DÉCIMO  TERCEIRO  TROVÁRIO

 

 

AQUI  CHEGADO,  SONETOS  E  TROVÁRIOS  SÃO PROJECTOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre1526 e 1643, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                1526 - Aqui chegado, sonetos e trovários são projectos

 

                                                Aqui chegado, sonetos e trovários são projectos                   

                                                Que em todos os pendores perfilam

                                                Realidade e sonho, normas e afectos

                                                Sob cujos tectos

                                                As derrotas se obnubilam.

 

                                                Em todos os vectores

                                                É o tegumento da vida que mordes

                                                Nos sabores

                                                E nos acordes.

 

                                                São erguidas bandeiras

                                                No horizonte

                                                De que dos longes te abeiras.

 

                                                São a inesgotável fonte

                                                Do que de mim a mim faz sempre a ponte.

 

 


1527 - Pensa

 

Apesar de numerosos

Terra além, aqui, ali,

Cada qual só pensa em si.

Vêm dos outros os gozos,

 

Para nos alimentarmos,

Para também nos vestirmos,

Para da fama fruirmos,

Para trabalho arranjarmos…

 

E depois consideramos

Os outros como inimigos,

Embora no imo estejamos

 

Ligados pelos umbigos.

Isto que será senão

Connosco contradição?

 

 

1528 - Redes

 

As redes que se jogaram

Às águas para pescar

Por que é que se retiraram?

Foi por amor, se calhar.

 

Cobranças que se não cobram

Quando eram de receber

Por que é que tais em nós obram?

É por um amor qualquer.

 

Um amor de tal feição

Não pode por inimigo

Ter a Deus, na ocasião,

 

Nem Deus vê nele perigo:

Seja qual for dele a forma,

Nem que seja contra a norma.

 

 

1529 - Cuidado

 

Cuidado com os que esperam

Que os filhos não vão passar

A adversidade que houveram

Eles antes de aguentar.

 

É que foi a adversidade

Que de nós fez sempre aquilo

Que somos em nossa idade,

De vida este humor tranquilo.

 

Podemos em desvantagem

Pô-los de muita maneira

E uma delas é, quando agem,

 

Terem só vida lanceira:

- É que leva a atrofiar

Não ter tido de lutar.

 

 

1530 - Parece

 

Parece que tu te encontras

Do lado externo de tudo,

Sem vibrar olhando as montras,

Os mais sem ver amiúdo,

 

Sem sentir como eles sentem,

Sem olhar como eles olham…

Todos, parece, consentem

Em dançar, todos acolhem

 

Os pés musicais na pista,

Mas tu ficas lá sentado,

A passar tudo em revista,

 

Sempre a olhar, posto de lado.

Como é que a vida um acerto

Te oferta num tal deserto?

 

 

1531 - Evento

 

A vida há-de ser apenas

Qualquer evento aceitar

Tal como se apresentar,

Tentar resolver as cenas

 

O melhor que for viável

E aguardar então que a sorte

Não nos falhe, indesejável.

Que aquilo que mais importe

 

Seja tentar proceder

O mais acertadamente

Que nos caiba no poder,

 

Tão bem quanto este demente

Mundo estúpido o permita.

- E eis o que nos dita a dita.

 

 

1532 - Adormecidas

 

Ao ir a meu lado oposto

Forças e tensões evoco

Adormecidas com rosto

Que então dentro de mim toco,

 

Dentro da minha energia.

Desperto-as então e as gasto:

Tensões aumentar iria

Se lhes não tocara o pasto.

 

Minha força bloqueavam

De tal forma que atrair

Uma perda ainda acabavam

 

Ao explodir a seguir.

Assim tomo-lhes o freio

E à rédea as trago ao meu seio.

 

 

1533 - Uno

 

Uno estar será já não

Distinguir nem escolher:

É viver sem restrição

O que houver para viver,

 

Ir em frente para onde

Nós tivermos de seguir,

Onde a unidade responde

Em vez do que dividir.

 

Ser uno é vivenciar

O Todo em cada parcela

Sem nenhuma rejeitar,

 

Nenhuma, no que for ela,

Até o Todo conseguir

Dentro e fora construir.

 

 

1534 - Cuida

 

Cuida que os dias passem devagar,

Aproveita a visão para aprender.

Deixa planar teu imo a meditar,

Mais não vás que feliz te recolher.

 

Aproveita, desfruta a tua vida,

Aqui em baixo vive, vive inteiro.

O tempo das mudanças nos convida

A grandes almas ter, livre viveiro.

 

Lá não vamos, porém, antes do tempo.

A vida saboreia que escolheste,

Prepara os grandes voos a destempo,

 

Que eles virão depois, no vento agreste.

Prepara-te tostando ao sol da praia,

Que a jornada virá, mal o sol caia.

 

 

1535 - Angústia

 

A angústia sempre vai continuar

E vai aumentar sempre o desconforto,

A não ser que descubras disto a par

Que tudo, patamar a patamar,

Faz parte do processo de a bom porto

 

Levar a Humanidade a evoluir.

Que tudo tem seu tempo e que o que é feito

Ao que o Cosmos almeja presta preito:

Qualquer que seja o rumo, é sempre a ir.

 

Que entendas que o trabalho nunca acaba,

Nunca chegamos lá, tal não existe,

Que eterno para a luz tudo desaba.

 

Hás-de morrer um dia e jamais viste

Fim, que o labor eterno é o que persiste.

 

 

1536 - Materialista

 

Porque é materialista a mais o mundo,

Para o céu ninguém olha, apenas olham

O reconhecimento que, facundo,

Um acto em recompensa tem por fundo.

Se morrem, isto faz que não acolham

 

(Que o não sabem) olhar para as alturas,

No céu não logram ver a luz que houver,

Íman para as guiar sem sinecuras.

Deambulam pela terra sem saber

 

Afinal, o que buscam: a luz, de alta,

Não a conseguem ver. Quem se elevar

É que luz mais que os mais traz à ribalta.

 

Então a febril alma há-de encostar

A quem lume algum tem a partilhar.

 

 

1537 - Zero

 

O zero infindo que morar no sofrimento,

Nada e vazio, é finalmente preparado

A receber uma energia com alento,

A luz, fulgor sofisticado, alor do vento:

É nesta altura que a energia do ser dado

 

Toca a energia que é do céu, fonte primeira:

Aí ocorre a mutação que é radical,

É nesta perda por inteiro que lá inteira

Ocorre a troca que será fundamental.

 

Em tal altura é que a luz entra então deveras,

Tudo começa verdadeiro a ter sentido:

Tudo o que tinhas já não é, e o novo esperas.

 

A consciência agora aceita o inatendido

E não apenas o que quer do que é vivido.

 

 

1538 - Limpa

 

A consciência esvaziada a funcionar

Principiou, começa agora a receber,

Coisa que o ego, antes de a luz iluminar,

Este ego sempre se recusa a operar,

Inchado inteiro com o plano a ter de ser.

 

É nesta altura que acontecem as catarses,

Naquele zero que, absoluto, nada tem,

No fundo caos, no não-medo sem disfarces.

Isto ocorrido, então depois, sendo também

 

Que balizado tudo fica dentro em mim,

Começa breve um novo trilho a se mostrar,

Com outros rumos e valores, outro fim:

 

E principia, ao mesmo tempo, vindo atrás,

O itinerário em que me sinto mesmo em paz.

 

 

1539 - Escapar

 

Para escapar ao sofrimento a Humanidade

Usa de Cristo o sofrimento: é coisa alheia.

Um sofredor à confiança persuade,

Tal se quem sofre carreara mais verdade

Que quem feliz se confirmara de mão cheia.

 

Tudo por medo, medo até de ser feliz:

Quando felizes, logo cremos nalgo errado.

Não confiamos na abundância em todo o lado

E ganho o céu se da alegria me desfiz.

 

Ora, quem sofre inflige a si mal com dureza,

Em derradeiro se coloca e não é isto

Que o sofrimento alcançar deve com presteza:

 

É uma revolta que extirpar devera o quisto

E a nova terra edificar em paz que avisto.

 

 

1540 - Encadeado

 

Uma dor incompreendida

É memória inconsciente

Dum determinismo em vida,

Encadeado, de seguida,

Detrás até ao presente.

 

A dor que não aceitei

Torna sempre, reencarnada,

Até se lhe aceitar a lei,

Ser limpa de vez a estrada.

 

Não fujas do que te vem

Naturalmente no dia:

Vive a dor e a festa bem!

 

Se a dor vives e a superas

Não volta mais pelas eras.

 

 

1541 - Mudança

 

A mudança é a rainha da alquimia,

Na mudança é que tudo se transforma,

Redefine, mistura noutra via

Com possibilidades de magia

Num leque muito vasto, além da norma.

 

Se não tiverem medo os povos todos,

(E o medo é o que mais todos atrapalha),

Vão conseguir sentir escolha e modos,

Melhor a cada qual o que é que calha.

 

No campo material e espiritual

Importa conciliar: o coração

Sente, a mente analisa e dá o aval.

 

Hoje em dia ao contrário todos vão:

Só sinto ao me a cabeça ofertar chão.

 

 

1542 - Clarividentes

 

Todos temos o poder de ler os dados

Como são, clarividentes, desprendidos,

Na harmonia do que é útil fecundados.

Sempre sabe cada qual que passos dados

Do caminho são que deve ter medidos.

 

Quando nascem todos são, porém, jogados

Para um poço de terror intransponível.

Se ao evento inesperado confrontados,

Ao incógnito de rosto inexprimível,

 

Em lugar de se deixar ir na corrente,

Disparado é logo o filtro de tal medo:

Nada fica como dantes, tudo é doente.

 

Desfocado finda tudo no arremedo,

A energia já não flui e ao peso cedo.

 

 

1543 - Filtro

 

Quem nos destrói o filtro vil do medo?

Ninguém o logra, mas aqui se molda:

Quão mais trepares para cima cedo,

Quanto mais alto te ligares, ledo,

Menos teu pé no chão de cá se solda,

 

Menos raízes tens prendendo à terra.

O medo está na terra que te agarra:

Quem levitar um palmo acima a garra

Do chão se solta e nenhum medo o ferra.

 

É voar fora dum alcance estreito,

Trepar ao céu e olhar do infindo o nada

Que aqui nos prende de afogado em leito.

 

É só elevar-nos e fenece à entrada

O medo que nos tolhe na jornada.

 

 

1544 - Trabalho-a

 

Quando a dor vem, eu aceito,

Trabalho-a, deixo doer.

Quando o medo vem e o peito

Me garrota, nem o jeito

De o disfarçar vou querer,

 

Não fujo para o cinema

Nem saio com os amigos:

De perder da vida a gema

Tremo mas sofro os perigos.

 

Quando a tristeza me advém

Eu apenas fico aqui,

Pisando por ela além…

 

-Mas por que é que o trilho em si

Fere como nunca vi?

 

 

1545 - Águias

 

As águias longevidade

De anos setenta terão,

Mas aos quarenta, em verdade,

Terão a necessidade

Duma dura decisão.

 

É que aqui as unhas ficam

Compridas, frágeis demais

Para a presa a que se aplicam

Prenderem em anos tais.

 

O bico se encurva ao peito

E as asas, de tão pesadas,

Perdem para o voo o jeito…

 

- Morro então se renovadas

Não forjo armas das finadas.

 

 

1546 - Meia

 

As águias na meia vida

Fazem a renovação

Trepando à montanha erguida,

Buscando um ninho à medida

Encostado a um paredão.

 

Com o bico na parede

Batem até o arrancar.

Com um novo as unhas, vede,

Tiram sem tergiversar.

 

Removem, por fim, as penas.

Após seis meses de dor

Retornam de outrora às cenas.

 

- Na vida é de nos propor

O custo do inovador.

 

 

1547 - Resguardar-nos

 

Em nossa vida muitas vezes temos

De resguardar-nos algum tempo e então

Urge pegar com nossas mãos nos remos

E começar a pesquisar extremos

Do longo rio de inovar o chão.

 

Para vogar desprenderei de ideias,

Conceitos mil, de tradições, lembranças

Que dor causaram e de perda cheias.

Somente livre das pesadas franças

 

De antanho posso aproveitar o efeito

Da inovação que novas plantas traz.

Do peso antigo libertado, o jeito

 

Terei de abrir-me a algum perfil capaz

De vida haurir numa colheita em paz.

 

 

1548 - Bêbado

 

O bêbado precisa de aceitar

A sensibilidade que ele tem.

É tamanha que o leva a se afastar

Do mundo em que não quer participar,

Pretende levitar de tudo além.

 

Quereria voar, subir ao céu,

Ver, abrindo o canal, nova entidade

Cósmica desvelada de seu véu,

Quer sonhar e quer crer que, de verdade,

 

Vale a pena esta vida, fazer planos

E quer vir a poder vê-los crescer…

Sente tanto que murcha dos enganos.

 

- A si próprio ajuda-o a querer:

Que beba a vida nova que vier.

 

 

1549 - Compreender

 

Quando o homem compreender

Deveras do céu a lógica,

Vê no que andar a fazer

Que simples é o guião a ter

Como é falsa e demagógica

 

A lógica habitual

Que já não serve à vivência.

- Então começa, afinal,

A andar com nova valência.

 

Para tal nos vem a perda:

Para que errada entendamos

A razão que detrás se herda.

 

A perda faz que tenhamos

Outra ter com que ganhamos.

 

 

1550 - Perda

 

Da perda os homens precisam:

Ela apenas perceber

Pode fazer que o que visam

As lesões é que enfatizam,

Que outro rumo é de empreender.

 

O mundo material

É de repensá-lo inteiro,

Programar outro carreiro

Mais unido, universal:

 

Sem um sistema dual,

Sem os contrários fendidos,

Sem a corrida humanal

 

A lutar por escolhidos

Contra os que são preteridos.

 

 

1551 - Dual

 

Todo o dual tem um contrário,

Se há um contrário, quer escolha,

Se há que escolher, arbitrário,

Terá de julgar, sumário,

Não há síntese que acolha.

 

Toda a vez que nós julgamos

Rejeitamos um dos lados:

Um do outro separados,

Tudo desarmonizamos.

 

Desarmonizo a matéria,

Toda a perda então enfuno

Quando a divisão é séria.

 

Se os dois lados não coaduno,

Que perda até ficar uno!

 

 

1552 - Fará

 

Ninguém o fará por mal,

Mas pior não há que alguém

Que de auto-estima o sinal,

A glória individual,

Da vida doutrem retém.

 

Quanto mais alguém precisa

Doutrem para se encontrar,

Ao seu Eu, onde enraíza,

Mais vai desenergizar.

 

Se outrem quer para julgá-lo,

Perdeu a própria energia,

De si se alheia no abalo.

 

E a doença principia

No buraco que anuncia.

 

 

1553 - Culpa

 

A culpa tem-na quem foi ajudado,

Quem é levado pela conjuntura

A agradecer o nunca deprecado,

Que a ver com ele nada, doutro lado,

Terá por fim, por vir doutra figura.

 

Pois martiriza-se ao cuidar que não

Correspondeu ao gesto que ajudou:

Eis como o intuito de ajudar ao chão

Esmaga alguém que grato ser tentou.

 

Quando o ajudado já só culpa sente,

Por vezes faz o que é-lhe aconselhado

E corre mal o intento, de repente,

 

Não dará conta do solicitado:

- É vida doutrem que lhe corre ao lado.

 

 

1554 - Ajuda

 

Uma ajuda corre mal

Se a energia da pessoa

Ajudada, enquanto tal,

Não confere como igual

Com a da que a ajuda à toa.

 

Corre mal, que a solução

De meus problemas é dentro

De mim que tem o portão,

Não doutro onde jamais entro.

 

A culpa sempre obedece,

Por medo de recusar

O que as pegadas lhe empece.

 

É por isto errado andar

Que corre mal ajudar.

 

 

1555 - Requer

 

Em perda quem estiver

Como quem tem um problema,

Requer, para o resolver,

A energia que tiver

Por si próprio como lema.

 

E limpo terá de estar,

De espírito positivo.

Que o deixem utilizar

A lógica que o tem vivo.

 

O problema dum não pode

Na lógica resolver-se

Doutro qualquer que lhe acode.

 

Ajudar é que outrem verse

A raiz que em si converse.

 

 

1556 - Foges

 

Tu foges da própria vida

Ao ir ajudar alguém,

Se é mais fácil resolvida

Ver doutrem a dor ferida

Que a que em ti próprio te tem.

 

É que outrem merece pena

E tu pões-te aqui na altura,

Mais te vendo ante a pequena

Coisa que ele é na figura.

 

Ajudo e então me distraio

E mostro como sou bom,

Doutrem bom conceito atraio.

 

Mas só Deus julga: em meu tom

De ser Deus me arrogo o dom.

 

 

1557 - Sinto

 

Quando não estou centrado

Em minha vida, a agressão

Sinto do que me for dado

De fora e nunca gerado

De meu imo na impulsão.

 

Todos em redor requerem

De nós o que adorariam

De nossas vidas fazerem

E em vez de nós tal aviam.

 

Todos querem ajudar

O coitadinho, com pena.

Se a tal não sou similar,

 

Invade e rasga-me a cena

Toda esta gente pequena.

 

 

1558 - Invadem

 

Invadem a nossa vida

Com as próprias opiniões,

Na perspectiva mentida

De que sabem a medida

Melhor de nossas funções.

 

Querem que façamos tudo

Conforme tais instruções.

Pretendem-me sempre mudo,

Mexem eles meus botões.

 

Eles vão manipular

Afinal, a nossa vida.

Depois, o mais singular

 

É que ver agradecida

Querem a invasão sofrida.

 

 

1559 - Estratégia

 

Nem sempre tudo faremos

Do que quiserem de nós,

Nem sempre concordaremos

Com a estratégia que vemos

Por eles moldada após.

 

Nem sempre quero que os mais

Resolvam os meus problemas,

Nem agradeço que os tais

Me invadam em meus dilemas

 

Com suas próprias certezas.

Pior, se num caos vivem,

Da infelicidade presas.

 

A ajuda encobre o que esquivem:

- Buscam vanglórias que arquivem.

 

 

1560 - Bebé

 

Primeiro o bebé nasce e logo ei-lo culpado

De tudo o que acontece: quando algo de mal

Em redor dele ocorre, um pendor há tão grado

A culpabilizar-se que, por todo o lado,

Apazigua tudo, atento e serviçal.

 

Vida própria não tem, precisa de outrem ver

Que fica bem antes de bem ficar por si,

O mundo inteiro em ordem antes de sequer

Poder ir descansar. Com tanto frenesi

 

Que nos sufoca a todos de preocupação:

Sentimos desconforto de ter de andar bem

Para então bem andar quem nos aplana o chão.

 

E daí maior culpa lhe impomos também

E o cerco continua, tudo ao fim refém.

 

 

1561 - Agarra

 

Tem medo de perder e então que faz?

Agarra, agarra tudo: os indivíduos,

Os materiais bens que o ganho traz…

Quanto mais se agarrar mais dele atrás

Vai arrastando pesos desmedidos

 

Do sistema de opostos a um dos lados.

Eu não devo julgar nem escolher

Do mundo entre os pendores, que os vetados

Dentre os medos virão para os viver.

 

O contrário de ter será perder:

Então a perda vem, num desafio,

De tanto a me escapar ainda me ver.

 

Se o medo de perder da vida é o fio,

Então atraio a perda em longo rio.

 

 

1562 - Odeia

 

Alguém odeia o mundo, colhe-o doutras vidas,

Desde o berço rejeita tudo o que o rodeia,

Confronta-se, entra em choque. Em redor, comovidas

Tudo para agradar-lhe irão fazer, rendidas,

As pessoas que o ódio combale e permeia.

 

Mas ele não acolhe este amor que lhe toca,

Cada vez mais arisco e dividido fica,

Rejeita o mundo inteiro que ao ódio convoca.

Aos poucos cada qual se afasta, o amor aplica

 

A quem de devolver mais capaz é o amor.

Aquele mais e mais há-de findar sozinho

Mais ataca e mais todos afasta em redor.

 

Quem se pautar por ódio, de ódio tece o ninho,

Quanto mais o semeia, mais dele é vizinho.

 

 

1563 - Sofre

 

Alguém que sofre muito, por tudo e por nada,

E que não visa nada, não vai para a frente,

Vontade de ajudar noutrem suscita grada,

Mas não a aceita nunca, pois julga de entrada

Que mérito não tem para tal precedente.

 

Apesar de andar sempre a pedir desalmado

Não consegue sair donde está prisioneiro.

Tem pena dele próprio, não se crê julgado

Merecedor de livre se achar do atoleiro.

 

Vive com isso e bem, com tanto sofrimento

Muita atenção dos mais há-de atrair, enfim,

Até que estes se cansam, ninguém fica atento.

 

Se eu tiver de mim pena, pena atraio a mim,

O que vai volta sempre e nunca mais tem fim.

 

 

1564 - Protótipo

 

O protótipo do adulto,

Limpo, esclarecido, tem

Alguns valores de culto

De elitismo bem estulto

Que ao humano não convêm.

 

É que os contrários na terra

Causam desapontamentos:

Tudo se rege e se aferra

Em inversos elementos.

 

É o bem contraste do mal,

Humano, do desumano,

Luz das trevas, por igual…

 

No contraste não me engano,

Frente e avesso, é todo o pano.

 

 

1565 - Duas

 

Há duas forças contrárias

Em nós em luta constante,

Emoção-mente primárias,

Coração de pistas várias,

Raciocínio olhando adiante.

 

Lutamos interiormente

Contrários a harmonizar

Mas a educação nos mente,

É escolher e rejeitar.

 

Requer dum o afastamento,

Tudo se desarmoniza,

Desequilibra no intento.

 

A rejeição que isto visa

Nunca mais nos totaliza.

 

 

1566 - Entre

 

Entre o coração e a mente,

Um pior, outra melhor,

Querem que eu a escolha tente

Que não ajuda quem sente,

É fraco quem por lá for.

 

Só quem usar a cabeça

Deveras é inteligente,

Este é que jamais tropeça

E na vida segue em frente.

 

Quantos, porém, não acertam

Na vida com a razão,

Quando amor nunca despertam?

 

O sinal disto é o guião

Da vida: a insatisfação.

 

 

1567 - Troca-me

 

A linguagem da emoção

É das almas a linguagem:

O grau de insatisfação

Que sinto no coração

Troca-me de vez a imagem.

 

Meu imo não é feliz

Mesmo se a mente diz bem,

Só porque a razão condiz.

Outro mundo há para além:

 

Só vives se algo te agrada

No contraste com o inverso

Que venceste em tua estrada.

 

E é quando infeliz converso

Que de ser feliz eu verso.

 

 

1568 - Ego

 

O ego é poder, resistência,

O ego é guerra e salvaguarda,

Quatro pedras de evidência

Que constituem a essência

De má vida a montar guarda.

 

Primeiro um ego é poder,

Ser mais bonito, mais rico,

Ter mais quem reconhecer,

Mais reino onde pontifico…

 

Necessidade de ser

E de ser mais do que os mais

É vontade de poder.

 

- Em troca de laços reais,

Só isolamentos letais.

 

 

1569 - Garantir

 

Um ego faz resistência:

Se algo houver que funciona,

Ninguém lhe muda a existência,

A garantir a valência

Do bem que proporciona.

 

O problema é, se apesar

Da vida boa que der,

Deprimido se ficar,

De ineficaz tudo ser.

 

Cuida que não faz sofrer

Teu ego, que não tens medo,

Que não te leva a perder.

 

Dor, medo e perda - eis o credo

Com que te leva ao degredo.

 

 

1570 - Insistes

 

O problema é que apesar

Dos esforços do teu ego,

Tu insistes em deixar

O teu coração falar,

Mudar para um outro apego.

 

Teu ego então te resiste,

Com o medo de perder

E o sofrimento que existe

Numa mudança qualquer.

 

Nos medos de que mais foges

Ganha a batalha da vida,

Faz que no ego mais te alojes.

 

Só que a dor que assim te elida

A maior dor te convida.

 

 

1571 - Defendes-te

 

Medo do desconhecido

Se tens, como do amanhã,

Da ideia nova e sentido,

Do ramo reverdecido,

- Defendes-te com afã.

 

Nunca te expões mas te escondes

Numa máscara falseada,

É atrás de ti que respondes,

Dum tu de face inventada.

 

Reténs o velho, não te abres

A novos mundos, conceitos,

À defesa com mil sabres.

 

De feliz crês nisto os jeitos

E à dor só são mesmo atreitos.

 

 

1572 - Guerra

 

Ter a guerra como certa

É de jogar à defesa

Justificação esperta:

O ego sempre se acoberta

Do sol, chuva, da tristeza…

 

Se o mundo é mau, o melhor

Então é fugir do mundo:

O ego livra do temor,

Crê-se cumprindo, fecundo.

 

Não nos deixa conectar

Com o imo. Mas ser feliz

Não vem doutro caminhar:

 

Só no imo achas a matriz

Do porvir de teu cariz.

 

 

1573 - Desenvolve

 

Desde sempre o ser humano

Desenvolve uma estadia

Mais fecunda de ano em ano,

Duma geração o arcano

Dando a outra em melhoria:

 

Vive mais e mais aprende.

Seria de acreditar

Que em desenvolver-se rende

Igual no espírito a par.

 

Porém, não ocorre tal:

Os antigos aos céus iam,

Hoje a poucos isto vale.

 

Os cultos hoje desviam

Da raiz donde irradiam.

 

 

1574 - Culto

 

O culto da inteligência

Para tudo é meio passo.

Premiamos com urgência

Quem dela trepa à eminência,

Cientista, inventor colaço…

 

O culto da inteligência

Vem matando a humanidade:

Quão maior a refulgência

Mais murcha a interioridade.

 

A inteligência não chega,

Aniquilou o melhor

Dos recursos que ela nega:

 

Do sentimento o calor,

A emoção que gera o amor.

 

 

1575 - Órgão

 

Órgão vira o coração

Que se estuda, que se opera…

Desistiram da emoção,

De sentir os pés no chão,

A clínica é que lidera.

 

Eis como o intelecto tapa,

Como obstrui, mata e perfura

A vivência com a capa

Da matéria que ali cura.

 

Ninguém convida a sentir,

Mas sentir é a comunhão,

Coração e alma a se unir.

 

Ele ao Todo dá fusão

E o código é o coração.

 

 

1576 - Vivenciar

 

A missão do ser humano

É vivenciar os opostos

Da matéria em qualquer plano:

Mente e coração, sem dano,

Pensar e sentir os gostos,

 

Racional-emocional…

Bem difícil de vencer

Vai ser duelo que tal,

Sempre às turras em quenquer.

 

Nunca conjugar os dois

Logramos na perfeição:

Quem manda, quem ganha, pois?

 

- De hoje a pior condenação

É que mato o coração.

 

 

1577 - Irresponsáveis

 

Irresponsáveis, loucos, despropositados,

Como irrealistas são os que do coração

Pretenderem viver: os bem intencionados

Juntam-se a convencer os jovens descuidados

Deles a esquecer sonhos, que a terra é que é chão.

 

O caminho espedaçam que o coração dita:

"Se tu vais por aí, repara, irás sofrer,

Qual vida para ti!" Quando um sonho palpita

Logo um frustrado advém, o trilho a interromper.

 

Dele o sonho seguir não conseguiu, portanto,

Não suporta que alguém possa seguir o seu:

Jamais a inteligência empolada foi tanto.

 

A inteligência a lógica quer e teceu,

Lógica o coração não tem nem a pediu.

 

 

1578 - Ilógico

 

O que é ilógico não presta,

Só serve o que a mente entenda

- É o que ensina a quem se apresta

A cultura que nos resta,

Sem ver quanto nos ofenda.

 

Quem acorda triste um dia,

(Sonhou com a mãe defunta)

Quer chorar em demasia,

É o que o coração lhe assunta.

 

Só no fim da dor há paz:

Ele devia chorar

Até dor não ter atrás.

 

Mas não, tem de ir trabalhar,

- Vida contra si trilhar!

 

 

1579 - Lógica

 

Não tem lógica a tristeza

Que súbita atinge alguém.

Como apenas razão preza

Quem na vida nada lesa,

Logo o choro enxuga bem:

 

"Ainda bem que inteligente

Sou e que uso da cabeça

E não caio, de repente,

Numa estéril dor à peça!"

 

Mesmo prontas a sair

Ficam tristezas à espera,

Juntam-se às mais sem porvir,

 

Morre de lógica a era,

Não tem realidade vera.

 

 

1580 - Bloqueio

 

A tristeza acumulada

É bloqueio emocional.

A lágrima não chorada,

De a nao sentir, camuflada,

Um dia devém letal.

 

Ninguém já se ergue da cama

E não acha graça a nada,

Só quer morrer, fim do drama,

É a depressão consumada.

 

Tristeza que não saiu

Fica, amplia, toma tudo.

Quando a lógica morreu,

 

Que fazem do espinho agudo?

- A mezinha mata-o mudo!...

 

 

1581 - Remédios

 

A razão remédios cria,

Em utilizá-los teima.

Quem tem fé, tem companhia,

Chora a dor de cada dia,

A luz virá sem dar freima.

 

Quem tem fé nunca está só,

A vida tem vários planos,

Farinha faz muita mó,

É o que minimiza os danos.

 

Quem não tem fé fica em si,

Julga que sabe e que pode,

Tem um ego imenso ali

 

E a mente a emoção sacode:

- Sem saída, a perda acode.

 

 

1582 - Linguagem

 

A razão a compreender

A fala do coração,

Os afectos de quenquer,

Mente a melhor atender

De sentir a profusão,

 

- Completa a harmonização

De opostos do ser humano,

Entre intelecto e afeição.

De harmonia neste plano

 

Tudo passa a ter sentido:

É a lógica dos afectos,

A abundância do vivido.

 

Mente é só de homem ter tectos,

O amor são do Infindo aspectos.

 

 

1583 - Mantém

 

Como se mantém o amor?

Pega um punhado de areia

E fecha a mão com furor:

Vazia fica a mão cheia.

 

E, se abres completamente,

Logo o vento, ao grão que resta,

O levará na corrente,

Nada te dá nem te empresta.

 

Mas, se a mão semi-abeta

Manténs como uma colher,

Proteges a areia certa,

 

Já não te escapa a escorrer.

É assim que se faz durar

Um amor que é de ficar.

 

 

1584 - Adultos

 

Adultos, vós tudo fareis

Para matardes nossos sonhos.

De tão amargos, sois cruéis,

Práticos, ásperos, medonhos.

 

Assumis ares de eficiência,

Sabedoria, e vos julgais

O sal da terra e, de experiência

Vivendo em nome, então falais,

 

Dela, da idade e o mais que calha…

E, ao fim e ao cabo, o que fazeis

É só matar, já que atrapalha,

 

Toda a poesia que encontreis.

Tornais a terra estéril, fria

Do belo e bom: morre a magia.

 

 

1585 - Ajudar

 

Quem é bom samaritano

Não se faz de esquisitices

Com o que ajuda no dano.

A vítima das sandices

 

Apoia que vier no vento,

A de aspecto divergente,

A que não entende o intento…

Enfrenta o medo cogente

 

Dos que vivem pelas franjas,

Em locais onde não vai,

Perdidos de vez das granjas.

 

Bom samaritano sai

E ajuda, em tudo o que visa,

Seja quem for que precisa.

 

 

1586 - Alto

 

Quando no alto da montanha

Os pés ponho, lavro a lei,

Sinto-me como quem ganha,

Sinto-me tal como um rei.

 

Mas no louro realengo

O homem domina a mulher,

Por poder devém mostrengo

Insensível a quenquer,

 

Ébrio de realeza

Calca, esmaga os que em caminho

Se lhe cruzam à defesa

 

Pior que se se encharca em vinho.

E o que fora exaltação

É, no fim, condenação.

 

 

1587 - Estranho

 

Estranho bem lamentável

É que o que, em nossa fraqueza,

Cuidamos a mais louvável

Das afeições, mais fiável,

De nós possa fazer presa,

 

Ser ao fim uma armadilha,

Ratoeira a nossos pés.

O cru brilha então talvez

E o puro ali se envencilha.

 

Ora, o dom do amor de mãe,

O dum pai por filho dele,

Se este não educam bem,

 

Não afaga em brisa a pele,

É um tufão que os atropele.

 

 

1588 - Muda

 

Tudo muda e o esquecemos.

Cuidamos que cada dia

Vai ser o mesmo que houvemos,

Que ao lar onde repousemos

Cada pegada nos guia.

 

Buscamos a segurança

E às vezes irremediável

É deveras a mudança:

No doente inevitável,

 

Ao morrer quem mais nos toca…

Então vemos o passado

Quão feliz se nos coloca:

 

E em tal era sem cuidado

Vivo o melhor de meu fado.

 

 

1589 - Passageiro

 

Do passageiro indo a par,

Por vezes os dados mudam

E só nos resta arranjar

A maneira de mudar

Com o que eles em nós grudam.

 

Se não quero acompanhar

A muda, se tudo muda

Sempre em redor de lugar,

O mal é doença aguda.

 

Portanto, não sendo eu

Acostumado à aventura,

Nela lavro solo meu

 

Porque mudo a conjuntura

E mudo eu no que me augura.

 

 

1590 - Solidão

 

Quando é que me hei-de retirar

Na solidão, sem companheiros,

Sem alegria que contar

Nem a tristeza que ande a par,

Com a certeza de os luzeiros

 

Que em mente tenho serem sonhos?

Com meus farrapos, sem desejos,

Quando levar os meus harpejos

Do monte ao cume dos medronhos?

 

Quando é que, vendo que o meu corpo

É doença apenas que em empesta,

Velhice e morte que me encorpo,

 

Livre, sem medo, sempre em festa,

Fôlego tomo na floresta?

 

 

1591 - Desmoronar-se

 

Desmoronar-se sei que vai,

Porém não sei o que irá ser,

Sobre as ruínas, cai não cai,

Edificado, pois não sai

De entulho o paço de quenquer.

 

Isto ninguém pode sabê-lo

Com a certeza da evidência.

O velho mundo táctil, belo,

Palpável, sólido, é existência,

 

Com ele luto a cada instante.

O do futuro não nasceu,

É imperceptível, hesitante

 

Luz de que o sonho se teceu

Que os ventos batem que há no céu.

 

 

1592 - Sentirei

 

Enquanto a felicidade

Eu viver, dificilmente

A sentirei de verdade.

Se findou, não for presente,

 

É que olhamos para trás

E sentimos, de repente,

Com surpresa acaso, aliás,

Que bom foi o tempo ausente.

 

É que a doçura do mel

À primeira colherada

É que a sentimos na boca.

 

À segunda, o sabor dele

Já não saboreia nada

A língua que feliz toca.

 

 

1593 - Noitinha

 

O prazer da refeição:

À noitinha acendo o lume,

Cozinho no meu fogão

E atingimos logo o cume.

 

Comer e beber assume,

Mais conversar ao serão,

O inefável que resume

Duma festa a animação.

 

Entendo, enfim, que comer

É também espiritual,

Que a carne, o pão e o vinho

 

Matéria-prima vão ser

De que é gerado, afinal,

O espírito em meu cadinho.

 

 

1594 - Ensinar

 

Ensinar a pele toda

A gozar, a compreender,

Descobrir, correr à roda,

Lutar, nadar e colher

 

O trigo, a fruta da boda,

Cavalgar, remar se houver

Lago, mar, o que me engoda,

- Meu imo de carne encher

 

E encher minha carne de alma

Reconciliaria em mim,

Finalmente, em paz e calma,

 

Inimigos milenares:

Alma e carne, cujo fim

É serem Eu, em meus lares.

 

 

1595 - Simples

 

Sinto que a felicidade

É simples coisa e frugal:

Um vinho que nos agrade,

Uma castanha banal,

 

Um lume a aquentar real,

Do mar rumor que me invade…

Nada mais, é o principal,

É tudo simplicidade.

 

E para sentir que tudo

Isto é que é viver feliz,

Sem nada de façanhudo,

 

Bastará ter, afinal,

Um coração de raiz

Que simples seja e frugal.

 

 

1596 - Prenhes

 

Prenhes de tristeza são as horas

De molinha fina, voluptuosa.

Voltam ao espírito, a desoras,

As recordações que mal decoras

Enterradas lá, lama amargosa,

 

- As separações de amigos velhos,

Apagados risos de mulheres,

Esperanças vãs que, pelos quelhos,

Perderam as asas dos quereres,

 

Borboletas lindas de que resta

O verme enquistado a andar no escuro.

E o verme pousado está na cesta

 

De meu coração em que rói duro

As folhas viris onde me apuro.

 

 

1597 - Alegria

 

A minha alegria é grande

Porque é muito simples, feita

Do eterno que nos comande:

De ar puro, sol, mar, da sande

Do pão de trigo em colheita…

 

À noite, sentado à turca,

À minha frente, Sindbad

Fala marinho da urca,

Dilata o mundo que invade.

 

E, se a palavra não chega,

Levanta-se, salta e dança.

E, se não basta, então pega

 

Na viola e o trilo alcança

Mil almas que a vida entrança.

 

 

1598 - Ária

 

Quando ouvir ária selvagem,

Sinto-me então sufocar

Bruscamente com a imagem

De que da vida a viagem

É miserável, vulgar,

 

Indigna, afinal, dum homem.

Se for ária que é dorida,

Sinto que as vidas se somem,

Areia a escoar, delida,

 

Por entre os dedos e não

Há salvação nunca mais.

Vai e vem meu coração

 

De meu peito entre os varais,

Tecendo alegria entre ais.

 

 

1599 - Manda

 

Mesmo sendo um disparate,

Sem hesitar obedeço.

Por conta fica o dislate

De quem manda que eu acate

De cara alegre o tropeço.

 

E não é só no fazer,

Por igual é no pensar,

Se eu nunca a opor me atrever

A meu amo o que eu julgar.

 

Se tal for viver, porém,

Existir não é por certo.

A vida fácil devém

 

Sem responsabilidade,

Mas que sentido a persuade?

 

 

1600 - Beleza

 

A beleza exterior

Poderá sobressair

De imediato fulgor

Ao olhar observador

Que o fascínio distinguir.

 

Inteligência e paixão

Bastante mais atraentes

Com tempo se mostrarão

Que belezas refulgentes.

 

Levam bem mais que um instante

A decifrar e a beleza

Nada tem com tal quadrante.

 

A longo prazo o que pesa

É o que o coração mais preza.

 

 

1601 - Casamento

 

Num casamento qualquer

Há um equilíbrio subtil

Entre o que um quiser fazer

E o que o outro pretender.

Enquanto tal é o perfil

 

Ninguém vai sentir problema.

A dificuldade ocorre

Quando um corre por um lema

E o outro por outro corre.

 

Como em qualquer relação,

A precisão pessoal

É do parceiro a função

 

E a do outro por igual:

- Só o amor consegue tal.

 

 

1602 - Formas

 

Há mil formas de mostrar

Um amor sem ser comprando:

Um gesto é de sublinhar

Que amável se ali foi dando,

 

Reconhecer em conversa

Dum filho o ponto de vista,

Se uma descoberta versa

Se entusiasmar com tal pista,

 

As histórias dele ouvir

Da vida que for correndo…

- Ninguém paga de assim ir

 

Laços e afectos tecendo.

E a febre do consumismo

Já nos não lança no abismo.

 

 

1603 - Falsos

 

Se eu não disser a verdade

E construir falsos eus,

Ninguém, mesmo a quem agrade,

Consegue ou se persuade

A amar-me tais camafeus.

 

Portanto, a única forma

De ser deveras amado,

Aceite de vez por norma,

É ser tal qual sou formado.

 

Só dando-me a conhecer

É possível aceitar

Pela parte de quenquer

 

Quem sou neste meu lugar

Sem nem a mim me enganar.

 

 

1604 - Sobrecarregar

 

É talvez da natureza

Sobrecarregar com tudo

Quem tudo sofre em fraqueza,

De humilhado gesto mudo

Que indiferente se preza.

 

Não gostamos de provar

Sempre a nossa força à custa

De alguém ou do que calhar,

Sem ligar se a causa é justa?

 

A mais débil criatura,

O gaiato, há-de tocar

As campainhas que apura

 

Rua fora: é calcorrear

Um sonho com que acordar.

 

 

1605 - Estranho

 

Há muito quem desconfie

Dos próximos e se entregue

A um vago estranho que o guie.

Não há lucro que encarregue

De quem perto o desafie:

 

Patente o vazio de alma,

Este o julga sem bondade.

Mas ele do encómio palma

Quer vinda em profundidade.

 

Espera captar a estima

Do estranho que vier do acaso.

Quão mais perto alguém o anima

 

Menos o ama ou sonha, a prazo,

Os longes a que der azo.

 

 

1606 - Espelho

 

Se um espelho reflectir

Acto ou facto escandaloso,

O espelho quebro a seguir,

Volto as costas, vitorioso,

 

Ao acto ou facto de engulho,

Dou tudo por resolvido.

Resta o mesmo podre entulho,

Mas não tenho lá o sentido.

 

Assim é que no País

A chaga arrasto a cordel:

Questões sociais mais vis

 

Resolvo-as só no papel.

Dou tudo por encerrado:

- Fica igual em todo o lado.

 

 

1607 - Teatral

 

Que somos mais que aparências,

Teatral figuração,

Vaidade a agitar pendências

Que ao fim nem pendências são?

 

A fatal revolução

Do tempo em rápido curso,

Sem paragem, suspensão,

Tudo arrasta no percurso,

 

Afoga em profundidade

Na mais muda eternidade.

Tudo entra ali, nada sai,

 

Sempre a vitória ali cai

E mesmo os loiros mais sérios

Se afundam com os Impérios.

 

 

1608 - Sombras

 

Tudo no mundo sombras são que passam.

Agigantadas, as maiores são

As que mais duram, mas ao fim se vão,

Alguns instantes as, enfim, deslaçam.

 

Mil imortais objectos finge o ardor,

Deseja a fama com maior vaidade,

E a mesma aragem que seu ego invade

Lhe extingue a voz e lhe confunde o teor.

 

A permanência nunca vinga e muda,

É variável mesmo em pedra dura,

Gasta mais tempo só, no fim que augura,

 

Que noutro objecto de hora mais miúda.

Dizer podemos que se estão finando

Todas as coisas, mais que a ser estando.

 

 

1609 - Aceso

 

O valor guerreiro

Aceso em campanha

Num ermo é ligeiro,

Cobarde e sem sanha.

 

Falta-lhe ter alma

Se falta a vaidade,

O braço se acalma

Sem vigor que o fade,

 

Sem alento o peito.

Risco em que não há

Vaidade em proveito

 

Lembra à vida já

A provável sina:

- O horror da ruína.

 

 

1610 - Dúvida

 

Contra o nosso parecer

Nunca a dúvida é bastante,

Contra o dos mais, de quenquer,

Sempre a dúvida é constante.

 

A vaidade usa de engenho

Doirando o que vem de nós,

Reprovando com empenho

Doutrem o que vem após.

 

Deste engenho as produções

Têm qualquer criação:

Ninguém desdiz tais acções

 

Sem lhe repugnar, então.

Por isso é que proliferam:

- Vaidade é o que todos geram.

 

 

1611 - Decide

 

Em guerra decide a espada

O que em paz decide a pena:

Também corta esta à chegada

E ao corte todos condena.

 

Aflige com lentidão

Como se mistério fora,

A ser maior a lesão

É com vagar que demora:

 

Não parece a morte morte

Quando a morte enfim nos chega,

Mas quando se espera à sorte,

 

Chegando vai, mas se nega.

Da pena tal lentidão

À guerra é condenação.

 

 

1612 - Somente

 

Somente a vaidade sabe

Fumo emprestar de existência

A quanto nesta não cabe.

E duns nadas de excelência

 

Idólatras nos erige,

Quando corpo mais não têm

Que o que nosso modo exige

De os entender vida além.

 

A vaidade nos induz

A buscarmos estes nadas

Como meios de ser luz,

 

De nós sermos madrugadas,

Quando nem a natureza

Nem Deus distingue tal reza.

 

 

1613 - Governa

 

Não governa a regra o homem,

Este é que governa a regra.

Quem legisla não se integra

Na lei com que os mais se domem.

 

E não só o legislador

Mas os que estão junto dele:

As vantagens de senhor

Comunicam-se daquele

 

Até uma certa distância.

Depois é que a luz se apaga,

Para baixo não afaga

 

A espera de qualquer ânsia.

Morre nesta perversão

Do que é justo o senso e a mão.

 

 

1614 - Lonjura

 

A própria lonjura põe

Certas coisas bem mais perto:

O que escondemos supõe

Que o mostremos mais, por certo.

 

O recato e a modéstia

Mais chamam do que desviam,

Convidam da luz à réstia,

Nada afasta o que encobriam.

 

O mesmo é cobrir o rosto

Do que incitar mil vontades

De o descobrir, tal o gosto

 

Do escondido atrás de grades

Que nos move a vida inteira:

É o mistério nossa leira.

 

 

1615 - Explicação

 

Aquilo que não tem nada

Que lhe seja semelhante

Fica sozinho, de entrada,

Sem explicação bastante.

 

É o que ocorre com o amor:

Ninguém o pode explicar,

Nada com que o contrapor

Consegue alguém encontrar.

 

O mais que o conceito alega

São opostos entre si,

É o fogo e a neve que o nega,

 

Pena e alívio que vivi,

É sombra, igualmente luz…

- E nada, ao fim, o traduz.

 

 

1616 - Descobrir

 

Nem glória nem louvor quero

Senão de descobrir mundos

Que Deus criou por inteiro

Para que, em passo ligeiro,

Os eu descubra profundos.

 

Por isso me deu os olhos

De ver infinito mar,

À razão me opôs escolhos

Para certo interpretar,

 

E me pôs no coração

Uma saudade ao contrário,

Saudade dum outro chão

 

Que ainda não vi, precário,

Mas que amo em meu correr vário.

 

 

1617 - Morrem

 

De certezas morreremos

Quando morrem as certezas.

Seremos todos blasfemos,

Sejam quais forem as rezas.

 

A verdade nunca muda,

Idêntica permanece,

Seja orador quem lhe acuda

Ou charlatão quem a tece.

 

O loquaz não a enriquece

E o gago não a empobrece.

Quando, porém, se desnuda,

 

Só vive quem se lhe gruda.

Se, fementida, emurchece,

Mata quem falsa a estremece.

 

 

1618 - Corrige-lhes

 

Qualquer coisa de verdade

Se encontras mesmo em perversos,

Corrige-lhes a maldade

Sem violar, com dignidade,

Aquilo que eles, conversos,

 

Terão, afinal, de justos.

Então, na mesma pessoa,

Emenda os erros e os custos

A partir donde ela é boa,

 

Das verdades que admitir

Evitando com cuidado

O que é vero destruir

 

Com a crítica do dado

Que falso for e malvado.

 

 

1619 - Governo

 

Governo que não aceita

Discutir o diferente

Já pouco a pouco se ajeita

A regime de maleita

Que entende que nada o tente,

 

Nem precisa de propostas

De imbecis subordinados

Que livres são de supostas

Palmas só, sem mais traslados.

 

Ora, quem quer melhorar

Sempre a crítica encoraja,

Pronto a capitalizar.

 

A amordaçá-la quem aja

Tédio só faz que vil haja.

 

 

1620 - Prolifera

 

Se prolifera a suspeita,

O rancor e o ciúme

Contra o dotado, a que atreita

Sempre há-de ser tal maleita

Contra o mais capaz no cume,

 

O ambiente, sem valores,

Torna-se de tirania.

Ora, crítica sem dores

Supõe a democracia.

 

Cega o déspota o respeito

Pela autoridade e giza

De si culto a que anda afeito,

 

Cala a boca a quem o visa

E ao fim todos martiriza.

 

 

1621 - Justo

 

Não quem grite por justiça

Mas quem é justo deveras

É o que queremos na liça,

Enquanto o mundo se enguiça

Preso à polé nas galeras.

 

Bem-aventurado não

É quem se crê possuidor

Da justiça tida à mão,

De bem consigo a se pôr,

 

Mas antes aqueles pobres

De fome e sede maciça,

Sem oiros, pratas nem cobres,

 

Sede e fome, ante a cobiça,

Sede e fome de justiça.

 

 

1622 - Critérios

 

Admissão e promoção

Têm critérios de escolha.

Superior que os tenha à mão

À completa discrição

Gera sempre má recolha.

 

Preferem satisfazer

Medíocres manobráveis,

Mais que os dotados que houver

Decididos e fiáveis.

 

Intelectualmente pobres,

São também os mais mesquinhos,

Querem que a cerviz lhes dobres.

 

De mediocridade ninhos,

São para o abismo caminhos.

 

 

1623 - Ultrapassado

 

Dando embora o melhor e a própria vida,

Quem for ultrapassado e abandonado

Por outros que avançaram sem medida,

Sem pudor, com basófia fementida,

Num exibicionismo dementado,

 

Repara que fazer uma carreira

Nesta assim corrompida conjuntura

Quer dizer fuzilar a linha inteira

Doutros colegas que ninguém apura,

 

Implicando assentar cotoveladas

Oportunas em quem correr ao lado,

Se entre os primeiros tem pistas contadas.

 

É o concurso selvagem que anulado

Tem a fraternidade em nosso fado.

 

 

1624 - Mesclada

 

Uma espúria tradição

Mesclada de astúcia branda

Aprecia de obra a mão

Como a amassa, em sujeição,

Molda-a, não como quer que anda,

 

Mas como nunca queria

Esta ser alguma vez:

Misturando dia a dia

Vero e falso em tal jaez

 

Que o bom-senso e o preconceito

Se amalgamam num teor

Que no fim tudo é suspeito.

 

Perde a virtude o valor:

Vale apenas o exterior.

 

 

1625 - Recíproca

 

Vivemos num ambiente

Que nos leva a conviver

Ao lado, anonimamente,

Sem, por entre tanta gente,

Nada a fundo conhecer.

 

Não há recíproca estima:

Cotovelo a cotovelo,

Mas de comunhão sem clima,

Só com tal material elo.

 

Em asséptico contacto

Divididos pêlo a pêlo,

Só consigo alguém tem pacto:

 

Enaltece a própria alfombra,

Rebaixa quem lhe faz sombra.

 

 

1626 - Eleva

 

Um amor que é verdadeiro

Não rebaixa, eleva o homem

Completo, integral, inteiro,

Enriquecendo o viveiro

Das forças que dentro o tomem,

 

Em comunhão com os mais.

Recusa a monotonia,

Pré-fabricados taipais,

Estandardizada guia.

 

Cada vocação difere

Em rica diversidade,

Mesmo se o confronto fere,

 

Beneficia a unidade

A intérmina variedade.

 

 

1627 - Domina

 

Domina ao desprezado injustamente

Um complexo de inferioridade

Lentamente,

Levando o que o sente

A atrofiar a personalidade.

 

Deixa de aspirar ao aperfeiçoamento

No canto

De que for encarregado elemento.

O desencanto

 

Do porvir

Não moraliza,

Murcha-lhe o crescimento, ao deprimir.

 

O caracol fecha-se à brisa

E tentação de ser carrasco mais e mais enfatiza.

 

 

1628 - Ensinar

 

Quantas vezes o juízo humano

Tenta ensinar a Deus como deveria

Intervir no mundo insano

E é sempre através de tal juízo de engano!

Não vigia

 

Por identificar a intervenção divina

Na selva temporal

E ao invés opina

Optando pela reprovação formal

 

Do desnorteante carisma

Desencadeado para o ensinar.

Quantas vezes cisma,

 

Oposto ao que Deus operar,

Que correcto é apenas o que ele julgar!

 

 

1629 - Temer

 

Devem as religiões

Mais temer do interior,

Em guetos, as vis lesões,

Mais do que as perseguições

Movidas do exterior.

 

A estas, conseguirão

Converter, santificar.

Àquelas, contudo, não,

Vão-nas dentro estrangular,

 

Corrompendo-as nas entranhas.

As lesões que irão sofrer

Serão no fundo tamanhas

 

Que já ninguém pode crer

Em nenhuma fé que houver.

 

 

1630 - Motor

 

Fazem da religião

Motor auxiliar

Da própria ambição:

Conjecturas, activa e passiva adulação,

Carreirismo e hierarquismo a par,

 

Indisciplina interior,

Cultura superficial de chavões,

Sobrevalorização de si, sem pudor,

Alianças e traições,

 

São para os carreiristas virtudes

De fazer constar.

De fingida religiosidade tangendo alaúdes,

 

Tendo em mira a meta a alcançar,

São cangalheiros grinaldas de morte a juntar.

 

 

1631 - Irradiado

 

Fazer carreira

Deveria ser irradiado do chão

Da feira

Que joeira

Qualquer religião.

 

Quem entra na vida religiosa

A apostar na carreira não deveria

Ter o acolhimento de que goza,

Mas encontrar bloqueada a via.

 

Deus ignora que fazer

De soberbos e presunçosos,

Vomita-os a todos e qualquer.

 

Carreira é de arrogantes gananciosos,

Os do lugar derradeiro é que são de Deus esposos.

 

 

1632 - Factos

 

Por que não acreditar?

Os factos são o que são,

Não importa que creiam ou não

Os habitantes do lugar.

 

Se havia luzes no céu

A noite transacta,

E não eram estrelas sem véu

Na calma pacata,

 

Alguém pode até

Fingir que não vê

E pôr-se a flanar,

 

Para outra banda a olhar:

Mesmo assim as luzes vão

Continuar lá na imensidão.

 

 

1633 - Lágrimas

 

Lágrimas depuradoras,

As que mais nos purificam

São as do amor a desoras

Que entrar, após mil demoras,

Permito onde pontificam

 

Coração e consciência,

Devêm sinal visível,

De unicidade a vivência

Que evidente então, credível,

 

É para o que se liberta

Do isolamento de andar

Longe do amor que desperta:

 

Depois de todo o penar

O pródigo volta ao lar.

 

 

1634 - Operam

 

Os rituais

Operam como alavanca.

Neles de energia coloca um pouco mais

E leis cósmicas moverás, espaciais,

A partir de tua tosca banca.

 

É o que assegura

De energia uma enorme quantidade

A movimentar-se, pura,

Até à fímbria da infinidade.

 

Perene fluindo embora a cósmica energia,

Tornam-te os rituais mais receptivo

E abres-te consciente à força de tal via.

 

Aceleras em ti o efeito, ao vivo,

A que antes foras esquivo.

 

 

1635 - Vivo

 

A mesma energia divina

Tem cada ser vivo dentro dele,

Que é o que deveras a todos anima.

A liberdade de escolha é uma cristalina

Parte decisiva de Deus em nossa pele.

 

Reparar nesta liberdade

E conhecê-la

É trepar na idade,

Cumprir de devir homem os degraus da tabela.

 

Aceitar que nos modele a vida

É acolher-me como sou,

Em seguida.

 

Até aos outros e a Deus calmo então vou:

- Todos asas somos do Infinito voo.

 

 

1636 - Distúrbios

 

Todos os problemas e distúrbios humanos

Derivam, em derradeira instância, da ilusão,

Matriz de todos os danos,

Forja de enganos,

De em relação ao Mundo haver separação.

 

Movidas pela falsa solidão,

Procuram companhia e segurança

As vítimas que aquela ilusão

Alcança.

 

Algumas tentam obter

Segurança e amor

Através do poder.

 

No píncaro do poder, porém, é que é maior

Da solidão a dor.

 

 

1637 - Transformar

 

Transformar o mundo vão querer

Para deles às necessidades

Vir atender.

Assim, todavia, ao proceder,

Hão-de precaver-se contra as entidades

 

Que as tentativas lhes podem frustrar.

Ei-los então em postura competitiva,

O que nunca lhes irá propiciar

Com Deus a unidade viver definitiva.

 

Outros primeiro resgatar acreditam

A culpa para então o amor receber

E o apoio de Deus que concitam.

 

Jamais o consegue, naturalmente, quenquer:

A culpa é ilusão, qualquer amor a tolher.

 

 

1638 - Via

 

Alguns vivem convencidos

De que a via para Deus podem encontrar

Evitando a alegria, a festa dos sentidos,

Que seriam limites proibidos

Sexo, comer, dançar, beber, celebrar…

 

Não é máquina, porém,

Quem negar e reprimir todo o prazer?

De Deus não se afasta mais além,

Que é vitalidade, que é amor, que é ser?

 

Tudo é fruto da mesma ilusão

De relativamente ao divino

Vivermos em separação.

 

Desta culpa a ilusão sela o destino

De qualquer sinal de Deus tornar clandestino.

 

 

1639 - Obstáculos

 

Quanto mais se avança

Maiores obstáculos advêm.

A frustração no mundo externo entrança

Bloqueios do interior à dança

Que nos sustém.

 

Qualquer um adoece,

Descontente com a vida,

E enfraquece

Em igual medida.

 

Partirá desesperado

Em busca de solução

Para tal fado.

 

No mundo externo, porém, não há portão,

Dentro em cada qual é que todos estão.

 

 

1640 - Turbina

 

O que a autodescoberta

Fomenta,

Turbina a acelerar, desperta,

Da energia a fonte aberta,

Alimenta

 

Mas não substitui a vida em si.

Aumenta a vitalidade e compreensão,

Não serve de alibi

À falta de convívio, de pés no chão.

 

A iluminação não é alcançada

Pela dieta correcta, a atitude certa,

A meditação praticada…

 

Estamos na terra para viver a vida alerta,

Já que a iluminação é um dom com hora incerta.

 

 

1641 - Parte

 

Faz parte de mim entusiasmar-me

Com o que o dia-a-dia me oferta,

Sem da realidade afastar-me

Nem nela me prender, que me aperta.

 

Mergulhar profundamente

No que me é dado viver

Permite-me ultrapassá-lo, de repente,

Para outra dimensão qualquer,

 

Ir aprendendo a olhar, deste plano,

Para mais longe e mais alto

Que o quotidiano

 

A que não falto,

Mas de cuja estreiteza o dano

Definitivamente salto.

 

 

1642 - Inúteis

 

Existem inúteis medos,

Fobias, de terror crises,

Que nos entortam os dedos,

Nos arrancam as raízes.

 

Alguns medos, porém, todos

Temos direito de tê-los.

É mesmo o melhor dos modos

De ter de coragem selos.

 

É não ter medo do medo

Que temos: só percebendo

Porque é que temos o tredo

 

É que vamos aprendendo,

Da vida ao correr da viagem,

A transformá-lo em coragem.

 

 

1643 - Chão

 

Somos nós os que criamos

O nosso próprio universo,

O chão onde remontamos

Da realidade os tramos

Com o desenho mais terso.

 

Ora, o controlo total

Só sobre minha atitude

É que o terei, afinal.

O termo, o gesto a que grude

 

Provocam uma cadeia:

Se eu agir com harmonia,

De amor crio a onda cheia.

 

Se o mundo mudar queria,

Meu gesto é que mudaria.