OITAVO  TROVÁRIO

 

 

                        O  SER  QUE  ENTENDO  A  PERSEGUIR

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 910 e 1047, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

                                                910 - O Ser que entendo a perseguir

 

                                                O ser que entendo a perseguir

                                                Corre o poema irregular rimado

                                                Com quanto lhe permite descobrir,

                                                Embora o real esteja sempre a ir

                                                De fatal mistério embuçado.

 

                                                Ao ler-lhe, porém, sombras e luz,

                                                Como as leis que o regem definidas,

                                                O passo mais firme me traduz

                                                Minhas idas.

 

                                                Entendo e me arrepio

                                                Ou me espanto,

                                                Enquanto a correnteza vigio.

 

                                                E, entretanto,

                                                É o mistério que canta no meu canto.

 

 


911 - Respeito

 

O respeito ninguém o impõe,

É merecido.

Não há respeito devido

À força que a conquista pressupõe.

 

Os grandes pequenos ditadores

Que com a bota no pescoço do povo

Se impõem, senhores,

São mentecaptos a gorar no ovo

O que buscarão:

Não conquistam respeito nenhum

Apenas submissão.

 

Até que ao povo o grade

Algum dia, algum,

O grito da liberdade.

 

 

912 - Democracias

 

Democracias que brotam

Duma ditadura

Geram novos ditadores.

Só que, em vez dum, arrotam

Muitos mais na partitura,

Tenores bem menores,

Espalhados do país a toda a largura

E fundura

Dos pendores.

Depois, quanta saudade

Dos regimes anteriores!...

- Ora, então, quem persuade?

 

 

913 - Apontam

 

Quando um inocente

Apontam como agressor,

Fica a vítima impotente

Ante o agressor verdadeiro:

Impune doravante em terreiro,

Vitimizará quenquer que for.

 

As defesas

Eliminadas,

Ao erro presas,

É que findam agrilhoadas.

 

 

914 - Regime

 

Não há social bondade

Humana

Em regime de espontaneidade.

Os homens são capazes de tudo,

Se em interesse próprio promana.

Aproveitam a dureza do fascismo

Sobretudo

Para impor aos mais, como automatismo,

O que eles querem.

Aproveitam as liberdades da democracia

De que auferem

Para a eito

Promoverem

Tudo o que for em seu proveito.

 

Bondade social,

Não:

A espontânea é individual,

Doutro modo é instituição

E mais nada é real.

 

 

915 - Lei

 

Lei injusta

É aquela que a maioria

Vem impor à minoria

Para viver dela à custa,

Sem que, por outro lado,

Arbitrário,

O grupo maioritário

Se sinta por tal lei obrigado.

 

Aqui o fosso da iniquidade

É rei:

É a desigualdade

Feita lei.

 

Na lei justa a maioria

Obriga a minoria

A cumprir o que aquela

Pretende cumprir, na sequela.

 

O racional princípio da bondade

Aqui é rei:

Igualdade

Feita lei.

 

 

916 - Guiado

 

Quem vive guiado pelo medo

Anda sozinho,

Sente-se desprotegido,

Na boca sempre de credo,

E o efeito comezinho

É que finda de protecção destituído.

 

Vive à mercê do ego,

Encarado

Do mundo como separado,

Apenas a si próprio tendo apego,

Prisioneiro de objectivos imediatistas,

Básicos, da epiderme,

Sem interioridade,

Meramente materialistas,

E que o tornam, à falta de profundidade,

Perdida a derradeira identidade,

Um mísero verme.

 

 

917 - Pretensão

 

Tudo o que não entendem nem alcançam

Resolvem que não existe.

 

Que pretensão! E não cansam,

Nenhum desiste,

Como se souberam tudo!

As coisas que não sabem

Não são, simplesmente.

 

Como de defesa no escudo

Não cabem,

Pouco lhes importa,

Já que, como eles, todo o mundo mente…

 

-E batem com a porta!

 

 

918 - Fala

 

O homem fala e tu percebes,

O imo superior fala e tu intuis:

É mais subtil aqui o que recebes,

Linguagem do coração

Por onde fluis.

 

Maior dificuldade terão

Os ansiosos e controladores,

Quem tiver medo da vida

E do desconhecido,

Quem julgar que o coração é presumido,

Cheio de venenosas flores,

Não sabe o que ele diz nem com que lida,

Porque, ao invés do que convém,

Nenhuma lógica tem.

 

Muito mais facilidade há-de ter

Quem já aprendeu a aceitar.

Aceitar que a vida tem um plano qualquer

Para nós

E que, se eu ajudar

A jangada a evoluir na corrente,

Chegarei à foz

Para onde me inclino

Rapidamente:

- Chegarei ao destino.

 

 

919 - Estrangeiros

 

Sossegados, não, sossegados

Não podem ficar, sentados,

 

Estes estrangeiros inquietantes

Que são os ricos impantes.

 

Não há nada que os prenda,

Viajam ao sabor de ventos e vagas,

As coroas murmuram-lhes na cabeça a renda

Das veniagas,

 

As bolsas tilintam

Mundo fora, pelos recantos que fintam,

 

Que algures é sempre melhor,

E ao sol queimam o peito e ao calor.

 

E sempre a mesma resposta

À pergunta insone

De quem lhes contesta o céu:

- Quem é que na contracosta

Está ao telefone?

Daqui sou Eu!

 

Um eu tão Eu que pesa tanto

Que à vida lhes murchou de vez o encanto.

 

 

920 - Ignoramos

 

Ignoramos vulgarmente

Que penetrar na natureza

Envolve igualmente,

Antes, durante e após,

O caçador como presa,

A natureza dentro de nós.

 

De resto,

O reconhecimento

De nosso parentesco

Com o mundo natural

Universal

É o momento

De nossa vivência

Que mais vale

Em toda aquela experiência.

 

O mais,

Por maior que seja,

É sempre ficarmos, esquivos,

Fora da igreja

Onde ocorre o mistério dos sinais

Que nos mantêm vivos.

 

 

921 - Grandiosidade

 

Para quem parte

Há grandiosidade e silêncio,

Água límpida que a montanha reparte,

E o ar puro convence-o.

 

Vem a dádiva da lonjura,

Distante de relacionamentos e ritos diários,

Onde a energia apura

Do Universo nos ovários.

 

A natureza germina-o em nós,

Dela com a cunhagem particular,

Dominam-nos forças em dança veloz

E o corpo reage, na noite quente e crua,

Carnal e singular,

Ao atractivo invasor da Lua.

 

 

922 - Mulher

 

A mulher é um resultado

Com um conflito

Sobre as competências dela

E que, por todo o lado,

Se sabota, sem um grito,

A ela própria, na sequela.

 

Incarnação

De todos os perigos,

As dúvidas próprias são

Dela os piores inimigos.

 

Embora epidermicamente

Haja resistido ao poder do pai

De limitar-lhe as aspirações que teve em mente,

Incorporou (e não se esvai)

A atitude crítica dele,

Dela feita no imo a nova pele.

 

Luta contra a ideia

De que não é bastante boa,

Hesita quando granjeia

Novas oportunidades,

Tonta e à toa,

Realiza menos do que as capacidades

Lhe permitem

E, embora bem sucedida,

Crê-se inadequada àquilo a que a concitem

Na jornada empreendida.

 

É o padrão gerado por famílias e culturas

Que mais os filhos que as filhas valoram, sibilinas,

E que esperam que estas sejam estereotipadamente puras,

Ditas femininas.

 

 

923 - Efeito

 

Frequentemente

A mulher cerebral,

Inteligente,

Que exerce em redor

Um efeito demolidor,

Letal,

Não é consciente

De tal.

 

Não é intuito dela

Intimidar nem aterrorizar,

Apenas cumpre bem, da vida na procela,

O labor tal e qual como o encarar:

Os factos anda a recolher,

As premissas a examinar,

O material a ver

Como se estrutura

Ou que provas lhe assegura…

 

Não repara

Que, quando dissecamos,

Matamos

A vida que ali se examinara.

 

Com a atitude objectiva,

Com a pergunta incisiva,

 

Subestima o poder de criar

Uma relação, a par.

 

De autêntica comunicação

O potencial liquida

Em que o âmago de qualquer questão,

O coração de qualquer vida,

Pode, em todo o lado,

Ser partilhado.

 

E quantas vezes quem mais fica a perder

É tal mulher!

 

 

924 - Estrada

 

Em qualquer estrada ocorrem

Bifurcações cruciais

Que requerem decisão.

Que rumo meus pés percorrem,

Que seta escolho entre nos sinais?

Prosseguir na direcção

De princípios que são meus

Ou seguir doutros o chão?

Agir com honestidade

Ou do engano com os véus?

Ir para a Universidade

Ou antes ir trabalhar?

Ter um filho ou abortar?

Romper uma relação

Ou mantê-la em contramão?

Com alguém ir-me casar

Ou recusar?

Buscar imediatamente,

Vendo um caroço no peito,

Médico que a cura tente

Ou adiar, se me dá jeito?

Largar escola ou trabalho,

Buscar algo em que mais valho?

Pôr o casamento em risco

No risco duma aventura?

Desistir dentro do aprisco,

Insistir no que me apura?...

- Qual a escolha, por que via,

Que custo é que me anuncia?

 

A escolha é o meu distintivo

Dia a dia, enquanto vivo.

 

 

925 - Lágrimas

 

É atribuído, ao nascer,

De lágrimas um quinhão igual

Ao homem e à mulher.

Vertê-las, porém, como tal

Aos homens é proibido.

 

Sempre estes antes hão morrido

De coração prestes a estoirar,

A pressão arterial

A subir,

O álcool o fígado a envenenar

E diluir,

Tudo porque não dão

Vazão

De lágrimas ao lago

Dentro deles.

Para quantos, nem um único, um reles

Trago!

 

Morrem porque deles a cara

Presente

Nunca bastantemente

Nenhuma lágrima a regara.

 

 

926 - Difícil

 

Tal qual quenquer que vive,

Sou mais feliz

Lembrando o lugar onde estive

Ou onde gostaria de ir por ter qualquer matiz

Do que feliz sou

Aqui onde estou.

 

Muito difícil é ser um ente

Feliz no presente!

 

 

927 - Livro

 

Um bom filme nunca tem

Dum bom livro o mesmo efeito.

O livro o poder detém

De alterar à percepção,

Para sempre, o mundo a eito.

Um bom filme alterá-la-ia,

Em contraposição,

Apenas por um dia.

 

 

928 - Mundo

 

O mundo são maravilhas,

Riquezas, enigmas, poderes…

Quando o sondam nossas quilhas,

Pode, entre nossos haveres,

 

Deixar-nos horror, tristeza,

Espanto, confusão, alegria..

Nada, porém, nele entedia,

Aborrece ou menospreza.

 

O tédio é de alguma falha

Que dentro de nós existe,

Não do mundo que nos calha,

Sempre de aguilhada em riste.

 

 

929 - Corrompe

 

Tende o poder,

Inelutavelmente,

A corromper

E, como produto,

O poder absoluto

Corrompe absolutamente.

 

 

930 - Pendores

 

Aos pendores emocionais

Os homens amputam,

Como aos vulneráveis, instintuais.

 

Na psique, porém, as orelhas escutam

E o amputado ou enterrado

Persiste vivo, embora amodorrado.

 

Devirá subterrâneo,

Permanecerá fora da consciência

Tenazmente contemporâneo,

Mas pode ter uma reemergência

E ser remembrado

Quando pela primeira vez

O arquétipo é evocado

Numa relação

Ou, talvez,

Numa inamordaçável situação.

 

Para quem vive vidas secretas,

Afeições e gestas inaceitáveis

Existem na sombra, discretas,

Vividas subrepticiamente,

Inadiáveis,

Sem conhecimento do meio ambiente,

Até serem denunciadas,

Eventualmente,

Com grande escândalo das gentes gradas,

Em nome da ordem vigente

E respectivas facadas

Jamais por elas questionadas

No dogma assente.

 

Assim ou doutro modo, porém, os mortos revivem,

Por mais que os arquivem.

 

 

931 - Encontram

 

Quando encontram os mortais

Aos deuses e deusas fora do templo,

No recinto do fogo do lar não estão mais,

Devém ambíguo todo o exemplo.

 

O encontro com o arquétipo, íntimo deus,

Tão benéfico pode ser como arriscado,

Que há dedos destrutivos sob os véus.

Os deuses têm crentes apanhado

 

De surpresa e os dominam,

Impõem-lhes a vontade

Seduzindo-os, raptando-os e os afinam,

Com voracidade,

 

Castigando, castigando, castigando.

Assim um arquétipo seduz e conquista,

A cada qual então o desossando.

Quando nele se enquista,

 

Psicologicamente,

O indivíduo identifica-se apenas ao arquétipo-deus

Que dele se apoderou, do corpo à mente,

É barco à deriva no turbilhão dos macaréus.

 

 

932 - Arquétipo

 

Arquétipo é o padrão invisível

Que determina qual

A forma e estrutura dum cristal

Quando ele se tornar exequível.

 

Logo que formado realmente,

É o padrão

Então

Reconhecível,

Tal qual, em todo o lado,

Em toda a gente

Activado:

Todo o juízo e atitude

Fará que a ele se grude.

 

 

933 - Destinados

 

Como tudo no Universo,

Mais que a ir,

Vivemos destinados desde o berço

A divergir.

 

O tempo não é senão

A unidade de medida

Desta separação

Em toda a ida.

 

Partículas num mar de distância

Explodidas dum astro original,

Há uma certeza, desde a infância,

Então,

A dar aval

À nossa solidão:

Sem enganos,

Vivemos cada vez mais sós na proporção

Dos nossos anos.

 

 

934 - Preconceito

 

Preconceito de literatos

É a convicção secreta

De que a vida que vemos e nos afecta

São mil e um falsos retratos,

Da realidade imperfeita

Visão que mal se lhe ajeita.

 

As artes apenas,

Com óculos de ver ao perto,

Corrigiriam às cenas

O defeito certo.

 

Os eruditos e intelectuais

Andam animados dum rancor profundo

Contra os sinais

Do mundo.

Nenhum se reconcilia

Com a ideia de que a vida

Nunca segue a curva da via

A que um bom autor a convida.

 

Em eventos de pura perfeição

A vida é somítica, pequena.

Ora, isto, deles na convicção,

É uma pena.

 

 

935 - Desejo

 

O desejo busca ao fim

Ser satisfeito.

Se nos domina e lhe transpomos o confim,

Este feito

Não é jamais deveras alcançado.

E, em vez da felicidade

De momento,

Encontramos por todo o lado,

Na vulnerabilidade,

A gravidade

Do sofrimento.

 

 

936 - Frenética

 

Frenética actividade

Que vise a satisfação

Apenas duma ambição

Pessoal

E que, ao fim, aos que ela invade,

Os arreda extenuados,

De saúde arruinados,

Equivale

A se aniquilar na estrada,

Ao fim e ao cabo, por nada.

 

 

937 - Real

 

O mundo é feito

De coisas boas e más

E o que do real toma o jeito

É, na maior parte,

Fabricado, tenaz,

De nosso espírito por arte,

Não vem de fora nem de trás,

Cá dentro se forma aparte:

Somos nós os demiurgos

Das aldeias e dos burgos.

 

 

938 - Temas

 

Os temas dos média favoritos

São os roubos, a guerra,

Actos de ódio ou de cobiça,

Delitos

Que revolvem a terra

Como o aço da rabiça.

 

Contudo, do mundo no alfobre

Ninguém pode afirmar

Que nada germina de nobre,

Tudo o que da qualidade humana

Persistente e devagar

Dimana.

 

Não haverá ninguém

Que trate doentes,

Órfãos, velhos, deficientes,

Sem ser pelo lucro que obtém?

Não haverá quem doutrem por amor

Actue a favor?

 

Na verdade até há muitos,

Se calhar a maioria,

Mas habituámo-nos a pensar, gratuitos,

Que eles são a normal fasquia.

 

Ora, ninguém proclama

A vulgaridade,

A pretexto de que não tem chama,

Mesmo quando não é verdade.

 

Então é uma verdade mentirosa

Que nos enche a vida de prosa.

 

E é de vista distorcida

Que olhamos a vida.

 

 

939 - Repercute-se

 

A boa saúde colectiva

Repercute-se em cada um.

Não implica

Que me sacrifique e viva

Para a colectividade

Sem bem-estar individual algum,

Antes significa

Que cada vertente

Invade,

Na outra se imbrica

Indissoluvelmente.

 

Hoje em dia cuidamos que a sina

Do indivíduo e da sociedade

Se amputam pela metade,

Que uma a outra se não destina.

E que o mais importante

É o indivíduo, não a comunidade.

 

Ora, se alargarmos a perspectiva

Até ao horizonte distante,

Logo vemos, no horizonte perdido,

Que esta atitude esquiva

Não tem sentido.

Uma doutra é o alimento

E é de ambas que por igual me sustento.

 

 

940 - Interior

 

O interior contentamento

É basilar,

Não renuncies ao frumento

Elementar.

 

A um mínimo nos bodos

Tens direito, como todos.

 

Porque à vida imprescindível,

Devemos assegurá-lo:

Se contestar é exigível,

Contestemos com abalo,

Se uma greve é requerida,

Façamos greve, em seguida…

Todavia, não deveremos

Cair em extremos:

Se interiormente nunca estiver satisfeito

E quiser sempre mais,

Jamais a ser feliz serei atreito,

Hão-de sempre faltar quaisquer sinais.

 

A felicidade interior não vive sujeita

A conjunturas materiais

Nem dos sentidos à saciedade estreita.

No imo ganha raiz

E tal felicidade é que é nossa matriz.

 

 

941 - Repugna

 

Repugna à maior parte

Lembrar a própria morte,

É um aparte

De desnorte.

 

Passamos a vida, assim,

A acumular bens,

A gizar projectos sem fim,

A encher de cada dia os armazéns…

 

Como se fôramos viver eternamente,

Tal se não fora certo um destes dias,

Amanhã talvez, no instante presente,

Termos de partir de vez em paz,

Para trás deixando as fantasias,

Largando tudo para trás.

 

Porventura para continuar a viver,

Mas noutro mundo qualquer:

 

Deste

Não haverá nada que reste.

 

 

942 - Embora

 

Embora com bons amigos e a maior comodidade,

Se a atitude não for correcta,

Não é viável ser feliz de verdade.

 

A atitude mental bem mais afecta

Que os determinismos exteriores.

Contudo, para a maioria,

Os primeiros valores

São de onde a exterioridade espia

E o efeito pior

É que o mundo inteiro então negligencia

Como negra magia

A postura interior.

 

Da qualidade íntima a relevância

Urge que tome a primeira importância

 

Ou findará bem triste

O homem que existe.

 

 

943 - Falta

 

No mundo rico

Há muita gente infeliz.

Não lhes falta nada, verifico,

Têm os meios de raiz

Para viverem de modo confortável.

Não estão, porém, contentes

Com a sorte invejável

De que são utentes

Mal agradecidos.

Não são felizes por inveja,

Por apetites desmedidos,

Pelo que quer que seja.

Uns esperam um cataclismo,

Outros o fim do mundo…

 

Cada qual fabrica o próprio abismo

De sofrimento profundo,

Por ser incapaz em demasia

De pensar de maneira sadia:

Se mudara a maneira

De ver o que lhe corre à beira,

O tormento findaria.

 

Há, porém, quem tenha realmente

Razões para sofrer:

O doente,

O que a miséria tolher,

Os de catástrofes vitimados,

Os maltratados…

 

No pendor material,

Devem-se tratar;

Aos que os maltratam colocar ponto final;

O tribunal

Accionar;

Laborar duro

Para comer, para vestir o futuro…

 

Mentalmente, porém,

O problema é se adoptam atitude positiva:

Desta é que provém

Do sofrimento o grau ou a esquiva.

 

A dor dói-me então

Sem eu querer;

O sofrimento, não,

Só se em mim o acolher.

 

 

944 - Penúria

 

Os que sofreram a guerra

E a penúria que sobreveio

Não os aterra

No caminho

Qualquer pedra que topam pelo meio.

 

Estão contentes deles com a sorte,

Viram muito pior: viram a morte.

 

No cadinho,

Em contrapartida,

Os que a guerra não sofreram

E felizes gozam a vida

Num perene jardim infantil

Gemem, desmaiam, canceram

Ante a adversidade mais pueril.

 

Embora a boa estrela

Tenham à mão de semear,

Não logram, no limiar,

Reconhecê-la.

 

Tanto pende de nossa interioridade

A matriz

De ser feliz

E a da infelicidade!

 

 

945 - Colectividade

 

A colectividade é cada vez menos humana

E nossa vida, cada vez mais mecânica:

De manhã corremos ao trabalho que nos engana;

Quando finda, cambaleamos até à satânica

Discoteca ou a qualquer lugar onde ir,

A fim de nos distrair.

Meios toldados,

Voltamos tarde

Para dormir uns momentos mal roubados

Sem mais alarde.

De manhãzinha,

De novo o trabalho de ganhar a vida,

De mente entorpecida

Na terra maninha.

 

Cada qual se tornou numa das peças

Dum mecanismo de nós às avessas

E, queiramo-lo ou não,

É fatal

Seguirmos o atropelo da multidão

No movimento global.

 

Ao fim dum tempo é tão dura de suportar

A sentença

Que findamos a nos fechar

Na indiferença.

 

Porém, nenhuma descrença

Nos pode salvar.

 

 

946 - Inviável

 

É inviável um atestado

De bondade permanente

A qualquer bem-comportado.

O comportamento presente,

Embora entre os melhores,

Pode acabar com juízos prematuros:

Vitórias anteriores

Não garantes resultados futuros.

 

 

947 - Boa

 

Gente boa é bem capaz

De actos deveras hediondos.

Ninguém deles marca traz

Nos olhos redondos.

 

Por mais que sejam incríveis,

Improváveis,

Todos somos susceptíveis

Das práticas mais inconfessáveis.

 

Não quer dizer que meu vizinho

Amável e respeitador

Ande a amontoar com o ancinho

Os corpos da família que trucidou no corredor.

 

Mas que algures no mundo

O vizinho de alguém,

Por mais respeitador que seja no fundo,

Irá fazê-lo, mais aquém ou mais além.

 

E que, neste momento,

Nem ele próprio sabe que irá fazê-lo.

O mais perturbador elemento

Da probabilidade, contudo, é

O que lhe impõe o derradeiro selo:

- Tal vizinho pode ser você!

 

 

948 - Natureza

 

A natureza humana é imprevisível:

O comportamento exemplar,

De tão esquivo,

Não tem efeito regular

Cumulativo

Infalível.

 

Almas danadas,

Todos somos permeáveis ao mal

Em circunstâncias dadas.

 

E o que a todos nos reúne

É este signo fatal:

- Ninguém é imune.

 

 

949 - Perante

 

Se perante cada qual

Que te violente,

Em lugar de: "tem razão, sou diferente",

Disseres: "é mentira, sou igual",

Outro que não este era o lugar

Onde agora te viria encontrar.

 

A tua carne é a mesma

E teu sangue também,

Sofrerás por igual qualquer Quaresma,

Rirás qualquer Páscoa que sobrevém.

 

Teu destino, dia a dia,

Outro, porém,

Seria.

 

Este foi forjado por uma frase,

Não pela outra que o alteraria.

 

Tem uma medida

A verdade de base:

Foi uma frase que te talhou a vida.

 

Caíste

Porque uma frase te fez cair.

Subiste

Pelo ar

Porque outra te fez subir

E voar.

 

O fruto proibido

Que nos tirou do paraíso

Foi a palavra cujo sentido

Nos fez perder o juízo.

 

A linguagem, a fala

É que fez perder o encanto

Ao mundo que doravante não se iguala

Nesta ambiguidade entre riso e pranto.

 

 

950 - Influência

 

Se o Cosmos inteiro eu for,

Então não pode haver

Influência exterior:

Tudo o que eu fizer

 

É livre, espontâneo.

Do ponto de vista do místico

Ancestral e contemporâneo,

Característico

 

É que o livre arbítrio é relativo,

Limitado, no fim ilusório,

Como toda a leitura que vivo

Da realidade no envoltório.

 

 

951 - Tido

 

Económico e tecnológico desenvolvimento

É tido como fundamental

Por todo o político e economista.

Ora, neste momento,

É de clareza fatal

Que o que persista

Como expansão ilimitada

Num ambiente finito

É uma estrada

Que concito

Para um desastre

Onde nada mais se encastre.

 

E por ali me vou,

Contente,

Sem reparar onde estou

De vez demente.

 

 

952 - Científica

 

A científica teoria

A completa e definitiva realidade

Jamais nos enuncia,

Mas meras aproximações da verdade.

 

Com esta os cientistas não lidam,

Lidam com descrições limitadas, aproximadas,

Para onde nos convidam

Com hesitantes passadas.

 

 

953 - Cultura

 

A cultura favorece

O nosso lado direito,

O esquerdo esquece,

Mal afeito.

 

Prepondera o conhecimento racional

Sobre a intuitiva sabedoria,

A exploração dos recursos mundial

Sobre a conservação que urgiria,

A competição sobre a cooperação,

A ciência sobre a religião…

 

Tal ênfase, alimentada

Pelo padrão patriarcal

E encorajada

Pelo sensualista pendor cultural

Dos três séculos derradeiros,

Acarretou um desequilíbrio estrutural

De tão fundos atoleiros

Que a raiz serão donde inteira deslize

A nossa actual

Crise.

 

 

954 - Mudar

 

Qualquer coisa é definida

Dela pelas relações

Com outras com que ela lida,

Não pelo que forem dela própria as feições.

 

Mudar do objecto para a relação

O primado

Tem por consequência

A criação

Duma renovada ciência

Em todo o lado.

 

O fenómeno atómico é determinado

Pela conexão

Com o todo com que vibra interligado:

É a propriedade

Insofismável

Que o funde e nos funda numa insuperável

Probabilidade.

 

Não somos nada, não somos

Senão pelos laços e afectos de que dispomos.

 

 

955 - Subatómico

 

No subatómico nível, fundamentais

São as interacções entre as partes do todo,

Mais

Que as próprias partes, de qualquer modo.

 

Há movimento na teia inteira

Mas não existem, entrementes,

Em análise derradeira,

Objectos moventes.

 

Actividade há,

Mas não actores, que ninguém os alcança:

Não há dançarinos acolá,

Somente a dança.

 

 

956 - Cientistas

 

Os cientistas constroem uma teia

De teorias limitadas e aproximadas,

Modelos com que cada qual ameia

A lonjura das estradas.

 

Cada elo mais preciso que o anterior,

Nenhum representa, porém,

O completo e final teor

Do que ao fenómeno natural convém.

 

A ciência progride

Por respostas provisórias, conjecturais,

Rumo a uma cadeia de perguntas que lide,

Cada vez mais subtil e mais fundo,

Com o âmago dos fenómenos naturais

Do mundo.

 

 

957 - Partículas

 

As subatómicas partículas são

Umas das outras dinamicamente compostas,

De modo que cada uma delas, então,

Envolve todas as demais:

Mais que supostas,

Mais que por sinais,

Trá-las cada qual às costas,

São membros dela corporais,

São de cada qual a energia

Com que se anuncia.

 

Destarte,

De seguida,

A realidade toda mora envolvida

Em cada parte.

 

O ser total, o Todo,

Na sequela,

É contido, de algum modo,

Em cada parcela.

 

E é uma propriedade universal

Da natureza enquanto tal.

 

Ignora quem o esquece

E desacata

Que então no fundo dele próprio já perece,

Só por isto já se mata.

 

 

958 - Instituição

 

Seja qual for

Da instituição a finalidade original,

O crescimento dela além de certo valor

Desvirtua invariavelmente

O objectivo final,

Ao ter em mente

A auto-preservação,

A expansão indefinida

Da instituição

Como meta suprema prosseguida.

 

E quem com ela lida

Ou lhe pertence

Cada vez de ser mais alienado

Se convence,

Despersonalizado,

À medida

Que famílias, bairros, organismos sociais

De pequena escala

Os abala

O domínio e exploração institucionais.

 

Findam então ameaçados e destruídos

Os melhores gestos vividos.

 

E quão mais sacralizada

- Igreja, religião, crença… -

Mais há-de ser esta a estrada

Que à instituição pertença.

 

 

959 - Vigor

 

Após o apogeu de vitalidade,

As civilizações

Perdem o vigor cultural e a criatividade

E declinam, aos baldões,

De idade em idade.

O colapso provém

Da perda de flexibilidade

Que, com a velhice, advém.

 

Quando estruturas sociais

E padrões de comportamento

Rígidos devêm,

Os povos não podem mais

Adaptar-se ao cambiante elemento,

Incapazes de levar avante, afinal,

O projecto criativo de evolução cultural.

 

Entra o ancestral em colapso e se desintegra:

Enquanto a civilização em crescimento

Segue a regra

Da variedade e versatilidade em aumento,

A que decai

Revela uniformidade

E se esvai

Pela ausência de inventividade.

 

Entre os respectivos elementos

É a perda geral da harmonia

E a discórdia apura

Mil desencantamentos,

Em cada dia,

De social ruptura.

 

Ao lado, porém, nos convida,

Em alternativa, germinal, a vida.

 

 

960 - Obsessão

 

Nada nosso mundo mudou mais

Nos quatro séculos derradeiros

Que a obsessão dos cientistas

Por medir e quantificar, certeiros,

Os dados e os sinais

De todas as conquistas.

 

No transcurso,

Porém,

Foi expulsa do científico discurso

A vivência que o homem é também.

 

Perderam a visão, o som, o tacto,

O gosto e o olfacto,

Enquanto no íntimo vividos,

E, com os sentidos,

Esvaíram a sensibilidade estética,

Os valores, a ética,

A qualidade, a forma,

Da vontade a norma,

Todos os sentimentos, motivos,

Intuitos vivos,

Alma consciência,

Do espírito interior evidência…

Ónus bem pesado

Para o terreno conquistado:

 

Perdemo-nos a nós!

- Quem nos restitui, doravante, a voz?

 

 

961 - Afirma

 

Afirma a ciência

Que de complexos modelos materiais

É uma manifestação a consciência,

Visível mais

Em sistemas vivos com complexidade.

Destes as biológicas estruturas

Exprimem itinerários subjacentes

Por onde as invade,

Nas dinâmicas figuras

Permanentes,

A auto-organização do sistema:

Ao enfrentar cada problema,

Revelam-se as mentes.

 

As estruturas materiais, desta forma sumária

Deixaram de ser tidas por realidade primária.

 

Olhando o universo como um todo,

Não é demais supor

Que dele as estruturas, deste modo,

Da partícula subatómica ao bolor,

Do vírus ao homem, da Galáxia ao Cosmos inteiro,

Tudo são manifestações

Do dinamismo auto-organizador cimeiro,

Da mente cósmica identificações.

 

Quase é místico o conceito.

Ao místico, porém, brota-lhe do peito,

 

Enquanto, na ciência,

Vem da perceptiva experiência.

 

Ambas, porém, reconcilia

Da abordagem global a via.

 

 

962 - Rio

 

Rio de muitos afluentes

É o destino,

Rede de tuas veias contingentes,

Caminhos que percorres por aqui, por ali,

Ao desatino,

A avançar, a recuar, uns contigo, outros sem ti,

Este ou aquele a escolher…

 

E todos levam ao mar

Que é morrer,

Morrer e tudo aí consumar.

 

…E continuar

Interminavelmente

Do rio o transporte

Do lado de cá

E de lá

Da morte,

Sempre em frente,

Eternamente, eternamente…

 

 

963 - Desejam

 

Quando desejam algo que não logram conseguir

Convencem-se de que nunca o quiseram deveras,

Desdenham-no a seguir,

Cospem-lhe em cima com todas as veras.

 

É do ridículo o medo:

Querer o inatingível é ridículo ser

E, num mundo tão pequeno, tarde ou cedo,

Ninguém ridículo quer parecer.

 

 

964 - Preço

 

O artista

É um solitário.

E quanto mais vastidão tiver em vista,

Solidário,

Maior o preço da conquista

No ermo vário.

 

Se estiver só,

É tudo seu.

Se tiver um companheiro sente dó,

Sente amizade:

A si apenas pertenceu

Pela metade.

 

É ilusão agir como lhe apetecer,

Tentar manter-se aparte:

Ninguém logra permanecer

Surdo à conversa que o companheirismo

Acarte,

Escancara-se-lhe aos pés sempre este abismo.

 

E é sempre neste fio de navalha

Que decidimos da sorte que nos calha.

 

No fundo, no fundo, toda a vida

É sempre esta solidão repartida.

 

 

965 - Obras

 

As obras dos homens são o fruto

Da ideia, do afecto e do valor,

Caldeados num único conduto

Do íntimo ao calor,

E pelas obras estes vão

Mais além do que o interior saguão.

 

As obras quedam e perduram

Para o bem e para o mal,

A forma tempo além murmuram

Com que as configurou cada qual.

 

Permanecem impregnadas

Do amor ou do desprezo,

Da ilusão ou do desengano

Com que foram realizadas

E mantêm tal vezo

Ano após ano.

 

Desta forma o sentimento

Chega a quem as contempla ou utiliza

Num eterno encadeamento

De propósitos e de actos em que se divisa

O mundo onde vivemos,

Onde temos

 

Aquilo que a cada qual ou escraviza

Ou diviniza.

 

 

966 - Tempo

 

O tempo não existe,

Existem as nossas alterações.

O sentimento que as liste

E lhes produz as modelações

 

E nos modifica

Cria-nos e recria-nos numa eterna espiral

De auto-geração variada e rica

Até fazer

De cada qual

O que deveras pode ser.

 

Percorremos espaços

Mas são meras mudanças,

Mudanças de lugar, de gentes e de traços,

Vivemos nossa muda nas intérminas tranças,

Até mais não conseguirmos

E de vez nos irmos.

 

Acaba então

O que tempo chamamos em vão.

 

Finda a mudança,

Finda a vida.

O que isto alcança

De seguida

Propugnar

É que esta vida é o tempo de mudar.

 

 

967 - Natureza

 

A natureza detém

Um remédio particular

Para as feridas aqui e além,

Nos cicatrizar.

 

Pouco a pouco,

Tão lentamente que mal nos apercebemos,

As memórias da lesão desatam a toldar-se,

Fico-lhes mouco,

Devêm obscuras nos extremos

E, a dada altura, quando apagado tudo se esgarce,

Dou comigo num estado tal

Que estou normal.

 

E nem me apercebi,

Entretanto,

Do que em mim renasceu tanto

Que renasci.

 

 

968 - Livro

 

Um livro que é bom deveras

É lido na juventude,

Na adultez e na velhice,

Como a luz de que esperas

Quanto te ilude

Num palácio que te enguice:

Vê-lo, à luz da fantasia,

Quando o alvor apontar,

Quando alegra o meio-dia,

E ao luar.

 

 

969 - Jamais

 

Um escritor

Jamais personagens inventa,

Seu próprio teor

Noutrem antes acalenta

- E aí se reinventa.

 

 

970 - Disfarce

 

O tempo é estranho,

Não é nunca o que julgamos.

Nem paternidade nem amor lhe trazem ganho,

Nem a angústia lhe influi no tronco nem nos ramos.

Há para tudo um disfarce qualquer

E vemos apenas as máscaras suaves e imateriais

Que decidimos ver

Como se foram factos reais.

 

 

971 - Serve

 

Não estamos preparados…

Instrução universal,

Aquecimento central,

Drogas miraculosas, discos compactados,

 

- Tanta descoberta extraordinária

Que não nos serve de nada,

Que em nada ajuda, atrabiliária,

Dos fundamentos desviada.

 

Por estranha coincidência,

Preparados não estamos, não,

Para enfrentar a consequência

De nossa acção.

 

 

972 - Herói

 

O herói ousado e magnificente

Que nos levaram a macaquear,

O herói aqui jamais existente

Em nenhum lugar!

 

Enfeitiçar nos deixámos todos

Por abstracções sedutoras mil

Que nada têm, em tais engodos,

Com o facto vil:

 

Um homem, um amigo, um camarada,

A estender-nos o coto destroçado

Dum braço, duma perna, onde mais nada

Ficou dependurado,

 

E a soluçar pateticamente

O espanto, a angústia, o mundo demente.

 

 

973 - Nunca

 

Nunca somos bons o suficiente

Nem suficientemente maus,

Nada é absoluto neste mundo evanescente,

Cá em baixo.

Saltando de margem em margem, pelos vaus,

A matéria é dual, não absoluta,

Dela no inesgotável berbicacho

De luta.

 

Nunca creias que irás ter dum lado tudo,

Do outro, sempre nada.

Nunca e sempre, a que me grudo,

Não existem na jornada,

Tudo muda permanentemente,

Apenas a ritmo diferente.

 

Após o mau vem o bom,

Após o bom, o mau,

Compensando o tom

E o grau.

 

Por trás, sobretudo,

Tudo está em tudo.

 

 

974 - Ganhar

 

Podem ganhar tudo os povos

Porque têm valor

E têm-no sem o ganha-perde de quaisquer renovos

Que se queiram propor.

 

Basta que aprendam a saber

Quem como povo são

Por algo que dentro de nós nascer,

Das profundezas na serenidade calma,

Algo que não tem cara, não,

Mas tem alma.

 

A vera identidade

Não é no espelho de fora,

É no da intimidade

Que mora.

 

 

975 - Medo

 

O medo de que aconteça

A teus filhos algum mal

É natural.

Perder, porém, a cabeça

 

E tapar o medo com grandes festas,

Falando muito para não te ferires

De teu íntimo nas frágeis arestas,

Com divertimentos e fugas a te distraíres,

- Isto é que, de boa fé,

Natural já não é.

 

Quando dói, dói,

A interior caminhada não é fácil.

É por isto que tanta gente se foi,

Leviana e grácil,

E da espiritualidade vive afastada

A cada jornada.

 

Cuidam que é melhor

Não entrar em contacto, em comunhão

Com a dor,

Com a insatisfação.

 

A vida que recusa trabalhar, superar

A própria dor, vivendo-a,

Atraindo perdas reais vai acabar

Para que a incontornável dor agreste,

Prendendo-a,

De vez se manifeste.

 

 

976 - Terrível

 

É terrível a ideia de pecado

Porque a todos algema pelo medo.

Quando morrem ninguém trepa, alcandorado,

Por medo de ser castigado

No Infinito, tarde ou cedo.

 

E então ficam cá por baixo

À procura estéril da luz

E cada vez é maior de almas o cacho

Que o desnorteamento traduz,

Quando, afinal, a madrugada

Nasce, gratuita, em diária jornada,

Oferecida

Generosamente

À medida

De cada vida,

Inesgotável, paciente,

Persistentemente…

 

Quem

Acolá se engana,

Porém,

Aqui é que se dana:

O pecado cega a medida

Final da vida.

 

 

977 - Tranca

 

Quando o espírito houver de aprender

Mas o ego, não,

O subconsciente reterá o saber

E à consciência tranca o portão,

 

Até, por automatismo, vencer

O pego:

- O monstro do ego.

 

Este é o mal verdadeiro

Dentro de cada um de nós,

É o que nos faz ter medo, arteiro,

É o que nos obriga, manda e ameaça,

Que a tremer, após,

Nos enterra os pés no meio da praça.

O ego auto-afirmado,

Individual,

Do Todo separado,

- É o mal.

 

 

978 - Viagem

 

Tudo pode ser compartilhado,

A viagem, as margens de cada lado,

 

A vivência, a alegria,

A tristeza, a sabedoria…

 

Tudo pode ser dividido,

Tudo, menos a bóia

Com que singras teu sentido

Rio fora, da vida a facetar a jóia.

 

Tua bóia de singrar da vida o rio

É tua derradeira solidão

Em que teces as malhas do fio

De tua própria construção.

 

 

979 - Íman

 

Temos no coração

Um íman original

Cuja função

É fatal:

Quando tenha de vivenciar a perda,

É de perda que ele me vai atrair eventos.

Quem acolher quanto então herda

E aprender a se desapegar de materiais

Encantamentos,

Deixar de controlar a si, à vida e aos demais,

Quem aprender a entregar,

Leva o íman a se virar ao contrário

E as conjunturas de ganho desatam a abundar

No curso diário.

 

Se, porém, adrega,

Com medo de perder mais,

Que ainda mais se apega,

Ainda controla mais,

Então o íman com que todos caminham

Não se vira jamais

E mais conjunturas de perda se avizinham.

 

E em todas as demais vivências

Esta é a regra das ocorrências.

 

 

980 - Vivências

 

Quando vivencias, rendido, a fragilidade,

O Universo te super-energiza.

Quando o limite te invade,

O que em ti se realiza

 

É que ficas preparado

Para o outro lado:

 

- Faz que tudo se inverta e torça

Para vivenciares a força.

 

Irás, portanto,

Sendo reenergizado entretanto.

 

Tudo o que chega ao limite

Vira-se ao contrário.

É mais que um palpite,

É a experiência dos opostos

No transcurso diário

De gostos e desgostos.

 

Quando aceitas perder o controlo,

O limite da fragilidade provocas então

E, consequentemente, és premiado com o bolo

Da imediata reenergização.

 

 

981 - Mata

 

Quem mata um homem matou

Uma criatura racional:

Dum singular voo

É o final.

Quem um livro destrói em vão

Destrói a própria razão.

 

 

982 - Dúvida

 

Na dúvida principia

A sabedoria.

 

Ao duvidar, encontramos

A questão e perguntamos.

 

E, se procuramos com tenacidade,

Podemos encontrar então a pista da verdade.

 

 

983 - Sortudo

 

A vida é dura,

Mesmo para os que têm sorte.

Não?!

Apura

Por ti próprio o desnorte:

Do sortudo no lar

Experimenta então

Interrogar

Do homem o coração!

E cuidado com o vulcão

Que espirrar!

 

 

984 - Fonte

 

Ai daquele

Cuja fonte de felicidade

Não tem nele!

Ai do que vive

Para que aos outros agrade!

 

Ai do que se esquive

Mal erguido do pó,

De sentir que esta vida e a outra são uma só!

 

É um condenado

Que errou a matriz em todo o lado.

 

 

985 - Lente

 

Quando pões uma lente ao sol

E concentras os raios num ponto,

Logo este bole

E desata a arder de pronto.

 

Tal é o espírito do homem:

Ocorrem milagres concentrando-o

Num dos males que nos consomem:

Ele resolve-o desintegrando-o.

 

 

986 - Máquina

 

Máquina esquisita é o homem!

Enchê-la de pão, vinho e medronhos

E do mais que as engrenagens consomem,

Produz suspiros, risos e sonhos…

 

É uma fábrica completa!

E na nossa cabeça

Há uma rica cinemateca

Onde toda a ventura acaba e recomeça.

 

 

987 - Morte

 

É a vida uma morte lenta,

Quotidiana,

Cujo relógio se movimenta

Semana a semana

E cuja velocidade

Vai diminuindo com a idade.

 

O coração, entrementes,

Já não bate com força igual

E os demais órgãos devêm indolentes,

Vítimas do mesmo mal.

 

Em breve tudo parará.

A idade, descomedida

E fatal,

Trará

Uma diminuição de vida

Lentamente, gradual.

Caem os cabelos

E os dentes,

Debilitam-se os músculos, flácidos,

Tudo retorna à terra, da cadeia pelos elos,

Em ritmos dormentes

E plácidos.

 

Viver é, portanto,

Nesta função,

Caminhar para a morte.

Para o santo,

Libertação

Dos tremedais,

É, para os demais,

O azar da sorte.

 

 

988 - Arma

 

Arma da mediocridade,

A corrupção predomina

Contra o talento que é raro.

Abunda sempre na sina

Da cidade,

- Só o talento, porém, é que é caro.

 

 

989 - Insaciável

 

Quando os homens desatam a matar-se,

Desejo incontrolável lhes invade

O coração.

E matar devém a solução,

A catarse

Para toda a dificuldade,

Por mínima que seja

No que quer que se almeja.

 

 

990 - Humana

 

A doença e a saúde,

A ignorância e a instrução,

O pecado e a virtude,

A ordem e a confusão,

 

O conforto e a pobreza,

Guerra e paz,

A alegria e a tristeza

- O que os faz,

 

Dia a dia,

Semana a semana,

É a humana sabedoria

Ou a pretensão humana.

 

Predomina

Cada tendência

Conforme aquilo a que o coração inclina

E como lhe responde a inteligência.

 

 

991 - Continuam

 

Os homens continuam a matar-se

Como há séculos, por mil razões,

Ignorando a catarse

Das ilusões:

A vida de que o mundo goza,

De que todos se aviam,

É muito mais preciosa

Que quaisquer ideias por que morreriam.

 

 

992 - Dias

 

Todos os dias são iguais,

Porém não me sinto triste,

Antes contente com o que existe

Em dias tais.

 

A paisagem muda, constante e satisfeita,

Da sementeira à colheita.

 

Depois calculamos as rendas

E vêm as festas e as tendas.

 

E o Ano Novo cheio ainda de Natal,

As crianças que crescem sem dar sinal.

 

E as que nascem e as que ficam pelo caminho

Tudo entretém a moldura de cada ninho,

Não pesa.

Cada mudança me preza,

 

Oferta-me o refúgio onde me acoite

A trabalhar e a sonhar de manhã até à noite.

 

 

993 - Sentes

 

Pode um homem estar-se finando

Diante de ti

Que não sentes nada quando

A morte lhe põe termo ao frenesi.

 

Pena, solidariedade,

Talvez sintas, talvez,

Mas nunca a dor que o invade

E lhe põe cobro de vez.

 

A poucos passos

O mundo está-se a acabar

E tu não sentes nenhum dos letais traços

Aí no teu lugar.

 

Por isso é que o progresso é tão lento

E tudo na vida

Tão rápido cai no esquecimento

Sem a consideração devida.

 

 

994 - Infeliz

 

Quando alguém nos morre ao lado,

Nada sentimos.

É o mais infeliz fado

Do mundo que fruímos.

 

A simpatia

Não é o mesmo que a dor,

É uma dissimulada alegria,

De alívio suspiro, com fervor,

Já que morrendo não estamos nós, nos extremos,

Nem ninguém que amemos.

 

A fronteira da íntima solidão

É a nossa radical condenação.

 

 

995 - Estranho

 

É estranho como se pode estilhaçar, fremente,

Dentro de nós tudo, num abismo colossal,

Enquanto ao mesmo tempo, à nossa frente,

Alguém lê tranquilamente

O jornal.

 

 

996 - Manto

 

O homem é grande no saco

Das intenções,

Porém, é fraco

Nas realizações.

 

Tal traça,

Entretanto,

Sendo nossa desgraça,

É o nosso encanto.

 

 

997 - Administrativo

 

O administrativo burocrata

Não requer de espírito qualquer tensão,

Nem talento, nem individual aptidão,

Nem acata,

Qualquer que seja a demora,

Da mente nenhuma elevação

Criadora.

 

É um movimento inteiro

Visceralmente maquinal e rotineiro.

 

No arvoredo do trabalho

Fica abaixo do tísico

Galho

Do trabalho físico.

 

Do mundo nenhum momento

Pode admitir

Tal tegumento,

É mera desculpa a impelir

Vida ociosa e despreocupada:

 

Sendo um logro, afinal,

Mentira deslavada,

É um parasitismo estrutural

A jogar na berma da estrada.

 

 

998 - Lêem

 

Para que lêem Evangelhos,

Para que rezam,

Para que desfolham os livros velhos

Que na prática desprezam?

 

De que lhes serve o que foi escrito

Se vivem nas mesmas trevas,

No mesmo ódio pela liberdade incontrito,

Mentalidades de há trezentos, mil anos coevas?

 

Lêem e ouvem falar,

De geração em geração,

Da verdade, piedade e liberdade.

E até à morte mentirão,

De dia ao sol, de noite ao luar,

Martirizam-se, comunidade contra comunidade,

Temem a liberdade e a detestam

De tal sorte

Que a proíbem até que nem vestígios restam,

Tal se fora um inimigo de morte.

 

 

999 - Parecer

 

Outrora

Tomavam droga

Para o mundo lhes parecer estranho.

Agora

Que o mundo, de tão estranho, se afoga,

Tomam droga procurando inverso ganho,

Bem mais fundamental:

- Que o mundo lhes pareça normal.

 

 

1000 - Fascínio

 

O fascínio de brilhar ante a audiência

É o que mantém vivo um artista.

A vida está no arame, da queda na iminência.

Tudo o mais fica expectante, à nossa volta,

E, embora à solta,

Nem consegue retirar a vista.

 

 

1001 - Troglodita

 

Nas mais remotas cavernas interiores

Mora-nos um troglodita adormecido.

A um estímulo determinado submetido,

Vem à tona de nós com os horrores

De déspota totalitário

Em cuja bestialidade é perito primário.

 

E haverá sempre um falso humanista

Para inventar uma filosófica teoria,

Tendo em vista

Coonestar, com lógica fria,

As monstruosidades supernas

Daquele homem das cavernas.

 

 

1002 - Emperrador

 

Andas na vida armado

De ironia,

De emperrador pensamento aterrado

Que não ousa transpor na via

As barreiras que lhe impões

Com teus papões.

 

Quando espezinhas ideias

Que te são conhecidas por demais,

És o desertor que das ameias

Foge vergonhosamente, dos arraiais

Da luta,

E que, para abafar a vergonha,

Troça da guerra, da disputa

E da coragem

Dos heróis que em redor agem.

 

Não é o valor,

É o cinismo que te abafa a dor.

 

Como o velho que esmaga aos pés

O retrato da filha que adora

Por sentir-se culpado perante ela,

Sem retorno do revés

Agora,

Consumada a sequela,

Desdenhas torpe e baixamente

Ideais de bem e verdade

Porque não tens forças nem mente

Para os recuperar em tua nulidade.

 

 

1003 - Minar

 

Minar os alicerces da cultura,

Da autoridade e civilização,

Da irreligião ou religião

Que em redor quenquer apura,

 

Chapinhá-los de lama,

Encará-los com olhar de soslaio,

Grotesco, pela rama,

Apenas a desculpar e encobrir o cambaio

 

Da própria fraqueza e mazela moral,

É o sinal

E o móbil

De quem é baixo, vão e ignóbil.

 

 

1004 - Humana

 

A humana divisa

É que tropeçamos mesmo quando

Vamos palmilhando

Uma estrada lisa.

 

É uma fatalidade:

Quando não nos enganamos no principal,

É num pormenor não menos real.

 

Facto cimeiro:

Ninguém conhece a verdade

Por inteiro.

 

 

1005 - Dedicamo-nos

 

Quando não temos ninguém

Que por nós se importe

Nem ninguém por cuja sorte

Nos importemos também,

Dedicamo-nos a qualquer mentor feito patrão,

Como ao dono um cão.

 

 

1006 - Espalhar

 

Não pode ser enterrada

A verdade tão profundamente

Que nunca venha a ser desvendada

E presente.

 

Jamais pode alguém escondê-la

Inteiramente

E bem melhor é içar-lhe a vela,

Criterioso e decente,

 

Que continuar a ocultá-la

E a espalhar mais e mais a corrupção

E a mentira pela sala

Dum povo a morrer de inanição.

 

Quando todos conhecem a verdade

E ninguém tenta dizê-la,

Os loucos a quem ela persuade

Todo o mundo os atropela:

 

São os eternos castigados,

Ao usarem de sinceridade,

Pelos danados

De pretensa correcção e oportunidade

Camuflados.

 

E a penúria aumenta

Com os mártires sacrificados

Enquanto o mundo se ausenta.

 

 

1007 - Bomba

 

Querem inverter os terroristas

À bomba o correr da história,

Riscar os tiranos das listas

De má memória

Que perpetuar pretendem

O presente de que pendem.

 

Por trás manobra a rede

Que promove o terror e apoia a tirania

Na inesgotável sede

Do que a beneficia.

 

E nesta fera que à sombra se desloca

Ninguém toca.

 

 

1008 - Matar-te

 

No sangue um parasita,

Um coágulo numa artéria,

Podem matar-te, acredita,

Mais rápido que uma bala

A estilhaçar-te qualquer vital matéria.

 

Mas o inimigo a que nenhum se iguala,

O pior de todos,

É, mais tarde ou mais cedo

E de mil e um modos,

O medo.

 

 

1009 - Areia

 

A areia mexe porque está parada,

A rocha fala porque está calada,

 

Um homem não chegou antes de parar de viajar,

Não chegou a um lugar que não tem lugar,

 

Na harmonia sem harmonia

Dum dia que não é dia.

 

- Aí, então, encontra o chão

Quando todo o chão for em vão.

 

 

1010 - Pistola

 

A pistola, uma bala, cinco câmaras vazias,

A circular de mão em mão

De bêbados na reunião

De todos os dias.

 

Clique, o gatilho bate em vazio

Sobre o temporal frio.

 

Logo após, o sinal

É outro clique igual.

 

De repente, bum, morto!

A culpa foi dele,

Ninguém deve brincar, não é desporto

Disparar uma pistola carregada contra a pele.

 

Tarde demais, alguém se há-de atrever

A questionar:

"Que estávamos a fazer,

Como nos deixámos chegar,

Na altura,

A tal momento de loucura?

Por que não veio ninguém nos deter

Antes de cada um tão bêbado ficar

Que já não lograria pensar?"

 

Roleta russa

Do degelo em terra e no mar,

Da generalização do nuclear

Que os perigos e medos mundiais aguça,

Do fosso entre norte e sul,

Dos extremistas e dos acomodados

Sob o falso véu de tule,

Da tosse que a miséria tussa

Definitivamente alheados…

 

- É a roleta russa

Que andamos todos a jogar, descuidados.

 

 

1011 - Proíbe

 

Proíbe algo,

Mesmo uma cor,

E logo do apetite o galgo

O persegue com furor.

 

Tudo inunda,

Anunciando:

"Sou a luz do sol moribunda,

Estou do bairro no comando,

Vivo em toda a parte,

Proibida.

Usa-me com arte

Em tua pele esquecida.

 

Quanto mais te gritam

Que me não podes ter,

Mais a falta agitam

Que de mim sentes em teu ser."

 

 

1012 - Amansar

 

Para amansar um animal

Destroem-lhe os membros uma vez e outra de novo.

Para amansar um país, por igual,

Destrói-se-lhe o povo.

 

Rouba-se-lhe a vontade,

Demonstra-se controlo absoluto

Sobre o destino que o invade

A frio e bruto.

 

Prova-se quem decide

O que vive e o que morre,

Quem prospera e a quem se agride

Ou socorre.

 

Das armas o capricho

A fé dos povos finda a minar

Das coisas antigas no nicho:

A fé na terra, na floresta, nas águas, no ar…

 

Feito isto, que resta?

O tirano.

- O povo que já não presta

Toma-o por deus por engano.

 

 

1013 - Doença

 

É a doença a primeira cura.

Da morbidez a fonte primordial

É do médico esta crença que supura,

Compulsiva e fatal:

O impulso de tentar curar

E a fé mentirosa

De que o há-de lograr

Com mão gloriosa.

 

A norma, porém, é a pancada de través,

- O revés.

 

A ver se olhas doutro lado

O sinal

Que te houver fustigado:

O sentido do mal.

 

 

1014 - Estado

 

Um estado de saúde imperfeito

É um perfeito estado de saúde.

Não temos jeito

Nem virtude

 

Para, em geral, reparar

O que em nosso corpo se avariar.

 

Tal mistério lhe anda nos abismos

Que pouco além vamos dos exorcismos.

 

 

1015 - Antiguidade

 

Antiguidade que só conta os anos

Há-de em cada feira valer menos.

A que mérito acumula contra desenganos

Maior preço tem por quantos planos

Fará vingar por dela acenos.

 

Então, tanto mais valor apura

Quanto mais dura.

 

Quando olho em meu redor,

Ser eu mais antigo festejo

Se que me guardam amor

E respeito vejo.

 

Quando olho para mim apenas

Mais moderno me queria, com apreço,

Que a antiguidade sofre destas penas:

- Mais perto anda do fim que do começo.

 

 

1016 - Esponja

 

É esponja a opulência

Que se encharca da pobreza no tutano.

Nada a farta, nenhum dano:

Rebentam uns de gorda excelência,

Tal a abundância,

Outros de magros se entisicam,

Tal a carência.

E, multiplicada a distância,

Ambos os pendores se multiplicam.

 

 

1017 - Cobiça

 

A cobiça de riqueza é fogo

Que nunca diz basta:

Quanto mais pasto, mais se ateia logo

E mais fome revela de pasto de igual casta.

 

Aumenta-o, pois, a seguir,

Com o que a pudera fartar e extinguir.

 

Por esta contradição exacta

Promete vida e, ao invés, mata.

 

 

1018 - Subtil

 

Não há nada mais subtil do que a malícia,

A sinceridade é simples, terra a terra,

Inocente de qualquer sevícia,

O engano de arte se enfeita onde nos enterra.

 

A perspicácia é suspeitosa,

De menor valor que o que se lhe confere:

Ânimo dúplice não comprova,

Nem de infiel tem prosa,

Porém tanto o pode ter

Como o contrário,

Dos factos na contraprova,

Dela no imprevisível itinerário.

 

Quem descobre como o mal se faz

Bem perto anda de o fazer,

De engano quem vislumbra como é capaz,

De enganar não fica longe sequer.

 

Em plena ambiguidade

Que é que mais persuade?

 

 

1019 - Torre

 

Haverá quem diga

Que o homem elevado

Ao cume duma torre de menagem

É mais homem que o colocado

No campo raso da forragem?

O homem muda de lugar,

Mas não muda de ser, a par.

 

É o mesmo em toda a parte,

Em nenhuma é mais nem menos:

Pode alguém parecer maior, destarte,

Mas ser, não.

Somos sempre pequenos,

Seja qual for o chão.

 

 

1020 - Acabam

 

O amor, o desejo, a esperança e a vaidade

Acabam quando alcançam.

Perdemos as coisas na oportunidade

Em que as chegamos a ter, que logo cansam,

Ou ao menos perdemos o gosto que nos vinha

Do desejo:

Decifrada a adivinha,

Morreu o ensejo.

 

Para reprimir paixões

Nem sempre é bom reprimi-las:

Resistindo às opressões,

Mais se imprimem, fortificam.

Por tais atitudes nunca então as filas

Se esboroam em que pontificam.

 

Algumas brotam apenas da resistência

E não podem existir sem ela.

Da dificuldade de algo inferimos-lhe a excelência:

Torná-lo fácil, sem lhe opor uma procela,

É tirar-lhe a graça

Que apetecível o traça.

 

 

1021 - Lar

 

Da felicidade o segredo

É gostar do que se tem,

Do lar, dos parentes, do credo

Que comungo com alguém,

Dos amigos, da profissão, da terra…

 

Daqui a paz nos provém

No meio de qualquer guerra,

Como a força que detém

Planta que à raiz se aferra.

 

 

1022 - Agita-se

 

Agita-se o homem

E a Humanidade o conduz:

Vem a luz

Dos pavios humanos que se detrás consomem.

 

Chegam aqui os sinais

Dos mais longínquos portos,

Os vivos são cada vez mais

Governados pelos mortos.

 

O mistério da vida

É o desta cadeia entretecida.

 

 

1023 - Revolta

 

A revolta cria imenso pesadume,

Suja o indivíduo, cria mal-estar.

Um duplicado a resume:

É o mal daquilo que a provocar

Mais, na volta,

O provocado pela própria revolta.

 

E, deste ciclo ao não nos soltar,

A revolta ir-nos-á o mal triplicar.

 

E assim encadeadamente

Num pesadelo sem futuro nem presente.

 

 

1024 - Atrás

 

Esta nortada

Pode revelar-se um zéfiro amistoso

Para a fronte abrigada

Atrás de portas, da lareira ao gozo,

Olhando lá fora a gelada

Rama

Antes de se enfiar na cama.

 

Há uma espantosa diferença

Entre quem respire atrás duma vidraça

Que o frio lá de fora não vença

Nem trespassa,

E quem ante a janela sem vidros, à geada,

Aguenta o chicote justiceiro

Da sorte

Onde o vidraceiro

É a morte.

 

Os dois lados da moeda

São o que a vida leveda.

 

E é o que nos questiona

Se pretender-nos todos manter-nos à tona.

 

 

1025 - Caminho

 

O caminho é o da emoção

De germinar nossos hortos.

Quem se afasta das leiras da razão

Vai ficar entre os mortos.

 

Saber é alegria e tormento,

Há-de, porém, trazer a cura.

É que, se há uma sabedoria que é sofrimento,

Sem ela há sofrimento que é loucura.

 

 

1026 - Alfurja

 

A guerra leva a emergir

De alfurjas minoritárias nacionais

Uma fracção indolente demais

Para abertamente se bater ou insurgir,

Demasiado inconsistente

Para desempenhar qualquer papel

Mas suficientemente

Cobarde e cruel

Para devir o carrasco,

Pago indiferentemente

Por uma ou outra das partes.

 

Então, sob seu casco,

Sem privilégios nem apartes,

É esmagada toda a gente.

 

 

1027 - Conjunto

 

Duma fé qualquer a instituição

Ou é igreja de conjunto - vértice, lados e base,

Ou de Deus nenhum é religião

Que os crentes creiam que abrase.

 

Dominação

Incontrolada,

Todavia, não é estrada,

É danação.

 

A fé tem apenas bom feitiço

Num modo de governar:

- É o de se colocar

Do homem ao serviço.

 

 

1028 - Modesto

 

O modesto é detestado

Do palácio pela gente.

De humilde prefere o estado

A parecer vivê-lo em tal ambiente,

De tal modo é molestado

Pela voz corrente.

 

É que aqui temor de Deus

É tido por ingenuidade

Por crentes e ateus,

Um dislate ou fatuidade.

 

O judicioso

Com consciência

Devém para eles hipócrita pretensioso,

Uma indecência.

 

Quem ama a paz

E busca a fundura na solidão,

Nada faz,

É um mandrião…

 

- No palácio, o modesto

Jamais logra preservar

Nenhum apresto

De valor nem de lugar.

 

 

1029 - Concede

 

Muito valor tem o crédito

E quanto dele cedemos a quem cremos ter valor!

Quando aumenta a crença na valia que é de supor

(Quantas vezes não existe!),

Acaba também por aumentar o rédito

De quem no favor

Da ilusão doutrem persiste.

 

E o mérito real

Sofre tratos de polé

Disto ao pé,

Quantas vezes, afinal!

 

 

1030 - Palavras

 

As palavras-fetiche, palavras-superstição,

Palavras-mística, retórica sentença,

Não confundem nem inquietarão,

Pelo contrário, tranquilizam

Quem visam,

Desde que se convença.

 

Gíria integradora

Que exalta a mente,

Adormece, acalentadora,

O poder de reflexão

E suspende concomitantemente

 

A responsabilidade:

É o grupo que pensa e aquilo ecoa,

Na verdade,

Em vez da pessoa.

 

 

1031 - Carácter

 

Um homem de carácter, um Homem,

É de carácter difícil fatalmente:

Pouco maleável

Para os que nunca o domem,

Nada manobrável

Para o prepotente.

 

 

1032 - Ambiente

 

O ambiente torce o juízo.

O líquido no alambique

Toma o formato preciso

Que este lhe aplique.

Nele próprio é diferente

Mas toma a forma do recipiente.

 

Assim o juízo preferido

Por igual se ressente

Do ambiente

Vivido.

 

 

1033 - Convicção

 

Quando vinga no superior

A convicção pertinaz

De que tudo lhe é permitido impor,

Mesmo, se o entender,

O contrário do dever,

Que tanto faz,

 

Em roda livre ele então roda

E torna-o moda,

Sem qualquer respeito

Pela personalidade do desprezado,

Pelo jeito

Do subordinado.

 

O arbitrário, à falta de oposição,

Campeia sem travão.

 

Tudo devém relativo e casual

E a instabilidade do juízo capital

Finda em permanente emboscada

A ultrapassar os limites,

A cair no arbítrio a cada passada,

No abuso dos palpites.

 

 

1034 - Incarna

 

Por ela própria existe a vera honestidade

Em perene tensão para o ideal.

E não incarna, automática, num ou noutro superior,

Falsa sumidade,

Sem real

Conteúdo aqui de tal teor.

 

É que não havendo quem crítico proteja a base,

Facilmente falta a justiça:

O superior não busca a fase

De tomar conselho para a liça,

Não há chamadas de atenção

E não é corrigido

Nem de cima pela mão,

Nem de lado por quem lhe anda submetido.

 

Vera honestidade,

Só do ideal no itinerário

De soledade

Autêntico e originário.

 

 

1035 - Caminho

 

Saber que percorremos um caminho errado

É já bastante e fica perto

De haver encontrado

O caminho certo:

O caminho do dever

Corre ao lado

De quenquer.

 

 

1036 - Reprime

 

A verdade não a reprime a censura.

Ao invés, se reprimida,

Dispara a mola da lisura

E floresce noutro lado,

Em seguida,

Porventura num tempo retardado

Apenas da hora da partida.

 

 

 

1037 - Eternamente

 

Não podemos eternamente mergulhados

Viver nos problemas:

Não ficamos acalmados

Com a mera descoberta dos dilemas.

 

A razão

Acalma-nos e exulta

Quando encontra a solução:

A vida já não é estulta.

 

Se assim não fora,

Só haveria inquietação

Pelo mundo fora.

E mais atroz

Seria a lesão

Em cada um de nós.

 

 

1038 - Tesoiro

 

A palavra tem peso

Quando o silêncio nela ouvimos,

Quando esconde ileso

E deixa adivinhar um tesoiro sob os limos

Que pouco a pouco distribui de mão em mão,

Sem pressa nem vã agitação.

 

O silêncio é o conteúdo que prezo

Nas palavras oculto que têm peso.

 

E qualquer alma vale pela riqueza

Do silêncio que nela reza.

 

Silêncio que não adormece

Mas reestrutura.

Palavras destas, na escrita messe,

São passageiros de alma que, em meio à agrura,

Antes de passarem adiante,

À porta de cada espírito baterão,

Em apelo constante

Para comprometê-lo na acção.

 

 

 

1039 - Ocorre

 

Nada ocorre por acaso

E nada desponta na vida

Sem um propósito, a prazo

E à medida.

 

O que fazemos por mor disso

E o que fazemos a respeito,

Eis o que pode acender-nos o chamiço

No peito.

 

É a chave para descobrir

Quem e aquilo que nós

Somos, a seguir,

No gesto e na voz.

 

 

1040 - Brutamontes

 

O brutamontes bateu na pobre mulher,

Deixou-lhe a boca a sangrar

E roxo um olho,

E ela ao lado dele ainda a querer

Ficar,

Como um escolho

Lapidar,

Sem nem sequer a deixa

Duma queixa!

 

O pai dela batia porventura na mãe

E ela cresceu a assistir ao pesadelo.

Agora, adulta, não quebra o elo,

Crê que a vida é mesmo assim refém.

 

Círculo vicioso,

Agressão doméstica gera agressão

Na geração

A seguir ao punho danoso.

 

Se aquela mulher fora criada

Num ambiente de amor,

Jamais viveria esmagada,

Resignada

A um homem de tal teor.

 

Não há padrão fixo, todavia,

E no melhor lar

Pode tombar a nódoa fria,

A respingar

 

Da besta

Que dormita breve a sesta,

 

Escondida de todos os horizontes,

No seio de qualquer brutamontes.

 

 

1041 - Vítima

 

Da vítima numa cultura

Vivemos,

Onde tudo leva a que nos contentemos

Com a figura

De peões desamparados

Num cósmico jogo de xadrez,

Sem responsabilidade pelos actos praticados.

 

Tudo porque vítimas de alguém alguma vez:

De pais alheados ou violentos,

Da família desagregada,

De despóticos portentos,

De líderes religiosos de fé fanatizada…

 

A clínica lida

Com a lista interminável

Deste tipo de vítima combalida

Que não logra controlar, fiável,

Nem organizar

A própria vida nem o lar.

 

Tudo por jamais estabelecer

Linhas de rumo,

Trem de crenças e de ideias a que acorrer,

Através de que olhe, em resumo,

O mundo à volta

Sem lhe deixar ponta solta.

 

À deriva, procura abrigo

Onde julgar ver um porto amigo.

 

E eis como, doente,

A cultura se afunda no poente.

 

 

1042 - Ponto

 

A história ensina

Que o ponto em que a civilização

Entra em crise e declina

A grei

É quando a maioria da população

Desrespeita a lei.

 

 

1043 - Rico

 

Há muito rico e bem sucedido

Que, porque jamais deveras abraçado

Nem por ele próprio procurado

(Em vez de pelo que tem possuído

Ou pelo cargo desempenhado),

Adivinho

Que se sente, afinal, muito sozinho.

 

 

1044 - Vivemos

 

Viver a vida mais dói

Quando tudo o que é vivido

Não é vivido ao pé:

É que vivemos aquilo que foi,

O que podia ter sido

E não o que é.

 

 

1045 - Ganhar

 

Em vez de se ganhar tempo para o lazer,

Para o ócio,

Perdemos o dia, a semana, o tempo que houver,

A acelerar o negócio,

A produzir em corrida.

 

Vivemos a alienação, assumimo-la.

E em vez de se desfrutar a vida,

Consumimo-la.

 

 

1046 - Dor

 

A dor obriga-me a sentir

O limite,

Na medida em que o determina,

Sem doravante me permitir

Mais nenhum palpite,

Avisando-me de que do topo da colina

Principia o despenhadeiro do perigo

Para a integridade de meu abrigo,

O organismo.

Quão mais o atropele

Mais o jogo no abismo,

Em parte ou a todo ele.

 

 

1047 - Problemas

 

Em vez de problemas mascarar,

Se tomo deles consciência,

Com eles aprendendo a lidar,

Poderei vivê-los em tranquilidade:

É de minha vivência

A autenticidade.