SÉTIMO TROVÁRIO
REGRAS A DEFINIR
Escolha ao acaso um número entre 763 e 909, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
763 - Regras a definir
Regras a definir
O poema irregular rimando vai
No caminho do porvir,
Os passos vida além a dirigir
Pois sem norma tudo em fumo se esvai.
São roteiros do caminho,
Mapa de estradas
Enrugado dos fios de linho
Com que tropeço nas jornadas.
As normas vão modelando
As pegadas hesitantes
Que no escuro se aventuram nefando.
E assim me garantem constantes
O apresto dos instantes.
764 - Justiça
Do Homem a capacidade
Para a justiça obvia
A Democracia.
Do Homem a inclinação
Para a injustiça atrabiliária
Há-de
Então
Tornar a Democracia necessária.
765 - Odeio
Odeio a ordem em que alguém
É arvorado em superior:
Não há raça nem povo nem ninguém
Da superioridade com a cor
Nem o teor.
Creio na diferença
E no potencial dela
Para rasgar novas regueiras de mantença
Para todos, em cada gabela.
E jamais como arma de arremesso
Contra a inferioridade mentida
De quenquer com que tropeço
Na vida.
766 - Mente
Deveria a mente apenas servir
Para analisar e viabilizar
O que todo o mundo sentir
E não para aniquilar,
Como actualmente,
O que mais fundo sentimos,
Através do que a razão argumente
Mais dos medos que aduzimos.
Assim dele próprio e dos mais,
Radicalmente,
Acaba cada qual por demais
Hoje em dia ausente.
É um desvio
Que dentro em nós represa o rio:
Já não atingem as levadas
As campinas desertificadas.
767 - Escolhes
Escolhes primeiro quem gostarias de ser,
Depois procuras o que fazer
Para reflectir tal personalidade,
A qual, de tanto a querer,
Julgas a teus pés,
Que é tua vera identidade.
Então, em vez
Dum trabalho que reflicta quem no fundo és,
Irás ter
Um trabalho para poder ser outro qualquer.
Daqui brota a perca:
Vai desgastar tua energia,
A partir de tudo o que te cerca,
O mal-estar deste trabalho dia a dia.
O desemprego
Então de alerta é o susto contra o apego:
Se o ouvires, de ti na esmagada parte,
Poderás vir a encontrar-te.
768 - Cais
Qualquer vida tem destino,
Tem um cais onde aportar.
Para onde é que me inclino
Dedos de alma o hão-de apontar.
O livre arbítrio, porém,
É sempre meu, sempre teu.
Podes escolher ir por além
Ou não,
Conforme o prato da balança pendeu:
O eu superior
Conhece bem a missão,
O inferior
Pode escolher cumpri-la ou não.
Do mapa cada um deles tem a metade:
O tesoiro só o iremos encontrar
Quando, em verdade,
O mapa se completar.
769 - Reino
Para ficares seguro
Em teu reino da matéria,
Do trabalho todo o apuro,
Da carreira toda a féria
Decides que é de raiz
O que te fará feliz.
Se para teu consciente
Encarrilas tal focagem,
Só te sentes bem presente
Do trabalho na voragem,
Só te sentirás completo
A laborar em concreto.
Trocas ser pelo fazer,
Só fazendo logras ser,
Teu emprego é a segurança
Que te alcança.
Espiritualmente, de vez,
Nada disto, porém, funciona em quenquer:
Deverás fazer porque és,
Não para ser.
Primeiro, és quem fores, no fundo de ti.
Depois de te descobrires ali,
Irás então acolher
O que fazer,
De modo que reflicta a tua escolha:
Quem tu és deveras, em toda a malha de recolha.
770 - Perda
Descobrir que a perda tem um motivo,
Que há um motivo na doença,
Que o despedimento que vivo,
Que a falência, a morte que nos vença,
Na perspectiva do céu,
Têm um motivo, debaixo do véu
Que de além os encobre,
Mesmo que eu mais nada aprenda,
É já um avanço em que me desdobre
E a que me renda.
Cuidar que a perda não é por acaso
É parar de culpar os mais
De a tal conjuntura darem azo
E parar, infecundo,
De me vitimizar perante o mundo.
É urgente aprender os sinais,
Mudar é desejável e fatal:
A muda limpa as almas triviais,
Limpa a vida real.
Ao mudar,
Ouvindo a voz interior
E acolhendo o que ela vier propor
(Embora apenas ainda um mero sentimento),
Ao mudar hei-de logo evitar
A perda, no próprio momento.
À muda quanto menos alguém resistir
Menos se irá deparar
Com o bloqueio do caminho do porvir
De quem recusa andar.
E sempre deverá ser feita a muda
Antes que a ventania a torne aguda.
771 - Comunica
Contigo comunica tu imo sublime,
Mesmo quando o não vês:
Qualquer alma exprime
Ao coração o que és,
Nunca à cabeça
Que nele apenas sempre tropeça.
Quão mais alto trepas
Mais teu imo comunica
Com teu coração,
Maior a emoção
Te eriça as repas
No chão que te fica.
A meio de teu peito
Reciclas as emoções.
Se as controlas a teu jeito,
Se choras pouco, as pulsões
Goradas
Encontram-se bloqueadas.
Quando te elevas,
A pressão para desbloquear
É tão grande contra as trevas
Que vai doer, se calhar.
Após o desbloqueio, todavia, passa
E tudo é graça.
772 - Conexão
Ganhas autonomia
Com tua conexão ao imo supremo:
Que nunca mais ninguém em nenhum dia,
Actue porque outrem disse, alguém mandou,
Nem por temer a esteira do remo
Que a vida lhe ordenou.
Os outros não sabem dar conselhos,
Não te desvelam a vida em pormenor,
Ignoram teus quelhos,
Teu crepúsculo e alvor
E jamais, aqui ou ali,
Podem escolher por ti.
Teu imo pode ajudar
Por conhecer o passado inteiro,
O porvir que te apelar,
Mais a missão que pontua
Tua vida no compasso mais certeiro.
A escolha final, porém, é sempre tua.
773 - Importa
Que é que importa a autonomia?
É que a verdade não é igual para todos:
O que um dia
É bom para um, tem mil engodos,
É mau para outro e depois
Chega a mudar de sentido para os dois.
Que ninguém a dogmas fique amarrado,
A encaixotadas verdades
Em que afinal não crê, em nenhum traslado,
Nem entende, por mais que tenha capacidades.
Conectado a teu imo superior
Ficas autónomo, de ti senhor.
774 - Dúvida
Nunca mais precisas de aceitar
Que algo é bom para ti sem o sentir.
Na dúvida, é só ir
A teu imo, à pedra angular,
E ela responde
Se algo é bom ou mau para ti
Agora, neste tempo que te esconde,
Na conjuntura que vives aqui,
E se te vai ajudar
À missão que juntos andam a planear.
Apenas ele dispõe de tais respostas
Para bem poderes utilizar
Teu livre arbítrio em todas as apostas.
775 - Muda
A vida consiste, em grande parte,
Em nada querer ficar onde se encontra.
Venha, pois, a muda que isto acarte
Com o desassossego que terá contra
Toda a gente,
A lamentar-se mutuamente.
Todos teremos de acatar
A condenação do fatal resguardo
De connosco próprios carregar
Como se fora um fardo.
776 - Demolidor
A mulher consternada
Pelo demolidor poder
Que sobre outrem tiver
Deverá ser lembrada
De que pode despir a couraça:
Que os outros deixe de julgar,
De validar ou invalidar
(Feita autoridade que os enlaça
Ou deslaça)
Os modos de sentir, pensar ou viver
De todos e de quenquer.
Quando se aperceber
De que tem algo a partilhar
E a aprender
Com quem na vida se cruzar,
E que, portanto, a todos é igual,
Liberta-se, finalmente,
Do peitoral
De serpente
E do maléfico efeito
A que ele anda sempre atreito.
777 - Íntimo
No íntimo a focagem,
O ponto fixo, é que dá significado
Ao agir de quantos agem.
O ponto de mergulho interno
É que é o adequado
A firmar os pés na terra
No meio do caos externo,
Da desordem, da guerra
Ou da azáfama vulgar
E quotidiana do lugar.
Ali ancorado,
Cada qual descobre, em seguida,
Ao tomar rumo,
Que a vida
Tem sumo
E adquire mesmo significado.
778 - Reflectir
Devemos reflectir primeiro
E agir depois,
Examinar racionalmente cada sendeiro
Mas, a seguir, buscar onde piscam arrebóis.
Basear a decisão
Nesta estrela:
A possibilidade de nosso coração
Estar ou não com ela.
Mais ninguém nos pode dizer
Se o nosso coração está envolvido
E a lógica é incapaz de fornecer
Uma resposta com sentido.
779 - Profundos
Dos mais profundos buracos
Poderemos sair
Se nos não dermos por vencidos,
Por mais que no poço da vida em cacos
Se cair.
É de usarmos, destemidos,
A terra que nos atiram para cima
Para trepar pelos torrões, sempre em frente,
Cada passo mais acima,
A borda até saltar contra a corrente.
780 - Monstros
Em monstros transmuda o medo
Os vultos indistintos da profundeza
Da psique humana colectiva.
Trazê-los à flor de água é o sossego
Do que é visto, tocado e que se preza,
Em onda transformado viva.
Todos pressentimos a presença,
No mais secreto de nosso imo,
Daquelas forças indistintas,
Primitivas e sem detença,
De tremendo poder, a que me arrimo.
Delas tememos jogos e fintas
Até que um deus poeta,
Escritor, compositor, bailarino,
Psicólogo, artista plástico arquitecta
Um modo clandestino
De à superfície as trazer
Da criação pelo fogo a arder.
Tal génio
Cavalga a natureza instintual,
À vontade no elemento emocional,
E, sem requerer qualquer convénio,
Troca os medos entorpecentes
Em qualidades humanas conscientes.
E assim nos liberta
Deixando em nós, finalmente, a porta aberta.
781 - Vertente
Quando a vida
Parece confinada
E de sentido desprovida,
Ou com uma vertente gravemente errada
Em nosso modo de a viver,
Ou no que andamos a empreender,
Não podemos deixar
De nos aperceber da discrepância
Entre os arquétipos no imo a pressionar
E os papéis visíveis, deles à distância.
Somos muitas vezes apanhados
Entre os arquétipos do mundo interior
E os estereótipos estandardizados
Do mundo em redor.
São os arquétipos predisposições
Poderosas,
Capazes de explosões
Letais ou vitais tenebrosas.
Na forma de imagens e mitos
Todos contemos pulsões,
Característicos fitos,
Emoções
Que nos arroteiam como grade
A personalidade.
Geramos energia
Quando agimos em conformidade,
Através da profundidade
E do significado que afia
O gume deste papel em nós.
Se, ao invés, formos connosco desconformes,
Dos tapetes do imo desatamos os nós
E os buracos serão cá dentro enormes.
782 - Sacrificando
Quem tente conformar-se
Com o que esperam dele,
Sacrificando a ligação,
Com tal disfarce,
Ao mais autêntico da natureza
Vivida por dentro da própria pele,
Pode a glória que preza
Atingir no mundo,
Mas vai sentir destituído
De pessoal sentido
Este êxito infecundo,
Ou falhar também em tal identidade,
Depois de fiel não ter podido
Manter-se à própria autenticidade.
Em contrapartida,
Se for aceite pelo que é
E, nesta medida,
Compreender
De boa fé
Quanto importa desenvolver
Vertentes sociais e competitivas,
A adaptação atingida
Não vai sê-lo à custa
De autenticidade nem auto-estima:
Ao invés ajuda-o, de seguida,
A aperfeiçoar-se, justa,
E a saltar o obstáculo por cima.
783 - Autêntico
Sentir-se autêntico alguém
É ser livre de desenvolver
Vertentes e potenciais que detém
Como predisposições inatas para ser.
Quando és aceite
E te permitem ser genuíno,
Deténs ao mesmo tempo de auto-estima o enfeite
E de autenticidade o hino.
É o que acontece
Quando, em vez de desencorajados,
Somos incentivados
Por quem nos aparece
Como significativo para nós,
Quando somos espontâneos e verdadeiros
Ou quando ficamos absorvidos, tão a sós
E inteiros,
No que nos causa alegria
Que vivemos magia.
Desde a infância,
Primeiro a família,
Depois a cultura,
São os espelhos, ora com, ora sem ânsia,
Em que nos vemos reflectidos, em vigília
Que nos apura,
Ora como aceitáveis
Ora como inaceitáveis.
Quando precisamos de nos conformar
Para sermos aceites,
Podemos acabar por usar
Um rosto falso de falsos deleites
Ou por desempenhar um papel vazio
Impregnado de inconfesso fastio,
Se uma grande distância existir
Entre o que por dentro de nós opera
E se faz sentir
E o que de nós se espera.
É uma bênção quando
Os dois campos se acabam conciliando.
784 - Perto
Quem viver perto do mar agitado
Ou da sísmica região,
Deve ter a meteorologia ao lado,
O relatório sismológico à mão.
Deve compreender o que o espera
E aprender a construir a barreira
Que a uma vaga sobrevivera,
Que um terramoto aniquilador aligeira.
Quem corre o risco de ser dominado
Pela emotividade
Deve atender a tal vulnerabilidade,
Aprender o desafio de tal estado
E usar os sinais de alarme
Para que jamais o desarme.
Maneiras deverá desenvolver
De com tal vertente poderosa
Que se lhe entrosa
Conviver.
E o afectado
Por tal poder destruidor
Noutrem incarnado
Deve aprender a detectar
Os fumos de alerta que ele enviar.
Pode-se então afastar, diligente,
Ou acaso por um desvio
Se esgueirar,
Para escapar do terramoto eminente
Ou à inundação do rio.
Por dentro de nós como por fora
Igual prudência nos escora.
785 - Porta
Construir a harmonia
É porta de felicidade.
Caminhar na correcta via,
Formar com ela uma unidade,
Um labor efectuar absorvente,
Consonante com nossos valores
E para o qual temos dons permanentemente.
Harmonia é ter amores,
Ter companheiros ou viver a sós
Ou com animais ou a natureza,
Numa urbe, país ou lugar, e após
Viver a surpresa
Duma autêntica pertença.
Harmonia é sentir mágoa profunda
Por uma perda que nos vença,
Maremoto que nos inunda.
É espontaneidade desinibida,
Sem constrangimentos,
Riso imediato, lágrima sentida
A jorrar pelo rosto dos tormentos.
Acontece harmonia
Quando acto e convicção se fundem,
Quando a íntima energia
E a vida exterior se confundem,
Uma da outra expressões,
E fiéis nisto andamos a ser
À nossa identidade, a nossos corações.
Só cada qual, só eu poderei reconhecer
Que aqui me sinto em casa,
Que em meu labor me absorvo inteiro,
Colho alegria que me abrasa,
Que amo e da felicidade me abeiro.
786 - Despenderá
No trabalho, na guerra e no amor
Despenderá demasiada energia,
Esforço maior,
Se se limitar
Ao que de si alguém esperaria
E nenhum arquétipo, íntimo vulcão,
O inspirar.
Pode o esforço ganhar-lhe um quinhão
De consideração,
Não será, porém,
Para o coração gratificante.
Operar pela vida além,
Em contrapartida,
Aquilo de que gostar, fará que se agigante,
Promove a afirmação íntima vivida,
É prazer e alegria:
É o acordo com aquilo que é,
Não com qualquer fantasia.
Se depois for recompensado
E reconhecido, de boa-fé,
Pelas almas do mundo exterior,
Brilhará então com o esplendor
De homem deveras afortunado.
787 - Macacos
Primeiro,
Os macacos viviam em ilhas afastadas,
Umas das outras isoladas,
E jogavam-lhes batatas doces como se fora dinheiro.
Para as apanharem,
Os macacos das árvores saltavam
Enquanto os cientistas, a observarem,
Investigavam.
Eis senão quando, a jovem macaca Imo
Desce para o mar,
Vinda, com uma batata, lá do cimo,
E trata de a lavar.
Gostou,
Mostrou-o aos companheiros e à mãe,
Cada qual por si o comprovou
E a novos parceiros o mostrou mais além.
No princípio são adultos a copiar as crias
Mas logo outros mais os vão imitar
Nas inovadoras vias
De batatas doces ir lavar.
Até que a certo momento,
A um qualquer centésimo macaco,
Generaliza-se instantâneo tal comportamento
A tudo e todos, taco a taco.
Mas o mais extraordinário
É que tal se generaliza
A todas as ilhas, pelo mar vário,
Quando entre elas nenhum contacto se divisa.
A anónima centésima gota
Faz transbordar a taça
Que, virada, desemboca
Na realização instantânea da visada graça.
É o peso do esforço individual
Para salvar o planeta, o clima, a ecologia,
Ou qualquer outro ideal:
Amadurece até que há um salto de magia.
Alguém tem de ser o primeiro,
O vigésimo e assim por diante,
Até que o centésimo parceiro
A inesperada vitória geral instantâneo nos garante.
788 - Adulta
A idade adulta é um glaciar
Silente
Pela nossa juventude a avançar.
Quando chega, indolente,
A marca da infância congela
Instantaneamente,
O nosso último acto na tela
Registando definitivamente,
Na pose em que nos apanhou o gelo da idade.
E é o acto que acate
A íntima individual verdade
Em seu embate.
Sempre que deveras ser quisermos,
Não há como aqui volvermos.
789 - Riqueza
Se alguns prosperam,
A comunidade fica a ganhar
E, nesta medida, aqueles operam
Para nós, a par.
Em vez de ficar irritado,
Devo compreender
Que deles a riqueza tem beneficiado
Também a todos e quenquer.
Partindo daqui, qualquer justo acerto
Fica então mais perto.
790 - Úteis
Úteis a nós
Nunca o poderemos ser
Sem aos outros atender.
Queiramo-lo ou não,
Atam-nos nós,
Vivemos interligados
Mão a mão,
Torrão a torrão,
Daqui aos poentes mais afastados.
É inviável o fanal
Duma felicidade
Meramente individual:
Quem só de si quer saber,
Acaba na orfandade
A sofrer.
Quem, ao invés, se preocupar
Com os outros apenas
Bem de si acaba por cuidar,
Sem pensar em tal
Nem aguentar cenas.
Mesmo quando a vontade principal
For egoísta,
Reparemos
Se vamos na mais inteligente pista:
- Os outros ajudemos!
791 - Construir
Quanto mais se preocupar
Doutrem com a felicidade
Mais vai construir, a par,
A sua em profundidade.
Não pense nisto, porém,
Enquanto estiver a dar,
Não fique à espera de nada.
Tenha em vista apenas o bem
Dos que encontrar pela estrada.
792 - Guarda-costas
Quanto mais guarda-costas houver
De nós em volta,
Mais urge de guarda permanecer
A nosso espírito à solta.
Quantas vezes tropeço,
O corpo ao salvar,
No preço
De o espírito matar!
793 - Pejado
O mundo pode aparecer
Como amigo ou inimigo,
Dos defeitos pejado que eu quiser
Ou de qualidades como abrigo,
Conforme, ao calhar,
Meu modo de pensar.
De vantagens ou de inconvenientes
Não há nada apenas feito,
Quer no que temos a jeito
- Comida, roupa, detergentes… - ,
Quer naqueles com quem vivemos
- Família, amigos, mestres supremos… - ,
Pois todos somam, nos trejeitos,
Virtudes e defeitos.
Para julgar correctamente
O real
Temos de reconhecer cada ente
Como ele for, afinal,
Preto, branco, de todos os tons
Dos lados dele maus e bons.
E aprender a acolher o todo
É da plenitude a via e o modo.
794 - Aspiram
Todos os entes,
Mesmo para nós os mais hostis,
Da dor e sofrimento são tementes
E aspiram da alegria aos frenesis.
Como nós,
Todos têm o direito a ser felizes,
A não sofrer nem dor leve nem atroz,
Sejam quais forem deles os matizes.
Deixemos de olhar nossos umbigos,
Preocupemo-nos com os mais sinceramente,
Quer amigos, quer inimigos:
A compaixão o amor vai tornar presente.
795 - Favorecem
Pensamentos e actos de amor
Favorecem claramente
A saúde física e mental
De quem a tal
Propor
Se tente.
São conformes, com certeza,
A nossa verdadeira natureza.
Actos violentos, tenebrosos, cruéis,
Surpreendem-nos, ao invés.
Portanto,
Precisamos de falar deles
Muito mais
E o destaque é tanto,
Do maior ao mais reles
Dos jornais.
O problema é que, pouco a pouco,
Insidiosamente,
Acabamos a pensar que o homem é louco
Ou de má mente.
Algum dia cuidaremos, sem tardança,
Que para o homem não há esperança:
Tal pendor, pior que arbitrário,
É suicidário.
796 - Progresso
Económico e tecnológico,
O progresso é desejável
E é um vector antropológico
Fatal, irremediável.
Seria ingénuo pensar
Que, se o interrompêramos,
Se evolariam no ar
Os problemas que tivéramos.
O progresso deveria,
Todavia, acompanhar-se
Do desenvolvimento na via
De valores que não esgarce.
Ambas as tarefas em conjunto
Deveríamos realizar,
Desbravando o assunto
A par.
É a chave do futuro:
Se o desenvolvimento material e espiritual
Coexistindo inauguro,
Devir feliz devém real.
Não o atinjo com templos e mosteiros,
Nem sequer com escolas.
As famílias são os esteios primeiros
Das ferramentas que amolas.
Se em família reina a paz
E, além do saber de base,
Valores morais satisfaz,
Se, por trás de sua gaze
Aprendemos a viver
De modo justo e altruísta,
Podemos então erguer,
Da sólida pista,
A comunidade inteira
Como montanha altaneira.
797 - Grupo
Em todo o grupo há-de haver contradição.
É uma vantagem,
Não um senão:
Quanto maior a gama de triagem
Entre a diferente opinião,
Maior
A ocasião
De compreender melhor
O outro e a respectiva corrente
E de melhorar indefinidamente.
Se entrar em conflito
Com quem pensa diferente,
A pedra que brito
Brita meus pés somente.
Não devo ficar fechado
Em minha ideia singular,
Antes, aberto a todo o lado,
Dialogar.
Então comparo
Opiniões divergentes
E eis como me deparo
Com pontos de vista antes em mim inexistentes.
Daqui, então, inauguro,
O futuro.
798 - Tendemos
Tendemos a pensar
Que não estar de acordo
Automaticamente há-de ser entrar
Em conflito,
Onde mordo,
Com atrito
Vário,
Um irredutível adversário.
E há-de sempre terminar,
Como um fado,
Com um vencedor e um vencido
A par,
Com um triunfo destemido
E um orgulho humilhado.
Ao invés, a todo o momento,
Deveríamos antes procurar
Um terreno de entendimento.
De partida o fundamento
É cada qual se interessar,
Desde logo,
Por quem pisa um outro chão
Com as pegadas de neve ou de fogo
Que tecem doutrem a opinião.
Seguramente,
Quenquer,
Tendo-o em mente,
Será capaz de o bem fazer.
E as sínteses irão brotar
Deste caminho inteligente
De ir a par.
799 - Rico
De ser rico a maior vantagem
É de outrem poder ajudar mais,
O resto é uma paisagem
De egoísmos venais.
Desempenhando um papel mais importante,
É mais influente,
Pode germinar o Bem pelo mundo adiante,
Se agir correctamente.
Se, porém, for mal intencionado
Muito mal pode fazer o emproado.
Depende, no final,
Da escolha
De cada qual
O bem e o mal
Que o mundo dali recolha.
800 - Distingue
Embora ricos, tomem consciência
De ser humanos.
Nenhuma evidência,
Apenas enganos,
Vos distingue dos pobres.
Por mais que os ganhos dobres
Que o mundo inteiro preza,
Em comum só partilhamos todos a necessidade
Daquela riqueza
Que é a felicidade
Interior.
Ora, a esta,
Por maior
Que seja o custo,
Ninguém a compra em nenhuma festa,
Não há para ela um preço justo.
801 - Ganhar
Nada têm a ganhar os ricos
Em deixar a conjuntura mundial
Degradar-se continuamente.
Atingi-los-ão cada vez mais salpicos
Do ressentimento dos pobres e cada qual
Mais medo sente.
Onde os ricos são ricos demais
E os pobres por demais pobres,
Os dobres
A finados
São os sinais
Da violência, do crime, da guerra civil
Por todos os lados.
O mais vil
Dos celerados
Facilmente subleva os mais desfavorecidos,
Ao crerem que por ele são protegidos.
Se o rico ajudar o pobre em redor,
Se mudar a economia
Deste em favor,
Se mais equitativa cada dia
For a distribuição
De rendimentos e bens,
Se em tal rumo mudar cada instituição,
Mais saúde e desenvolvimento
Obténs
Do pobre em aumento
E o pobre desata a gostar
Do rico então que o ajudar.
Pobre e rico acabam amigos,
Os pobres ficam contentes,
Os ricos livram-se de abrigos
Frágeis, trementes
E ficam contentes também.
Na desgraça
Todos se compadecerão.
Se, porém,
De egoísmo for antes toda a traça,
Da desgraça do rico os pobres se alegrarão.
Como entes comunitários,
Quando amigável é nosso ambiente
Sentimo-nos solidários,
Mais felizes, hilariantes,
Automaticamente
Confiantes.
Não há dúvida quanto à alternativa
Que cada hora torna mais viva.
802 - Erro
Quem tiver boa atitude
Pode ser feliz na pior condição.
Quem se ilude,
Não.
Quem interiormente não viver em paz,
Por muito que o erro lhe agrade,
Não é o conforto, não é a riqueza que lhe traz
A felicidade.
803 - Remédio
Se há remédio, não é de inquietar,
Aplica-o já!
Se a remédio não houver lugar,
Remediado está!
A inquietude não tem valor:
Apenas serve para agravar a dor.
804 - Escapamos
Não é perdendo a coragem
Que escapamos à miséria.
Falhados do sonho, não desencoragem,
Qualquer que seja da vida a vossa féria!
Quem diz: "hei-de conseguir!"
Atinge o fim, a seguir.
Quem pensar que é inexequível,
Que não tem as faculdades,
Há-de falhar, sofrível,
Em todas as idades.
É pela postura que quenquer herda
O rumo da vitória ou o da perda.
805 - Malfeitores
Malfeitores potenciais somo-lo todos
E os que mandamos para a prisão
Não são piores, ante os engodos,
No fundo do coração,
Do que qualquer um de nós,
Na hora aziaga de ser feroz.
Tombaram à ignorância, à cólera, ao desejo,
Doenças que nos afectam igualmente
Ao menor ensejo,
Apenas a um nível diferente.
Nosso dever é o de ajudar
Qualquer doente a se curar.
E a prisão também devia
Operar como terapia.
806 - Delinquente
Para o delinquente detido
Questão é nunca desencorajar,
Não perder a esperança e o sentido
De que pode revolver a vida e melhorar.
É subir patamar a patamar:
"Vou-me emendar,
Agir bem, doravante que recomeço,
Irei ser útil aos mais
Como o não fui jamais."
Todos somos capazes de mudar.
Apenas o ignorante afiança,
Em lugar,
Que para ele já não há esperança.
807 - Educandos
Ensinem os educandos a dialogar,
A resolver os conflitos por via não violenta,
A se importar,
Mal um desacordo se apresenta,
Em postura franca e tensa,
Pelo modo como o outro pensa.
Ensinem-nos a não olhar
Com vistas curtas,
A não cuidar
Que as naus ficaram de vez surtas
Na baía deles,
Deles no país, na comunidade,
No pigmento das peles,
Numa faixa de idade…
Levem-nos a tomar consciência
De que todos têm os mesmos direitos,
Igual carência,
Fundo, nos peitos.
Abram-lhes a janela
Para a responsabilidade universal,
Mostrem-lhes que nada do que fazemos, no fundo,
É indiferente à mais longínqua estrela,
Perdida do Cosmos no imenso estendal,
Que tudo influi no resto do mundo.
O sorriso que hoje deste
A teu vizinho no patamar
Pode gerar, de leste a oeste,
A paz por que o mundo anda a ansiar.
808 - Impedir-lhe
Há quem apenas cause problemas
E urge ter os meios eficazes
De impedir-lhe os esquemas
Maldosos e capazes.
Quando os demais meios se esgotam,
Teremos de recorrer à força.
Quando a individual e a policial se embotam,
É o exército que a tal orça.
Nunca a força armada deveria
Servir para propagar uma doutrina,
Impor a ideologia,
Invadir um país, ditar-lhe a sina.
É meramente para pôr fim,
Em caso de urgência-limite,
Aos actos que semeiam o caos ao redor e sobre mim
E destroem a humanidade que eu habite.
Duma guerra objectivo tolerável
É a felicidade de todos,
Não intuitos particulares, regionais… Aceitável
É que ela, quaisquer que sejam os engodos,
Qualquer que seja de análise o vector,
Poderá ser apenas e sempre um mal menor.
809 - Sofreram
Os que sofreram muita provação
Não se queixam, habitualmente,
Ao mais pequeno tropeço no chão
Inclemente.
As dificuldades
Forjaram-lhes o temperamento,
Deram-lhes uma visão de vastas imensidades,
Um espírito estável, isento,
Inclinado a ver
Como é todo e cada ser.
Quem nunca teve de enfrentar problemas,
Viveu a vida num casulo,
Da realidade perdeu os esquemas
E os temas,
Acaba nulo.
À mais pequena pedra,
Todo o peito é um lamento que medra.
Como em todo o escorço
De atleta,
O músculo requer esforço
Para poder visar a meta.
810 - Vítimas
Se as vítimas tiverem abertura
Para poder perdoar,
Se os que as violaram,
Usaram a tortura,
Mataram,
Se derem conta da enormidade singular
Do que praticaram
E se pretenderem emendar,
Um encontro entre ambas as partes,
Benéfico, é a maior das artes.
O carrasco pode os crimes reconhecer
Com arrependimento sincero,
A vítima pode-se libertar, ao menos sequer,
Do ressentimento mais austero.
Se entre eles houver um terreno de reconciliação,
Arroteá-lo não é a melhor função?
811 - Caridade
Caridade é não exigir
Que nem angélico nem santo seja
Quem o não poderia devir
Senão por tal virtude que até faria inveja.
É sofrer
Silente e sem revolta
O imo que eterno se quer
Ligado a um corpo que o não é,
Pois a morte desenvolta
O guarda ao pé.
A interioridade, senhora e dona,
Não tem o direito de humilhar
A desdita
De corpo que habita,
Servo que pouco abona,
Nem de lhe censurar,
Altaneira, etérea,
A miséria.
Caridade é o eterno
A respeitar,
Terno,
O efémero deste lugar.
812 - Artista
Ao artista, nem um conselho pioneiro,
Apenas lhe repetir, de si para si:
- Trabalha, trabalha tal se foras o primeiro,
Ninguém criou antes de ti.
E tal se foras o derradeiro:
Deixa testemunho aqui!
Então, de tua obra em pleno gozo,
De ti me sentirei mesmo orgulhoso.
813 - Esperança
A paz na terra,
A esperança de paz,
Vem da possibilidade a que se aferra
Cada um e que no imo dele traz
De por dentro dele alcançá-la
Pelos próprios meios:
Não à bala
Ou com tormentos,
Antes por infatigáveis tenteios
Com os próprios precários instrumentos.
814 - Fracasso
Nada fracassa mais
Do que o êxito, hoje em dia.
Os dinossauros actuais
São
As estruturas económicas e institucionais,
Incapazes, em maioria,
De se adaptar às mudanças ambientais.
Portanto, acabarão
Condenadas à extinção.
Quem não muda
Em sintonia
Não se iluda:
Finda morto à revelia.
815 - Desenvolvimento
Comummente se acredita
Que todo o desenvolvimento é bom.
Ninguém reconhece que, numa Terra finita,
O melhor dom
É o do equilíbrio dinâmico que existir
Entre declínio e crescimento:
Se algo crescer, algo tem de diminuir,
Para que dele o constituinte elemento
Venha a ser liberado
E reciclado.
Doutro modo
Como acrescentar
O todo
Da fronteira no limiar?
816 - Remédios
Remédios à doença ministrar
Quando se já desenvolveu
É um poço ir cavar
Quando a sede já venceu,
É fundir armas já depois de adentrado
Na batalha do dia…
- Não é tudo ter providenciado
Em hora demasiado tardia?
817 - Húmus
Tal como a decomposição
Das folhas do ano transacto
Gera o húmus para a gestação
Da posterior Primavera em acto,
Toda e qualquer instituição
Deve declinar e desintegrar-se
Para que dela a composição
De capital, terra e talentos
Venha a usar-se
Para criar novos inventos.
A eternização
Institucional
É da civilização
O mal
De confundir dela a precariedade
Com a eternidade.
Mudar deverá ser a norma
Por todo o lado,
Do que o mais profano informa
Ao mais sagrado.
Apenas por aqui a vida, a Vida,
Algum dia poderá ser atingida.
818 - Crise
Nossa crise de ideias é de a maioria
Dos académicos
Intelectuais
Subscreverem percepções do real à fatia,
Inadequadas para enfrentar os globais
Problemas actuais.
Hoje ao desafios são sistémicos,
Todos interligados,
Todos interdependentes:
Entendimentos anémicos
De caminhos fragmentados
Deixam-nos doentes,
Canto a canto encurralados.
Os escolares,
Os organismos governamentais
São doravante lares
Em derrocadas finais,
Enquanto a apreensão global de totais
Não for o pano de fundo dos olhares.
819 - Organismo
A terra como organismo vivo,
Mãe nutriente,
É a restrição cultural que activo,
Limitando os danos
Da atitude inconsciente,
Irreverente,
Dos humanos.
Ninguém mata facilmente
A mãe
Perfurando-lhe em busca de oiro
As entranhas ventre além,
O corpo lhe mutilando
Demandando
Algum tesoiro.
Enquanto a terra for tida por viva e sensível
É violação de ética humana
Levar a efeito, inamovível,
Toda a mundial procela
Em curso, donde emana
A actividade destrutiva contra ela.
Findou o travão cultural
Com a mecanização da ciência:
O modelo mecânico do Universo
Forneceu, afinal,
À consciência
O rumo inverso,
Com a científica autorização
Para explorar a natureza,
Para a manipulação
Ilimitada que hoje o mundo inteiro preza.
Com isto, o que estéril inauguro
É hipotecar o futuro:
- Órfão acabarei sem mãe
Num mundo pelém.
820 - Trabalho
Se produz quinquilharia
Ou armas de guerra,
O trabalho erra,
É uma esbanjadora mania.
Se apoia carências forjadas
Ou indesejáveis apetites,
O labor erra os palpites,
O mundo esbanja às fornadas.
Trabalho que engana ou manipula,
Que explora ou degrada,
Erra a jornada,
Esbanja de tanta gula.
Trabalho que fere o ambiente
E torna o mundo feio
Erra no próprio seio,
Esbanja mesmo o que sente.
Não há como o redimir
Enriquecendo, reestruturando,
Socializando, nacionalizando,
Pequeno o forçando a ir,
Ou a ser descentralizado,
Ou democratizado…
É mau enquanto tal:
Só pondo-lhe ponto final!
Hoje em dia
Vive com o trabalho insatisfeita
A maioria
E apenas ao lazer é atreita.
Então dá origem o lazer
A uma indústria gigantesca
Que a mais esbanjar induz quenquer…
- Do afundamento universal quem nos repesca?
821 - Despojado
Despojado de meus bens,
Gozo do espírito a liberdade
A que aquela violenta separação
Me persuade.
E, como libertos reféns,
Meus olhos repararão
Como haviam sido escravos
De irrelevantes riquezas.
Que travos
Beberão às mesas
Os deveras ricos,
A viverem atrás de muros tão altos,
Tão eriçados de picos
Que de toda a hipótese de fuga acabam faltos!
822 - Obra
O artista verdadeiro,
Quanto menos parece trabalhar
Mais trabalha, pioneiro.
Aí é que a obra se anda a gerar
Mentalmente,
Se conforma à ideia exacta.
Depois as mãos somente
Terão de reproduzir e executar
O que, conceptualmente acabado,
Liberto se desata.
Quantos, ao não verem reboliço e alvoroço
Chegam a cuidar
Que dali nada é nado!
Néscios, confundem com destroço
A quietude da semente
Que em breve há-de germinar
O rebento virente.
É viável não apor uma pincelada
A um quadro dias e dias
E andar trabalhando, madrugada a madrugada,
Nele intensamente as fantasias.
Em arte,
Primeiro é o conceito,
A criação aparte.
Depois é executar a preceito,
Efeito derradeiro
A que convida
O momento primeiro.
- Em arte, como na vida!
823 - Aplicável
Aplicável será tudo o que existe
À humanidade inteira,
O que aflora à janela
Tem algum despiste
Compreendido, de correcta maneira,
Por toda ela?
Os cegos não vêem: podem proclamar
Como verdade universal
A inexistência da cor,
Seu avatar
Fundamental
Fundador?
Se todos foram cegos
E apenas um vira as cores,
Não estaria mais certo em seus apegos
Que as legiões de cegos ditadores?
Quantas vezes tiveste de lutar, premente,
Contra a oposição,
Em prol do que é claro, evidente,
Mas que os antagonistas negarão,
Cegos, em despótico credo,
Pelo contra-senso e pelo medo!
824 - Empenho
Se no teu empenho perseveras
Por encontrar a resposta,
Ao teu encontro esta virá deveras,
Dum modo ou doutro: em tua aposta
Confia,
Que farás nascer o dia.
825 - Mesmo
Tudo é a mesma coisa
E o mesmo a si mesmo se compensa.
Onde há falta logo acode
O que doutro sobra na despensa.
Tudo tende ao que o repoisa
Na roda que o rode.
Nosso desejo
Mora em nossa mente
E, portanto, na Mente Universal,
É um ensejo
Radicalmente
Real:
Já que nela tudo está contido,
Nosso desejo também o está,
É mesmo acolá
Dele o radical lugar devido.
Se o desejo tiver força bastante,
O objectivo dele correrá todos os desfiladeiros
Até desembocar adiante
Nos sendeiros
Da mente individual
Que o desejar total.
Devém realidade
No mundo que ela grade.
826 - Autêntico
O autêntico ser, o verdadeiro,
É o que ninguém vê,
É o que se for criando a ele próprio, pioneiro,
Com pensamentos, desejos, actos e omissões,
Com a fé
Que semeia em todas as ocasiões.
No final da vida, por fim,
Somos o que fomos, transcorrendo
Assim,
E o modo como o viemos fazendo.
Somos a nossa própria obra,
E nada sobra.
As limitações que sofremos vida fora
São mera oportunidade
De desenvolver a interior liberdade:
A liberdade de escolher como somos cada hora.
827 - Escuta
Dos deuses escuta a voz,
Quem és tu para quebrares desígnios seus?
Se te enviaram após,
Em busca dum tesoiro dos céus,
Tens de ir, de procurar,
De com ele voltar.
Se os convocas, tê-los-ás
A teu lado,
A dar força, a dar paz,
A dar a coragem de que vens precisado,
Mas és tu quem ara a terra
E do lugar secreto
O desenterra,
Ao tesoiro que te desafia no teu gueto.
Não te deixes abater
Das dificuldades pela tropelia.
São degraus da tua escadaria,
Segue em frente sem olhar atrás sequer.
Tem em mira
Que, se ages ao invés, provocarás deles a ira.
E será o que ao fim te vitima
Em teu moral, tua auto-estima.
Se caminhas recto,
Mesmo preso ou morto tens em ti teu tecto.
828 - Trágico
Por que é que há-de ser preciso
Algo trágico e terrível,
Do inferno ter o aviso,
Do cadinho da dor irrecorrível?
Quando angústia houver sofrido
E tormento suficiente,
O homem será homem renascido,
Elegante e decente.
Ah! Quem de vez o erradicara
Da presente leva,
De porcos gordos esta vara
Na ceva!
829 - Horas
Em horas de tensão e ameaça,
De terror e de alarme,
De segurança escassa,
De silêncio e de ansiedade,
Pergunto-me de que energias arme
Minha inermidade.
Corremos a agarrar o passado,
Imitamo-lo em revivalismo,
Modas antigas têm novo reinado,
Velhas canções transpõem o abismo,
Recordamos ambientes históricos,
Revivemos guerras e pazes ancestrais,
Quantas vezes eufóricos
No meio dos pauis actuais,
Tudo para obliterar o presente desbotado
E um futuro
Que antevejo estranho, assustador e desolado,
Que auguro
Devastador e devastado.
O passado,
No marasmo ou na instabilidade
Do mar agitado,
Eis uma âncora no meio da tempestade,
Uma vela ao vento desatado.
830 - Escola
Muita escola de gestão
Há-de considerar
Uma complicação
Colocar o trabalhador da instituição
Em primeiro lugar,
Ao tê-lo em consideração.
Não é nunca, porém:
Quando o tratamos bem,
Ele trata bem os clientes,
Estes voltam a procurar
Nossos bens, serviços e patentes
E o derradeiro efeito
É o accionista satisfeito.
O melhor resultado
É de quem tiver respeito
Por este encadeado.
E é sempre um país pobre
O que nem isto descobre.
831 - Condição
Dum povo a condição nunca se altera
Se o povo não se alterar.
Muito bode expiatório prolifera,
Muito escape anda a pegada a falsear.
São horas de introduzir
De verdade
Uma nova era
De porvir:
A da responsabilidade.
832 - Come
Para colheres,
Semeia,
Colhe para comeres
E, quando a fome ameia,
Come para viveres.
833 - Vitória
Não há vitória na guerra,
O triunfo é dentro de nós,
Em aprender a calar a loucura que nos encerra
Na gaiola de cipós,
Assassina e desdenhosa,
Em dominar a opacidade
De nossa cumplicidade
Criminosa.
Não é nada comigo?
- Depois, na sequela,
A Humanidade acaba sem abrigo
E eu com ela!
834 - Paulada
A vida é assim: vamos vivendo
E, se nos dão uma paulada na cabeça,
O melhor é irmo-nos encolhendo
(E bem depressa)
Até a ferida sarar,
Depois levantarmo-nos tranquilamente
E continuar
O nosso caminho em frente.
Sem desviar,
Evidentemente.
835 - Afirmam
Afirmam que chega a altura
Em que a guerra é inevitável…
Ora, é-o tanto como a usura,
O roubo, a ingenuidade abusável,
A vaidade esvaziada,
- Mais nada!
É uma orgia monstruosa
Sem leviandade gozosa,
Sem alívio, redenção,
Sem culpa, só punição.
Onde fica a vitória?
No corpo esburacado,
Na mente trémula, enlouquecida,
Nos devaneios sem memória
Do alucinado,
Na vida esvaída?...
A vitória já nós a perdemos:
Por nossa violência
À violência empurrámos outros a recorrer,
Mas com extremos
De maior, de mais terrível ocorrência,
Como a cada caso convier.
Poderíamos estar perto dos anjos,
Ser meramente um pouco menos…
Renegámos, porém, cítaras e banjos,
E eis-nos aqui tão pequenos!
836 - Oposto
Ao lado oposto ir sem medo
E depois voltar
Com uma síntese brusca ou lerda,
- Eis o segredo
Para evitar
A perda.
837 - Trepando
Um itinerário espiritual
A sério trepando em frente
É por demais exigente
E quantas vezes fatal!
Ou os indivíduos entendem
Que é mesmo de obedecer
Ou ficam ao deus-dará,
Do ego a mando de que dependem,
Sob rumos materiais quaisquer
Onde Deus não está.
E assim, ganhando, perdem,
A miúdo,
Tudo o que herdem,
Tudo!
838 - Pronto
Sempre que te agarrares
Ao que houver fora de ti,
Sempre que deixares
Que outrem diga quem és
E o que na vida te sorri,
É o momento do revés:
- Estás pronto para perder.
Àquilo a que te agarras
Sempre quenquer
Pode desatar as amarras
Desde que seja
Fora de ti que o veja.
É que apenas por ti dentro
É que de fora jamais entro.
839 - Campos
Sempre que por ti próprio fores
O que quer que seja,
Pelo que intuis em teus campos interiores,
Por teu poder de captar o que teu imo almeja,
De sentir quem és e o que anseias,
- Sempre que fores capaz
De fazer isto ocorrer
Sem peias,
Nunca atrair irás
Uma perda qualquer.
A perda só acontece
Quando ser algo quiseres
A partir do que colheres
Fora de ti, em estranha messe.
Se partes apenas de teu imo,
Apenas irás rumar ao cimo.
840 - Desactualizado
O Cosmos não vai nunca parar
Na infinita Interioridade que o anima,
Pelo que o que hoje lês amanhã pode estar
Desactualizado, das vivências que houve em cima.
Aprende, aprende, porém,
Vai trilhando o teu itinerário.
Não tentes chegar a nenhum lado sem
O transcurso
Inseguro e vário
De teu próprio percurso.
841 - Aliada
A inteligência aliada ao coração
É a harmonia
Da maior oposição
Que a matéria enuncia.
Mente e afecto:
Aquela tem de entender
Que mora debaixo do mesmo tecto
Que este: terá de o acolher!
Toda a matéria é feita de opostos:
Bem e mal,
Grande e pequeno,
Alegrias e desgostos,
O diferente e o igual,
Das trevas e da luz o aceno,
Muito e pouco,
Sábio e louco…
Todos têm de ser harmonizados
Num equilíbrio de cuidados.
Experienciar a matéria
É a missão do ser humano,
Na fartura e na miséria,
Na franqueza e no engano.
Estejamos ou não a postos,
Trata-se sempre de harmonizar opostos.
842 - Vê
Vê o que fizeste e como,
Vê o que sentiste e como.
E, depois de quanto viste,
Vê o que fizeste com o que sentiste.
O que sentes apenas ficará resolvido
Um dia
Se discernires o que fazer com ele.
Deita-o cá para fora, comedido ou descomedido,
Até à última gota da almotolia:
- Sê o afecto fundo que te impele,
Sê magia!
843 - Lágrima
Nem tudo em que boles
É de boa mantença:
Cada lágrima que engoles
Transmuda-se em doença.
É mentira que pensar
Nas coisas tristes da vida
Há-de chamar
Energia negativa, de seguida.
Não pensar é que a chama,
Não fazer o luto das tristezas
E deixá-las, em negra trama,
No peito a doer presas.
Chora-as de vez e segue em frente:
O chão desata a mudar-se-te lentamente.
844 - Prática
Não racionalizemos a espiritualidade!
Prática e treino, prática e treino
É que contam de verdade.
Ir lá acima, ao Reino,
Meditar, meditar,
Anular meu ego a zero,
A fundura de meu íntimo mar
Sentir mais, pensar menos,
Livrar-me do que não quero,
Dos medos terrenos.
É dia de ser livre outra vez,
Desamarrar laços que me põem dependente,
Cortar as correntes dos pés
Que me apegam ao passado renitente.
Basta de medo,
Medo da morte,
Medo da vida,
De como sucedo,
Da sorte
Que me for concedida,
Medo dos outros e de mim,
Medo do escuro,
Do que houver além do confim,
Do que me espreita e aponta o dedo
Atrás do muro,
Medo do medo…
Chega! Chega!
É a hora da liberdade,
A hora da entrega
Radical e sem esquiva,
Da entrega de verdade,
Definitiva.
A espiritualidade
É a vida viva.
845 - Importância
A importância de escolheres por ti!
Se escolhes por ti, ficas preparado
Para os efeitos que vierem daí:
Cada problema que daí advier
Tem teu dedo marcado,
O teu tom, o teu perfil,
Contigo confere,
Não o confundes entre mil.
Resulta deste elo
Que podes resolvê-lo
E até cresces, acaso,
Com ele, a prazo.
Se a escolha é doutrem que ta impôs
Ou aconselhou,
Se ele, enfim, não tem teu jeito de ser a sós
Nem marca que de ti tomou,
Todos os efeitos que daí advêm
Te são estranhos,
Não conferem com as energias que te sustêm,
Só te farão mal, nunca auferes ganhos.
Tantos problemas que tantos
Não logram resolver!
E tudo das escolhas sob mantos
Que, não sendo as deles, nunca deveriam ser!
846 - Baixo
Quem vivencia
A dor e o sofrimento
Cá de baixo com a miopia,
Deles nunca logra o entendimento.
Nunca mais quererá voltar
A tal conjuntura
Para não sofrer em mais nenhum lugar
Nem em nenhuma altura.
E o evento que fora despoletado
Para o resolver na aceitação, entrega, e avançar
Fica para ali congelado,
Melhores dias a aguardar.
E o indivíduo vai atraindo
Mais a mais eventos semelhantes,
Cada vez mais fortes, violentos e gritantes,
Para ir indo
Até lá,
Ao lugar donde fugido haverá,
Para os descongelar,
Desbloquear,
Aceitar, ao Infinito entregar,
Chorar,
Fazer finalmente acerca
Deles o luto da perca.
De tanto mastigar tal dor,
A verdadeira paz
Interior
Emerge: a dor se desfaz!
Apenas então acontece
Que a cadeia da perda desaparece.
847 - Vens
Que é que vens fazer ao mundo?
Escolher se queres ou não ser.
Se escolhes ser, à interior alma dás espaço fecundo
Para se exprimir e acolher,
Para dizer o que a expande e a reprime,
O que a ajuda a ser quem é,
O que a faz anular-se, sem ter a que me arrime
E que a tenha de pé.
Se escolhes ser,
Deixas que a vida se apresente,
Todas as experiências, boas ou más, a te trazer,
O que te ajuda a ser mais ágil, perceptivo e coerente.
Trilhas a floresta da vida
Com intuição para o caminho
E a coragem devida
Para seguir em frente, adivinho.
No fim da vida irás
Olhar para trás,
Ver o longo caminho percorrido
E perceber que fez sentido,
Que a aposta serena
Valeu a pena.
Se escolhes não ser,
Activas o controle,
Começas a escolher
Pelo medo que em ti bole.
Medo de perder,
De não ser feliz,
De não ganhar para se fazer valer,
Medo de ter medo de raiz,
Medo de sofrer,
Medo de ficar,
Medo de morrer,
Medo de avançar…
- No fim
Não há para onde olhar
E tudo tem de voltar
Ao princípio, assim.
848 - Transmitir
Devo ensinar
A criança a pensar.
Não impor-lhe o que deve,
Estreita, pensar breve.
Não transmitir conhecimentos,
Mas sabedoria
Para que saiba escolher, em todos os momentos
O que mais conviria,
Para que aprenda a reflectir deveras,
A desenvolver a criatividade,
De modo a gerar novas eras
A partir das leiras desta idade.
849 - Sólida
Um homem verdadeiro
É de sangue quente e sólida ossatura.
Quando sofre, é de lágrimas um lameiro
Grandes e autênticas por toda a figura.
Quando é feliz,
Não dilui a alegria
Obrigando-a a dobrar a cerviz
Na peneira fina que tudo entibia,
Falaz,
Da metafísica atrás.
Ri, se for caso, às gargalhadas,
E abre à festa todas as estradas.
850 - Mentalidade
É urgente
A mentalidade que o sentido verdadeiro
Entenda do presente,
Que não se limite
A desejar, ligeiro,
Um mundo melhor,
Mas que acredite
Que melhor é viável fazê-lo e o venha impor.
Mentalidade que não dorme,
Que com o facto denegrido
Se não conforme
De o não haver conseguido.
Mentalidade que se não esconda
Num dos poucos bons lugares
Que do mundo restam na onda,
Mentalidade que salta os algares,
Resistente e tenaz,
Onde o mundo a sério se faz.
851 - Requeiro
Não requeiro mais, saboreio a vida:
Conceber, trabalhar,
Comer, beber, dormir,
Em ordem ter um lar,
Ouvir os mais bendizer uma lida,
Louvar
A desenvoltura com que me desimpedir,
Zangar-me de vez em quando,
O que dá mais gosto ao amor,
- Quanta alegria proliferando
E que sabor!
Por tudo isto cada manhã me levanto
Despertando o dia
Com esplêndida alegria:
A vida é um encanto!
852 - Remedeia
A caridadezinha da caridade,
Para homens como para animais,
É de tempo mera perca:
Só remedeia de verdade
Pequenos sofrimentos que arrebanhais,
Por aqui, por ali, sempre fora da cerca.
Se fora tão fácil o problema!
Se eu impedir alguém de bater no cão-homem agora,
Não o impedirei de repetir o esquema,
Sem demora,
Mal vire costas,
Da vida ao ter de apostar noutras apostas.
É mesmo preciso mudar tudo,
Ou então sou eu que a mim me iludo.
853 - Primitivo
Quão mais primitivo é um homem
Tanto maior ele se julga.
As convicções cegas que o tomem
Dão-lhe o ímpeto que o promulga
E não há malabaristas que domem
O parasitismo desta pulga.
A dúvida e a tolerância
São nossa cara civilizada.
Aqueles andam sempre, com ânsia,
A destruí-la de empreitada.
E é preciso trepar eternamente
Da civilização as encostas,
Olhando em frente,
Com aquela pedra às costas.
854 - Estátua
Impassibilidade
De estátua que nos degrade
Não é nosso ideal.
Fica triste à vontade,
Que depois, com tal,
Sentir-te-ás aliviado.
A tristeza, em nosso fado,
É, muitas vezes, a alegria final.
855 - Plácida
Filha da tolerância,
A plácida serenidade
Com que intolerável ânsia
Nos invade!
Dela à existência
Precária
Quanta coisa é necessária!
Sabedoria, superioridade
Ante qualquer circunstância,
Paciência
E resignação ante o inevitável…
- Tudo o que do totalitarismo a arrogância
Nos torna inviável.
856 - Perder
Facilmente perdemos
O que nos braços prendemos,
Nunca, porém, o que largamos:
Como perder o que já abandonámos?
Não te prendas a nada, não te prendas,
Que assim consegues que a nada te rendas.
857 - Transformar-se
A Lua relata
Que tudo, na primeira ocasião,
Pode transformar-se de lixeira em prata
Com um pouco de imaginação.
Na paisagem haurida
Como em tudo o mais na vida.
858 - Necessário
Se você não obrigar
Outrem a alimentá-lo,
De beber a lhe dar,
A transportá-lo,
A defendê-lo dos inimigos
No meio desta vida sem remissão
Cujos reais perigos
Provêm de ser fundada inteira na escravidão,
- Então haverá neste processo
Um real progresso.
É o mais tangível,
De maior objectividade,
O único necessário e possível
Deveras para a humanidade.
859 - Luta
Se toda a gente,
Sábios e pensadores,
Génios e artistas,
Inventores
E cientistas,
Tomar parte congruente
Na luta pela vida,
Cada um de per si no contingente,
Duramente
A britar pedra na avenida,
A cobrir telhados,
A erguer paredes,
A apurar cozinhados,
A pisar uvas que matem sedes,
- Se todos, cada qual no próprio mester,
Ganharem a ração de comer,
Não correria grave perigo
O desenvolvimento que prossigo?
Ora,
O progresso real
Mora
Apenas no amor,
No respeito cada vez mais integral
Do valor
Da lei moral
Que de modo mais universal
Se vislumbre e logre propor.
Se ninguém for escravizado,
Espoliado,
Se ninguém viver à custa de ninguém,
Que progresso mais sublimado
Nos é preciso ou nos convém?
860 - Aumenta
Leia
Experimentando a previsão.
É o que lhe desencadeia
O pensar mais profundo
E aumenta a cada segundo
A compreensão.
861 - Parte
Na escola, o bom leitor
Parte com avanço.
O nível de leitura é um indicador,
Logo no ano primeiro,
Do que alcanço
No derradeiro.
É, portanto, a partida
Para muito depois na vida.
862 - Distracção
De intelectual distracção qualquer jogo,
De palavras, encaixes, tabuleiro,
Algum poder ou saber desenvolve ali logo,
Pioneiro,
De que é viável a quenquer
Algum proveito recolher.
A única dificuldade em jogar
É criança cada qual bastante ficar
A vida inteira para o fazer.
863 - Mudar
Quem procura salvação
A mudar de terra,
Ave de arribação,
Nada encontra em parte alguma:
Aquilo a que se aferra,
Afinal,
É uma terra, em suma,
Sempre igual.
Ou encontra a salvação dentro de si
Ou não encontra nada ali.
864 - Empresa
À medida que a empresa vai crescendo
Fica o dono encurralado
Nesta prisão que há criado.
O êxito que pretendes e pretendo
Ergue muralhas com a escolta
Dos homens à volta.
De tal modo se habituam a ler folhas de balanço
Os donos, de negócios relatórios,
Que, perdidos nestes envoltórios,
Já não vêem o homem descalço e sem descanso,
A mulher sem brilhos
Nem leite para os filhos.
Para os pecados, porém, muito prática
Há uma absolvição automática:
Sem deles o capital e o envolvimento
Não seria a empresa construída
E não haveria emprego a contento
Para a mão-de-obra com que lida.
Porque a fábrica existe
Ou a mina,
A cadeia comercial,
A loja,
É que a cidade persiste,
A escola predomina,
O hospital
Gere a saúde que te aloja.
Doutro modo, embora exigidos,
Nunca teriam sido construídos.
Porque o empresário é realista
Pode obrigar o político a ser mais honesto
E o banqueiro, a pôr na lista
A aposta num novo apresto.
Ao fim, o balanço abranda,
Nada é tão preto e tão branco
Como no cartaz de propaganda
Que colo ou que arranco.
Por vezes as companhias
São prostitutas na cama do tirano
Cuja polícia as abrigaria
De qualquer dano.
É fácil condenar a prostituta.
Mas que é que transforma nesta
A mulher honesta,
Que luta
A molesta?
E que ocorrerá
Quando se arrependa,
Fatigada do que tira e do que dá,
E então se renda,
De tais vínculos se descosa
Tornando-se virtuosa?
É que, a coberto dos desacatos,
Há muito quem lucre (e ninguém o proclama)
Dela com os actos,
Para além do companheiro de cama.
Não podemos demolir
A grande empresa e dela a envolvência
Para redimir
Nossa má consciência.
O melhor é usar o poder que dali provém
Para construir
Pontes de benevolência
Pelo mundo além
E montar redes
E contrapoderes
Que destas águas nos matem as sedes
E renovem os seres.
865 - Extremista
O extremista por um lema
Simples meço:
Não há remédio para o sistema
Que não a destruição e o novo começo.
Importa activar, ao invés, a norma
Da potencialidade do protesto e da reforma.
É que o novo dacolá refeito,
Fatal,
Renasce com o dobro ou o triplo do defeito
E piora sempre muito o mal.
866 - Inevitavelmente
A anarquia
Produz inevitavelmente a tirania.
A tirania é o chão
Onde cresce a revolução.
Assim se fecha o círculo sangrento,
A menos que descubramos a panaceia
Para a loucura que nos rodeia
A cada momento.
A virtude é atravessar pelo meio
Dos escolhos extremados,
Precário equilíbrio para onde ameio,
Dentre a ameaça de todos os lados.
867 - Arma
A maior arma da tirania
É o silêncio e a falsa notícia.
Quebremos o silêncio pelo clamor à luz do dia,
Quebremos com a verdade as garras da sevícia,
Publiquemos o teor do mundo:
Listas de presos políticos,
Relatórios factuais deste açougue infecundo
Verazes e analíticos,
Identidade dos torcionários
E dos comprometidos,
A títulos vários,
Da tortura e do terror nos negócios escondidos.
A face negra do tirano, posta à luz,
A ninguém já seduz.
868 - Torcionários
Os torcionários que as vítimas aniquilaram
Continuam a andar ao sol,
Livres e respeitados pelos que os vergéis aram
Desde o arrebol.
Parecem alguns deles
Indivíduos normais,
Anhos imbeles
A tasquinhar nos urgueirais.
Lavam o sangue das mãos
Ao fim do dia,
Vestem roupa de cortesãos,
De cortesia,
Vão para casa acariciar
A mulher
E os filhos acarinhar,
No lar
Que cada qual tiver.
Tudo porque os actos deles são invisíveis,
Todos os ignoram,
Como aos limpa-esgotos imprescindíveis,
Aos embalsamadores que ninguém sabe onde moram.
Prosperam com o tácito consentimento
Da gente normal
Que quer a rua limpa, sem o vento
Do marginal,
O comboio a circular
A horas
E dos ladrões o patim, no patamar,
Protegido sem demoras.
Aos torcionários
Os contribuintes pagam os salários
E ei-los promovidos
A postos militares e civis bem garantidos.
Passeiam à vontade nas ruas
Enquanto as vítimas apodrecem nas celas,
A pele rasgada pelas puas,
Fracturadas as costelas,
A uns metros da praça central
Pisada pela bota dum alheado general.
Com ou sem o feitiço
Dos apelos,
É por isso que temos de detê-los,
É por isso.
869 - Habituados
Andarão tão habituados os pendores bons
À obscenidade
Que apenas da inocência os tons
Poderão tocá-los de verdade:
O sorrir dum bebé adormecido,
Uma avozinha a dormitar ao sol…
- Tal fermento, comedido,
Tem de entrar
E respirar
Em nosso rol.
870 - Maus
Não somos maus, não,
São os ratos que nos obrigam.
Não somos nós que gostamos dum irmão
No manicómio ou prisão.
A culpa é dos ratos que brigam,
À ética não ligam,
Que os contagiam
E, nestes termos,
A destruir ratos nos obrigariam
Para nos protegermos.
Então, de ratos o caçador
Poderia ser, se calhar,
Um honrado servidor,
Bastaria o homem vulgar
Estar disposto a lhe pagar.
Ninguém
Está disposto,
Porém,
A dar o rosto?
Ora, se ninguém pagar, as crianças
Serão engolidas pelas colinas
E nunca mais as alcanças
Nas goelas assassinas.
Aliás, da criança o que em ti resta
Para alguma coisa ainda presta?
Por trás deste rosto pacato,
Quanto em ti, afinal, há de rato?
871 - Hipócrita
Há muito quem no íntimo esteja
Pejado de boa vontade
Mas que em acto seja
Hipócrita, a encobrir a maior perversidade.
Choram lágrimas de sangue pela criança
Atropelada no chão,
Mas nem um suspiro os alcança
Pelos milhões que, mundo fora, morrem de inanição.
O afundamento dum barco
É uma tragédia,
Um genocídio tribal é um título que mal abarco
Algures, nos massemédia.
Num choque de comboios na estação
Sessenta mortos é catástrofe terrível,
Seis milhões em campos de concentração
É mera estatística credível.
Remetem toneladas de comida
Às vítimas dum terramoto,
Mas não erguem a voz mais sumida,
Nem as mãos, nem um coto,
Em prol de milhares e milhares de dissidentes
Inocentes,
Sujeitos a tormento,
Perdidos no esquecimento.
A boa vontade não chega,
Em acto é que ela se afirma ou se nega.
E o acto é que nos clarifica até onde,
Afinal, se esconde.
872 - Incapaz
Quem é incapaz de responder
Convenientemente
É melhor nada dizer.
Aliás, para quem espera resposta, impaciente,
Nada desconcerta tanto
Como o silêncio, entretanto.
Quando é mesmo isto o que procuro
Não há, pois, caminho mais seguro.
873 - Pequeno
O animal maior recua
Se nos olhos o mais pequeno o fitar.
Assim o cão o lobo acua
Até o afugentar.
- E nós a ignorar tanto
A virtude de tal manto!
874 - Importa
Quantas vezes ao paciente
Nada lhe importa a doença ou a cura!
Procura apenas o que toda a gente
Procura:
Entre as mãos a mão
De quem dele se ocupa,
A sensação
De que alguém amavelmente se preocupa.
E é o que lhe acelera e assegura
Muitas vezes a cura.
875 - Condições
A paz é durável
Quando as condições forem honestas,
Se de vontade verdadeira e fiável
A aprestas,
Sem enganos:
Apenas então não gera danos.
Da paz deveras o teor
Estranho
É que primeiro lhe vem do interior
De cada um o melhor
Da seiva e do ganho
876 - Descobre
Descobre a verdade
Por trás da promessa e dádiva do rico
Mas também, em pé de igualdade,
A que verifico
Que se encobre
Por trás do soluço e súplica do pobre.
Não te abandones ao engano,
Que daí só virá dano.
877 - Ganhar
Ganhar a vida com qualquer arte,
Que problema!
É sempre ser pisado por mercados
E, quer os de grandes massas, quer de parte,
Têm por lema
Servir o gosto médio dos clientes visados.
Os números ei-los ali,
É a crua realidade.
Mas como é castradora em si
Esta fatalidade!
Ao menos, porém, posso guardar em meu posto,
Secreta,
A obra de que gosto,
A preservar a inefável meta.
878 - Uivos
Dos uivos do tempo fatalmente consciente,
Reparas no esvaimento, na extinção
Desta realidade estranha chamada vida.
Tudo absolutamente
Foi transitória procissão
De despedida:
Trabalhar,
Comer,
Direito caminhar,
Depois cambalear,
Desfalecer…
Assistes de tudo ao fim,
Actos, palavras, amores
Que encheram dos anos o baú,
Tudo, enfim:
As abelhas e as flores
São tão passageiras como tu…
Dos tempos na poeirada
Acolhes teu tudo, teu nada.
- Então, a cada dia empresta
A alegria triste de tua festa.
879 - Ressentir-nos
Ressentir-nos do destino
A nada leva,
Tudo ocorre sem tino
E nada mais, perdido na treva,
Nada mais quenquer que seja, quenquer
Pode dizer.
Contra tal fortuna vituperar
É, no tormento,
Condenar
O fumo ou o vento
E sofrer durante
Todos os dias, pela vida adiante.
Ao fim e ao cabo,
Nada resta senão arcar, contente,
Com o que nos for dado
E seguir em frente.
880 - Política
A política ou as armas
Dão força, poder, o mando,
Volúpia de conduzir
Os homens que então desarmas
Com palavras doces, quando
Lhes pregas, a os iludir,
Justiça, democracia,
O direito, a liberdade…
Nunca pões à luz do dia
O que pretendes, sumário,
Em teu fundo de verdade:
- O poder discricionário.
881 - Miséria
Ante a miséria em livros descrita,
Em quadros representada,
Até às lágrimas se comove da desdita
Imaginada.
Ante um miserável em carne e osso, porém,
Mais osso que carne, em norma,
A repugnância, a impaciência o detém
E conforma.
É-lhe impossível amar a humanidade sofredora,
Que é feia, triste, malcheirosa:
Teoricamente, o poético pobre adora,
Ao vivo, é prosa.
Importa elevar,
Já que persistem tão escassas,
As chãs materiais e espirituais do vegetar
Das massas.
Mais que o que o líder exorta
A ser respeitado, mesmo admirado,
O que importa
É ser amado.
O paradigma supremo
Alia força e bondade,
Atributos que raramente, temo,
Se encontram unidos na mesma entidade.
Aliados no trono,
Porém,
Findariam o abandono
De que a humanidade vem.
882 - Adulto
Cremos que um miúdo sofre mais
Por não entender
O que andar a ocorrer.
Um adulto, porém, compreende os sinais:
Ora,
Isto, ao invés, é que tudo piora.
Além disso, a par,
O adulto tem de representar.
E ter medida
Quantas vezes custa a vida!
883 - Tensão
Inteiramente sozinho,
A tensão nos ombros acumulada
Principia, devagarinho,
A ceder, desarmada.
Até ao momento
Nem houvera percebido
Quanto ansiara, no tormento,
Por solidão,
O remédio perseguido
Através da servidão.
Não pudera desfrutá-la
Nos derradeiros anos,
Nem a perseguira na devida escala,
De tão activo a prevenir danos,
De tão azafamado da vida com as sanefas,
Perdido do dia-a-dia nas tarefas:
Houvera objectivos a atingir,
Respostas a provar
E tais fogaréus não permitem progredir,
Sem tempo nem espaço para saborear
O prazer picante e chão
Da solidão.
Não compreendera de verdade
Quanto precisara então
Da serenidade
Da imensidão.
Nunca, porém, é tarde
Para fazer alarde
Do verdadeiro pendão.
884 - Dilema
É sempre melhor encarar
Um dilema de frente
Do que as costas virar
Ao que se não pode ignorar
Fatalmente.
885 - Tentamos
Por que é que, mesmo sabendo
Que não adianta,
Tentamos sempre enganar-nos, crendo
Que correrá bem quanta
Ocorrência
Se souber
Com antecedência
Que vai acontecer?
Descobrir
Nem sempre é o lugar
De prevenir
Nem, quantas vezes, de remediar.
886 - Pedra
Numa pedra o que figuro
Que não pode ser mudado,
Quando o apuro,
É apenas o passado.
Tudo o mais
Aguarda os meus sinais.
E, quando à pedra me grudo,
Poderei mudar tudo.
887 - Corrigir
Não podes corrigir o que ele pensar
Ou sentir no peito.
Podes apenas mudar
O que sentes tu a tal respeito.
Inviolável é a fronteira:
- A cada qual, sua jeira.
888 - Abanando
Alguns esperam que tudo
Do céu lhes caia.
Podem até trabalhar pelo miúdo
Para lograr tocar a raia.
Cuidam que abanando o ramo bem,
Se o sacudirem bastante,
À mão lhes vem
O fruto cobiçado logo adiante.
Nunca lhes ocorre
Que bem pode ser preciso
Trepar à frança por onde o ramo corre,
Cair dela até perder o siso,
Dilacerar arranhões,
Aguentar pancadas,
Até chegar, aos baldões,
Às frutas desejadas.
Quando a fruta vale a pena
Então também vale a pena o risco
De desgrenhar a melena
E partir o pescoço por tal isco.
889 - Estática
Não é estática a moral,
É um itinerário constante
Em que o valor ancestral
É de novo testado logo adiante,
Posto à prova, intransigente,
Em contextos de vida diferente.
Às vezes revela-se inadequado
À contemporaneidade
E terá de ser readaptado
Em prol duma imprevisível autenticidade
Que há-de ser, afinal,
Sempre original.
890 - Apenas
A estrada
Apenas tem uma direcção:
A verdade só pode ser encontrada,
Não produzida por votação.
Não persuade
Outro rumo qualquer:
Era trocar o poder da verdade
Pela verdade do poder.
891 - Areia
Neste mundo atormentado,
Uma religião de palavras, documentos,
Publicações que ficam pelo papel
É um edifício levantado
Sobre a areia: os ventos,
Em tropel,
O tombam, violentos,
De lado.
Dos factos concretos a tocha,
Na vida das individualidades
E comunidades,
É que fica gravada a fogo na rocha,
A desafiar as tempestades.
892 - Adulações
De adulações nos tresanda a boca,
De cor declamamos qualquer sacra escritura,
Resmungamos os cantos que a religião convoca,
Todavia não temos o que Deus procura,
Único cartão de identidade:
- A caridade viver e a humildade.
893 - Alegria
A alegria é o gozo consciente
Dum bem vivido
Como seguro.
O bem obtido
Por favor é correspondente
Às alegrias precárias que apuro.
Apenas graníticos bens
Geram alegrias duradoiras.
Mas o granito é duro
E pode, entre os améns
E as tesoiras
A cortar cada peça,
Partir a muitos a cabeça.
894 - Escândalos
Escândalos não provocar
Dá mais jeito
Que o bisturi aplicar
À podre chaga do peito,
A fim de a curar.
O problema é que então, em vez da cura,
A chaga perdura.
895 - Hipócritas
Hipócritas são louvadores,
Mentores de virtudes fingidas,
E, ao mesmo tempo, detractores
E perseguidores das virtudes verdadeiras,
Cujas leiras
Sempre são neles traídas.
Olhar aos factos,
Não aos termos,
É o modo de os lermos
Sem por eles, em falsos pactos,
Sermos
Enganosamente coactos.
896 - Optimismo
Optimismo verdadeiro
Não é fazer crer
Que tudo está certo em toda a parte,
Mas verificar, pioneiro,
Custe o que custar a todos e quenquer,
Que nem tudo vai bem
Quando, mundo além,
Nosso olhar se reparte.
897 - Pensa
Põe as dúvidas de lado,
Pensa nas possibilidades,
Fica nisto focado.
É simples, requer poucas faculdades.
Os eventos cercam-te em redor
Como ar em volta:
Movimenta-os com amor,
Toma nas mãos a brisa solta.
De mãos erguidas
Gera vidas.
898 - Virar-se
Lembra-te de que o que crias
Pode virar-se contra ti
Ou contra quem amas, nalguns dias,
Em triplicado frenesi.
Quando combates algo a que ameias,
Outro efeito desencadeias.
Tens de reparar no todo
A prevenir um falso engodo.
E respeita a realidade,
Não lhe entrances na teia qualquer maldade.
Sê bom,
Que o mundo inteiro muda de tom.
899 - Descascas
Quando descascas a laranja
Não tentas ir cortando até ao fim,
Sem quebrar a casca inteira que ela abranja,
Cuidando que assim
Terás um desejo atendido
Ou de bom algo entraria
Do dia
No tecido?
Nunca quebraste aquele ossinho
Da sorte do frango, à mesa,
Pedindo um desejo, entre o pão e o vinho,
Ao lado de alguém que te preza?
Nunca cruzaste os dedos
Torcendo para que algo dê certo,
Distorcendo os credos
Mais longe ou mais perto?
São pequenos encantamentos,
Antigas tradições,
Tão simples como um desejo solto aos ventos,
Tão complexo como do amor as pulsações,
Tão perigoso, nos potenciais elementos,
Como os raios e os trovões.
O poder envolve riscos,
Escondidos por baixo das fantasias
E dos petiscos,
Mas também traz alegrias.
Se o temos, por que deixamos tanta morte
Ocorrer em redor?
É que há um ciclo e um norte,
Uma ordem natural,
Cujo respeito se nos deve impor,
Imperativo fatal.
É imprescindível a muda,
Sem muda não há progresso,
Não há renascer que nos acuda,
Nem meço
O que alcança
Nenhuma expectativa de mudança.
Usa o poder
E o feitiço
Para atar de novo o liço,
Para o novo poder ser.
900 - Abandono
Quando abandono de vítima o papel
E desisto de ser passivo,
Se me atrevo a questionar a granel,
Desafiar doutrem a interpretação ao vivo,
Coloco-me no bom caminho
Para descobrir, a contento,
O que, no cadinho,
É verdadeiro conhecimento.
901 - Aparentemente
Jamais é fácil viver
Mesmo para quem aparentemente o for.
Podemos é virar a favor
As dificuldades que houver,
Optimizá-las como um facho
Ou permitir que nos deitem abaixo.
No que cada qual recolha,
O que decide é a própria escolha.
902 - Importante
Importante não é não ter medo, não,
Mas sim, apesar dele, enfrentar a situação.
Quem gradualmente e de modo prolongado
O medo enfrenta, a vencê-lo acabado
Sempre terá,
Mais aqui, mais acolá.
A coragem, todavia, reza o credo:
- Quer dizer: tem medo!
903 - Aumenta
Aquilo que te não regala
Em teu diário amanho
Cala:
- Aquilo de que alguém fala
Aumenta de tamanho.
904 - Importante
Importante é apenas aproveitar
O momento que passa.
Aos momentos simples da vida atento estando
É que o sentido profundo vou procurando
Que a vida me pode indicar,
Que para mim pode ter no que me enlaça
E me trespassa.
Nesta procura
Vou encontrando a felicidade,
Para cuja feição
Ou figura
Não há, na realidade,
Jamais definição,
Mas que me invade
E persuade
O coração.
905 - Atrapalhe
Não há nada que mais atrapalhe o caminho
Rumo à felicidade que da culpa o peso.
O medo do castigo queima, dele no cadinho,
Ou o dos males que podem coagir-me preso.
Sinto que não mereço viver na alegria,
Na abundância que ameia no alvor de cada dia.
E é tudo, afinal, tropeço
Da vera altura que meço.
Se me solto é que a figura
Inteira de mim se apura.
906 - Tragédia
Vale a pena deixar de correr
Para dentro de minha vida
Por medo duma eventual tragédia algures escondida,
Apenas de velhice para morrer
Tendo então apenas de meu
Ver que a tragédia nunca ocorreu?
907 - Desamarrar
Ante uma tragédia que o fira, grande ou pequena,
Há quem desista logo de pensar
No que a jogou em cena,
Para se culpar:
"É culpa minha,
Vai ser assim toda a vida,
Vai-me desamarrar a gavinha
Que me prenda a qualquer lida."
Quando algo nos corre mal,
Podemos achar que é tudo
Ou, ao invés, que é parte do total
Com que não me iludo.
Podemos culpar-nos a nós, aliás,
Ou aos outros ou às conjunturas que houver por trás.
O que importa é habituarmo-nos a persistir
Perante o desafio
E a ultrapassar obstáculos para prosseguir,
Do labirinto da vida perseguindo o fio.
Quando nada ocorre como quereríamos,
É não desistir nem à espera permanecer
De que alguém opere o que devíamos
Nós fazer.
908 - Impedir
Não é de me preocupar
Com o que pode acontecer
Que impedir irei lograr
Que ocorra um facto qualquer.
Ao contrário,
Com tanta preocupação
Ainda atrairei, sumário,
O que temo na função.
E, entretanto, desperdiço
A energia que, em lugar,
Mais útil seria ao serviço
De nosso bem-estar
909 - Horizonte
Ser previdente
Não é levar a vida ansioso
Com o que pode vir à frente.
Ter o convencimento enganoso
De que, se intervier
Mal no horizonte lobrigo
A mais ligeira possibilidade de perigo,
Afastá-lo hei-de poder.
Pretender eliminar
Todo o risco, sofrimento,
É como à vida negar
Que é jornada feita ao vento,
Por entre paisagens planas
E montanhosas.
A aventura donde emanas
É a dos contrastes que em ti entrosas.