DÉCIMO TROVÁRIO
ATINJO A NORMA DE FERMENTAR O QUE DESVENDO
Escolha um número ao acaso entre 1150 e 1253, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1150 - Atinjo a norma de fermentar o que desvendo
Atinjo a norma de fermentar o que desvendo
Na quadra regular, de topo a topo,
Um rumo fendendo
Nos penhascos que não encomendo
Mas na vida até parecem meu escopo.
Desenho da conjuntura
Com a regra se combina,
Tendendo ao todo a figura
A que se inclina.
Traços breves
A resumir
O que lês e o que deves.
Seta na rota a seguir
Com desenho de paisagens de porvir.
1151 - Humor
Sentido de humor a sério
Entender é uma piada
Quando a piada-mistério
Somos nós sem mascarada.
1152 - Errou
Não tenha medo de errar,
Quem não erra nunca aprende.
Mas, se errar, de mão no ar
Diga que errou, que mais rende.
1153 - Caminho
O caminho é caminhando
Que é feito e que faz história,
Deus ou demónio evocando
Quando escolho a trajectória.
1154 - Absurdo
Dum absurdo que é verdade
Tu mal te hás-de aperceber:
Absurdo que sobrenade
É o mais difícil de ver.
1155 - Atinges
De homens atrás da justiça
Não corras, muda o sentido,
Que o que atinges nesta liça
É aquilo de que hás fugido.
1156 - Presente
Presente demasiado
Esconde, atrás do fulgor,
Fumo aos olhos atirado,
Pagamento de favor.
1157 - Silêncio
A verdade conhecer
Ao jornalista não cabe,
O silêncio que o tolher
É a salvação de quem sabe.
1158 - História
Doutros livros fala o livro
E cada história entrançada
(Nem ninguém nem eu me livro)
Narra a história já narrada.
1159 - Guerra
A guerra não é o mais duro:
Após ter vivido nela
É sobreviver-lhe, auguro,
Tendo-a nos nervos à trela.
1160 - Soldado
Um soldado no deserto
Facilmente é convencido
A transformar-se, decerto,
Mui rápido num bandido.
1161 - Rumos
Dois rumos segue a fraqueza:
Calar-se, se é de falar,
Falar, se é de se calar.
Nenhum a vitória preza.
1162 - Morte
Quando morto se estiver,
Mais que a morte nada importa,
Nem o mais grave que houver
Em vida a bater à porta.
1163 - Escolho
Não escolho o ser que sou,
Limito-me a me encontrar.
Só partindo daqui vou
Retraçando meu lugar.
1164 - Complica
Solução fácil que houver
Se complica ao actuar:
Se a sério queremos ter,
É preciso renunciar.
1165 - Máscara
É melhor ser odiado
Por aquilo que se for
Que afinal ser acuado
Por máscara se usar pôr.
1166 - Palavra
Mais que a víbora na toca
Que tacteia ingénua o chão,
Palavra que atira a boca
É pedra, não volta à mão.
1167 - Outrem
Saber o que outrem souber
Apenas e sem disfarce
Nem mesmo é sequer saber,
Não é saber, é lembrar-se.
1168 - Trabalho
Aquilo que a ganhar
Trabalho não der
Ainda há-de custar
Menos a perder.
1169 - Desconfies
Se dum homem desconfias,
Trabalho então não lhe dês.
Se trabalho lhe confias,
Não desconfies de vez.
1170 - Inimigo
Se ao inimigo me entroso,
Nem me salva um alfageme:
Inimigo perigoso
É aquele que ninguém teme.
1171 - Incapacita
Por muito que me guarde em bom abrigo,
Abrigo não há mais do que me aterra:
O medo incapacita um inimigo
Mais veloz que qualquer arma de guerra.
1172 - Cura
Da vida a cura é vivê-la,
Assumi-la, assumir tudo.
E da cura a grande estrela
É amar, amar sobretudo.
1173 - Grades
Pões grades na biblioteca?
Podes pôr, que o teu intento
Pelo fundamento peca:
- Não mas pões no pensamento.
1174 - Arco
O mundo principiou
Sem o Homem (mesmo imbele
No longo arco de seu voo)
Como acabará sem ele.
1175 - Consciência
Sempre a consciência humana
Poderá mudar o rumo
Da História que dela emana
Num melhor sentido e aprumo.
1176 - Retorna
É deveras importante
Ver que, se o demo recua
Na luta que leva avante,
Volta sempre à mesma rua.
1177 - Alegria
Depende a alegria tanto
Do que dentro de nós mora
Como do que empresta encanto
Ao que aflorar lá por fora.
1178 - Aguilhoa
Um conto desentorpece
Como aguilhoa a memória:
A informação nunca esquece
Se contada numa história.
1179 - Vero
A maneira eficiente
De o vero prevalecer
É dar à opinião que avente
Direito de se dizer.
1180 - Ignoramos
Gastamos a sola à bota,
Puímos da veste o pano
E o que sabemos é uma gota,
O que ignoramos, um oceano.
1181 - Princípio
Dá-te conta cedo
Do que mais te lesa:
É o princípio o medo
De toda a fraqueza.
1182 - Burrico
Ao corpo dá de comer,
É o burrico da empreitada:
Se nem comida tiver,
Abandona-te na estrada.
1183 - Arregaçar
Se a vida é aborrecimento,
A morte, então, é um engulho.
Vida é arreganhar o mento
E logo entrar no barulho.
1184 - Gritam
Os que gritam precisar
Duma nova religião
Os últimos a aceitar
São qualquer inovação.
1185 - Artista
Só o artista é independente,
Que no mundo viveria
Ingénuo, resplandecente,
Mundo que ele próprio cria.
1186 - Poder
Maior poder é o que sabe
Adaptar-se subtilmente,
Não quem cego, à toa, acabe
A atacar em toda a frente.
1187 - Bata
Quer bata a pedra no pote,
Quer contra a pedra o aparte,
O que importa é que se anote
Que é sempre o pote que parte.
1188 - Meço
É sempre no desengano
Que meço a sombra serena:
Todo o sofrimento humano
Causa-o coisa bem pequena.
1189 - Sofrimento
No coração do homem há lugares
Que existência não têm por enquanto.
O sofrimento deles nos algares
Penetra, para a terem entretanto.
1190 - Pior
A pobreza, a enfermidade
Pior não são de suportar
Do que a fúria, a soledade
Que andam sempre a provocar.
1191 - Pende
Não pende a felicidade
Das coisas nem de ninguém,
Mas da razoabilidade
De se lhes moldar alguém.
1192 - Terra
A terra é vida e saúde,
É do mundo eterno berço.
O mercado é que isto ilude,
Vende o que é morto, é o inverso.
1193 - Liliputiana
O hábito mais detestável
Da liliputiana mente
Crê noutrem indubitável
A pequenez com que sente.
1194 - Arcas
Crêem bom agoiro
As arcas pejadas.
As cadeias de oiro
São as mais pesadas.
1195 - Controla
Controla tua ganância,
Tapa o ouvido, sela o lábio.
Quando é bênção a ignorância
É loucura ser-se sábio.
1196 - Pior
Por pior que seja o caso
Não te tortures demais:
Nada, neste mundo, a prazo,
Muito tempo importa mais.
1197 - Moléstias
Das moléstias o poder
É o do contágio gritante:
De corpo ou de alma há-de ser,
No mínimo, deformante.
1198 - Repete
Repete a vida na estrada,
Desde o fundo até aos cimos,
E nada repete, nada,
Nós é que nos repetimos.
1199 - Roupa
Da roupa interior um homem
Quer o que quer a mulher:
Que alguns apoios se tomem,
Liberdade, a mais que houver.
1200 - Silenciosas
Flores, plantas, são presenças
Silenciosas, os sentidos
Alimentam sem sentenças,
Todos, menos os ouvidos.
1201 - Mal
Com o mal não se discute,
Temos é de combatê-lo,
Mesmo se isto repercute
Da morte no duro selo.
1202 - Vamos
Vivemos num mundo cão.
Então que é que nós faremos:
Damos-lhe a dominação
Ou vamos ao que queremos?
1203 - Tolos
Aos tolos que alguém conforte
Nunca ocorre, ocos bestuntos,
Que mérito e boa sorte
Sempre a andar tenderão juntos.
1204 - Viajo
Viajo para que o rasto
Todos percam de meus pés.
Escrevo após para o fasto
De encontrarem-me outra vez.
1205 - Sofrer
Melhor é sofrer um ano
De guerra, o corpo furtando,
Que um dia a sofrer de engano
E ao fim se perder lutando.
1206 - Rapinas
Para rapinas temidas,
Remédios que contra remam:
Oponha-se-lhes às lidas
Quem deveras elas temam.
1207 - Caso
Faz caso do que parece
Pouco, quando repetido:
De muitos grãos se entumesce
O grande monte entourido.
1208 - Unhas
Em redor sempre nos rondam
Falcões de pomba em trejeitos?
Por mais que as unhas se escondam
São visíveis nos efeitos.
1209 - Compara
Quão pequeno bem encontra
Aquele que o bem deseja
Quando o compara na montra
Do que imagina que seja!
1210 - Vemos
Vemos tudo pelo modo
Como o lograremos ver,
Por isso o vemos de todo
Como enfim não há-de ser.
1211 - Acaso
Bem se pode ser feliz
Por um acaso da sorte,
Mas não sempre e de raiz
Sê-lo acaso até à morte.
1212 - Imóvel
Depressa nos movem lemas
E anda a vida devagar.
Devagar crescer não temas,
Imóvel teme ficar.
1213 - Casaco
Mais, mundo, me persuade,
Não o que dás, mas que tiras:
O casaco da verdade
É forrado de mentiras.
1214 - Saborear
Ora tu bem devagar
A saborear teu credo,
Não é de mui madrugar
Que amanhecerá mais cedo.
1215 - Nau
Nau que não se faz ao mar
Mais triste é que a despedida,
Tão triste que faz lembrar
O que não se faz à vida.
1216 - Provação
Bem nenhum é de alcançar
Fácil porque o que o alcança
Só na provação do mar
Pode alcançar a bonança.
1217 - Esmurra
Quando alguém esmurra a mesa:
"Quem manda sou eu, o chefe!",
Já o não é, que o mando lesa,
Doravante é um magarefe.
1218 - Teatro
O teatro é de ilusões
E a vida que breve calco,
Para além doutros senões,
É apenas um grande palco.
1219 - Mentira
Algo, quando é bom demais
Para ser verdade, então
É que é mentira das tais
Que nunca as ignoro em vão.
1220 - Modéstia
A modéstia fica bem
Mas, se finda deslocada
Ou é falsa, então também
É uma tontice pegada.
1221 - Condenado
Condenado não repeso
Jamais é tão perigoso
Como, depois do defeso,
Se do indulto colhe o gozo.
1222 - Leme
Mais nos vale navegar
Com triste mas bom agente
Que pôr ao leme a guiar
Um risonho incompetente.
1223 - Vulcão
Um homem determinado
Pode construir à risca
Um vulcão desaustinado
A partir duma faísca.
1224 - Revela
Mostra o que contigo bole,
Revela do que és capaz,
Vira a cara para o sol,
Deixa a sombra para trás!
1225 - Crise
Não anda em crise o valor
Mas do valor a cultura,
Crise ao Sol não pode impor
Nuvem que lhe tape a altura.
1226 - Caminho
Sem o caminho interior
Não se pode ir a direito
Pelo caminho exterior
Do mundo que tomo a peito.
1227 - Vale
Vale um sozinho dez mil
Quando ele for o melhor,
Só que o entrava o perfil
Imbecil dum superior.
1228 - Justiça
A justiça, antes da lei,
Depois lei a reflecti-la:
Se é de escolha, escolha a grei
Justiça em primeira fila.
1229 - Avestruz
Avestruz que, à tempestade,
Mete a cabeça na areia,
Não a enfrenta de verdade
Mas não escapa ao que ameia.
1230 - Merecer
Se merecer a doença
Crês, então não vais deixar
Que nada que em ti a vença
De ti vá se aproximar.
1231 - Exemplo
Um bom exemplo vai ser
Aquele que me ensinar
Exemplo a não vir a ter:
- A ser eu no meu lugar!
1232 - Risco
É mais fácil a muleta
Que o risco de tropeçar
Da perna que não me aquieta,
Fraca demais para andar.
1233 - Livre
A vida não tem guiões,
Tem, todavia, caminhos.
Livre de optar, onde pões
Voos de entrançar teus ninhos?
1234 - Dentro
Dentro de nós a resposta
Onde sempre tem estado
Mora: não requer a aposta
De a procurar noutro lado.
1235 - Importa
Pouco importa o que conheces
Mas antes quem conheceres?
- Assim é que nos faleces,
Sempre a vida a apodreceres.
1236 - Verás
Agarrado aos corrimões
Como verás onde acabes?
Eu detesto citações,
Diz-me apenas o que sabes.
1237 - Sabedoria
A ciência conhecimento
Há-de ser organizado;
Sabedoria, o momento
De a vida ordenar ao lado.
1238 - Segredo
Antes de algo vir fazer
Será preciso primeiro
Um segredo apreender:
- O de ser, que é pioneiro.
1239 - Acender
Perdido em meio à procela,
Nem vês por onde te levas?
- Melhor é acender a vela
Que amaldiçoar as trevas.
1240 - Opta
Se rebentar a disputa
Entre poder e paciência,
Por paciente opta na luta,
Que do sábio tens a essência.
1241 - Intratável
Se intratável inimigo
(Que és tu próprio) forte enfrentas,
Aguenta firme, te digo,
Que és tão grande quanto aguentas.
1242 - Atrai
Corrompe sempre o poder
E sempre a múltiplos níveis
E, pior que corromper,
Atrai sempre os corruptíveis.
1243 - Simplicidade
A maioria das vidas
Desespero é silencioso.
Com simplicidade lidas?
Contentamento é gostoso.
1244 - Procurar
De procurar não preciso
Mais longe do que o quintal:
Se não encontro o que viso,
Nunca o perdi, por igual.
1245 - Esvazio
Cada vez que algo desejo,
Algo menos sou completo.
Quando me esvazio, vejo
Que então fico, enfim, repleto.
1246 - Sombras
Se nunca vês o arrebol
Na vida que enoitarás,
Vira os olhos para o sol,
Larga as sombras para trás.
1247 - Compaixão
Compaixão é antitoxina
De alma de impulsos nocivos.
Onde houver, todos vacina,
No fim são inofensivos.
1248 - Ódio
Ódio que guardo, viscoso,
Tende a crescer como a hera,
Devém um leão raivoso
E em breve nos dilacera.
1249 - Pano
Da vida em pano de fundo
Vivem as emoções de homem.
O primeiro plano inundo
Se é da mulher que se tomem.
1250 - Atende
Mentira nem sempre atira
Quem a atende à falsidade:
Qualquer arte é uma mentira
Que nos faz ver a verdade.
1251 - Esgalhar
Dá muito menos trabalho
E trará menos problemas
Esgalhar do dia o galho
Desde início, sem que o temas.
1252 - Poder
O poder que vais impor
Vê bem que efeito é que tem:
Poder não exige dor
Nem quer magoar ninguém.
1253 - Controlar
Tentar controlar a vida
Agarrar água é tentar
Com um garfo: quem duvida
Que não pode funcionar?