SÉTIMO  TROVÁRIO

 

 

                                            REGRAS  A  DEFINIR

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 763 e 909, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                763 - Regras a definir

 

                                                Regras a definir

                                                O poema irregular rimando vai

                                                No caminho do porvir,

                                                Os passos vida além a dirigir

                                                Pois sem norma tudo em fumo se esvai.

 

                                                São roteiros do caminho,

                                                Mapa de estradas

                                                Enrugado dos fios de linho

                                                Com que tropeço nas jornadas.

 

                                                As normas vão modelando

                                                As pegadas hesitantes

                                                Que no escuro se aventuram nefando.

 

                                                E assim me garantem constantes

                                                O apresto dos instantes.

 

 


764 - Justiça

 

Do Homem a capacidade

Para a justiça obvia

A Democracia.

Do Homem a inclinação

Para a injustiça atrabiliária

Há-de

Então

Tornar a Democracia necessária.

 

 

765 - Odeio

 

Odeio a ordem em que alguém

É arvorado em superior:

Não há raça nem povo nem ninguém

Da superioridade com a cor

Nem o teor.

 

Creio na diferença

E no potencial dela

Para rasgar novas regueiras de mantença

Para todos, em cada gabela.

 

E jamais como arma de arremesso

Contra a inferioridade mentida

De quenquer com que tropeço

Na vida.

 

 

766 - Mente

 

Deveria a mente apenas servir

Para analisar e viabilizar

O que todo o mundo sentir

E não para aniquilar,

Como actualmente,

O que mais fundo sentimos,

Através do que a razão argumente

Mais dos medos que aduzimos.

 

Assim dele próprio e dos mais,

Radicalmente,

Acaba cada qual por demais

Hoje em dia ausente.

 

É um desvio

Que dentro em nós represa o rio:

 

Já não atingem as levadas

As campinas desertificadas.

 

 

767 - Escolhes

 

Escolhes primeiro quem gostarias de ser,

Depois procuras o que fazer

Para reflectir tal personalidade,

A qual, de tanto a querer,

Julgas a teus pés,

Que é tua vera identidade.

 

Então, em vez

Dum trabalho que reflicta quem no fundo és,

Irás ter

Um trabalho para poder ser outro qualquer.

 

Daqui brota a perca:

Vai desgastar tua energia,

A partir de tudo o que te cerca,

O mal-estar deste trabalho dia a dia.

 

O desemprego

Então de alerta é o susto contra o apego:

 

Se o ouvires, de ti na esmagada parte,

Poderás vir a encontrar-te.

 

 

768 - Cais

 

Qualquer vida tem destino,

Tem um cais onde aportar.

Para onde é que me inclino

Dedos de alma o hão-de apontar.

 

O livre arbítrio, porém,

É sempre meu, sempre teu.

Podes escolher ir por além

Ou não,

Conforme o prato da balança pendeu:

O eu superior

Conhece bem a missão,

O inferior

Pode escolher cumpri-la ou não.

Do mapa cada um deles tem a metade:

O tesoiro só o iremos encontrar

Quando, em verdade,

O mapa se completar.

 

 

769 - Reino

 

Para ficares seguro

Em teu reino da matéria,

Do trabalho todo o apuro,

Da carreira toda a féria

Decides que é de raiz

O que te fará feliz.

 

Se para teu consciente

Encarrilas tal focagem,

Só te sentes bem presente

Do trabalho na voragem,

Só te sentirás completo

A laborar em concreto.

 

Trocas ser pelo fazer,

Só fazendo logras ser,

 

Teu emprego é a segurança

Que te alcança.

 

Espiritualmente, de vez,

Nada disto, porém, funciona em quenquer:

Deverás fazer porque és,

Não para ser.

 

Primeiro, és quem fores, no fundo de ti.

Depois de te descobrires ali,

 

Irás então acolher

O que fazer,

 

De modo que reflicta a tua escolha:

Quem tu és deveras, em toda a malha de recolha.

 

 

770 - Perda

 

Descobrir que a perda tem um motivo,

Que há um motivo na doença,

Que o despedimento que vivo,

Que a falência, a morte que nos vença,

 

Na perspectiva do céu,

Têm um motivo, debaixo do véu

Que de além os encobre,

 

Mesmo que eu mais nada aprenda,

É já um avanço em que me desdobre

E a que me renda.

 

Cuidar que a perda não é por acaso

É parar de culpar os mais

De a tal conjuntura darem azo

E parar, infecundo,

De me vitimizar perante o mundo.

 

É urgente aprender os sinais,

Mudar é desejável e fatal:

A muda limpa as almas triviais,

Limpa a vida real.

 

Ao mudar,

Ouvindo a voz interior

E acolhendo o que ela vier propor

(Embora apenas ainda um mero sentimento),

Ao mudar hei-de logo evitar

A perda, no próprio momento.

 

À muda quanto menos alguém resistir

Menos se irá deparar

Com o bloqueio do caminho do porvir

De quem recusa andar.

 

E sempre deverá ser feita a muda

Antes que a ventania a torne aguda.

 

 

771 - Comunica

 

Contigo comunica tu imo sublime,

Mesmo quando o não vês:

Qualquer alma exprime

Ao coração o que és,

Nunca à cabeça

Que nele apenas sempre tropeça.

 

Quão mais alto trepas

Mais teu imo comunica

Com teu coração,

Maior a emoção

Te eriça as repas

No chão que te fica.

 

A meio de teu peito

Reciclas as emoções.

Se as controlas a teu jeito,

Se choras pouco, as pulsões

Goradas

Encontram-se bloqueadas.

 

Quando te elevas,

A pressão para desbloquear

É tão grande contra as trevas

Que vai doer, se calhar.

 

Após o desbloqueio, todavia, passa

E tudo é graça.

 

 

772 - Conexão

 

Ganhas autonomia

Com tua conexão ao imo supremo:

Que nunca mais ninguém em nenhum dia,

Actue porque outrem disse, alguém mandou,

Nem por temer a esteira do remo

Que a vida lhe ordenou.

Os outros não sabem dar conselhos,

Não te desvelam a vida em pormenor,

Ignoram teus quelhos,

Teu crepúsculo e alvor

E jamais, aqui ou ali,

Podem escolher por ti.

Teu imo pode ajudar

Por conhecer o passado inteiro,

O porvir que te apelar,

Mais a missão que pontua

Tua vida no compasso mais certeiro.

A escolha final, porém, é sempre tua.

 

 

773 - Importa

 

Que é que importa a autonomia?

É que a verdade não é igual para todos:

O que um dia

É bom para um, tem mil engodos,

É mau para outro e depois

Chega a mudar de sentido para os dois.

 

Que ninguém a dogmas fique amarrado,

A encaixotadas verdades

Em que afinal não crê, em nenhum traslado,

Nem entende, por mais que tenha capacidades.

 

Conectado a teu imo superior

Ficas autónomo, de ti senhor.

 

 

774 - Dúvida

 

Nunca mais precisas de aceitar

Que algo é bom para ti sem o sentir.

Na dúvida, é só ir

A teu imo, à pedra angular,

E ela responde

Se algo é bom ou mau para ti

Agora, neste tempo que te esconde,

Na conjuntura que vives aqui,

E se te vai ajudar

À missão que juntos andam a planear.

Apenas ele dispõe de tais respostas

Para bem poderes utilizar

Teu livre arbítrio em todas as apostas.

 

 

775 - Muda

 

A vida consiste, em grande parte,

Em nada querer ficar onde se encontra.

Venha, pois, a muda que isto acarte

Com o desassossego que terá contra

Toda a gente,

A lamentar-se mutuamente.

 

Todos teremos de acatar

A condenação do fatal resguardo

De connosco próprios carregar

Como se fora um fardo.

 

 

776 - Demolidor

 

A mulher consternada

Pelo demolidor poder

Que sobre outrem tiver

Deverá ser lembrada

 

De que pode despir a couraça:

Que os outros deixe de julgar,

De validar ou invalidar

(Feita autoridade que os enlaça

Ou deslaça)

Os modos de sentir, pensar ou viver

De todos e de quenquer.

 

Quando se aperceber

De que tem algo a partilhar

E a aprender

Com quem na vida se cruzar,

E que, portanto, a todos é igual,

Liberta-se, finalmente,

Do peitoral

De serpente

E do maléfico efeito

A que ele anda sempre atreito.

 

 

777 - Íntimo

 

No íntimo a focagem,

O ponto fixo, é que dá significado

Ao agir de quantos agem.

O ponto de mergulho interno

É que é o adequado

A firmar os pés na terra

No meio do caos externo,

Da desordem, da guerra

Ou da azáfama vulgar

E quotidiana do lugar.

 

Ali ancorado,

Cada qual descobre, em seguida,

Ao tomar rumo,

Que a vida

Tem sumo

E adquire mesmo significado.

 

 

778 - Reflectir

 

Devemos reflectir primeiro

E agir depois,

Examinar racionalmente cada sendeiro

Mas, a seguir, buscar onde piscam arrebóis.

Basear a decisão

Nesta estrela:

A possibilidade de nosso coração

Estar ou não com ela.

 

Mais ninguém nos pode dizer

Se o nosso coração está envolvido

E a lógica é incapaz de fornecer

Uma resposta com sentido.

 

 

779 - Profundos

 

Dos mais profundos buracos

Poderemos sair

Se nos não dermos por vencidos,

Por mais que no poço da vida em cacos

Se cair.

É de usarmos, destemidos,

A terra que nos atiram para cima

Para trepar pelos torrões, sempre em frente,

Cada passo mais acima,

A borda até saltar contra a corrente.

 

 

780 - Monstros

 

Em monstros transmuda o medo

Os vultos indistintos da profundeza

Da psique humana colectiva.

Trazê-los à flor de água é o sossego

Do que é visto, tocado e que se preza,

Em onda transformado viva.

 

Todos pressentimos a presença,

No mais secreto de nosso imo,

Daquelas forças indistintas,

Primitivas e sem detença,

De tremendo poder, a que me arrimo.

Delas tememos jogos e fintas

Até que um deus poeta,

Escritor, compositor, bailarino,

Psicólogo, artista plástico arquitecta

Um modo clandestino

De à superfície as trazer

Da criação pelo fogo a arder.

 

Tal génio

Cavalga a natureza instintual,

À vontade no elemento emocional,

E, sem requerer qualquer convénio,

Troca os medos entorpecentes

Em qualidades humanas conscientes.

 

E assim nos liberta

Deixando em nós, finalmente, a porta aberta.

 

 

781 - Vertente

 

Quando a vida

Parece confinada

E de sentido desprovida,

Ou com uma vertente gravemente errada

Em nosso modo de a viver,

Ou no que andamos a empreender,

Não podemos deixar

De nos aperceber da discrepância

Entre os arquétipos no imo a pressionar

E os papéis visíveis, deles à distância.

 

Somos muitas vezes apanhados

Entre os arquétipos do mundo interior

E os estereótipos estandardizados

Do mundo em redor.

São os arquétipos predisposições

Poderosas,

Capazes de explosões

Letais ou vitais tenebrosas.

Na forma de imagens e mitos

Todos contemos pulsões,

Característicos fitos,

Emoções

Que nos arroteiam como grade

A personalidade.

 

Geramos energia

Quando agimos em conformidade,

Através da profundidade

E do significado que afia

 

O gume deste papel em nós.

Se, ao invés, formos connosco desconformes,

Dos tapetes do imo desatamos os nós

E os buracos serão cá dentro enormes.

 

 

782 - Sacrificando

 

Quem tente conformar-se

Com o que esperam dele,

Sacrificando a ligação,

Com tal disfarce,

Ao mais autêntico da natureza

Vivida por dentro da própria pele,

Pode a glória que preza

Atingir no mundo,

Mas vai sentir destituído

De pessoal sentido

Este êxito infecundo,

Ou falhar também em tal identidade,

Depois de fiel não ter podido

Manter-se à própria autenticidade.

 

Em contrapartida,

Se for aceite pelo que é

E, nesta medida,

Compreender

De boa fé

Quanto importa desenvolver

Vertentes sociais e competitivas,

A adaptação atingida

Não vai sê-lo à custa

De autenticidade nem auto-estima:

Ao invés ajuda-o, de seguida,

A aperfeiçoar-se, justa,

E a saltar o obstáculo por cima.

 

 

783 - Autêntico

 

Sentir-se autêntico alguém

É ser livre de desenvolver

Vertentes e potenciais que detém

Como predisposições inatas para ser.

 

Quando és aceite

E te permitem ser genuíno,

Deténs ao mesmo tempo de auto-estima o enfeite

E de autenticidade o hino.

 

É o que acontece

Quando, em vez de desencorajados,

Somos incentivados

Por quem nos aparece

Como significativo para nós,

Quando somos espontâneos e verdadeiros

Ou quando ficamos absorvidos, tão a sós

E inteiros,

No que nos causa alegria

Que vivemos magia.

 

Desde a infância,

Primeiro a família,

Depois a cultura,

São os espelhos, ora com, ora sem ânsia,

Em que nos vemos reflectidos, em vigília

Que nos apura,

Ora como aceitáveis

Ora como inaceitáveis.

Quando precisamos de nos conformar

Para sermos aceites,

Podemos acabar por usar

Um rosto falso de falsos deleites

Ou por desempenhar um papel vazio

Impregnado de inconfesso fastio,

Se uma grande distância existir

Entre o que por dentro de nós opera

E se faz sentir

E o que de nós se espera.

 

É uma bênção quando

Os dois campos se acabam conciliando.

 

 

784 - Perto

 

Quem viver perto do mar agitado

Ou da sísmica região,

Deve ter a meteorologia ao lado,

O relatório sismológico à mão.

 

Deve compreender o que o espera

E aprender a construir a barreira

Que a uma vaga sobrevivera,

Que um terramoto aniquilador aligeira.

 

Quem corre o risco de ser dominado

Pela emotividade

Deve atender a tal vulnerabilidade,

Aprender o desafio de tal estado

E usar os sinais de alarme

Para que jamais o desarme.

 

Maneiras deverá desenvolver

De com tal vertente poderosa

Que se lhe entrosa

Conviver.

E o afectado

Por tal poder destruidor

Noutrem incarnado

Deve aprender a detectar

Os fumos de alerta que ele enviar.

Pode-se então afastar, diligente,

Ou acaso por um desvio

Se esgueirar,

Para escapar do terramoto eminente

Ou à inundação do rio.

 

Por dentro de nós como por fora

Igual prudência nos escora.

 

 

785 - Porta

 

Construir a harmonia

É porta de felicidade.

Caminhar na correcta via,

Formar com ela uma unidade,

Um labor efectuar absorvente,

Consonante com nossos valores

E para o qual temos dons permanentemente.

Harmonia é ter amores,

 

Ter companheiros ou viver a sós

Ou com animais ou a natureza,

Numa urbe, país ou lugar, e após

Viver a surpresa

 

Duma autêntica pertença.

Harmonia é sentir mágoa profunda

Por uma perda que nos vença,

Maremoto que nos inunda.

É espontaneidade desinibida,

Sem constrangimentos,

Riso imediato, lágrima sentida

A jorrar pelo rosto dos tormentos.

 

Acontece harmonia

Quando acto e convicção se fundem,

Quando a íntima energia

E a vida exterior se confundem,

 

Uma da outra expressões,

E fiéis nisto andamos a ser

À nossa identidade, a nossos corações.

Só cada qual, só eu poderei reconhecer

 

Que aqui me sinto em casa,

Que em meu labor me absorvo inteiro,

Colho alegria que me abrasa,

Que amo e da felicidade me abeiro.

 

 

786 - Despenderá

 

No trabalho, na guerra e no amor

Despenderá demasiada energia,

Esforço maior,

Se se limitar

Ao que de si alguém esperaria

E nenhum arquétipo, íntimo vulcão,

O inspirar.

Pode o esforço ganhar-lhe um quinhão

De consideração,

Não será, porém,

Para o coração gratificante.

Operar pela vida além,

Em contrapartida,

Aquilo de que gostar, fará que se agigante,

Promove a afirmação íntima vivida,

É prazer e alegria:

É o acordo com aquilo que é,

Não com qualquer fantasia.

Se depois for recompensado

E reconhecido, de boa-fé,

Pelas almas do mundo exterior,

Brilhará então com o esplendor

De homem deveras afortunado.

 

 

787 - Macacos

 

Primeiro,

Os macacos viviam em ilhas afastadas,

Umas das outras isoladas,

E jogavam-lhes batatas doces como se fora dinheiro.

 

Para as apanharem,

Os macacos das árvores saltavam

Enquanto os cientistas, a observarem,

Investigavam.

 

Eis senão quando, a jovem macaca Imo

Desce para o mar,

Vinda, com uma batata, lá do cimo,

E trata de a lavar.

 

Gostou,

Mostrou-o aos companheiros e à mãe,

Cada qual por si o comprovou

E a novos parceiros o mostrou mais além.

 

No princípio são adultos a copiar as crias

Mas logo outros mais os vão imitar

Nas inovadoras vias

De batatas doces ir lavar.

 

Até que a certo momento,

A um qualquer centésimo macaco,

Generaliza-se instantâneo tal comportamento

A tudo e todos, taco a taco.

 

Mas o mais extraordinário

É que tal se generaliza

A todas as ilhas, pelo mar vário,

Quando entre elas nenhum contacto se divisa.

 

A anónima centésima gota

Faz transbordar a taça

Que, virada, desemboca

Na realização instantânea da visada graça.

 

É o peso do esforço individual

Para salvar o planeta, o clima, a ecologia,

Ou qualquer outro ideal:

Amadurece até que há um salto de magia.

 

Alguém tem de ser o primeiro,

O vigésimo e assim por diante,

Até que o centésimo parceiro

A inesperada vitória geral instantâneo nos garante.

 

 

788 - Adulta

 

A idade adulta é um glaciar

Silente

Pela nossa juventude a avançar.

 

Quando chega, indolente,

A marca da infância congela

Instantaneamente,

O nosso último acto na tela

Registando definitivamente,

Na pose em que nos apanhou o gelo da idade.

E é o acto que acate

A íntima individual verdade

Em seu embate.

 

Sempre que deveras ser quisermos,

Não há como aqui volvermos.

 

 

789 - Riqueza

 

Se alguns prosperam,

A comunidade fica a ganhar

E, nesta medida, aqueles operam

Para nós, a par.

 

Em vez de ficar irritado,

Devo compreender

Que deles a riqueza tem beneficiado

Também a todos e quenquer.

 

Partindo daqui, qualquer justo acerto

Fica então mais perto.

 

 

790 - Úteis

 

Úteis a nós

Nunca o poderemos ser

Sem aos outros atender.

Queiramo-lo ou não,

Atam-nos nós,

Vivemos interligados

Mão a mão,

Torrão a torrão,

Daqui aos poentes mais afastados.

É inviável o fanal

Duma felicidade

Meramente individual:

Quem só de si quer saber,

Acaba na orfandade

A sofrer.

 

Quem, ao invés, se preocupar

Com os outros apenas

Bem de si acaba por cuidar,

Sem pensar em tal

Nem aguentar cenas.

 

Mesmo quando a vontade principal

For egoísta,

Reparemos

Se vamos na mais inteligente pista:

- Os outros ajudemos!

 

 

791 - Construir

 

Quanto mais se preocupar

Doutrem com a felicidade

Mais vai construir, a par,

A sua em profundidade.

 

Não pense nisto, porém,

Enquanto estiver a dar,

Não fique à espera de nada.

Tenha em vista apenas o bem

Dos que encontrar pela estrada.

 

 

792 - Guarda-costas

 

Quanto mais guarda-costas houver

De nós em volta,

Mais urge de guarda permanecer

A nosso espírito à solta.

 

Quantas vezes tropeço,

O corpo ao salvar,

No preço

De o espírito matar!

 

 

793 - Pejado

 

O mundo pode aparecer

Como amigo ou inimigo,

Dos defeitos pejado que eu quiser

Ou de qualidades como abrigo,

Conforme, ao calhar,

Meu modo de pensar.

 

De vantagens ou de inconvenientes

Não há nada apenas feito,

Quer no que temos a jeito

- Comida, roupa, detergentes… - ,

Quer naqueles com quem vivemos

- Família, amigos, mestres supremos… - ,

Pois todos somam, nos trejeitos,

Virtudes e defeitos.

 

Para julgar correctamente

O real

Temos de reconhecer cada ente

Como ele for, afinal,

Preto, branco, de todos os tons

Dos lados dele maus e bons.

 

E aprender a acolher o todo

É da plenitude a via e o modo.

 

 

794 - Aspiram

 

Todos os entes,

Mesmo para nós os mais hostis,

Da dor e sofrimento são tementes

E aspiram da alegria aos frenesis.

 

Como nós,

Todos têm o direito a ser felizes,

A não sofrer nem dor leve nem atroz,

Sejam quais forem deles os matizes.

 

Deixemos de olhar nossos umbigos,

Preocupemo-nos com os mais sinceramente,

Quer amigos, quer inimigos:

A compaixão o amor vai tornar presente.

 

 

795 - Favorecem

 

Pensamentos e actos de amor

Favorecem claramente

A saúde física e mental

De quem a tal

Propor

Se tente.

 

São conformes, com certeza,

A nossa verdadeira natureza.

 

Actos violentos, tenebrosos, cruéis,

Surpreendem-nos, ao invés.

 

Portanto,

Precisamos de falar deles

Muito mais

E o destaque é tanto,

Do maior ao mais reles

Dos jornais.

 

O problema é que, pouco a pouco,

Insidiosamente,

Acabamos a pensar que o homem é louco

Ou de má mente.

 

Algum dia cuidaremos, sem tardança,

Que para o homem não há esperança:

Tal pendor, pior que arbitrário,

É suicidário.

 

 

796 - Progresso

 

Económico e tecnológico,

O progresso é desejável

E é um vector antropológico

Fatal, irremediável.

 

Seria ingénuo pensar

Que, se o interrompêramos,

Se evolariam no ar

Os problemas que tivéramos.

 

O progresso deveria,

Todavia, acompanhar-se

Do desenvolvimento na via

De valores que não esgarce.

 

Ambas as tarefas em conjunto

Deveríamos realizar,

Desbravando o assunto

A par.

 

É a chave do futuro:

Se o desenvolvimento material e espiritual

Coexistindo inauguro,

Devir feliz devém real.

 

Não o atinjo com templos e mosteiros,

Nem sequer com escolas.

As famílias são os esteios primeiros

Das ferramentas que amolas.

 

Se em família reina a paz

E, além do saber de base,

Valores morais satisfaz,

Se, por trás de sua gaze

 

Aprendemos a viver

De modo justo e altruísta,

Podemos então erguer,

Da sólida pista,

 

A comunidade inteira

Como montanha altaneira.

 

 

797 - Grupo

 

Em todo o grupo há-de haver contradição.

É uma vantagem,

Não um senão:

Quanto maior a gama de triagem

Entre a diferente opinião,

Maior

A ocasião

De compreender melhor

O outro e a respectiva corrente

E de melhorar indefinidamente.

 

Se entrar em conflito

Com quem pensa diferente,

A pedra que brito

Brita meus pés somente.

 

Não devo ficar fechado

Em minha ideia singular,

Antes, aberto a todo o lado,

Dialogar.

 

Então comparo

Opiniões divergentes

E eis como me deparo

Com pontos de vista antes em mim inexistentes.

 

Daqui, então, inauguro,

O futuro.

 

 

798 - Tendemos

 

Tendemos a pensar

Que não estar de acordo

Automaticamente há-de ser entrar

Em conflito,

Onde mordo,

Com atrito

Vário,

Um irredutível adversário.

 

E há-de sempre terminar,

Como um fado,

Com um vencedor e um vencido

A par,

Com um triunfo destemido

E um orgulho humilhado.

 

Ao invés, a todo o momento,

Deveríamos antes procurar

Um terreno de entendimento.

 

De partida o fundamento

É cada qual se interessar,

Desde logo,

Por quem pisa um outro chão

Com as pegadas de neve ou de fogo

Que tecem doutrem a opinião.

 

Seguramente,

Quenquer,

Tendo-o em mente,

Será capaz de o bem fazer.

E as sínteses irão brotar

Deste caminho inteligente

De ir a par.

 

 

799 - Rico

 

De ser rico a maior vantagem

É de outrem poder ajudar mais,

O resto é uma paisagem

De egoísmos venais.

 

Desempenhando um papel mais importante,

É mais influente,

Pode germinar o Bem pelo mundo adiante,

Se agir correctamente.

 

Se, porém, for mal intencionado

Muito mal pode fazer o emproado.

 

Depende, no final,

Da escolha

De cada qual

O bem e o mal

Que o mundo dali recolha.

 

 

800 - Distingue

 

Embora ricos, tomem consciência

De ser humanos.

Nenhuma evidência,

Apenas enganos,

Vos distingue dos pobres.

 

Por mais que os ganhos dobres

Que o mundo inteiro preza,

Em comum só partilhamos todos a necessidade

Daquela riqueza

Que é a felicidade

Interior.

 

Ora, a esta,

Por maior

Que seja o custo,

Ninguém a compra em nenhuma festa,

Não há para ela um preço justo.

 

 

801 - Ganhar

 

Nada têm a ganhar os ricos

Em deixar a conjuntura mundial

Degradar-se continuamente.

Atingi-los-ão cada vez mais salpicos

Do ressentimento dos pobres e cada qual

Mais medo sente.

 

Onde os ricos são ricos demais

E os pobres por demais pobres,

Os dobres

A finados

São os sinais

Da violência, do crime, da guerra civil

Por todos os lados.

 

O mais vil

Dos celerados

Facilmente subleva os mais desfavorecidos,

Ao crerem que por ele são protegidos.

 

Se o rico ajudar o pobre em redor,

Se mudar a economia

Deste em favor,

Se mais equitativa cada dia

For a distribuição

De rendimentos e bens,

Se em tal rumo mudar cada instituição,

Mais saúde e desenvolvimento

Obténs

Do pobre em aumento

E o pobre desata a gostar

Do rico então que o ajudar.

 

Pobre e rico acabam amigos,

Os pobres ficam contentes,

Os ricos livram-se de abrigos

Frágeis, trementes

E ficam contentes também.

 

Na desgraça

Todos se compadecerão.

Se, porém,

De egoísmo for antes toda a traça,

Da desgraça do rico os pobres se alegrarão.

 

Como entes comunitários,

Quando amigável é nosso ambiente

Sentimo-nos solidários,

Mais felizes, hilariantes,

Automaticamente

Confiantes.

 

Não há dúvida quanto à alternativa

Que cada hora torna mais viva.

 

 

802 - Erro

 

Quem tiver boa atitude

Pode ser feliz na pior condição.

Quem se ilude,

Não.

 

Quem interiormente não viver em paz,

Por muito que o erro lhe agrade,

Não é o conforto, não é a riqueza que lhe traz

A felicidade.

 

 

803 - Remédio

 

Se há remédio, não é de inquietar,

Aplica-o já!

Se a remédio não houver lugar,

Remediado está!

 

A inquietude não tem valor:

Apenas serve para agravar a dor.

 

 

804 - Escapamos

 

Não é perdendo a coragem

Que escapamos à miséria.

Falhados do sonho, não desencoragem,

Qualquer que seja da vida a vossa féria!

 

Quem diz: "hei-de conseguir!"

Atinge o fim, a seguir.

 

Quem pensar que é inexequível,

Que não tem as faculdades,

Há-de falhar, sofrível,

Em todas as idades.

 

É pela postura que quenquer herda

O rumo da vitória ou o da perda.

 

 

805 - Malfeitores

 

Malfeitores potenciais somo-lo todos

E os que mandamos para a prisão

Não são piores, ante os engodos,

No fundo do coração,

Do que qualquer um de nós,

Na hora aziaga de ser feroz.

 

Tombaram à ignorância, à cólera, ao desejo,

Doenças que nos afectam igualmente

Ao menor ensejo,

Apenas a um nível diferente.

 

Nosso dever é o de ajudar

Qualquer doente a se curar.

 

E a prisão também devia

Operar como terapia.

 

 

806 - Delinquente

 

Para o delinquente detido

Questão é nunca desencorajar,

Não perder a esperança e o sentido

De que pode revolver a vida e melhorar.

 

É subir patamar a patamar:

"Vou-me emendar,

Agir bem, doravante que recomeço,

Irei ser útil aos mais

Como o não fui jamais."

 

Todos somos capazes de mudar.

Apenas o ignorante afiança,

Em lugar,

Que para ele já não há esperança.

 

 

807 - Educandos

 

Ensinem os educandos a dialogar,

A resolver os conflitos por via não violenta,

A se importar,

Mal um desacordo se apresenta,

Em postura franca e tensa,

Pelo modo como o outro pensa.

Ensinem-nos a não olhar

Com vistas curtas,

A não cuidar

Que as naus ficaram de vez surtas

Na baía deles,

Deles no país, na comunidade,

No pigmento das peles,

Numa faixa de idade…

Levem-nos a tomar consciência

De que todos têm os mesmos direitos,

Igual carência,

Fundo, nos peitos.

 

Abram-lhes a janela

Para a responsabilidade universal,

Mostrem-lhes que nada do que fazemos, no fundo,

É indiferente à mais longínqua estrela,

Perdida do Cosmos no imenso estendal,

Que tudo influi no resto do mundo.

 

O sorriso que hoje deste

A teu vizinho no patamar

Pode gerar, de leste a oeste,

A paz por que o mundo anda a ansiar.

 

 

808 - Impedir-lhe

 

Há quem apenas cause problemas

E urge ter os meios eficazes

De impedir-lhe os esquemas

Maldosos e capazes.

 

Quando os demais meios se esgotam,

Teremos de recorrer à força.

Quando a individual e a policial se embotam,

É o exército que a tal orça.

 

Nunca a força armada deveria

Servir para propagar uma doutrina,

Impor a ideologia,

Invadir um país, ditar-lhe a sina.

 

É meramente para pôr fim,

Em caso de urgência-limite,

Aos actos que semeiam o caos ao redor e sobre mim

E destroem a humanidade que eu habite.

 

Duma guerra objectivo tolerável

É a felicidade de todos,

Não intuitos particulares, regionais… Aceitável

É que ela, quaisquer que sejam os engodos,

 

Qualquer que seja de análise o vector,

Poderá ser apenas e sempre um mal menor.

 

 

809 - Sofreram

 

Os que sofreram muita provação

Não se queixam, habitualmente,

Ao mais pequeno tropeço no chão

Inclemente.

 

As dificuldades

Forjaram-lhes o temperamento,

Deram-lhes uma visão de vastas imensidades,

Um espírito estável, isento,

Inclinado a ver

Como é todo e cada ser.

Quem nunca teve de enfrentar problemas,

Viveu a vida num casulo,

Da realidade perdeu os esquemas

E os temas,

Acaba nulo.

 

À mais pequena pedra,

Todo o peito é um lamento que medra.

 

Como em todo o escorço

De atleta,

O músculo requer esforço

Para poder visar a meta.

 

 

810 - Vítimas

 

Se as vítimas tiverem abertura

Para poder perdoar,

Se os que as violaram,

Usaram a tortura,

Mataram,

Se derem conta da enormidade singular

Do que praticaram

E se pretenderem emendar,

Um encontro entre ambas as partes,

Benéfico, é a maior das artes.

 

O carrasco pode os crimes reconhecer

Com arrependimento sincero,

A vítima pode-se libertar, ao menos sequer,

Do ressentimento mais austero.

 

Se entre eles houver um terreno de reconciliação,

Arroteá-lo não é a melhor função?

 

 

811 - Caridade

 

Caridade é não exigir

Que nem angélico nem santo seja

Quem o não poderia devir

Senão por tal virtude que até faria inveja.

 

É sofrer

Silente e sem revolta

O imo que eterno se quer

Ligado a um corpo que o não é,

Pois a morte desenvolta

O guarda ao pé.

 

A interioridade, senhora e dona,

Não tem o direito de humilhar

A desdita

De corpo que habita,

Servo que pouco abona,

Nem de lhe censurar,

Altaneira, etérea,

A miséria.

 

Caridade é o eterno

A respeitar,

Terno,

O efémero deste lugar.

 

 

812 - Artista

 

Ao artista, nem um conselho pioneiro,

Apenas lhe repetir, de si para si:

- Trabalha, trabalha tal se foras o primeiro,

Ninguém criou antes de ti.

E tal se foras o derradeiro:

Deixa testemunho aqui!

 

Então, de tua obra em pleno gozo,

De ti me sentirei mesmo orgulhoso.

 

 

813 - Esperança

 

A paz na terra,

A esperança de paz,

Vem da possibilidade a que se aferra

Cada um e que no imo dele traz

De por dentro dele alcançá-la

Pelos próprios meios:

Não à bala

Ou com tormentos,

Antes por infatigáveis tenteios

Com os próprios precários instrumentos.

 

 

814 - Fracasso

 

Nada fracassa mais

Do que o êxito, hoje em dia.

Os dinossauros actuais

São

As estruturas económicas e institucionais,

Incapazes, em maioria,

De se adaptar às mudanças ambientais.

Portanto, acabarão

Condenadas à extinção.

 

Quem não muda

Em sintonia

Não se iluda:

Finda morto à revelia.

 

 

815 - Desenvolvimento

 

Comummente se acredita

Que todo o desenvolvimento é bom.

Ninguém reconhece que, numa Terra finita,

O melhor dom

 

É o do equilíbrio dinâmico que existir

Entre declínio e crescimento:

Se algo crescer, algo tem de diminuir,

Para que dele o constituinte elemento

Venha a ser liberado

E reciclado.

 

Doutro modo

Como acrescentar

O todo

Da fronteira no limiar?

 

 

816 - Remédios

 

Remédios à doença ministrar

Quando se já desenvolveu

É um poço ir cavar

Quando a sede já venceu,

 

É fundir armas já depois de adentrado

Na batalha do dia…

- Não é tudo ter providenciado

Em hora demasiado tardia?

 

 

817 - Húmus

 

Tal como a decomposição

Das folhas do ano transacto

Gera o húmus para a gestação

Da posterior Primavera em acto,

 

Toda e qualquer instituição

Deve declinar e desintegrar-se

Para que dela a composição

De capital, terra e talentos

Venha a usar-se

Para criar novos inventos.

 

A eternização

Institucional

É da civilização

O mal

De confundir dela a precariedade

Com a eternidade.

 

Mudar deverá ser a norma

Por todo o lado,

Do que o mais profano informa

Ao mais sagrado.

 

Apenas por aqui a vida, a Vida,

Algum dia poderá ser atingida.

 

 

818 - Crise

 

Nossa crise de ideias é de a maioria

Dos académicos

Intelectuais

Subscreverem percepções do real à fatia,

Inadequadas para enfrentar os globais

Problemas actuais.

 

Hoje ao desafios são sistémicos,

Todos interligados,

Todos interdependentes:

Entendimentos anémicos

De caminhos fragmentados

Deixam-nos doentes,

Canto a canto encurralados.

 

Os escolares,

Os organismos governamentais

São doravante lares

Em derrocadas finais,

Enquanto a apreensão global de totais

Não for o pano de fundo dos olhares.

 

 

819 - Organismo

 

A terra como organismo vivo,

Mãe nutriente,

É a restrição cultural que activo,

Limitando os danos

Da atitude inconsciente,

Irreverente,

Dos humanos.

 

Ninguém mata facilmente

A mãe

Perfurando-lhe em busca de oiro

As entranhas ventre além,

O corpo lhe mutilando

Demandando

Algum tesoiro.

 

Enquanto a terra for tida por viva e sensível

É violação de ética humana

Levar a efeito, inamovível,

Toda a mundial procela

Em curso, donde emana

A actividade destrutiva contra ela.

 

Findou o travão cultural

Com a mecanização da ciência:

O modelo mecânico do Universo

Forneceu, afinal,

À consciência

O rumo inverso,

Com a científica autorização

Para explorar a natureza,

Para a manipulação

Ilimitada que hoje o mundo inteiro preza.

 

Com isto, o que estéril inauguro

É hipotecar o futuro:

 

- Órfão acabarei sem mãe

Num mundo pelém.

 

 

820 - Trabalho

 

Se produz quinquilharia

Ou armas de guerra,

O trabalho erra,

É uma esbanjadora mania.

 

Se apoia carências forjadas

Ou indesejáveis apetites,

O labor erra os palpites,

O mundo esbanja às fornadas.

 

Trabalho que engana ou manipula,

Que explora ou degrada,

Erra a jornada,

Esbanja de tanta gula.

 

Trabalho que fere o ambiente

E torna o mundo feio

Erra no próprio seio,

Esbanja mesmo o que sente.

 

Não há como o redimir

Enriquecendo, reestruturando,

Socializando, nacionalizando,

Pequeno o forçando a ir,

Ou a ser descentralizado,

Ou democratizado…

 

É mau enquanto tal:

Só pondo-lhe ponto final!

 

Hoje em dia

Vive com o trabalho insatisfeita

A maioria

E apenas ao lazer é atreita.

 

Então dá origem o lazer

A uma indústria gigantesca

Que a mais esbanjar induz quenquer…

- Do afundamento universal quem nos repesca?

 

 

821 - Despojado

 

Despojado de meus bens,

Gozo do espírito a liberdade

A que aquela violenta separação

Me persuade.

E, como libertos reféns,

Meus olhos repararão

Como haviam sido escravos

De irrelevantes riquezas.

 

Que travos

Beberão às mesas

Os deveras ricos,

A viverem atrás de muros tão altos,

Tão eriçados de picos

Que de toda a hipótese de fuga acabam faltos!

 

 

822 - Obra

 

O artista verdadeiro,

Quanto menos parece trabalhar

Mais trabalha, pioneiro.

Aí é que a obra se anda a gerar

Mentalmente,

Se conforma à ideia exacta.

Depois as mãos somente

Terão de reproduzir e executar

O que, conceptualmente acabado,

Liberto se desata.

 

Quantos, ao não verem reboliço e alvoroço

Chegam a cuidar

Que dali nada é nado!

Néscios, confundem com destroço

A quietude da semente

Que em breve há-de germinar

O rebento virente.

 

É viável não apor uma pincelada

A um quadro dias e dias

E andar trabalhando, madrugada a madrugada,

Nele intensamente as fantasias.

 

Em arte,

Primeiro é o conceito,

A criação aparte.

Depois é executar a preceito,

Efeito derradeiro

A que convida

O momento primeiro.

 

- Em arte, como na vida!

 

 

823 - Aplicável

 

Aplicável será tudo o que existe

À humanidade inteira,

O que aflora à janela

Tem algum despiste

Compreendido, de correcta maneira,

Por toda ela?

 

Os cegos não vêem: podem proclamar

Como verdade universal

A inexistência da cor,

Seu avatar

Fundamental

Fundador?

 

Se todos foram cegos

E apenas um vira as cores,

Não estaria mais certo em seus apegos

Que as legiões de cegos ditadores?

 

Quantas vezes tiveste de lutar, premente,

Contra a oposição,

Em prol do que é claro, evidente,

Mas que os antagonistas negarão,

Cegos, em despótico credo,

Pelo contra-senso e pelo medo!

 

 

824 - Empenho

 

Se no teu empenho perseveras

Por encontrar a resposta,

Ao teu encontro esta virá deveras,

Dum modo ou doutro: em tua aposta

Confia,

Que farás nascer o dia.

 

 

825 - Mesmo

 

Tudo é a mesma coisa

E o mesmo a si mesmo se compensa.

Onde há falta logo acode

O que doutro sobra na despensa.

Tudo tende ao que o repoisa

Na roda que o rode.

 

Nosso desejo

Mora em nossa mente

E, portanto, na Mente Universal,

É um ensejo

Radicalmente

Real:

Já que nela tudo está contido,

Nosso desejo também o está,

É mesmo acolá

Dele o radical lugar devido.

 

Se o desejo tiver força bastante,

O objectivo dele correrá todos os desfiladeiros

Até desembocar adiante

Nos sendeiros

Da mente individual

Que o desejar total.

Devém realidade

No mundo que ela grade.

 

 

826 - Autêntico

 

O autêntico ser, o verdadeiro,

É o que ninguém vê,

É o que se for criando a ele próprio, pioneiro,

Com pensamentos, desejos, actos e omissões,

Com a fé

Que semeia em todas as ocasiões.

 

No final da vida, por fim,

Somos o que fomos, transcorrendo

Assim,

E o modo como o viemos fazendo.

 

Somos a nossa própria obra,

E nada sobra.

 

As limitações que sofremos vida fora

São mera oportunidade

De desenvolver a interior liberdade:

A liberdade de escolher como somos cada hora.

 

 

827 - Escuta

 

Dos deuses escuta a voz,

Quem és tu para quebrares desígnios seus?

Se te enviaram após,

Em busca dum tesoiro dos céus,

 

Tens de ir, de procurar,

De com ele voltar.

 

Se os convocas, tê-los-ás

A teu lado,

A dar força, a dar paz,

A dar a coragem de que vens precisado,

 

Mas és tu quem ara a terra

E do lugar secreto

O desenterra,

Ao tesoiro que te desafia no teu gueto.

 

Não te deixes abater

Das dificuldades pela tropelia.

São degraus da tua escadaria,

Segue em frente sem olhar atrás sequer.

Tem em mira

Que, se ages ao invés, provocarás deles a ira.

 

E será o que ao fim te vitima

Em teu moral, tua auto-estima.

 

Se caminhas recto,

Mesmo preso ou morto tens em ti teu tecto.

 

 

828 - Trágico

 

Por que é que há-de ser preciso

Algo trágico e terrível,

Do inferno ter o aviso,

Do cadinho da dor irrecorrível?

 

Quando angústia houver sofrido

E tormento suficiente,

O homem será homem renascido,

Elegante e decente.

 

Ah! Quem de vez o erradicara

Da presente leva,

De porcos gordos esta vara

Na ceva!

 

 

829 - Horas

 

Em horas de tensão e ameaça,

De terror e de alarme,

De segurança escassa,

 

De silêncio e de ansiedade,

Pergunto-me de que energias arme

Minha inermidade.

 

Corremos a agarrar o passado,

Imitamo-lo em revivalismo,

Modas antigas têm novo reinado,

Velhas canções transpõem o abismo,

Recordamos ambientes históricos,

 

Revivemos guerras e pazes ancestrais,

Quantas vezes eufóricos

No meio dos pauis actuais,

 

Tudo para obliterar o presente desbotado

E um futuro

Que antevejo estranho, assustador e desolado,

Que auguro

Devastador e devastado.

 

O passado,

No marasmo ou na instabilidade

Do mar agitado,

Eis uma âncora no meio da tempestade,

Uma vela ao vento desatado.

 

 

830 - Escola

 

Muita escola de gestão

Há-de considerar

Uma complicação

Colocar o trabalhador da instituição

Em primeiro lugar,

Ao tê-lo em consideração.

 

Não é nunca, porém:

Quando o tratamos bem,

Ele trata bem os clientes,

Estes voltam a procurar

Nossos bens, serviços e patentes

E o derradeiro efeito

É o accionista satisfeito.

 

O melhor resultado

É de quem tiver respeito

Por este encadeado.

 

E é sempre um país pobre

O que nem isto descobre.

 

 

831 - Condição

 

Dum povo a condição nunca se altera

Se o povo não se alterar.

Muito bode expiatório prolifera,

Muito escape anda a pegada a falsear.

 

São horas de introduzir

De verdade

Uma nova era

De porvir:

A da responsabilidade.

 

 

832 - Come

 

Para colheres,

Semeia,

Colhe para comeres

E, quando a fome ameia,

Come para viveres.

 

 

833 - Vitória

 

Não há vitória na guerra,

O triunfo é dentro de nós,

Em aprender a calar a loucura que nos encerra

Na gaiola de cipós,

Assassina e desdenhosa,

Em dominar a opacidade

De nossa cumplicidade

Criminosa.

 

Não é nada comigo?

- Depois, na sequela,

A Humanidade acaba sem abrigo

E eu com ela!

 

 

834 - Paulada

 

A vida é assim: vamos vivendo

E, se nos dão uma paulada na cabeça,

O melhor é irmo-nos encolhendo

(E bem depressa)

Até a ferida sarar,

Depois levantarmo-nos tranquilamente

E continuar

O nosso caminho em frente.

 

Sem desviar,

Evidentemente.

 

 

835 - Afirmam

 

Afirmam que chega a altura

Em que a guerra é inevitável…

Ora, é-o tanto como a usura,

O roubo, a ingenuidade abusável,

A vaidade esvaziada,

- Mais nada!

 

É uma orgia monstruosa

Sem leviandade gozosa,

 

Sem alívio, redenção,

Sem culpa, só punição.

 

Onde fica a vitória?

No corpo esburacado,

Na mente trémula, enlouquecida,

Nos devaneios sem memória

Do alucinado,

Na vida esvaída?...

 

A vitória já nós a perdemos:

Por nossa violência

À violência empurrámos outros a recorrer,

Mas com extremos

De maior, de mais terrível ocorrência,

Como a cada caso convier.

 

Poderíamos estar perto dos anjos,

Ser meramente um pouco menos…

Renegámos, porém, cítaras e banjos,

E eis-nos aqui tão pequenos!

 

 

836 - Oposto

 

Ao lado oposto ir sem medo

E depois voltar

Com uma síntese brusca ou lerda,

- Eis o segredo

Para evitar

A perda.

 

 

837 - Trepando

 

Um itinerário espiritual

A sério trepando em frente

É por demais exigente

E quantas vezes fatal!

 

Ou os indivíduos entendem

Que é mesmo de obedecer

Ou ficam ao deus-dará,

Do ego a mando de que dependem,

Sob rumos materiais quaisquer

Onde Deus não está.

 

E assim, ganhando, perdem,

A miúdo,

Tudo o que herdem,

Tudo!

 

 

838 - Pronto

 

Sempre que te agarrares

Ao que houver fora de ti,

Sempre que deixares

Que outrem diga quem és

E o que na vida te sorri,

É o momento do revés:

- Estás pronto para perder.

 

Àquilo a que te agarras

Sempre quenquer

Pode desatar as amarras

Desde que seja

Fora de ti que o veja.

 

É que apenas por ti dentro

É que de fora jamais entro.

 

 

839 - Campos

 

Sempre que por ti próprio fores

O que quer que seja,

Pelo que intuis em teus campos interiores,

Por teu poder de captar o que teu imo almeja,

De sentir quem és e o que anseias,

- Sempre que fores capaz

De fazer isto ocorrer

Sem peias,

Nunca atrair irás

Uma perda qualquer.

 

A perda só acontece

Quando ser algo quiseres

A partir do que colheres

Fora de ti, em estranha messe.

 

Se partes apenas de teu imo,

Apenas irás rumar ao cimo.

 

 

840 - Desactualizado

 

O Cosmos não vai nunca parar

Na infinita Interioridade que o anima,

Pelo que o que hoje lês amanhã pode estar

Desactualizado, das vivências que houve em cima.

 

Aprende, aprende, porém,

Vai trilhando o teu itinerário.

Não tentes chegar a nenhum lado sem

O transcurso

Inseguro e vário

De teu próprio percurso.

 

 

841 - Aliada

 

A inteligência aliada ao coração

É a harmonia

Da maior oposição

Que a matéria enuncia.

 

Mente e afecto:

Aquela tem de entender

Que mora debaixo do mesmo tecto

Que este: terá de o acolher!

 

Toda a matéria é feita de opostos:

Bem e mal,

Grande e pequeno,

Alegrias e desgostos,

O diferente e o igual,

Das trevas e da luz o aceno,

Muito e pouco,

Sábio e louco…

 

Todos têm de ser harmonizados

Num equilíbrio de cuidados.

 

Experienciar a matéria

É a missão do ser humano,

Na fartura e na miséria,

Na franqueza e no engano.

 

Estejamos ou não a postos,

Trata-se sempre de harmonizar opostos.

 

 

842 - Vê

 

Vê o que fizeste e como,

Vê o que sentiste e como.

E, depois de quanto viste,

Vê o que fizeste com o que sentiste.

 

O que sentes apenas ficará resolvido

Um dia

Se discernires o que fazer com ele.

Deita-o cá para fora, comedido ou descomedido,

Até à última gota da almotolia:

- Sê o afecto fundo que te impele,

Sê magia!

 

 

843 - Lágrima

 

Nem tudo em que boles

É de boa mantença:

Cada lágrima que engoles

Transmuda-se em doença.

 

É mentira que pensar

Nas coisas tristes da vida

Há-de chamar

Energia negativa, de seguida.

 

Não pensar é que a chama,

Não fazer o luto das tristezas

E deixá-las, em negra trama,

No peito a doer presas.

 

Chora-as de vez e segue em frente:

O chão desata a mudar-se-te lentamente.

 

 

844 - Prática

 

Não racionalizemos a espiritualidade!

Prática e treino, prática e treino

É que contam de verdade.

Ir lá acima, ao Reino,

 

Meditar, meditar,

Anular meu ego a zero,

A fundura de meu íntimo mar

Sentir mais, pensar menos,

Livrar-me do que não quero,

Dos medos terrenos.

 

É dia de ser livre outra vez,

Desamarrar laços que me põem dependente,

Cortar as correntes dos pés

Que me apegam ao passado renitente.

 

Basta de medo,

Medo da morte,

Medo da vida,

De como sucedo,

Da sorte

Que me for concedida,

Medo dos outros e de mim,

Medo do escuro,

Do que houver além do confim,

Do que me espreita e aponta o dedo

Atrás do muro,

Medo do medo…

 

Chega! Chega!

É a hora da liberdade,

A hora da entrega

Radical e sem esquiva,

Da entrega de verdade,

Definitiva.

 

A espiritualidade

É a vida viva.

 

 

845 - Importância

 

A importância de escolheres por ti!

Se escolhes por ti, ficas preparado

Para os efeitos que vierem daí:

Cada problema que daí advier

Tem teu dedo marcado,

O teu tom, o teu perfil,

Contigo confere,

Não o confundes entre mil.

Resulta deste elo

Que podes resolvê-lo

 

E até cresces, acaso,

Com ele, a prazo.

 

Se a escolha é doutrem que ta impôs

Ou aconselhou,

Se ele, enfim, não tem teu jeito de ser a sós

Nem marca que de ti tomou,

Todos os efeitos que daí advêm

Te são estranhos,

Não conferem com as energias que te sustêm,

Só te farão mal, nunca auferes ganhos.

 

Tantos problemas que tantos

Não logram resolver!

E tudo das escolhas sob mantos

Que, não sendo as deles, nunca deveriam ser!

 

 

846 - Baixo

 

Quem vivencia

A dor e o sofrimento

Cá de baixo com a miopia,

Deles nunca logra o entendimento.

 

Nunca mais quererá voltar

A tal conjuntura

Para não sofrer em mais nenhum lugar

Nem em nenhuma altura.

 

E o evento que fora despoletado

Para o resolver na aceitação, entrega, e avançar

Fica para ali congelado,

Melhores dias a aguardar.

 

E o indivíduo vai atraindo

Mais a mais eventos semelhantes,

Cada vez mais fortes, violentos e gritantes,

Para ir indo

Até lá,

Ao lugar donde fugido haverá,

Para os descongelar,

Desbloquear,

Aceitar, ao Infinito entregar,

Chorar,

 

Fazer finalmente acerca

Deles o luto da perca.

 

De tanto mastigar tal dor,

A verdadeira paz

Interior

Emerge: a dor se desfaz!

 

Apenas então acontece

Que a cadeia da perda desaparece.

 

 

847 - Vens

 

Que é que vens fazer ao mundo?

Escolher se queres ou não ser.

Se escolhes ser, à interior alma dás espaço fecundo

Para se exprimir e acolher,

 

Para dizer o que a expande e a reprime,

O que a ajuda a ser quem é,

O que a faz anular-se, sem ter a que me arrime

E que a tenha de pé.

 

Se escolhes ser,

Deixas que a vida se apresente,

Todas as experiências, boas ou más, a te trazer,

O que te ajuda a ser mais ágil, perceptivo e coerente.

 

Trilhas a floresta da vida

Com intuição para o caminho

E a coragem devida

Para seguir em frente, adivinho.

 

No fim da vida irás

Olhar para trás,

Ver o longo caminho percorrido

E perceber que fez sentido,

 

Que a aposta serena

Valeu a pena.

 

Se escolhes não ser,

Activas o controle,

Começas a escolher

Pelo medo que em ti bole.

 

Medo de perder,

De não ser feliz,

De não ganhar para se fazer valer,

Medo de ter medo de raiz,

 

Medo de sofrer,

Medo de ficar,

Medo de morrer,

Medo de avançar…

 

- No fim

Não há para onde olhar

E tudo tem de voltar

Ao princípio, assim.

 

 

848 - Transmitir

 

Devo ensinar

A criança a pensar.

 

Não impor-lhe o que deve,

Estreita, pensar breve.

 

Não transmitir conhecimentos,

Mas sabedoria

Para que saiba escolher, em todos os momentos

O que mais conviria,

 

Para que aprenda a reflectir deveras,

A desenvolver a criatividade,

De modo a gerar novas eras

A partir das leiras desta idade.

 

 

849 - Sólida

 

Um homem verdadeiro

É de sangue quente e sólida ossatura.

Quando sofre, é de lágrimas um lameiro

Grandes e autênticas por toda a figura.

 

Quando é feliz,

Não dilui a alegria

Obrigando-a a dobrar a cerviz

Na peneira fina que tudo entibia,

Falaz,

Da metafísica atrás.

 

Ri, se for caso, às gargalhadas,

E abre à festa todas as estradas.

 

 

850 - Mentalidade

 

É urgente

A mentalidade que o sentido verdadeiro

Entenda do presente,

Que não se limite

A desejar, ligeiro,

Um mundo melhor,

Mas que acredite

Que melhor é viável fazê-lo e o venha impor.

 

Mentalidade que não dorme,

Que com o facto denegrido

Se não conforme

De o não haver conseguido.

 

Mentalidade que se não esconda

Num dos poucos bons lugares

Que do mundo restam na onda,

Mentalidade que salta os algares,

Resistente e tenaz,

Onde o mundo a sério se faz.

 

 

851 - Requeiro

 

Não requeiro mais, saboreio a vida:

Conceber, trabalhar,

Comer, beber, dormir,

Em ordem ter um lar,

Ouvir os mais bendizer uma lida,

Louvar

A desenvoltura com que me desimpedir,

Zangar-me de vez em quando,

O que dá mais gosto ao amor,

- Quanta alegria proliferando

E que sabor!

 

Por tudo isto cada manhã me levanto

Despertando o dia

Com esplêndida alegria:

A vida é um encanto!

 

 

852 - Remedeia

 

A caridadezinha da caridade,

Para homens como para animais,

É de tempo mera perca:

Só remedeia de verdade

Pequenos sofrimentos que arrebanhais,

Por aqui, por ali, sempre fora da cerca.

 

Se fora tão fácil o problema!

Se eu impedir alguém de bater no cão-homem agora,

Não o impedirei de repetir o esquema,

Sem demora,

Mal vire costas,

Da vida ao ter de apostar noutras apostas.

 

É mesmo preciso mudar tudo,

Ou então sou eu que a mim me iludo.

 

 

853 - Primitivo

 

Quão mais primitivo é um homem

Tanto maior ele se julga.

As convicções cegas que o tomem

Dão-lhe o ímpeto que o promulga

E não há malabaristas que domem

O parasitismo desta pulga.

 

A dúvida e a tolerância

São nossa cara civilizada.

Aqueles andam sempre, com ânsia,

A destruí-la de empreitada.

 

E é preciso trepar eternamente

Da civilização as encostas,

Olhando em frente,

Com aquela pedra às costas.

 

 

854 - Estátua

 

Impassibilidade

De estátua que nos degrade

Não é nosso ideal.

Fica triste à vontade,

Que depois, com tal,

Sentir-te-ás aliviado.

A tristeza, em nosso fado,

É, muitas vezes, a alegria final.

 

 

855 - Plácida

 

Filha da tolerância,

A plácida serenidade

Com que intolerável ânsia

Nos invade!

Dela à existência

Precária

Quanta coisa é necessária!

Sabedoria, superioridade

Ante qualquer circunstância,

Paciência

E resignação ante o inevitável…

- Tudo o que do totalitarismo a arrogância

Nos torna inviável.

 

 

856 - Perder

 

Facilmente perdemos

O que nos braços prendemos,

 

Nunca, porém, o que largamos:

Como perder o que já abandonámos?

 

Não te prendas a nada, não te prendas,

Que assim consegues que a nada te rendas.

 

 

857 - Transformar-se

 

A Lua relata

Que tudo, na primeira ocasião,

Pode transformar-se de lixeira em prata

Com um pouco de imaginação.

 

Na paisagem haurida

Como em tudo o mais na vida.

 

 

858 - Necessário

 

Se você não obrigar

Outrem a alimentá-lo,

De beber a lhe dar,

A transportá-lo,

A defendê-lo dos inimigos

No meio desta vida sem remissão

Cujos reais perigos

Provêm de ser fundada inteira na escravidão,

- Então haverá neste processo

Um real progresso.

 

É o mais tangível,

De maior objectividade,

O único necessário e possível

Deveras para a humanidade.

 

 

859 - Luta

 

Se toda a gente,

Sábios e pensadores,

Génios e artistas,

Inventores

E cientistas,

Tomar parte congruente

Na luta pela vida,

Cada um de per si no contingente,

Duramente

A britar pedra na avenida,

A cobrir telhados,

A erguer paredes,

A apurar cozinhados,

A pisar uvas que matem sedes,

- Se todos, cada qual no próprio mester,

Ganharem a ração de comer,

Não correria grave perigo

O desenvolvimento que prossigo?

 

Ora,

O progresso real

Mora

Apenas no amor,

No respeito cada vez mais integral

Do valor

Da lei moral

Que de modo mais universal

Se vislumbre e logre propor.

 

Se ninguém for escravizado,

Espoliado,

Se ninguém viver à custa de ninguém,

Que progresso mais sublimado

Nos é preciso ou nos convém?

 

 

860 - Aumenta

 

Leia

Experimentando a previsão.

É o que lhe desencadeia

O pensar mais profundo

E aumenta a cada segundo

A compreensão.

 

 

861 - Parte

 

Na escola, o bom leitor

Parte com avanço.

O nível de leitura é um indicador,

Logo no ano primeiro,

Do que alcanço

No derradeiro.

 

É, portanto, a partida

Para muito depois na vida.

 

 

862 - Distracção

 

De intelectual distracção qualquer jogo,

De palavras, encaixes, tabuleiro,

Algum poder ou saber desenvolve ali logo,

Pioneiro,

De que é viável a quenquer

Algum proveito recolher.

A única dificuldade em jogar

É criança cada qual bastante ficar

A vida inteira para o fazer.

 

 

863 - Mudar

 

Quem procura salvação

A mudar de terra,

Ave de arribação,

Nada encontra em parte alguma:

Aquilo a que se aferra,

Afinal,

É uma terra, em suma,

Sempre igual.

 

Ou encontra a salvação dentro de si

Ou não encontra nada ali.

 

 

864 - Empresa

 

À medida que a empresa vai crescendo

Fica o dono encurralado

Nesta prisão que há criado.

O êxito que pretendes e pretendo

Ergue muralhas com a escolta

Dos homens à volta.

 

De tal modo se habituam a ler folhas de balanço

Os donos, de negócios relatórios,

Que, perdidos nestes envoltórios,

Já não vêem o homem descalço e sem descanso,

A mulher sem brilhos

Nem leite para os filhos.

 

Para os pecados, porém, muito prática

Há uma absolvição automática:

 

Sem deles o capital e o envolvimento

Não seria a empresa construída

E não haveria emprego a contento

Para a mão-de-obra com que lida.

 

Porque a fábrica existe

Ou a mina,

A cadeia comercial,

A loja,

É que a cidade persiste,

A escola predomina,

O hospital

Gere a saúde que te aloja.

Doutro modo, embora exigidos,

Nunca teriam sido construídos.

 

Porque o empresário é realista

Pode obrigar o político a ser mais honesto

E o banqueiro, a pôr na lista

A aposta num novo apresto.

 

Ao fim, o balanço abranda,

Nada é tão preto e tão branco

Como no cartaz de propaganda

Que colo ou que arranco.

 

Por vezes as companhias

São prostitutas na cama do tirano

Cuja polícia as abrigaria

De qualquer dano.

 

É fácil condenar a prostituta.

Mas que é que transforma nesta

A mulher honesta,

Que luta

A molesta?

 

E que ocorrerá

Quando se arrependa,

Fatigada do que tira e do que dá,

E então se renda,

De tais vínculos se descosa

Tornando-se virtuosa?

É que, a coberto dos desacatos,

Há muito quem lucre (e ninguém o proclama)

Dela com os actos,

Para além do companheiro de cama.

 

Não podemos demolir

A grande empresa e dela a envolvência

Para redimir

Nossa má consciência.

O melhor é usar o poder que dali provém

Para construir

Pontes de benevolência

Pelo mundo além

E montar redes

E contrapoderes

Que destas águas nos matem as sedes

E renovem os seres.

 

 

865 - Extremista

 

O extremista por um lema

Simples meço:

Não há remédio para o sistema

Que não a destruição e o novo começo.

 

Importa activar, ao invés, a norma

Da potencialidade do protesto e da reforma.

É que o novo dacolá refeito,

Fatal,

Renasce com o dobro ou o triplo do defeito

E piora sempre muito o mal.

 

 

866 - Inevitavelmente

 

A anarquia

Produz inevitavelmente a tirania.

 

A tirania é o chão

Onde cresce a revolução.

 

Assim se fecha o círculo sangrento,

A menos que descubramos a panaceia

Para a loucura que nos rodeia

A cada momento.

 

A virtude é atravessar pelo meio

Dos escolhos extremados,

Precário equilíbrio para onde ameio,

Dentre a ameaça de todos os lados.

 

 

867 - Arma

 

A maior arma da tirania

É o silêncio e a falsa notícia.

Quebremos o silêncio pelo clamor à luz do dia,

Quebremos com a verdade as garras da sevícia,

 

Publiquemos o teor do mundo:

Listas de presos políticos,

Relatórios factuais deste açougue infecundo

Verazes e analíticos,

Identidade dos torcionários

E dos comprometidos,

A títulos vários,

Da tortura e do terror nos negócios escondidos.

 

A face negra do tirano, posta à luz,

A ninguém já seduz.

 

 

868 - Torcionários

 

Os torcionários que as vítimas aniquilaram

Continuam a andar ao sol,

Livres e respeitados pelos que os vergéis aram

Desde o arrebol.

 

Parecem alguns deles

Indivíduos normais,

Anhos imbeles

A tasquinhar nos urgueirais.

 

Lavam o sangue das mãos

Ao fim do dia,

Vestem roupa de cortesãos,

De cortesia,

Vão para casa acariciar

A mulher

E os filhos acarinhar,

No lar

Que cada qual tiver.

 

Tudo porque os actos deles são invisíveis,

Todos os ignoram,

Como aos limpa-esgotos imprescindíveis,

Aos embalsamadores que ninguém sabe onde moram.

 

Prosperam com o tácito consentimento

Da gente normal

Que quer a rua limpa, sem o vento

Do marginal,

O comboio a circular

A horas

E dos ladrões o patim, no patamar,

Protegido sem demoras.

 

Aos torcionários

Os contribuintes pagam os salários

 

E ei-los promovidos

A postos militares e civis bem garantidos.

 

Passeiam à vontade nas ruas

Enquanto as vítimas apodrecem nas celas,

A pele rasgada pelas puas,

Fracturadas as costelas,

 

A uns metros da praça central

Pisada pela bota dum alheado general.

 

Com ou sem o feitiço

Dos apelos,

É por isso que temos de detê-los,

É por isso.

 

 

869 - Habituados

 

Andarão tão habituados os pendores bons

À obscenidade

Que apenas da inocência os tons

Poderão tocá-los de verdade:

O sorrir dum bebé adormecido,

Uma avozinha a dormitar ao sol…

 

- Tal fermento, comedido,

Tem de entrar

E respirar

Em nosso rol.

 

 

870 - Maus

 

Não somos maus, não,

São os ratos que nos obrigam.

Não somos nós que gostamos dum irmão

No manicómio ou prisão.

A culpa é dos ratos que brigam,

À ética não ligam,

Que os contagiam

E, nestes termos,

A destruir ratos nos obrigariam

Para nos protegermos.

 

Então, de ratos o caçador

Poderia ser, se calhar,

Um honrado servidor,

Bastaria o homem vulgar

Estar disposto a lhe pagar.

 

Ninguém

Está disposto,

Porém,

A dar o rosto?

 

Ora, se ninguém pagar, as crianças

Serão engolidas pelas colinas

E nunca mais as alcanças

Nas goelas assassinas.

 

Aliás, da criança o que em ti resta

Para alguma coisa ainda presta?

 

Por trás deste rosto pacato,

Quanto em ti, afinal, há de rato?

 

 

871 - Hipócrita

 

Há muito quem no íntimo esteja

Pejado de boa vontade

Mas que em acto seja

Hipócrita, a encobrir a maior perversidade.

 

Choram lágrimas de sangue pela criança

Atropelada no chão,

Mas nem um suspiro os alcança

Pelos milhões que, mundo fora, morrem de inanição.

 

O afundamento dum barco

É uma tragédia,

Um genocídio tribal é um título que mal abarco

Algures, nos massemédia.

 

Num choque de comboios na estação

Sessenta mortos é catástrofe terrível,

Seis milhões em campos de concentração

É mera estatística credível.

 

Remetem toneladas de comida

Às vítimas dum terramoto,

Mas não erguem a voz mais sumida,

Nem as mãos, nem um coto,

Em prol de milhares e milhares de dissidentes

Inocentes,

Sujeitos a tormento,

Perdidos no esquecimento.

 

A boa vontade não chega,

Em acto é que ela se afirma ou se nega.

 

E o acto é que nos clarifica até onde,

Afinal, se esconde.

 

 

872 - Incapaz

 

Quem é incapaz de responder

Convenientemente

É melhor nada dizer.

Aliás, para quem espera resposta, impaciente,

Nada desconcerta tanto

Como o silêncio, entretanto.

 

Quando é mesmo isto o que procuro

Não há, pois, caminho mais seguro.

 

 

873 - Pequeno

 

O animal maior recua

Se nos olhos o mais pequeno o fitar.

Assim o cão o lobo acua

Até o afugentar.

 

- E nós a ignorar tanto

A virtude de tal manto!

 

 

874 - Importa

 

Quantas vezes ao paciente

Nada lhe importa a doença ou a cura!

Procura apenas o que toda a gente

Procura:

Entre as mãos a mão

De quem dele se ocupa,

A sensação

De que alguém amavelmente se preocupa.

 

E é o que lhe acelera e assegura

Muitas vezes a cura.

 

 

875 - Condições

 

A paz é durável

Quando as condições forem honestas,

Se de vontade verdadeira e fiável

A aprestas,

Sem enganos:

Apenas então não gera danos.

 

Da paz deveras o teor

Estranho

É que primeiro lhe vem do interior

De cada um o melhor

Da seiva e do ganho

 

 

876 - Descobre

 

Descobre a verdade

Por trás da promessa e dádiva do rico

Mas também, em pé de igualdade,

A que verifico

Que se encobre

Por trás do soluço e súplica do pobre.

Não te abandones ao engano,

Que daí só virá dano.

 

 

877 - Ganhar

 

Ganhar a vida com qualquer arte,

Que problema!

É sempre ser pisado por mercados

E, quer os de grandes massas, quer de parte,

Têm por lema

Servir o gosto médio dos clientes visados.

 

Os números ei-los ali,

É a crua realidade.

Mas como é castradora em si

Esta fatalidade!

 

Ao menos, porém, posso guardar em meu posto,

Secreta,

A obra de que gosto,

A preservar a inefável meta.

 

 

878 - Uivos

 

Dos uivos do tempo fatalmente consciente,

Reparas no esvaimento, na extinção

Desta realidade estranha chamada vida.

Tudo absolutamente

Foi transitória procissão

De despedida:

Trabalhar,

Comer,

Direito caminhar,

Depois cambalear,

Desfalecer…

 

Assistes de tudo ao fim,

Actos, palavras, amores

Que encheram dos anos o baú,

Tudo, enfim:

As abelhas e as flores

São tão passageiras como tu…

 

Dos tempos na poeirada

Acolhes teu tudo, teu nada.

 

- Então, a cada dia empresta

A alegria triste de tua festa.

 

 

879 - Ressentir-nos

 

Ressentir-nos do destino

A nada leva,

Tudo ocorre sem tino

E nada mais, perdido na treva,

Nada mais quenquer que seja, quenquer

Pode dizer.

 

Contra tal fortuna vituperar

É, no tormento,

Condenar

O fumo ou o vento

E sofrer durante

Todos os dias, pela vida adiante.

 

Ao fim e ao cabo,

Nada resta senão arcar, contente,

Com o que nos for dado

E seguir em frente.

 

 

880 - Política

 

A política ou as armas

Dão força, poder, o mando,

Volúpia de conduzir

Os homens que então desarmas

Com palavras doces, quando

Lhes pregas, a os iludir,

 

Justiça, democracia,

O direito, a liberdade…

Nunca pões à luz do dia

O que pretendes, sumário,

Em teu fundo de verdade:

- O poder discricionário.

 

 

881 - Miséria

 

Ante a miséria em livros descrita,

Em quadros representada,

Até às lágrimas se comove da desdita

Imaginada.

 

Ante um miserável em carne e osso, porém,

Mais osso que carne, em norma,

A repugnância, a impaciência o detém

E conforma.

 

É-lhe impossível amar a humanidade sofredora,

Que é feia, triste, malcheirosa:

Teoricamente, o poético pobre adora,

Ao vivo, é prosa.

 

Importa elevar,

Já que persistem tão escassas,

As chãs materiais e espirituais do vegetar

Das massas.

 

Mais que o que o líder exorta

A ser respeitado, mesmo admirado,

O que importa

É ser amado.

 

O paradigma supremo

Alia força e bondade,

Atributos que raramente, temo,

Se encontram unidos na mesma entidade.

 

Aliados no trono,

Porém,

Findariam o abandono

De que a humanidade vem.

 

 

882 - Adulto

 

Cremos que um miúdo sofre mais

Por não entender

O que andar a ocorrer.

Um adulto, porém, compreende os sinais:

Ora,

Isto, ao invés, é que tudo piora.

Além disso, a par,

O adulto tem de representar.

E ter medida

Quantas vezes custa a vida!

 

 

883 - Tensão

 

Inteiramente sozinho,

A tensão nos ombros acumulada

Principia, devagarinho,

A ceder, desarmada.

 

Até ao momento

Nem houvera percebido

Quanto ansiara, no tormento,

Por solidão,

O remédio perseguido

Através da servidão.

 

Não pudera desfrutá-la

Nos derradeiros anos,

Nem a perseguira na devida escala,

De tão activo a prevenir danos,

De tão azafamado da vida com as sanefas,

Perdido do dia-a-dia nas tarefas:

Houvera objectivos a atingir,

Respostas a provar

E tais fogaréus não permitem progredir,

Sem tempo nem espaço para saborear

O prazer picante e chão

Da solidão.

 

Não compreendera de verdade

Quanto precisara então

Da serenidade

Da imensidão.

 

Nunca, porém, é tarde

Para fazer alarde

Do verdadeiro pendão.

 

 

884 - Dilema

 

É sempre melhor encarar

Um dilema de frente

Do que as costas virar

Ao que se não pode ignorar

Fatalmente.

 

 

885 - Tentamos

 

Por que é que, mesmo sabendo

Que não adianta,

Tentamos sempre enganar-nos, crendo

Que correrá bem quanta

Ocorrência

Se souber

Com antecedência

Que vai acontecer?

 

Descobrir

Nem sempre é o lugar

De prevenir

Nem, quantas vezes, de remediar.

 

 

886 - Pedra

 

Numa pedra o que figuro

Que não pode ser mudado,

Quando o apuro,

É apenas o passado.

 

Tudo o mais

Aguarda os meus sinais.

 

E, quando à pedra me grudo,

Poderei mudar tudo.

 

 

887 - Corrigir

 

Não podes corrigir o que ele pensar

Ou sentir no peito.

Podes apenas mudar

O que sentes tu a tal respeito.

Inviolável é a fronteira:

- A cada qual, sua jeira.

 

 

888 - Abanando

 

Alguns esperam que tudo

Do céu lhes caia.

Podem até trabalhar pelo miúdo

Para lograr tocar a raia.

 

Cuidam que abanando o ramo bem,

Se o sacudirem bastante,

À mão lhes vem

O fruto cobiçado logo adiante.

 

Nunca lhes ocorre

Que bem pode ser preciso

Trepar à frança por onde o ramo corre,

Cair dela até perder o siso,

Dilacerar arranhões,

Aguentar pancadas,

Até chegar, aos baldões,

Às frutas desejadas.

 

Quando a fruta vale a pena

Então também vale a pena o risco

De desgrenhar a melena

E partir o pescoço por tal isco.

 

 

889 - Estática

 

Não é estática a moral,

É um itinerário constante

Em que o valor ancestral

É de novo testado logo adiante,

 

Posto à prova, intransigente,

Em contextos de vida diferente.

Às vezes revela-se inadequado

À contemporaneidade

E terá de ser readaptado

Em prol duma imprevisível autenticidade

Que há-de ser, afinal,

Sempre original.

 

 

890 - Apenas

 

A estrada

Apenas tem uma direcção:

A verdade só pode ser encontrada,

Não produzida por votação.

 

Não persuade

Outro rumo qualquer:

Era trocar o poder da verdade

Pela verdade do poder.

 

 

891 - Areia

 

Neste mundo atormentado,

Uma religião de palavras, documentos,

Publicações que ficam pelo papel

É um edifício levantado

Sobre a areia: os ventos,

Em tropel,

O tombam, violentos,

De lado.

 

Dos factos concretos a tocha,

Na vida das individualidades

E comunidades,

É que fica gravada a fogo na rocha,

A desafiar as tempestades.

 

 

892 - Adulações

 

De adulações nos tresanda a boca,

De cor declamamos qualquer sacra escritura,

Resmungamos os cantos que a religião convoca,

Todavia não temos o que Deus procura,

Único cartão de identidade:

- A caridade viver e a humildade.

 

 

893 - Alegria

 

A alegria é o gozo consciente

Dum bem vivido

Como seguro.

O bem obtido

Por favor é correspondente

Às alegrias precárias que apuro.

 

Apenas graníticos bens

Geram alegrias duradoiras.

Mas o granito é duro

E pode, entre os améns

E as tesoiras

A cortar cada peça,

Partir a muitos a cabeça.

 

 

894 - Escândalos

 

Escândalos não provocar

Dá mais jeito

Que o bisturi aplicar

À podre chaga do peito,

A fim de a curar.

O problema é que então, em vez da cura,

A chaga perdura.

 

 

895 - Hipócritas

 

Hipócritas são louvadores,

Mentores de virtudes fingidas,

E, ao mesmo tempo, detractores

E perseguidores das virtudes verdadeiras,

Cujas leiras

Sempre são neles traídas.

 

Olhar aos factos,

Não aos termos,

É o modo de os lermos

Sem por eles, em falsos pactos,

Sermos

Enganosamente coactos.

 

 

896 - Optimismo

 

Optimismo verdadeiro

Não é fazer crer

Que tudo está certo em toda a parte,

Mas verificar, pioneiro,

Custe o que custar a todos e quenquer,

Que nem tudo vai bem

Quando, mundo além,

Nosso olhar se reparte.

 

 

897 - Pensa

 

Põe as dúvidas de lado,

Pensa nas possibilidades,

Fica nisto focado.

É simples, requer poucas faculdades.

Os eventos cercam-te em redor

Como ar em volta:

Movimenta-os com amor,

Toma nas mãos a brisa solta.

 

De mãos erguidas

Gera vidas.

 

 

898 - Virar-se

 

Lembra-te de que o que crias

Pode virar-se contra ti

Ou contra quem amas, nalguns dias,

Em triplicado frenesi.

 

Quando combates algo a que ameias,

Outro efeito desencadeias.

 

Tens de reparar no todo

A prevenir um falso engodo.

 

E respeita a realidade,

Não lhe entrances na teia qualquer maldade.

 

Sê bom,

Que o mundo inteiro muda de tom.

 

 

899 - Descascas

 

Quando descascas a laranja

Não tentas ir cortando até ao fim,

Sem quebrar a casca inteira que ela abranja,

Cuidando que assim

Terás um desejo atendido

Ou de bom algo entraria

Do dia

No tecido?

 

Nunca quebraste aquele ossinho

Da sorte do frango, à mesa,

Pedindo um desejo, entre o pão e o vinho,

Ao lado de alguém que te preza?

 

Nunca cruzaste os dedos

Torcendo para que algo dê certo,

Distorcendo os credos

Mais longe ou mais perto?

 

São pequenos encantamentos,

Antigas tradições,

Tão simples como um desejo solto aos ventos,

Tão complexo como do amor as pulsações,

Tão perigoso, nos potenciais elementos,

Como os raios e os trovões.

 

O poder envolve riscos,

Escondidos por baixo das fantasias

E dos petiscos,

Mas também traz alegrias.

 

Se o temos, por que deixamos tanta morte

Ocorrer em redor?

É que há um ciclo e um norte,

Uma ordem natural,

Cujo respeito se nos deve impor,

Imperativo fatal.

 

É imprescindível a muda,

Sem muda não há progresso,

Não há renascer que nos acuda,

Nem meço

O que alcança

Nenhuma expectativa de mudança.

Usa o poder

E o feitiço

Para atar de novo o liço,

Para o novo poder ser.

 

900 - Abandono

 

Quando abandono de vítima o papel

E desisto de ser passivo,

Se me atrevo a questionar a granel,

Desafiar doutrem a interpretação ao vivo,

Coloco-me no bom caminho

Para descobrir, a contento,

O que, no cadinho,

É verdadeiro conhecimento.

 

 

901 - Aparentemente

 

Jamais é fácil viver

Mesmo para quem aparentemente o for.

Podemos é virar a favor

As dificuldades que houver,

Optimizá-las como um facho

Ou permitir que nos deitem abaixo.

No que cada qual recolha,

O que decide é a própria escolha.

 

 

902 - Importante

 

Importante não é não ter medo, não,

Mas sim, apesar dele, enfrentar a situação.

 

Quem gradualmente e de modo prolongado

O medo enfrenta, a vencê-lo acabado

 

Sempre terá,

Mais aqui, mais acolá.

 

A coragem, todavia, reza o credo:

- Quer dizer: tem medo!

 

 

903 - Aumenta

 

Aquilo que te não regala

Em teu diário amanho

Cala:

- Aquilo de que alguém fala

Aumenta de tamanho.

 

 

904 - Importante

 

Importante é apenas aproveitar

O momento que passa.

Aos momentos simples da vida atento estando

É que o sentido profundo vou procurando

Que a vida me pode indicar,

Que para mim pode ter no que me enlaça

E me trespassa.

 

Nesta procura

Vou encontrando a felicidade,

Para cuja feição

Ou figura

Não há, na realidade,

Jamais definição,

Mas que me invade

E persuade

O coração.

 

 

905 - Atrapalhe

 

Não há nada que mais atrapalhe o caminho

Rumo à felicidade que da culpa o peso.

O medo do castigo queima, dele no cadinho,

Ou o dos males que podem coagir-me preso.

 

Sinto que não mereço viver na alegria,

Na abundância que ameia no alvor de cada dia.

 

E é tudo, afinal, tropeço

Da vera altura que meço.

 

Se me solto é que a figura

Inteira de mim se apura.

 

 

906 - Tragédia

 

Vale a pena deixar de correr

Para dentro de minha vida

Por medo duma eventual tragédia algures escondida,

Apenas de velhice para morrer

Tendo então apenas de meu

Ver que a tragédia nunca ocorreu?

 

 

907 - Desamarrar

 

Ante uma tragédia que o fira, grande ou pequena,

Há quem desista logo de pensar

No que a jogou em cena,

Para se culpar:

 

"É culpa minha,

Vai ser assim toda a vida,

Vai-me desamarrar a gavinha

Que me prenda a qualquer lida."

 

Quando algo nos corre mal,

Podemos achar que é tudo

Ou, ao invés, que é parte do total

Com que não me iludo.

 

Podemos culpar-nos a nós, aliás,

Ou aos outros ou às conjunturas que houver por trás.

 

O que importa é habituarmo-nos a persistir

Perante o desafio

E a ultrapassar obstáculos para prosseguir,

Do labirinto da vida perseguindo o fio.

 

Quando nada ocorre como quereríamos,

É não desistir nem à espera permanecer

De que alguém opere o que devíamos

Nós fazer.

 

 

908 - Impedir

 

Não é de me preocupar

Com o que pode acontecer

Que impedir irei lograr

Que ocorra um facto qualquer.

 

Ao contrário,

Com tanta preocupação

Ainda atrairei, sumário,

O que temo na função.

 

E, entretanto, desperdiço

A energia que, em lugar,

Mais útil seria ao serviço

De nosso bem-estar

 

 

909 - Horizonte

 

Ser previdente

Não é levar a vida ansioso

Com o que pode vir à frente.

Ter o convencimento enganoso

 

De que, se intervier

Mal no horizonte lobrigo

A mais ligeira possibilidade de perigo,

Afastá-lo hei-de poder.

 

Pretender eliminar

Todo o risco, sofrimento,

É como à vida negar

Que é jornada feita ao vento,

 

Por entre paisagens planas

E montanhosas.

A aventura donde emanas

É a dos contrastes que em ti entrosas.