OITAVO TROVÁRIO
O SER QUE ENTENDO A PERSEGUIR
Escolha ao acaso um número entre 910 e 1047, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
910 - O Ser que entendo a perseguir
O ser que entendo a perseguir
Corre o poema irregular rimado
Com quanto lhe permite descobrir,
Embora o real esteja sempre a ir
De fatal mistério embuçado.
Ao ler-lhe, porém, sombras e luz,
Como as leis que o regem definidas,
O passo mais firme me traduz
Minhas idas.
Entendo e me arrepio
Ou me espanto,
Enquanto a correnteza vigio.
E, entretanto,
É o mistério que canta no meu canto.
911 - Respeito
O respeito ninguém o impõe,
É merecido.
Não há respeito devido
À força que a conquista pressupõe.
Os grandes pequenos ditadores
Que com a bota no pescoço do povo
Se impõem, senhores,
São mentecaptos a gorar no ovo
O que buscarão:
Não conquistam respeito nenhum
Apenas submissão.
Até que ao povo o grade
Algum dia, algum,
O grito da liberdade.
912 - Democracias
Democracias que brotam
Duma ditadura
Geram novos ditadores.
Só que, em vez dum, arrotam
Muitos mais na partitura,
Tenores bem menores,
Espalhados do país a toda a largura
E fundura
Dos pendores.
Depois, quanta saudade
Dos regimes anteriores!...
- Ora, então, quem persuade?
913 - Apontam
Quando um inocente
Apontam como agressor,
Fica a vítima impotente
Ante o agressor verdadeiro:
Impune doravante em terreiro,
Vitimizará quenquer que for.
As defesas
Eliminadas,
Ao erro presas,
É que findam agrilhoadas.
914 - Regime
Não há social bondade
Humana
Em regime de espontaneidade.
Os homens são capazes de tudo,
Se em interesse próprio promana.
Aproveitam a dureza do fascismo
Sobretudo
Para impor aos mais, como automatismo,
O que eles querem.
Aproveitam as liberdades da democracia
De que auferem
Para a eito
Promoverem
Tudo o que for em seu proveito.
Bondade social,
Não:
A espontânea é individual,
Doutro modo é instituição
E mais nada é real.
915 - Lei
Lei injusta
É aquela que a maioria
Vem impor à minoria
Para viver dela à custa,
Sem que, por outro lado,
Arbitrário,
O grupo maioritário
Se sinta por tal lei obrigado.
Aqui o fosso da iniquidade
É rei:
É a desigualdade
Feita lei.
Na lei justa a maioria
Obriga a minoria
A cumprir o que aquela
Pretende cumprir, na sequela.
O racional princípio da bondade
Aqui é rei:
Igualdade
Feita lei.
916 - Guiado
Quem vive guiado pelo medo
Anda sozinho,
Sente-se desprotegido,
Na boca sempre de credo,
E o efeito comezinho
É que finda de protecção destituído.
Vive à mercê do ego,
Encarado
Do mundo como separado,
Apenas a si próprio tendo apego,
Prisioneiro de objectivos imediatistas,
Básicos, da epiderme,
Sem interioridade,
Meramente materialistas,
E que o tornam, à falta de profundidade,
Perdida a derradeira identidade,
Um mísero verme.
917 - Pretensão
Tudo o que não entendem nem alcançam
Resolvem que não existe.
Que pretensão! E não cansam,
Nenhum desiste,
Como se souberam tudo!
As coisas que não sabem
Não são, simplesmente.
Como de defesa no escudo
Não cabem,
Pouco lhes importa,
Já que, como eles, todo o mundo mente…
-E batem com a porta!
918 - Fala
O homem fala e tu percebes,
O imo superior fala e tu intuis:
É mais subtil aqui o que recebes,
Linguagem do coração
Por onde fluis.
Maior dificuldade terão
Os ansiosos e controladores,
Quem tiver medo da vida
E do desconhecido,
Quem julgar que o coração é presumido,
Cheio de venenosas flores,
Não sabe o que ele diz nem com que lida,
Porque, ao invés do que convém,
Nenhuma lógica tem.
Muito mais facilidade há-de ter
Quem já aprendeu a aceitar.
Aceitar que a vida tem um plano qualquer
Para nós
E que, se eu ajudar
A jangada a evoluir na corrente,
Chegarei à foz
Para onde me inclino
Rapidamente:
- Chegarei ao destino.
919 - Estrangeiros
Sossegados, não, sossegados
Não podem ficar, sentados,
Estes estrangeiros inquietantes
Que são os ricos impantes.
Não há nada que os prenda,
Viajam ao sabor de ventos e vagas,
As coroas murmuram-lhes na cabeça a renda
Das veniagas,
As bolsas tilintam
Mundo fora, pelos recantos que fintam,
Que algures é sempre melhor,
E ao sol queimam o peito e ao calor.
E sempre a mesma resposta
À pergunta insone
De quem lhes contesta o céu:
- Quem é que na contracosta
Está ao telefone?
Daqui sou Eu!
Um eu tão Eu que pesa tanto
Que à vida lhes murchou de vez o encanto.
920 - Ignoramos
Ignoramos vulgarmente
Que penetrar na natureza
Envolve igualmente,
Antes, durante e após,
O caçador como presa,
A natureza dentro de nós.
De resto,
O reconhecimento
De nosso parentesco
Com o mundo natural
Universal
É o momento
De nossa vivência
Que mais vale
Em toda aquela experiência.
O mais,
Por maior que seja,
É sempre ficarmos, esquivos,
Fora da igreja
Onde ocorre o mistério dos sinais
Que nos mantêm vivos.
921 - Grandiosidade
Para quem parte
Há grandiosidade e silêncio,
Água límpida que a montanha reparte,
E o ar puro convence-o.
Vem a dádiva da lonjura,
Distante de relacionamentos e ritos diários,
Onde a energia apura
Do Universo nos ovários.
A natureza germina-o em nós,
Dela com a cunhagem particular,
Dominam-nos forças em dança veloz
E o corpo reage, na noite quente e crua,
Carnal e singular,
Ao atractivo invasor da Lua.
922 - Mulher
A mulher é um resultado
Com um conflito
Sobre as competências dela
E que, por todo o lado,
Se sabota, sem um grito,
A ela própria, na sequela.
Incarnação
De todos os perigos,
As dúvidas próprias são
Dela os piores inimigos.
Embora epidermicamente
Haja resistido ao poder do pai
De limitar-lhe as aspirações que teve em mente,
Incorporou (e não se esvai)
A atitude crítica dele,
Dela feita no imo a nova pele.
Luta contra a ideia
De que não é bastante boa,
Hesita quando granjeia
Novas oportunidades,
Tonta e à toa,
Realiza menos do que as capacidades
Lhe permitem
E, embora bem sucedida,
Crê-se inadequada àquilo a que a concitem
Na jornada empreendida.
É o padrão gerado por famílias e culturas
Que mais os filhos que as filhas valoram, sibilinas,
E que esperam que estas sejam estereotipadamente puras,
Ditas femininas.
923 - Efeito
Frequentemente
A mulher cerebral,
Inteligente,
Que exerce em redor
Um efeito demolidor,
Letal,
Não é consciente
De tal.
Não é intuito dela
Intimidar nem aterrorizar,
Apenas cumpre bem, da vida na procela,
O labor tal e qual como o encarar:
Os factos anda a recolher,
As premissas a examinar,
O material a ver
Como se estrutura
Ou que provas lhe assegura…
Não repara
Que, quando dissecamos,
Matamos
A vida que ali se examinara.
Com a atitude objectiva,
Com a pergunta incisiva,
Subestima o poder de criar
Uma relação, a par.
De autêntica comunicação
O potencial liquida
Em que o âmago de qualquer questão,
O coração de qualquer vida,
Pode, em todo o lado,
Ser partilhado.
E quantas vezes quem mais fica a perder
É tal mulher!
924 - Estrada
Em qualquer estrada ocorrem
Bifurcações cruciais
Que requerem decisão.
Que rumo meus pés percorrem,
Que seta escolho entre nos sinais?
Prosseguir na direcção
De princípios que são meus
Ou seguir doutros o chão?
Agir com honestidade
Ou do engano com os véus?
Ir para a Universidade
Ou antes ir trabalhar?
Ter um filho ou abortar?
Romper uma relação
Ou mantê-la em contramão?
Com alguém ir-me casar
Ou recusar?
Buscar imediatamente,
Vendo um caroço no peito,
Médico que a cura tente
Ou adiar, se me dá jeito?
Largar escola ou trabalho,
Buscar algo em que mais valho?
Pôr o casamento em risco
No risco duma aventura?
Desistir dentro do aprisco,
Insistir no que me apura?...
- Qual a escolha, por que via,
Que custo é que me anuncia?
A escolha é o meu distintivo
Dia a dia, enquanto vivo.
925 - Lágrimas
É atribuído, ao nascer,
De lágrimas um quinhão igual
Ao homem e à mulher.
Vertê-las, porém, como tal
Aos homens é proibido.
Sempre estes antes hão morrido
De coração prestes a estoirar,
A pressão arterial
A subir,
O álcool o fígado a envenenar
E diluir,
Tudo porque não dão
Vazão
De lágrimas ao lago
Dentro deles.
Para quantos, nem um único, um reles
Trago!
Morrem porque deles a cara
Presente
Nunca bastantemente
Nenhuma lágrima a regara.
926 - Difícil
Tal qual quenquer que vive,
Sou mais feliz
Lembrando o lugar onde estive
Ou onde gostaria de ir por ter qualquer matiz
Do que feliz sou
Aqui onde estou.
Muito difícil é ser um ente
Feliz no presente!
927 - Livro
Um bom filme nunca tem
Dum bom livro o mesmo efeito.
O livro o poder detém
De alterar à percepção,
Para sempre, o mundo a eito.
Um bom filme alterá-la-ia,
Em contraposição,
Apenas por um dia.
928 - Mundo
O mundo são maravilhas,
Riquezas, enigmas, poderes…
Quando o sondam nossas quilhas,
Pode, entre nossos haveres,
Deixar-nos horror, tristeza,
Espanto, confusão, alegria..
Nada, porém, nele entedia,
Aborrece ou menospreza.
O tédio é de alguma falha
Que dentro de nós existe,
Não do mundo que nos calha,
Sempre de aguilhada em riste.
929 - Corrompe
Tende o poder,
Inelutavelmente,
A corromper
E, como produto,
O poder absoluto
Corrompe absolutamente.
930 - Pendores
Aos pendores emocionais
Os homens amputam,
Como aos vulneráveis, instintuais.
Na psique, porém, as orelhas escutam
E o amputado ou enterrado
Persiste vivo, embora amodorrado.
Devirá subterrâneo,
Permanecerá fora da consciência
Tenazmente contemporâneo,
Mas pode ter uma reemergência
E ser remembrado
Quando pela primeira vez
O arquétipo é evocado
Numa relação
Ou, talvez,
Numa inamordaçável situação.
Para quem vive vidas secretas,
Afeições e gestas inaceitáveis
Existem na sombra, discretas,
Vividas subrepticiamente,
Inadiáveis,
Sem conhecimento do meio ambiente,
Até serem denunciadas,
Eventualmente,
Com grande escândalo das gentes gradas,
Em nome da ordem vigente
E respectivas facadas
Jamais por elas questionadas
No dogma assente.
Assim ou doutro modo, porém, os mortos revivem,
Por mais que os arquivem.
931 - Encontram
Quando encontram os mortais
Aos deuses e deusas fora do templo,
No recinto do fogo do lar não estão mais,
Devém ambíguo todo o exemplo.
O encontro com o arquétipo, íntimo deus,
Tão benéfico pode ser como arriscado,
Que há dedos destrutivos sob os véus.
Os deuses têm crentes apanhado
De surpresa e os dominam,
Impõem-lhes a vontade
Seduzindo-os, raptando-os e os afinam,
Com voracidade,
Castigando, castigando, castigando.
Assim um arquétipo seduz e conquista,
A cada qual então o desossando.
Quando nele se enquista,
Psicologicamente,
O indivíduo identifica-se apenas ao arquétipo-deus
Que dele se apoderou, do corpo à mente,
É barco à deriva no turbilhão dos macaréus.
932 - Arquétipo
Arquétipo é o padrão invisível
Que determina qual
A forma e estrutura dum cristal
Quando ele se tornar exequível.
Logo que formado realmente,
É o padrão
Então
Reconhecível,
Tal qual, em todo o lado,
Em toda a gente
Activado:
Todo o juízo e atitude
Fará que a ele se grude.
933 - Destinados
Como tudo no Universo,
Mais que a ir,
Vivemos destinados desde o berço
A divergir.
O tempo não é senão
A unidade de medida
Desta separação
Em toda a ida.
Partículas num mar de distância
Explodidas dum astro original,
Há uma certeza, desde a infância,
Então,
A dar aval
À nossa solidão:
Sem enganos,
Vivemos cada vez mais sós na proporção
Dos nossos anos.
934 - Preconceito
Preconceito de literatos
É a convicção secreta
De que a vida que vemos e nos afecta
São mil e um falsos retratos,
Da realidade imperfeita
Visão que mal se lhe ajeita.
As artes apenas,
Com óculos de ver ao perto,
Corrigiriam às cenas
O defeito certo.
Os eruditos e intelectuais
Andam animados dum rancor profundo
Contra os sinais
Do mundo.
Nenhum se reconcilia
Com a ideia de que a vida
Nunca segue a curva da via
A que um bom autor a convida.
Em eventos de pura perfeição
A vida é somítica, pequena.
Ora, isto, deles na convicção,
É uma pena.
935 - Desejo
O desejo busca ao fim
Ser satisfeito.
Se nos domina e lhe transpomos o confim,
Este feito
Não é jamais deveras alcançado.
E, em vez da felicidade
De momento,
Encontramos por todo o lado,
Na vulnerabilidade,
A gravidade
Do sofrimento.
936 - Frenética
Frenética actividade
Que vise a satisfação
Apenas duma ambição
Pessoal
E que, ao fim, aos que ela invade,
Os arreda extenuados,
De saúde arruinados,
Equivale
A se aniquilar na estrada,
Ao fim e ao cabo, por nada.
937 - Real
O mundo é feito
De coisas boas e más
E o que do real toma o jeito
É, na maior parte,
Fabricado, tenaz,
De nosso espírito por arte,
Não vem de fora nem de trás,
Cá dentro se forma aparte:
Somos nós os demiurgos
Das aldeias e dos burgos.
938 - Temas
Os temas dos média favoritos
São os roubos, a guerra,
Actos de ódio ou de cobiça,
Delitos
Que revolvem a terra
Como o aço da rabiça.
Contudo, do mundo no alfobre
Ninguém pode afirmar
Que nada germina de nobre,
Tudo o que da qualidade humana
Persistente e devagar
Dimana.
Não haverá ninguém
Que trate doentes,
Órfãos, velhos, deficientes,
Sem ser pelo lucro que obtém?
Não haverá quem doutrem por amor
Actue a favor?
Na verdade até há muitos,
Se calhar a maioria,
Mas habituámo-nos a pensar, gratuitos,
Que eles são a normal fasquia.
Ora, ninguém proclama
A vulgaridade,
A pretexto de que não tem chama,
Mesmo quando não é verdade.
Então é uma verdade mentirosa
Que nos enche a vida de prosa.
E é de vista distorcida
Que olhamos a vida.
939 - Repercute-se
A boa saúde colectiva
Repercute-se em cada um.
Não implica
Que me sacrifique e viva
Para a colectividade
Sem bem-estar individual algum,
Antes significa
Que cada vertente
Invade,
Na outra se imbrica
Indissoluvelmente.
Hoje em dia cuidamos que a sina
Do indivíduo e da sociedade
Se amputam pela metade,
Que uma a outra se não destina.
E que o mais importante
É o indivíduo, não a comunidade.
Ora, se alargarmos a perspectiva
Até ao horizonte distante,
Logo vemos, no horizonte perdido,
Que esta atitude esquiva
Não tem sentido.
Uma doutra é o alimento
E é de ambas que por igual me sustento.
940 - Interior
O interior contentamento
É basilar,
Não renuncies ao frumento
Elementar.
A um mínimo nos bodos
Tens direito, como todos.
Porque à vida imprescindível,
Devemos assegurá-lo:
Se contestar é exigível,
Contestemos com abalo,
Se uma greve é requerida,
Façamos greve, em seguida…
Todavia, não deveremos
Cair em extremos:
Se interiormente nunca estiver satisfeito
E quiser sempre mais,
Jamais a ser feliz serei atreito,
Hão-de sempre faltar quaisquer sinais.
A felicidade interior não vive sujeita
A conjunturas materiais
Nem dos sentidos à saciedade estreita.
No imo ganha raiz
E tal felicidade é que é nossa matriz.
941 - Repugna
Repugna à maior parte
Lembrar a própria morte,
É um aparte
De desnorte.
Passamos a vida, assim,
A acumular bens,
A gizar projectos sem fim,
A encher de cada dia os armazéns…
Como se fôramos viver eternamente,
Tal se não fora certo um destes dias,
Amanhã talvez, no instante presente,
Termos de partir de vez em paz,
Para trás deixando as fantasias,
Largando tudo para trás.
Porventura para continuar a viver,
Mas noutro mundo qualquer:
Deste
Não haverá nada que reste.
942 - Embora
Embora com bons amigos e a maior comodidade,
Se a atitude não for correcta,
Não é viável ser feliz de verdade.
A atitude mental bem mais afecta
Que os determinismos exteriores.
Contudo, para a maioria,
Os primeiros valores
São de onde a exterioridade espia
E o efeito pior
É que o mundo inteiro então negligencia
Como negra magia
A postura interior.
Da qualidade íntima a relevância
Urge que tome a primeira importância
Ou findará bem triste
O homem que existe.
943 - Falta
No mundo rico
Há muita gente infeliz.
Não lhes falta nada, verifico,
Têm os meios de raiz
Para viverem de modo confortável.
Não estão, porém, contentes
Com a sorte invejável
De que são utentes
Mal agradecidos.
Não são felizes por inveja,
Por apetites desmedidos,
Pelo que quer que seja.
Uns esperam um cataclismo,
Outros o fim do mundo…
Cada qual fabrica o próprio abismo
De sofrimento profundo,
Por ser incapaz em demasia
De pensar de maneira sadia:
Se mudara a maneira
De ver o que lhe corre à beira,
O tormento findaria.
Há, porém, quem tenha realmente
Razões para sofrer:
O doente,
O que a miséria tolher,
Os de catástrofes vitimados,
Os maltratados…
No pendor material,
Devem-se tratar;
Aos que os maltratam colocar ponto final;
O tribunal
Accionar;
Laborar duro
Para comer, para vestir o futuro…
Mentalmente, porém,
O problema é se adoptam atitude positiva:
Desta é que provém
Do sofrimento o grau ou a esquiva.
A dor dói-me então
Sem eu querer;
O sofrimento, não,
Só se em mim o acolher.
944 - Penúria
Os que sofreram a guerra
E a penúria que sobreveio
Não os aterra
No caminho
Qualquer pedra que topam pelo meio.
Estão contentes deles com a sorte,
Viram muito pior: viram a morte.
No cadinho,
Em contrapartida,
Os que a guerra não sofreram
E felizes gozam a vida
Num perene jardim infantil
Gemem, desmaiam, canceram
Ante a adversidade mais pueril.
Embora a boa estrela
Tenham à mão de semear,
Não logram, no limiar,
Reconhecê-la.
Tanto pende de nossa interioridade
A matriz
De ser feliz
E a da infelicidade!
945 - Colectividade
A colectividade é cada vez menos humana
E nossa vida, cada vez mais mecânica:
De manhã corremos ao trabalho que nos engana;
Quando finda, cambaleamos até à satânica
Discoteca ou a qualquer lugar onde ir,
A fim de nos distrair.
Meios toldados,
Voltamos tarde
Para dormir uns momentos mal roubados
Sem mais alarde.
De manhãzinha,
De novo o trabalho de ganhar a vida,
De mente entorpecida
Na terra maninha.
Cada qual se tornou numa das peças
Dum mecanismo de nós às avessas
E, queiramo-lo ou não,
É fatal
Seguirmos o atropelo da multidão
No movimento global.
Ao fim dum tempo é tão dura de suportar
A sentença
Que findamos a nos fechar
Na indiferença.
Porém, nenhuma descrença
Nos pode salvar.
946 - Inviável
É inviável um atestado
De bondade permanente
A qualquer bem-comportado.
O comportamento presente,
Embora entre os melhores,
Pode acabar com juízos prematuros:
Vitórias anteriores
Não garantes resultados futuros.
947 - Boa
Gente boa é bem capaz
De actos deveras hediondos.
Ninguém deles marca traz
Nos olhos redondos.
Por mais que sejam incríveis,
Improváveis,
Todos somos susceptíveis
Das práticas mais inconfessáveis.
Não quer dizer que meu vizinho
Amável e respeitador
Ande a amontoar com o ancinho
Os corpos da família que trucidou no corredor.
Mas que algures no mundo
O vizinho de alguém,
Por mais respeitador que seja no fundo,
Irá fazê-lo, mais aquém ou mais além.
E que, neste momento,
Nem ele próprio sabe que irá fazê-lo.
O mais perturbador elemento
Da probabilidade, contudo, é
O que lhe impõe o derradeiro selo:
- Tal vizinho pode ser você!
948 - Natureza
A natureza humana é imprevisível:
O comportamento exemplar,
De tão esquivo,
Não tem efeito regular
Cumulativo
Infalível.
Almas danadas,
Todos somos permeáveis ao mal
Em circunstâncias dadas.
E o que a todos nos reúne
É este signo fatal:
- Ninguém é imune.
949 - Perante
Se perante cada qual
Que te violente,
Em lugar de: "tem razão, sou diferente",
Disseres: "é mentira, sou igual",
Outro que não este era o lugar
Onde agora te viria encontrar.
A tua carne é a mesma
E teu sangue também,
Sofrerás por igual qualquer Quaresma,
Rirás qualquer Páscoa que sobrevém.
Teu destino, dia a dia,
Outro, porém,
Seria.
Este foi forjado por uma frase,
Não pela outra que o alteraria.
Tem uma medida
A verdade de base:
Foi uma frase que te talhou a vida.
Caíste
Porque uma frase te fez cair.
Subiste
Pelo ar
Porque outra te fez subir
E voar.
O fruto proibido
Que nos tirou do paraíso
Foi a palavra cujo sentido
Nos fez perder o juízo.
A linguagem, a fala
É que fez perder o encanto
Ao mundo que doravante não se iguala
Nesta ambiguidade entre riso e pranto.
950 - Influência
Se o Cosmos inteiro eu for,
Então não pode haver
Influência exterior:
Tudo o que eu fizer
É livre, espontâneo.
Do ponto de vista do místico
Ancestral e contemporâneo,
Característico
É que o livre arbítrio é relativo,
Limitado, no fim ilusório,
Como toda a leitura que vivo
Da realidade no envoltório.
951 - Tido
Económico e tecnológico desenvolvimento
É tido como fundamental
Por todo o político e economista.
Ora, neste momento,
É de clareza fatal
Que o que persista
Como expansão ilimitada
Num ambiente finito
É uma estrada
Que concito
Para um desastre
Onde nada mais se encastre.
E por ali me vou,
Contente,
Sem reparar onde estou
De vez demente.
952 - Científica
A científica teoria
A completa e definitiva realidade
Jamais nos enuncia,
Mas meras aproximações da verdade.
Com esta os cientistas não lidam,
Lidam com descrições limitadas, aproximadas,
Para onde nos convidam
Com hesitantes passadas.
953 - Cultura
A cultura favorece
O nosso lado direito,
O esquerdo esquece,
Mal afeito.
Prepondera o conhecimento racional
Sobre a intuitiva sabedoria,
A exploração dos recursos mundial
Sobre a conservação que urgiria,
A competição sobre a cooperação,
A ciência sobre a religião…
Tal ênfase, alimentada
Pelo padrão patriarcal
E encorajada
Pelo sensualista pendor cultural
Dos três séculos derradeiros,
Acarretou um desequilíbrio estrutural
De tão fundos atoleiros
Que a raiz serão donde inteira deslize
A nossa actual
Crise.
954 - Mudar
Qualquer coisa é definida
Dela pelas relações
Com outras com que ela lida,
Não pelo que forem dela própria as feições.
Mudar do objecto para a relação
O primado
Tem por consequência
A criação
Duma renovada ciência
Em todo o lado.
O fenómeno atómico é determinado
Pela conexão
Com o todo com que vibra interligado:
É a propriedade
Insofismável
Que o funde e nos funda numa insuperável
Probabilidade.
Não somos nada, não somos
Senão pelos laços e afectos de que dispomos.
955 - Subatómico
No subatómico nível, fundamentais
São as interacções entre as partes do todo,
Mais
Que as próprias partes, de qualquer modo.
Há movimento na teia inteira
Mas não existem, entrementes,
Em análise derradeira,
Objectos moventes.
Actividade há,
Mas não actores, que ninguém os alcança:
Não há dançarinos acolá,
Somente a dança.
956 - Cientistas
Os cientistas constroem uma teia
De teorias limitadas e aproximadas,
Modelos com que cada qual ameia
A lonjura das estradas.
Cada elo mais preciso que o anterior,
Nenhum representa, porém,
O completo e final teor
Do que ao fenómeno natural convém.
A ciência progride
Por respostas provisórias, conjecturais,
Rumo a uma cadeia de perguntas que lide,
Cada vez mais subtil e mais fundo,
Com o âmago dos fenómenos naturais
Do mundo.
957 - Partículas
As subatómicas partículas são
Umas das outras dinamicamente compostas,
De modo que cada uma delas, então,
Envolve todas as demais:
Mais que supostas,
Mais que por sinais,
Trá-las cada qual às costas,
São membros dela corporais,
São de cada qual a energia
Com que se anuncia.
Destarte,
De seguida,
A realidade toda mora envolvida
Em cada parte.
O ser total, o Todo,
Na sequela,
É contido, de algum modo,
Em cada parcela.
E é uma propriedade universal
Da natureza enquanto tal.
Ignora quem o esquece
E desacata
Que então no fundo dele próprio já perece,
Só por isto já se mata.
958 - Instituição
Seja qual for
Da instituição a finalidade original,
O crescimento dela além de certo valor
Desvirtua invariavelmente
O objectivo final,
Ao ter em mente
A auto-preservação,
A expansão indefinida
Da instituição
Como meta suprema prosseguida.
E quem com ela lida
Ou lhe pertence
Cada vez de ser mais alienado
Se convence,
Despersonalizado,
À medida
Que famílias, bairros, organismos sociais
De pequena escala
Os abala
O domínio e exploração institucionais.
Findam então ameaçados e destruídos
Os melhores gestos vividos.
E quão mais sacralizada
- Igreja, religião, crença… -
Mais há-de ser esta a estrada
Que à instituição pertença.
959 - Vigor
Após o apogeu de vitalidade,
As civilizações
Perdem o vigor cultural e a criatividade
E declinam, aos baldões,
De idade em idade.
O colapso provém
Da perda de flexibilidade
Que, com a velhice, advém.
Quando estruturas sociais
E padrões de comportamento
Rígidos devêm,
Os povos não podem mais
Adaptar-se ao cambiante elemento,
Incapazes de levar avante, afinal,
O projecto criativo de evolução cultural.
Entra o ancestral em colapso e se desintegra:
Enquanto a civilização em crescimento
Segue a regra
Da variedade e versatilidade em aumento,
A que decai
Revela uniformidade
E se esvai
Pela ausência de inventividade.
Entre os respectivos elementos
É a perda geral da harmonia
E a discórdia apura
Mil desencantamentos,
Em cada dia,
De social ruptura.
Ao lado, porém, nos convida,
Em alternativa, germinal, a vida.
960 - Obsessão
Nada nosso mundo mudou mais
Nos quatro séculos derradeiros
Que a obsessão dos cientistas
Por medir e quantificar, certeiros,
Os dados e os sinais
De todas as conquistas.
No transcurso,
Porém,
Foi expulsa do científico discurso
A vivência que o homem é também.
Perderam a visão, o som, o tacto,
O gosto e o olfacto,
Enquanto no íntimo vividos,
E, com os sentidos,
Esvaíram a sensibilidade estética,
Os valores, a ética,
A qualidade, a forma,
Da vontade a norma,
Todos os sentimentos, motivos,
Intuitos vivos,
Alma consciência,
Do espírito interior evidência…
Ónus bem pesado
Para o terreno conquistado:
Perdemo-nos a nós!
- Quem nos restitui, doravante, a voz?
961 - Afirma
Afirma a ciência
Que de complexos modelos materiais
É uma manifestação a consciência,
Visível mais
Em sistemas vivos com complexidade.
Destes as biológicas estruturas
Exprimem itinerários subjacentes
Por onde as invade,
Nas dinâmicas figuras
Permanentes,
A auto-organização do sistema:
Ao enfrentar cada problema,
Revelam-se as mentes.
As estruturas materiais, desta forma sumária
Deixaram de ser tidas por realidade primária.
Olhando o universo como um todo,
Não é demais supor
Que dele as estruturas, deste modo,
Da partícula subatómica ao bolor,
Do vírus ao homem, da Galáxia ao Cosmos inteiro,
Tudo são manifestações
Do dinamismo auto-organizador cimeiro,
Da mente cósmica identificações.
Quase é místico o conceito.
Ao místico, porém, brota-lhe do peito,
Enquanto, na ciência,
Vem da perceptiva experiência.
Ambas, porém, reconcilia
Da abordagem global a via.
962 - Rio
Rio de muitos afluentes
É o destino,
Rede de tuas veias contingentes,
Caminhos que percorres por aqui, por ali,
Ao desatino,
A avançar, a recuar, uns contigo, outros sem ti,
Este ou aquele a escolher…
E todos levam ao mar
Que é morrer,
Morrer e tudo aí consumar.
…E continuar
Interminavelmente
Do rio o transporte
Do lado de cá
E de lá
Da morte,
Sempre em frente,
Eternamente, eternamente…
963 - Desejam
Quando desejam algo que não logram conseguir
Convencem-se de que nunca o quiseram deveras,
Desdenham-no a seguir,
Cospem-lhe em cima com todas as veras.
É do ridículo o medo:
Querer o inatingível é ridículo ser
E, num mundo tão pequeno, tarde ou cedo,
Ninguém ridículo quer parecer.
964 - Preço
O artista
É um solitário.
E quanto mais vastidão tiver em vista,
Solidário,
Maior o preço da conquista
No ermo vário.
Se estiver só,
É tudo seu.
Se tiver um companheiro sente dó,
Sente amizade:
A si apenas pertenceu
Pela metade.
É ilusão agir como lhe apetecer,
Tentar manter-se aparte:
Ninguém logra permanecer
Surdo à conversa que o companheirismo
Acarte,
Escancara-se-lhe aos pés sempre este abismo.
E é sempre neste fio de navalha
Que decidimos da sorte que nos calha.
No fundo, no fundo, toda a vida
É sempre esta solidão repartida.
965 - Obras
As obras dos homens são o fruto
Da ideia, do afecto e do valor,
Caldeados num único conduto
Do íntimo ao calor,
E pelas obras estes vão
Mais além do que o interior saguão.
As obras quedam e perduram
Para o bem e para o mal,
A forma tempo além murmuram
Com que as configurou cada qual.
Permanecem impregnadas
Do amor ou do desprezo,
Da ilusão ou do desengano
Com que foram realizadas
E mantêm tal vezo
Ano após ano.
Desta forma o sentimento
Chega a quem as contempla ou utiliza
Num eterno encadeamento
De propósitos e de actos em que se divisa
O mundo onde vivemos,
Onde temos
Aquilo que a cada qual ou escraviza
Ou diviniza.
966 - Tempo
O tempo não existe,
Existem as nossas alterações.
O sentimento que as liste
E lhes produz as modelações
E nos modifica
Cria-nos e recria-nos numa eterna espiral
De auto-geração variada e rica
Até fazer
De cada qual
O que deveras pode ser.
Percorremos espaços
Mas são meras mudanças,
Mudanças de lugar, de gentes e de traços,
Vivemos nossa muda nas intérminas tranças,
Até mais não conseguirmos
E de vez nos irmos.
Acaba então
O que tempo chamamos em vão.
Finda a mudança,
Finda a vida.
O que isto alcança
De seguida
Propugnar
É que esta vida é o tempo de mudar.
967 - Natureza
A natureza detém
Um remédio particular
Para as feridas aqui e além,
Nos cicatrizar.
Pouco a pouco,
Tão lentamente que mal nos apercebemos,
As memórias da lesão desatam a toldar-se,
Fico-lhes mouco,
Devêm obscuras nos extremos
E, a dada altura, quando apagado tudo se esgarce,
Dou comigo num estado tal
Que estou normal.
E nem me apercebi,
Entretanto,
Do que em mim renasceu tanto
Que renasci.
968 - Livro
Um livro que é bom deveras
É lido na juventude,
Na adultez e na velhice,
Como a luz de que esperas
Quanto te ilude
Num palácio que te enguice:
Vê-lo, à luz da fantasia,
Quando o alvor apontar,
Quando alegra o meio-dia,
E ao luar.
969 - Jamais
Um escritor
Jamais personagens inventa,
Seu próprio teor
Noutrem antes acalenta
- E aí se reinventa.
970 - Disfarce
O tempo é estranho,
Não é nunca o que julgamos.
Nem paternidade nem amor lhe trazem ganho,
Nem a angústia lhe influi no tronco nem nos ramos.
Há para tudo um disfarce qualquer
E vemos apenas as máscaras suaves e imateriais
Que decidimos ver
Como se foram factos reais.
971 - Serve
Não estamos preparados…
Instrução universal,
Aquecimento central,
Drogas miraculosas, discos compactados,
- Tanta descoberta extraordinária
Que não nos serve de nada,
Que em nada ajuda, atrabiliária,
Dos fundamentos desviada.
Por estranha coincidência,
Preparados não estamos, não,
Para enfrentar a consequência
De nossa acção.
972 - Herói
O herói ousado e magnificente
Que nos levaram a macaquear,
O herói aqui jamais existente
Em nenhum lugar!
Enfeitiçar nos deixámos todos
Por abstracções sedutoras mil
Que nada têm, em tais engodos,
Com o facto vil:
Um homem, um amigo, um camarada,
A estender-nos o coto destroçado
Dum braço, duma perna, onde mais nada
Ficou dependurado,
E a soluçar pateticamente
O espanto, a angústia, o mundo demente.
973 - Nunca
Nunca somos bons o suficiente
Nem suficientemente maus,
Nada é absoluto neste mundo evanescente,
Cá em baixo.
Saltando de margem em margem, pelos vaus,
A matéria é dual, não absoluta,
Dela no inesgotável berbicacho
De luta.
Nunca creias que irás ter dum lado tudo,
Do outro, sempre nada.
Nunca e sempre, a que me grudo,
Não existem na jornada,
Tudo muda permanentemente,
Apenas a ritmo diferente.
Após o mau vem o bom,
Após o bom, o mau,
Compensando o tom
E o grau.
Por trás, sobretudo,
Tudo está em tudo.
974 - Ganhar
Podem ganhar tudo os povos
Porque têm valor
E têm-no sem o ganha-perde de quaisquer renovos
Que se queiram propor.
Basta que aprendam a saber
Quem como povo são
Por algo que dentro de nós nascer,
Das profundezas na serenidade calma,
Algo que não tem cara, não,
Mas tem alma.
A vera identidade
Não é no espelho de fora,
É no da intimidade
Que mora.
975 - Medo
O medo de que aconteça
A teus filhos algum mal
É natural.
Perder, porém, a cabeça
E tapar o medo com grandes festas,
Falando muito para não te ferires
De teu íntimo nas frágeis arestas,
Com divertimentos e fugas a te distraíres,
- Isto é que, de boa fé,
Natural já não é.
Quando dói, dói,
A interior caminhada não é fácil.
É por isto que tanta gente se foi,
Leviana e grácil,
E da espiritualidade vive afastada
A cada jornada.
Cuidam que é melhor
Não entrar em contacto, em comunhão
Com a dor,
Com a insatisfação.
A vida que recusa trabalhar, superar
A própria dor, vivendo-a,
Atraindo perdas reais vai acabar
Para que a incontornável dor agreste,
Prendendo-a,
De vez se manifeste.
976 - Terrível
É terrível a ideia de pecado
Porque a todos algema pelo medo.
Quando morrem ninguém trepa, alcandorado,
Por medo de ser castigado
No Infinito, tarde ou cedo.
E então ficam cá por baixo
À procura estéril da luz
E cada vez é maior de almas o cacho
Que o desnorteamento traduz,
Quando, afinal, a madrugada
Nasce, gratuita, em diária jornada,
Oferecida
Generosamente
À medida
De cada vida,
Inesgotável, paciente,
Persistentemente…
Quem
Acolá se engana,
Porém,
Aqui é que se dana:
O pecado cega a medida
Final da vida.
977 - Tranca
Quando o espírito houver de aprender
Mas o ego, não,
O subconsciente reterá o saber
E à consciência tranca o portão,
Até, por automatismo, vencer
O pego:
- O monstro do ego.
Este é o mal verdadeiro
Dentro de cada um de nós,
É o que nos faz ter medo, arteiro,
É o que nos obriga, manda e ameaça,
Que a tremer, após,
Nos enterra os pés no meio da praça.
O ego auto-afirmado,
Individual,
Do Todo separado,
- É o mal.
978 - Viagem
Tudo pode ser compartilhado,
A viagem, as margens de cada lado,
A vivência, a alegria,
A tristeza, a sabedoria…
Tudo pode ser dividido,
Tudo, menos a bóia
Com que singras teu sentido
Rio fora, da vida a facetar a jóia.
Tua bóia de singrar da vida o rio
É tua derradeira solidão
Em que teces as malhas do fio
De tua própria construção.
979 - Íman
Temos no coração
Um íman original
Cuja função
É fatal:
Quando tenha de vivenciar a perda,
É de perda que ele me vai atrair eventos.
Quem acolher quanto então herda
E aprender a se desapegar de materiais
Encantamentos,
Deixar de controlar a si, à vida e aos demais,
Quem aprender a entregar,
Leva o íman a se virar ao contrário
E as conjunturas de ganho desatam a abundar
No curso diário.
Se, porém, adrega,
Com medo de perder mais,
Que ainda mais se apega,
Ainda controla mais,
Então o íman com que todos caminham
Não se vira jamais
E mais conjunturas de perda se avizinham.
E em todas as demais vivências
Esta é a regra das ocorrências.
980 - Vivências
Quando vivencias, rendido, a fragilidade,
O Universo te super-energiza.
Quando o limite te invade,
O que em ti se realiza
É que ficas preparado
Para o outro lado:
- Faz que tudo se inverta e torça
Para vivenciares a força.
Irás, portanto,
Sendo reenergizado entretanto.
Tudo o que chega ao limite
Vira-se ao contrário.
É mais que um palpite,
É a experiência dos opostos
No transcurso diário
De gostos e desgostos.
Quando aceitas perder o controlo,
O limite da fragilidade provocas então
E, consequentemente, és premiado com o bolo
Da imediata reenergização.
981 - Mata
Quem mata um homem matou
Uma criatura racional:
Dum singular voo
É o final.
Quem um livro destrói em vão
Destrói a própria razão.
982 - Dúvida
Na dúvida principia
A sabedoria.
Ao duvidar, encontramos
A questão e perguntamos.
E, se procuramos com tenacidade,
Podemos encontrar então a pista da verdade.
983 - Sortudo
A vida é dura,
Mesmo para os que têm sorte.
Não?!
Apura
Por ti próprio o desnorte:
Do sortudo no lar
Experimenta então
Interrogar
Do homem o coração!
E cuidado com o vulcão
Que espirrar!
984 - Fonte
Ai daquele
Cuja fonte de felicidade
Não tem nele!
Ai do que vive
Para que aos outros agrade!
Ai do que se esquive
Mal erguido do pó,
De sentir que esta vida e a outra são uma só!
É um condenado
Que errou a matriz em todo o lado.
985 - Lente
Quando pões uma lente ao sol
E concentras os raios num ponto,
Logo este bole
E desata a arder de pronto.
Tal é o espírito do homem:
Ocorrem milagres concentrando-o
Num dos males que nos consomem:
Ele resolve-o desintegrando-o.
986 - Máquina
Máquina esquisita é o homem!
Enchê-la de pão, vinho e medronhos
E do mais que as engrenagens consomem,
Produz suspiros, risos e sonhos…
É uma fábrica completa!
E na nossa cabeça
Há uma rica cinemateca
Onde toda a ventura acaba e recomeça.
987 - Morte
É a vida uma morte lenta,
Quotidiana,
Cujo relógio se movimenta
Semana a semana
E cuja velocidade
Vai diminuindo com a idade.
O coração, entrementes,
Já não bate com força igual
E os demais órgãos devêm indolentes,
Vítimas do mesmo mal.
Em breve tudo parará.
A idade, descomedida
E fatal,
Trará
Uma diminuição de vida
Lentamente, gradual.
Caem os cabelos
E os dentes,
Debilitam-se os músculos, flácidos,
Tudo retorna à terra, da cadeia pelos elos,
Em ritmos dormentes
E plácidos.
Viver é, portanto,
Nesta função,
Caminhar para a morte.
Para o santo,
Libertação
Dos tremedais,
É, para os demais,
O azar da sorte.
988 - Arma
Arma da mediocridade,
A corrupção predomina
Contra o talento que é raro.
Abunda sempre na sina
Da cidade,
- Só o talento, porém, é que é caro.
989 - Insaciável
Quando os homens desatam a matar-se,
Desejo incontrolável lhes invade
O coração.
E matar devém a solução,
A catarse
Para toda a dificuldade,
Por mínima que seja
No que quer que se almeja.
990 - Humana
A doença e a saúde,
A ignorância e a instrução,
O pecado e a virtude,
A ordem e a confusão,
O conforto e a pobreza,
Guerra e paz,
A alegria e a tristeza
- O que os faz,
Dia a dia,
Semana a semana,
É a humana sabedoria
Ou a pretensão humana.
Predomina
Cada tendência
Conforme aquilo a que o coração inclina
E como lhe responde a inteligência.
991 - Continuam
Os homens continuam a matar-se
Como há séculos, por mil razões,
Ignorando a catarse
Das ilusões:
A vida de que o mundo goza,
De que todos se aviam,
É muito mais preciosa
Que quaisquer ideias por que morreriam.
992 - Dias
Todos os dias são iguais,
Porém não me sinto triste,
Antes contente com o que existe
Em dias tais.
A paisagem muda, constante e satisfeita,
Da sementeira à colheita.
Depois calculamos as rendas
E vêm as festas e as tendas.
E o Ano Novo cheio ainda de Natal,
As crianças que crescem sem dar sinal.
E as que nascem e as que ficam pelo caminho…
Tudo entretém a moldura de cada ninho,
Não pesa.
Cada mudança me preza,
Oferta-me o refúgio onde me acoite
A trabalhar e a sonhar de manhã até à noite.
993 - Sentes
Pode um homem estar-se finando
Diante de ti
Que não sentes nada quando
A morte lhe põe termo ao frenesi.
Pena, solidariedade,
Talvez sintas, talvez,
Mas nunca a dor que o invade
E lhe põe cobro de vez.
A poucos passos
O mundo está-se a acabar
E tu não sentes nenhum dos letais traços
Aí no teu lugar.
Por isso é que o progresso é tão lento
E tudo na vida
Tão rápido cai no esquecimento
Sem a consideração devida.
994 - Infeliz
Quando alguém nos morre ao lado,
Nada sentimos.
É o mais infeliz fado
Do mundo que fruímos.
A simpatia
Não é o mesmo que a dor,
É uma dissimulada alegria,
De alívio suspiro, com fervor,
Já que morrendo não estamos nós, nos extremos,
Nem ninguém que amemos.
A fronteira da íntima solidão
É a nossa radical condenação.
995 - Estranho
É estranho como se pode estilhaçar, fremente,
Dentro de nós tudo, num abismo colossal,
Enquanto ao mesmo tempo, à nossa frente,
Alguém lê tranquilamente
O jornal.
996 - Manto
O homem é grande no saco
Das intenções,
Porém, é fraco
Nas realizações.
Tal traça,
Entretanto,
Sendo nossa desgraça,
É o nosso encanto.
997 - Administrativo
O administrativo burocrata
Não requer de espírito qualquer tensão,
Nem talento, nem individual aptidão,
Nem acata,
Qualquer que seja a demora,
Da mente nenhuma elevação
Criadora.
É um movimento inteiro
Visceralmente maquinal e rotineiro.
No arvoredo do trabalho
Fica abaixo do tísico
Galho
Do trabalho físico.
Do mundo nenhum momento
Pode admitir
Tal tegumento,
É mera desculpa a impelir
Vida ociosa e despreocupada:
Sendo um logro, afinal,
Mentira deslavada,
É um parasitismo estrutural
A jogar na berma da estrada.
998 - Lêem
Para que lêem Evangelhos,
Para que rezam,
Para que desfolham os livros velhos
Que na prática desprezam?
De que lhes serve o que foi escrito
Se vivem nas mesmas trevas,
No mesmo ódio pela liberdade incontrito,
Mentalidades de há trezentos, mil anos coevas?
Lêem e ouvem falar,
De geração em geração,
Da verdade, piedade e liberdade.
E até à morte mentirão,
De dia ao sol, de noite ao luar,
Martirizam-se, comunidade contra comunidade,
Temem a liberdade e a detestam
De tal sorte
Que a proíbem até que nem vestígios restam,
Tal se fora um inimigo de morte.
999 - Parecer
Outrora
Tomavam droga
Para o mundo lhes parecer estranho.
Agora
Que o mundo, de tão estranho, se afoga,
Tomam droga procurando inverso ganho,
Bem mais fundamental:
- Que o mundo lhes pareça normal.
1000 - Fascínio
O fascínio de brilhar ante a audiência
É o que mantém vivo um artista.
A vida está no arame, da queda na iminência.
Tudo o mais fica expectante, à nossa volta,
E, embora à solta,
Nem consegue retirar a vista.
1001 - Troglodita
Nas mais remotas cavernas interiores
Mora-nos um troglodita adormecido.
A um estímulo determinado submetido,
Vem à tona de nós com os horrores
De déspota totalitário
Em cuja bestialidade é perito primário.
E haverá sempre um falso humanista
Para inventar uma filosófica teoria,
Tendo em vista
Coonestar, com lógica fria,
As monstruosidades supernas
Daquele homem das cavernas.
1002 - Emperrador
Andas na vida armado
De ironia,
De emperrador pensamento aterrado
Que não ousa transpor na via
As barreiras que lhe impões
Com teus papões.
Quando espezinhas ideias
Que te são conhecidas por demais,
És o desertor que das ameias
Foge vergonhosamente, dos arraiais
Da luta,
E que, para abafar a vergonha,
Troça da guerra, da disputa
E da coragem
Dos heróis que em redor agem.
Não é o valor,
É o cinismo que te abafa a dor.
Como o velho que esmaga aos pés
O retrato da filha que adora
Por sentir-se culpado perante ela,
Sem retorno do revés
Agora,
Consumada a sequela,
Desdenhas torpe e baixamente
Ideais de bem e verdade
Porque não tens forças nem mente
Para os recuperar em tua nulidade.
1003 - Minar
Minar os alicerces da cultura,
Da autoridade e civilização,
Da irreligião ou religião
Que em redor quenquer apura,
Chapinhá-los de lama,
Encará-los com olhar de soslaio,
Grotesco, pela rama,
Apenas a desculpar e encobrir o cambaio
Da própria fraqueza e mazela moral,
É o sinal
E o móbil
De quem é baixo, vão e ignóbil.
1004 - Humana
A humana divisa
É que tropeçamos mesmo quando
Vamos palmilhando
Uma estrada lisa.
É uma fatalidade:
Quando não nos enganamos no principal,
É num pormenor não menos real.
Facto cimeiro:
Ninguém conhece a verdade
Por inteiro.
1005 - Dedicamo-nos
Quando não temos ninguém
Que por nós se importe
Nem ninguém por cuja sorte
Nos importemos também,
Dedicamo-nos a qualquer mentor feito patrão,
Como ao dono um cão.
1006 - Espalhar
Não pode ser enterrada
A verdade tão profundamente
Que nunca venha a ser desvendada
E presente.
Jamais pode alguém escondê-la
Inteiramente
E bem melhor é içar-lhe a vela,
Criterioso e decente,
Que continuar a ocultá-la
E a espalhar mais e mais a corrupção
E a mentira pela sala
Dum povo a morrer de inanição.
Quando todos conhecem a verdade
E ninguém tenta dizê-la,
Os loucos a quem ela persuade
Todo o mundo os atropela:
São os eternos castigados,
Ao usarem de sinceridade,
Pelos danados
De pretensa correcção e oportunidade
Camuflados.
E a penúria aumenta
Com os mártires sacrificados
Enquanto o mundo se ausenta.
1007 - Bomba
Querem inverter os terroristas
À bomba o correr da história,
Riscar os tiranos das listas
De má memória
Que perpetuar pretendem
O presente de que pendem.
Por trás manobra a rede
Que promove o terror e apoia a tirania
Na inesgotável sede
Do que a beneficia.
E nesta fera que à sombra se desloca
Ninguém toca.
1008 - Matar-te
No sangue um parasita,
Um coágulo numa artéria,
Podem matar-te, acredita,
Mais rápido que uma bala
A estilhaçar-te qualquer vital matéria.
Mas o inimigo a que nenhum se iguala,
O pior de todos,
É, mais tarde ou mais cedo
E de mil e um modos,
O medo.
1009 - Areia
A areia mexe porque está parada,
A rocha fala porque está calada,
Um homem não chegou antes de parar de viajar,
Não chegou a um lugar que não tem lugar,
Na harmonia sem harmonia
Dum dia que não é dia.
- Aí, então, encontra o chão
Quando todo o chão for em vão.
1010 - Pistola
A pistola, uma bala, cinco câmaras vazias,
A circular de mão em mão
De bêbados na reunião
De todos os dias.
Clique, o gatilho bate em vazio
Sobre o temporal frio.
Logo após, o sinal
É outro clique igual.
De repente, bum, morto!
A culpa foi dele,
Ninguém deve brincar, não é desporto
Disparar uma pistola carregada contra a pele.
Tarde demais, alguém se há-de atrever
A questionar:
"Que estávamos a fazer,
Como nos deixámos chegar,
Na altura,
A tal momento de loucura?
Por que não veio ninguém nos deter
Antes de cada um tão bêbado ficar
Que já não lograria pensar?"
Roleta russa
Do degelo em terra e no mar,
Da generalização do nuclear
Que os perigos e medos mundiais aguça,
Do fosso entre norte e sul,
Dos extremistas e dos acomodados
Sob o falso véu de tule,
Da tosse que a miséria tussa
Definitivamente alheados…
- É a roleta russa
Que andamos todos a jogar, descuidados.
1011 - Proíbe
Proíbe algo,
Mesmo uma cor,
E logo do apetite o galgo
O persegue com furor.
Tudo inunda,
Anunciando:
"Sou a luz do sol moribunda,
Estou do bairro no comando,
Vivo em toda a parte,
Proibida.
Usa-me com arte
Em tua pele esquecida.
Quanto mais te gritam
Que me não podes ter,
Mais a falta agitam
Que de mim sentes em teu ser."
1012 - Amansar
Para amansar um animal
Destroem-lhe os membros uma vez e outra de novo.
Para amansar um país, por igual,
Destrói-se-lhe o povo.
Rouba-se-lhe a vontade,
Demonstra-se controlo absoluto
Sobre o destino que o invade
A frio e bruto.
Prova-se quem decide
O que vive e o que morre,
Quem prospera e a quem se agride
Ou socorre.
Das armas o capricho
A fé dos povos finda a minar
Das coisas antigas no nicho:
A fé na terra, na floresta, nas águas, no ar…
Feito isto, que resta?
O tirano.
- O povo que já não presta
Toma-o por deus por engano.
1013 - Doença
É a doença a primeira cura.
Da morbidez a fonte primordial
É do médico esta crença que supura,
Compulsiva e fatal:
O impulso de tentar curar
E a fé mentirosa
De que o há-de lograr
Com mão gloriosa.
A norma, porém, é a pancada de través,
- O revés.
A ver se olhas doutro lado
O sinal
Que te houver fustigado:
O sentido do mal.
1014 - Estado
Um estado de saúde imperfeito
É um perfeito estado de saúde.
Não temos jeito
Nem virtude
Para, em geral, reparar
O que em nosso corpo se avariar.
Tal mistério lhe anda nos abismos
Que pouco além vamos dos exorcismos.
1015 - Antiguidade
Antiguidade que só conta os anos
Há-de em cada feira valer menos.
A que mérito acumula contra desenganos
Maior preço tem por quantos planos
Fará vingar por dela acenos.
Então, tanto mais valor apura
Quanto mais dura.
Quando olho em meu redor,
Ser eu mais antigo festejo
Se que me guardam amor
E respeito vejo.
Quando olho para mim apenas
Mais moderno me queria, com apreço,
Que a antiguidade sofre destas penas:
- Mais perto anda do fim que do começo.
1016 - Esponja
É esponja a opulência
Que se encharca da pobreza no tutano.
Nada a farta, nenhum dano:
Rebentam uns de gorda excelência,
Tal a abundância,
Outros de magros se entisicam,
Tal a carência.
E, multiplicada a distância,
Ambos os pendores se multiplicam.
1017 - Cobiça
A cobiça de riqueza é fogo
Que nunca diz basta:
Quanto mais pasto, mais se ateia logo
E mais fome revela de pasto de igual casta.
Aumenta-o, pois, a seguir,
Com o que a pudera fartar e extinguir.
Por esta contradição exacta
Promete vida e, ao invés, mata.
1018 - Subtil
Não há nada mais subtil do que a malícia,
A sinceridade é simples, terra a terra,
Inocente de qualquer sevícia,
O engano de arte se enfeita onde nos enterra.
A perspicácia é suspeitosa,
De menor valor que o que se lhe confere:
Ânimo dúplice não comprova,
Nem de infiel tem prosa,
Porém tanto o pode ter
Como o contrário,
Dos factos na contraprova,
Dela no imprevisível itinerário.
Quem descobre como o mal se faz
Bem perto anda de o fazer,
De engano quem vislumbra como é capaz,
De enganar não fica longe sequer.
Em plena ambiguidade
Que é que mais persuade?
1019 - Torre
Haverá quem diga
Que o homem elevado
Ao cume duma torre de menagem
É mais homem que o colocado
No campo raso da forragem?
O homem muda de lugar,
Mas não muda de ser, a par.
É o mesmo em toda a parte,
Em nenhuma é mais nem menos:
Pode alguém parecer maior, destarte,
Mas ser, não.
Somos sempre pequenos,
Seja qual for o chão.
1020 - Acabam
O amor, o desejo, a esperança e a vaidade
Acabam quando alcançam.
Perdemos as coisas na oportunidade
Em que as chegamos a ter, que logo cansam,
Ou ao menos perdemos o gosto que nos vinha
Do desejo:
Decifrada a adivinha,
Morreu o ensejo.
Para reprimir paixões
Nem sempre é bom reprimi-las:
Resistindo às opressões,
Mais se imprimem, fortificam.
Por tais atitudes nunca então as filas
Se esboroam em que pontificam.
Algumas brotam apenas da resistência
E não podem existir sem ela.
Da dificuldade de algo inferimos-lhe a excelência:
Torná-lo fácil, sem lhe opor uma procela,
É tirar-lhe a graça
Que apetecível o traça.
1021 - Lar
Da felicidade o segredo
É gostar do que se tem,
Do lar, dos parentes, do credo
Que comungo com alguém,
Dos amigos, da profissão, da terra…
Daqui a paz nos provém
No meio de qualquer guerra,
Como a força que detém
Planta que à raiz se aferra.
1022 - Agita-se
Agita-se o homem
E a Humanidade o conduz:
Vem a luz
Dos pavios humanos que se detrás consomem.
Chegam aqui os sinais
Dos mais longínquos portos,
Os vivos são cada vez mais
Governados pelos mortos.
O mistério da vida
É o desta cadeia entretecida.
1023 - Revolta
A revolta cria imenso pesadume,
Suja o indivíduo, cria mal-estar.
Um duplicado a resume:
É o mal daquilo que a provocar
Mais, na volta,
O provocado pela própria revolta.
E, deste ciclo ao não nos soltar,
A revolta ir-nos-á o mal triplicar.
E assim encadeadamente
Num pesadelo sem futuro nem presente.
1024 - Atrás
Esta nortada
Pode revelar-se um zéfiro amistoso
Para a fronte abrigada
Atrás de portas, da lareira ao gozo,
Olhando lá fora a gelada
Rama
Antes de se enfiar na cama.
Há uma espantosa diferença
Entre quem respire atrás duma vidraça
Que o frio lá de fora não vença
Nem trespassa,
E quem ante a janela sem vidros, à geada,
Aguenta o chicote justiceiro
Da sorte
Onde o vidraceiro
É a morte.
Os dois lados da moeda
São o que a vida leveda.
E é o que nos questiona
Se pretender-nos todos manter-nos à tona.
1025 - Caminho
O caminho é o da emoção
De germinar nossos hortos.
Quem se afasta das leiras da razão
Vai ficar entre os mortos.
Saber é alegria e tormento,
Há-de, porém, trazer a cura.
É que, se há uma sabedoria que é sofrimento,
Sem ela há sofrimento que é loucura.
1026 - Alfurja
A guerra leva a emergir
De alfurjas minoritárias nacionais
Uma fracção indolente demais
Para abertamente se bater ou insurgir,
Demasiado inconsistente
Para desempenhar qualquer papel
Mas suficientemente
Cobarde e cruel
Para devir o carrasco,
Pago indiferentemente
Por uma ou outra das partes.
Então, sob seu casco,
Sem privilégios nem apartes,
É esmagada toda a gente.
1027 - Conjunto
Duma fé qualquer a instituição
Ou é igreja de conjunto - vértice, lados e base,
Ou de Deus nenhum é religião
Que os crentes creiam que abrase.
Dominação
Incontrolada,
Todavia, não é estrada,
É danação.
A fé tem apenas bom feitiço
Num modo de governar:
- É o de se colocar
Do homem ao serviço.
1028 - Modesto
O modesto é detestado
Do palácio pela gente.
De humilde prefere o estado
A parecer vivê-lo em tal ambiente,
De tal modo é molestado
Pela voz corrente.
É que aqui temor de Deus
É tido por ingenuidade
Por crentes e ateus,
Um dislate ou fatuidade.
O judicioso
Com consciência
Devém para eles hipócrita pretensioso,
Uma indecência.
Quem ama a paz
E busca a fundura na solidão,
Nada faz,
É um mandrião…
- No palácio, o modesto
Jamais logra preservar
Nenhum apresto
De valor nem de lugar.
1029 - Concede
Muito valor tem o crédito
E quanto dele cedemos a quem cremos ter valor!
Quando aumenta a crença na valia que é de supor
(Quantas vezes não existe!),
Acaba também por aumentar o rédito
De quem no favor
Da ilusão doutrem persiste.
E o mérito real
Sofre tratos de polé
Disto ao pé,
Quantas vezes, afinal!
1030 - Palavras
As palavras-fetiche, palavras-superstição,
Palavras-mística, retórica sentença,
Não confundem nem inquietarão,
Pelo contrário, tranquilizam
Quem visam,
Desde que se convença.
Gíria integradora
Que exalta a mente,
Adormece, acalentadora,
O poder de reflexão
E suspende concomitantemente
A responsabilidade:
É o grupo que pensa e aquilo ecoa,
Na verdade,
Em vez da pessoa.
1031 - Carácter
Um homem de carácter, um Homem,
É de carácter difícil fatalmente:
Pouco maleável
Para os que nunca o domem,
Nada manobrável
Para o prepotente.
1032 - Ambiente
O ambiente torce o juízo.
O líquido no alambique
Toma o formato preciso
Que este lhe aplique.
Nele próprio é diferente
Mas toma a forma do recipiente.
Assim o juízo preferido
Por igual se ressente
Do ambiente
Vivido.
1033 - Convicção
Quando vinga no superior
A convicção pertinaz
De que tudo lhe é permitido impor,
Mesmo, se o entender,
O contrário do dever,
Que tanto faz,
Em roda livre ele então roda
E torna-o moda,
Sem qualquer respeito
Pela personalidade do desprezado,
Pelo jeito
Do subordinado.
O arbitrário, à falta de oposição,
Campeia sem travão.
Tudo devém relativo e casual
E a instabilidade do juízo capital
Finda em permanente emboscada
A ultrapassar os limites,
A cair no arbítrio a cada passada,
No abuso dos palpites.
1034 - Incarna
Por ela própria existe a vera honestidade
Em perene tensão para o ideal.
E não incarna, automática, num ou noutro superior,
Falsa sumidade,
Sem real
Conteúdo aqui de tal teor.
É que não havendo quem crítico proteja a base,
Facilmente falta a justiça:
O superior não busca a fase
De tomar conselho para a liça,
Não há chamadas de atenção
E não é corrigido
Nem de cima pela mão,
Nem de lado por quem lhe anda submetido.
Vera honestidade,
Só do ideal no itinerário
De soledade
Autêntico e originário.
1035 - Caminho
Saber que percorremos um caminho errado
É já bastante e fica perto
De haver encontrado
O caminho certo:
O caminho do dever
Corre ao lado
De quenquer.
1036 - Reprime
A verdade não a reprime a censura.
Ao invés, se reprimida,
Dispara a mola da lisura
E floresce noutro lado,
Em seguida,
Porventura num tempo retardado
Apenas da hora da partida.
1037 - Eternamente
Não podemos eternamente mergulhados
Viver nos problemas:
Não ficamos acalmados
Com a mera descoberta dos dilemas.
A razão
Acalma-nos e exulta
Quando encontra a solução:
A vida já não é estulta.
Se assim não fora,
Só haveria inquietação
Pelo mundo fora.
E mais atroz
Seria a lesão
Em cada um de nós.
1038 - Tesoiro
A palavra tem peso
Quando o silêncio nela ouvimos,
Quando esconde ileso
E deixa adivinhar um tesoiro sob os limos
Que pouco a pouco distribui de mão em mão,
Sem pressa nem vã agitação.
O silêncio é o conteúdo que prezo
Nas palavras oculto que têm peso.
E qualquer alma vale pela riqueza
Do silêncio que nela reza.
Silêncio que não adormece
Mas reestrutura.
Palavras destas, na escrita messe,
São passageiros de alma que, em meio à agrura,
Antes de passarem adiante,
À porta de cada espírito baterão,
Em apelo constante
Para comprometê-lo na acção.
1039 - Ocorre
Nada ocorre por acaso
E nada desponta na vida
Sem um propósito, a prazo
E à medida.
O que fazemos por mor disso
E o que fazemos a respeito,
Eis o que pode acender-nos o chamiço
No peito.
É a chave para descobrir
Quem e aquilo que nós
Somos, a seguir,
No gesto e na voz.
1040 - Brutamontes
O brutamontes bateu na pobre mulher,
Deixou-lhe a boca a sangrar
E roxo um olho,
E ela ao lado dele ainda a querer
Ficar,
Como um escolho
Lapidar,
Sem nem sequer a deixa
Duma queixa!
O pai dela batia porventura na mãe
E ela cresceu a assistir ao pesadelo.
Agora, adulta, não quebra o elo,
Crê que a vida é mesmo assim refém.
Círculo vicioso,
Agressão doméstica gera agressão
Na geração
A seguir ao punho danoso.
Se aquela mulher fora criada
Num ambiente de amor,
Jamais viveria esmagada,
Resignada
A um homem de tal teor.
Não há padrão fixo, todavia,
E no melhor lar
Pode tombar a nódoa fria,
A respingar
Da besta
Que dormita breve a sesta,
Escondida de todos os horizontes,
No seio de qualquer brutamontes.
1041 - Vítima
Da vítima numa cultura
Vivemos,
Onde tudo leva a que nos contentemos
Com a figura
De peões desamparados
Num cósmico jogo de xadrez,
Sem responsabilidade pelos actos praticados.
Tudo porque vítimas de alguém alguma vez:
De pais alheados ou violentos,
Da família desagregada,
De despóticos portentos,
De líderes religiosos de fé fanatizada…
A clínica lida
Com a lista interminável
Deste tipo de vítima combalida
Que não logra controlar, fiável,
Nem organizar
A própria vida nem o lar.
Tudo por jamais estabelecer
Linhas de rumo,
Trem de crenças e de ideias a que acorrer,
Através de que olhe, em resumo,
O mundo à volta
Sem lhe deixar ponta solta.
À deriva, procura abrigo
Onde julgar ver um porto amigo.
E eis como, doente,
A cultura se afunda no poente.
1042 - Ponto
A história ensina
Que o ponto em que a civilização
Entra em crise e declina
A grei
É quando a maioria da população
Desrespeita a lei.
1043 - Rico
Há muito rico e bem sucedido
Que, porque jamais deveras abraçado
Nem por ele próprio procurado
(Em vez de pelo que tem possuído
Ou pelo cargo desempenhado),
Adivinho
Que se sente, afinal, muito sozinho.
1044 - Vivemos
Viver a vida mais dói
Quando tudo o que é vivido
Não é vivido ao pé:
É que vivemos aquilo que foi,
O que podia ter sido
E não o que é.
1045 - Ganhar
Em vez de se ganhar tempo para o lazer,
Para o ócio,
Perdemos o dia, a semana, o tempo que houver,
A acelerar o negócio,
A produzir em corrida.
Vivemos a alienação, assumimo-la.
E em vez de se desfrutar a vida,
Consumimo-la.
1046 - Dor
A dor obriga-me a sentir
O limite,
Na medida em que o determina,
Sem doravante me permitir
Mais nenhum palpite,
Avisando-me de que do topo da colina
Principia o despenhadeiro do perigo
Para a integridade de meu abrigo,
O organismo.
Quão mais o atropele
Mais o jogo no abismo,
Em parte ou a todo ele.
1047 - Problemas
Em vez de problemas mascarar,
Se tomo deles consciência,
Com eles aprendendo a lidar,
Poderei vivê-los em tranquilidade:
É de minha vivência
A autenticidade.