofertam segurança,
Dão homogeneidade,
O familiar, com abastança,
O confortável que agrade.
Não desafiam, porém,
Ninguém.
Lucros, subscrições,
Financiamentos, aquisições
E tudo o mais que isto acarte
Dominam qualquer arte.
Vivemos atados à grade
Da uniformidade.
Os consumidores…
Os gordinhos de bermudas,
Camisa havaiana,
A transpirar odores
Das peitaças peludas,
Chapéu de palha abana-abana
De abre-latas pendurados
…E com dólares aos punhados!
Não, não é uma queixa que aqui ponho,
É o preço do sonho.
740 - Desistir
Andamos a desistir da liberdade,
A nos organizarmos,
A censurar a emotividade:
Perdemos o chão onde nos enraizarmos.
Eficiência, eficácia,
O artifício violento da ciência
A impor, com contumácia,
A demência
A uma cultura moribunda
Que, daquela violência,
Se afunda.
Perdida a liberdade,
Finda o cavaleiro andante,
O dodó do mundo se evade,
Extingue-se o lince um pouco adiante…
- Já não anda a restar
No mundo grande lugar
Para o viajante.
741 - Caminho
És o caminho de todos os roteiros,
A vela de todos os marinheiros.
Sentes o caminho dentro de ti.
E mais, no fundo, aí,
(Adivinho)
Tu és o caminho.
Onde se encontram ilusão e realidade
Aí é que estás,
No caminho és o caminho de verdade.
És, finalmente, a paz:
Aí
É que ela se faz,
Porque a paz se faz de ti.
742 - Elegância
A incrível
Elegância da banalidade
Mora em toda a parte,
Com à-vontade,
Mas é implausível
O mero facto de sequer existirmos:
É um aparte, miraculoso aparte,
Isto de até aqui virmos.
Em algum lado,
Nas oficina do Mestre,
O acaso e o grande desígnio se hão misturado,
Inseparáveis, embora nada os orquestre,
Num lugar inacreditável
Onde tudo se integra,
Onde o improvável devém provável
E a surpresa é a regra.
O milagre, então, após,
Somos nós.
743 - Perseguir
Cruza um homem meio mundo,
A perseguir um sonho,
Ao mar encapelado, abismo fundo
E medonho,
Se lança, alheio a perigos e traições,
Prisioneiro de ilusões.
Abandona amores e amigos,
Pedras da rua, ombreiras de casa,
De espreitar os postigos,
Da lareira a brasa,
Larga o banco da igreja
Onde em criança orou,
Pelo sonho que almeja,
Pela súplica que ficou
Ao bater no peito
Mal contrito e sem jeito.
E, ao fim de tanto deixar,
De tanto despedir
E chorar,
A viagem acaba por cumprir,
Por dentro de si ou por cima do mar,
Encontra o paraíso perdido
Que todos têm no sentido.
Cuidaríamos que dali nunca mais se arredará,
Encontrou, está encontrado,
Descobriu, está descoberto,
Recebeu, recebido está,
Cumpriu o fado,
Desvelou o manto do encoberto.
Quererá permanecer,
O clima é doce,
O mar, azul,
A mata, rosicler,
A vida é branda, como se fosse
Recoberta por um véu de tule.
Tal é de início,
Sem querer mais saber
Se doutros mundos há resquício
Num sonho qualquer.
Cuida que encontrou o próprio lugar
A duras penas,
Tem direito a desfrutar
Do jardim das açucenas.
Logo, porém, germina o veneno
Da saudade,
A relva da aventura.
E já quer o homem desbravar terreno
Ou retornar à velha herdade
Onde semeou ternura.
E já o clima é quente demais,
A fruta é doce em demasia,
As aves atordoam nos quintais,
A mulher enfastia…
- E o fadário recomeça
Na vida avessa.
744 - Rejeitou
Se até mesmo rejeitou Adão
Vida mansa, fartura e mulher nua,
Não tenhamos ilusão
De que, à primeira aguilhada da saudade,
Logo o homem salta à rua,
Da incerteza morde a vaguidade,
Do perigo, da doença, da curiosidade,
Do desejo de conhecer mais mundo
E melhor,
Seja lá o que for
Que o aguilhoar no fundo.
A culpa é do coração insatisfeito
Que de nada se contenta.
O mundo, o Universo são amigos do peito,
Dão-nos beleza, caminhos, chá e pimenta,
Não poderei culpá-los
De meus abalos.
Isto de ser homem
São mil ânsias que perenes nos consomem.
745 - Mesmo
O mesmo lar,
A mesma escadaria,
O mesmo homem…
Com os anos, porém, por se avelhentar,
A outras gentes por ter ido em romaria,
Por mais livros ter lido que ao pé lhe assomem,
- O lar e a escadaria mudaram.
E o mais estranho,
Seja perda, seja ganho,
É que os indivíduos que no lar ficaram
Já os não apanho,
Que também mudaram.
746 - Óptimas
Boas maneiras
São óptimas, zelosos extremos.
Podem, porém, aprender-se nas carteiras.
O que aí não aprendemos
E que um bom lar ensina,
Emulação, diplomacia,
Não magoar outrem no afecto a que se inclina,
- Como é que em aulas se adquiriria?
Não há lição
Nem escola
Para a fundura do desvão
Em que meu abismo se desenrola.
747 - Agarrar
Quantos, sem mais demora,
Por não conseguirem prender a imagem perturbadora
E bela
Que vêem na fonte,
Mergulham nela,
Assim se afogando no horizonte!
À mão dos demos,
É a imagem de soltar da vela os panos
Que vemos
Nos rios e oceanos.
É a imagem afrontosa e querida
Com que me iludo
Do inatingível fantasma da vida,
- A chave de tudo.
748 - Consola-me
Por mais que me joguem num virote,
Que me empurrem e maltratem,
Consola-me do bote
Ver que é assim que todos se batem.
O empurrão universal
Vai correndo de homem em homem
E ao mundo daí não vem mal
- Nem aos que o domem,
Nem aos que o tomem
Nem aos que, afinal, o consomem.
749 - Ventos
Neste mundo os ventos de proa
Bem mais frequentes são que os de popa.
No tombadilho respira, à toa,
O cheiro rançoso da copa,
Atmosfera em segunda mão,
O capitão.
Bem pode crer que é o primeiro,
Todavia se engana: é o derradeiro.
Quando menos suspeitam
Os líderes dos povos,
São estes povos que os sujeitam,
Os conduzem aos renovos.
E, até quando o não vêem,
É o que nos gestos deles todos lêem.
750 - Efémera
O mundo é um navio
Numa efémera viagem
Sempre incompleta.
E o púlpito em que confio,
Das rotas na triagem,
É a proa deste navio
Rompendo o mar da vida em linha recta.
751 - Talha
O chão, o tecto, a parede,
Tudo está torto.
Da consciência a eterna sede
Assim talha em mim seu porto.
A chama arde a direito
Mas de meu imo as paredes e as entradas
Não tomam jeito,
Andam sempre desniveladas.
752 - Intuição
Dúvidas têm-nas todos,
Muitos negam.
Entre dúvidas e negações, fogos
De intuição poucos adregam.
As dúvidas são terrenas,
As intuições, divinas.
Esta combinação fermenta pequenas
Sinas
De crentes ou de infiéis,
Mas faz um homem
Daquele que de ambas contempla os anéis
Que nos consomem.
753 - Olhes
Não olhes, homem, nos olhos do fogo
Tempo demais!
Nunca sonhes, logo,
Com a mão no leme, feito arrais!
À bússola não vires costas,
Acolhe o primeiro sinal,
Mesmo se dele não gostas,
Da cana do leme primordial.
Não creias no lume artificial
Quando a vermelhidão do fulgor
Torna tudo irreal
E assustador.
Amanhã, de teu imo ao sol natural,
O céu ficará claro,
Os diabos da artificiosa chama infernal
Devirão gentis no mundo avaro.
Teu íntimo sol glorioso e doirado
É a única candeia verdadeira.
Todas as outras a nosso cuidado
De mentira são peneira.
754 - Perdas
Algumas perdas poderão despedaçar,
Partindo-nos em cacos,
O espírito esmagando, se calhar,
Reduzindo-o, sem dó,
A meros buracos
De pó,
E, todavia, somos capazes
De seguir em frente,
Audazes,
E, com calma,
A mão tremente,
De reerguer-nos remendando a alma.
Sobrevivemos,
Se não para sempre felizes,
Pelo menos levando, nos extremos,
A vida adiante, até à glória,
Para além do que ajuízes,
De forma, afinal, satisfatória.
755 - Modificas
Quando modificas uma peça,
Modificas potencialmente outras mil,
Quando a tiras, arbitrário, do lugar que atravessa,
Arriscas-te a destruir do conjunto o perfil.
É que há regras e motivos.
Teus gestos não são gestos,
São aprestos
De encadeamentos vivos.
756 - Presença
Aparece o espinho,
Na medida em que se enxerta
Ao longo do caminho
Da vida desperta,
Como preço a pagar
Pelo destino
De mais nosso tornar
Um dom divino.
Apesar dos erros dos fariseus,
Quem paga o preço
Não tarda a sentir, no avesso,
A presença de Deus.
757 - Vem
A verdadeira grandeza
Não vem de baixo mas do alto.
Preza
O maior
Salto:
- Ignorando o plinto exterior,
É, dela na pureza,
A pureza interior,
É o infinito voo que em mim reza.
758 - Harpas
Somos as harpas onde tocas
Com o ponteiro de marfim
A melodia que não vem de nós
Mas onde tu desembocas,
Que é tua, enfim,
Aquela voz.
Somos a flauta
Que o mar corta a bisturi
E a pauta
Que há em nós
Não nos abandona aqui a sós,
Vem de ti.
Somos alcandoradas montanhas
E o eco veloz
Que ouvimos em codas tamanhas
É o da tua voz.
Quando te escondes,
Se me fito,
Em nada creio.
Quando te manifestas e respondes,
Repouso em teu seio
E acredito.
Tenho apenas o que me dás,
De ti pobre imagem.
- Que procuras, tenaz,
Em minha bagagem?
759 - Perda
Quando nossa perda é definitiva
E o estrago, irreparável,
Percebemos, em perspectiva,
Que a vida afinal continua, imparável.
Há força na aceitação
E a dor devém fortaleza
De verdadeiro carácter, à feição
Do que mais em nós se preza.
Crescemos através do desgosto
E ele, no fundo, nos impele
A moldar um autêntico rosto
Para além dele.
760 - Sempre
O sonho sempre me atira
Para diante.
Mostra-me que viver não mira
O passado distante
Mas o que inauguro:
- O futuro.
761 - Único
Se me considero centro do Universo,
O único a sofrer me vejo então
E o sofrimento me aparece, no reverso,
Como maldição.
Se como gota no oceano
Me encaro, ao invés,
Sobre a tragédia logo cai o pano
A meus pés
E vogo sereno na acalmia
Da universal maresia.
762 - Experto
Por mais inteligente
Ou experto que eu for,
Pouco sei sobre a vertente
Que para mim será melhor,
A que rumo à unidade
Me persuade
A caminho a me pôr.
É por aí que vou vendo
Que existe algo superior
A nós,
Uma força maior,
(O nome com que a vou lendo
Pouco importa após),
Que através dos mais
Variados sinais
Nos vai revelando rigorosamente
O que, aqui e agora, é o indispensável
Passo em frente
Desejável,
Para o qual, às vezes, já quenquer
Preparado está sem o saber.
Perder a vida a cuidar no perigo,
Na provável mazela,
Problemas banais tornando pascigo
De obscura querela,
O pequeno aborrecimento
Tornando catastrófico tormento,
- É um olhar negativo
Onde morre o carinho
Por quanto é vivo:
- Afasta-me do caminho.