DÉCIMO TERCEIRO TROVÁRIO
AQUI CHEGADO, SONETOS E TROVÁRIOS SÃO PROJECTOS
Escolha ao acaso um número entre1526 e 1643, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1526 - Aqui chegado, sonetos e trovários são projectos
Aqui chegado, sonetos e trovários são projectos
Que em todos os pendores perfilam
Realidade e sonho, normas e afectos
Sob cujos tectos
As derrotas se obnubilam.
Em todos os vectores
É o tegumento da vida que mordes
Nos sabores
E nos acordes.
São erguidas bandeiras
No horizonte
De que dos longes te abeiras.
São a inesgotável fonte
Do que de mim a mim faz sempre a ponte.
1527 - Pensa
Apesar de numerosos
Terra além, aqui, ali,
Cada qual só pensa em si.
Vêm dos outros os gozos,
Para nos alimentarmos,
Para também nos vestirmos,
Para da fama fruirmos,
Para trabalho arranjarmos…
E depois consideramos
Os outros como inimigos,
Embora no imo estejamos
Ligados pelos umbigos.
Isto que será senão
Connosco contradição?
1528 - Redes
As redes que se jogaram
Às águas para pescar
Por que é que se retiraram?
Foi por amor, se calhar.
Cobranças que se não cobram
Quando eram de receber
Por que é que tais em nós obram?
É por um amor qualquer.
Um amor de tal feição
Não pode por inimigo
Ter a Deus, na ocasião,
Nem Deus vê nele perigo:
Seja qual for dele a forma,
Nem que seja contra a norma.
1529 - Cuidado
Cuidado com os que esperam
Que os filhos não vão passar
A adversidade que houveram
Eles antes de aguentar.
É que foi a adversidade
Que de nós fez sempre aquilo
Que somos em nossa idade,
De vida este humor tranquilo.
Podemos em desvantagem
Pô-los de muita maneira
E uma delas é, quando agem,
Terem só vida lanceira:
- É que leva a atrofiar
Não ter tido de lutar.
1530 - Parece
Parece que tu te encontras
Do lado externo de tudo,
Sem vibrar olhando as montras,
Os mais sem ver amiúdo,
Sem sentir como eles sentem,
Sem olhar como eles olham…
Todos, parece, consentem
Em dançar, todos acolhem
Os pés musicais na pista,
Mas tu ficas lá sentado,
A passar tudo em revista,
Sempre a olhar, posto de lado.
Como é que a vida um acerto
Te oferta num tal deserto?
1531 - Evento
A vida há-de ser apenas
Qualquer evento aceitar
Tal como se apresentar,
Tentar resolver as cenas
O melhor que for viável
E aguardar então que a sorte
Não nos falhe, indesejável.
Que aquilo que mais importe
Seja tentar proceder
O mais acertadamente
Que nos caiba no poder,
Tão bem quanto este demente
Mundo estúpido o permita.
- E eis o que nos dita a dita.
1532 - Adormecidas
Ao ir a meu lado oposto
Forças e tensões evoco
Adormecidas com rosto
Que então dentro de mim toco,
Dentro da minha energia.
Desperto-as então e as gasto:
Tensões aumentar iria
Se lhes não tocara o pasto.
Minha força bloqueavam
De tal forma que atrair
Uma perda ainda acabavam
Ao explodir a seguir.
Assim tomo-lhes o freio
E à rédea as trago ao meu seio.
1533 - Uno
Uno estar será já não
Distinguir nem escolher:
É viver sem restrição
O que houver para viver,
Ir em frente para onde
Nós tivermos de seguir,
Onde a unidade responde
Em vez do que dividir.
Ser uno é vivenciar
O Todo em cada parcela
Sem nenhuma rejeitar,
Nenhuma, no que for ela,
Até o Todo conseguir
Dentro e fora construir.
1534 - Cuida
Cuida que os dias passem devagar,
Aproveita a visão para aprender.
Deixa planar teu imo a meditar,
Mais não vás que feliz te recolher.
Aproveita, desfruta a tua vida,
Aqui em baixo vive, vive inteiro.
O tempo das mudanças nos convida
A grandes almas ter, livre viveiro.
Lá não vamos, porém, antes do tempo.
A vida saboreia que escolheste,
Prepara os grandes voos a destempo,
Que eles virão depois, no vento agreste.
Prepara-te tostando ao sol da praia,
Que a jornada virá, mal o sol caia.
1535 - Angústia
A angústia sempre vai continuar
E vai aumentar sempre o desconforto,
A não ser que descubras disto a par
Que tudo, patamar a patamar,
Faz parte do processo de a bom porto
Levar a Humanidade a evoluir.
Que tudo tem seu tempo e que o que é feito
Ao que o Cosmos almeja presta preito:
Qualquer que seja o rumo, é sempre a ir.
Que entendas que o trabalho nunca acaba,
Nunca chegamos lá, tal não existe,
Que eterno para a luz tudo desaba.
Hás-de morrer um dia e jamais viste
Fim, que o labor eterno é o que persiste.
1536 - Materialista
Porque é materialista a mais o mundo,
Para o céu ninguém olha, apenas olham
O reconhecimento que, facundo,
Um acto em recompensa tem por fundo.
Se morrem, isto faz que não acolham
(Que o não sabem) olhar para as alturas,
No céu não logram ver a luz que houver,
Íman para as guiar sem sinecuras.
Deambulam pela terra sem saber
Afinal, o que buscam: a luz, de alta,
Não a conseguem ver. Quem se elevar
É que luz mais que os mais traz à ribalta.
Então a febril alma há-de encostar
A quem lume algum tem a partilhar.
1537 - Zero
O zero infindo que morar no sofrimento,
Nada e vazio, é finalmente preparado
A receber uma energia com alento,
A luz, fulgor sofisticado, alor do vento:
É nesta altura que a energia do ser dado
Toca a energia que é do céu, fonte primeira:
Aí ocorre a mutação que é radical,
É nesta perda por inteiro que lá inteira
Ocorre a troca que será fundamental.
Em tal altura é que a luz entra então deveras,
Tudo começa verdadeiro a ter sentido:
Tudo o que tinhas já não é, e o novo esperas.
A consciência agora aceita o inatendido
E não apenas o que quer do que é vivido.
1538 - Limpa
A consciência esvaziada a funcionar
Principiou, começa agora a receber,
Coisa que o ego, antes de a luz iluminar,
Este ego sempre se recusa a operar,
Inchado inteiro com o plano a ter de ser.
É nesta altura que acontecem as catarses,
Naquele zero que, absoluto, nada tem,
No fundo caos, no não-medo sem disfarces.
Isto ocorrido, então depois, sendo também
Que balizado tudo fica dentro em mim,
Começa breve um novo trilho a se mostrar,
Com outros rumos e valores, outro fim:
E principia, ao mesmo tempo, vindo atrás,
O itinerário em que me sinto mesmo em paz.
1539 - Escapar
Para escapar ao sofrimento a Humanidade
Usa de Cristo o sofrimento: é coisa alheia.
Um sofredor à confiança persuade,
Tal se quem sofre carreara mais verdade
Que quem feliz se confirmara de mão cheia.
Tudo por medo, medo até de ser feliz:
Quando felizes, logo cremos nalgo errado.
Não confiamos na abundância em todo o lado
E ganho o céu se da alegria me desfiz.
Ora, quem sofre inflige a si mal com dureza,
Em derradeiro se coloca e não é isto
Que o sofrimento alcançar deve com presteza:
É uma revolta que extirpar devera o quisto
E a nova terra edificar em paz que avisto.
1540 - Encadeado
Uma dor incompreendida
É memória inconsciente
Dum determinismo em vida,
Encadeado, de seguida,
Detrás até ao presente.
A dor que não aceitei
Torna sempre, reencarnada,
Até se lhe aceitar a lei,
Ser limpa de vez a estrada.
Não fujas do que te vem
Naturalmente no dia:
Vive a dor e a festa bem!
Se a dor vives e a superas
Não volta mais pelas eras.
1541 - Mudança
A mudança é a rainha da alquimia,
Na mudança é que tudo se transforma,
Redefine, mistura noutra via
Com possibilidades de magia
Num leque muito vasto, além da norma.
Se não tiverem medo os povos todos,
(E o medo é o que mais todos atrapalha),
Vão conseguir sentir escolha e modos,
Melhor a cada qual o que é que calha.
No campo material e espiritual
Importa conciliar: o coração
Sente, a mente analisa e dá o aval.
Hoje em dia ao contrário todos vão:
Só sinto ao me a cabeça ofertar chão.
1542 - Clarividentes
Todos temos o poder de ler os dados
Como são, clarividentes, desprendidos,
Na harmonia do que é útil fecundados.
Sempre sabe cada qual que passos dados
Do caminho são que deve ter medidos.
Quando nascem todos são, porém, jogados
Para um poço de terror intransponível.
Se ao evento inesperado confrontados,
Ao incógnito de rosto inexprimível,
Em lugar de se deixar ir na corrente,
Disparado é logo o filtro de tal medo:
Nada fica como dantes, tudo é doente.
Desfocado finda tudo no arremedo,
A energia já não flui e ao peso cedo.
1543 - Filtro
Quem nos destrói o filtro vil do medo?
Ninguém o logra, mas aqui se molda:
Quão mais trepares para cima cedo,
Quanto mais alto te ligares, ledo,
Menos teu pé no chão de cá se solda,
Menos raízes tens prendendo à terra.
O medo está na terra que te agarra:
Quem levitar um palmo acima a garra
Do chão se solta e nenhum medo o ferra.
É voar fora dum alcance estreito,
Trepar ao céu e olhar do infindo o nada
Que aqui nos prende de afogado em leito.
É só elevar-nos e fenece à entrada
O medo que nos tolhe na jornada.
1544 - Trabalho-a
Quando a dor vem, eu aceito,
Trabalho-a, deixo doer.
Quando o medo vem e o peito
Me garrota, nem o jeito
De o disfarçar vou querer,
Não fujo para o cinema
Nem saio com os amigos:
De perder da vida a gema
Tremo mas sofro os perigos.
Quando a tristeza me advém
Eu apenas fico aqui,
Pisando por ela além…
-Mas por que é que o trilho em si
Fere como nunca vi?
1545 - Águias
As águias longevidade
De anos setenta terão,
Mas aos quarenta, em verdade,
Terão a necessidade
Duma dura decisão.
É que aqui as unhas ficam
Compridas, frágeis demais
Para a presa a que se aplicam
Prenderem em anos tais.
O bico se encurva ao peito
E as asas, de tão pesadas,
Perdem para o voo o jeito…
- Morro então se renovadas
Não forjo armas das finadas.
1546 - Meia
As águias na meia vida
Fazem a renovação
Trepando à montanha erguida,
Buscando um ninho à medida
Encostado a um paredão.
Com o bico na parede
Batem até o arrancar.
Com um novo as unhas, vede,
Tiram sem tergiversar.
Removem, por fim, as penas.
Após seis meses de dor
Retornam de outrora às cenas.
- Na vida é de nos propor
O custo do inovador.
1547 - Resguardar-nos
Em nossa vida muitas vezes temos
De resguardar-nos algum tempo e então
Urge pegar com nossas mãos nos remos
E começar a pesquisar extremos
Do longo rio de inovar o chão.
Para vogar desprenderei de ideias,
Conceitos mil, de tradições, lembranças
Que dor causaram e de perda cheias.
Somente livre das pesadas franças
De antanho posso aproveitar o efeito
Da inovação que novas plantas traz.
Do peso antigo libertado, o jeito
Terei de abrir-me a algum perfil capaz
De vida haurir numa colheita em paz.
1548 - Bêbado
O bêbado precisa de aceitar
A sensibilidade que ele tem.
É tamanha que o leva a se afastar
Do mundo em que não quer participar,
Pretende levitar de tudo além.
Quereria voar, subir ao céu,
Ver, abrindo o canal, nova entidade
Cósmica desvelada de seu véu,
Quer sonhar e quer crer que, de verdade,
Vale a pena esta vida, fazer planos
E quer vir a poder vê-los crescer…
Sente tanto que murcha dos enganos.
- A si próprio ajuda-o a querer:
Que beba a vida nova que vier.
1549 - Compreender
Quando o homem compreender
Deveras do céu a lógica,
Vê no que andar a fazer
Que simples é o guião a ter
Como é falsa e demagógica
A lógica habitual
Que já não serve à vivência.
- Então começa, afinal,
A andar com nova valência.
Para tal nos vem a perda:
Para que errada entendamos
A razão que detrás se herda.
A perda faz que tenhamos
Outra ter com que ganhamos.
1550 - Perda
Da perda os homens precisam:
Ela apenas perceber
Pode fazer que o que visam
As lesões é que enfatizam,
Que outro rumo é de empreender.
O mundo material
É de repensá-lo inteiro,
Programar outro carreiro
Mais unido, universal:
Sem um sistema dual,
Sem os contrários fendidos,
Sem a corrida humanal
A lutar por escolhidos
Contra os que são preteridos.
1551 - Dual
Todo o dual tem um contrário,
Se há um contrário, quer escolha,
Se há que escolher, arbitrário,
Terá de julgar, sumário,
Não há síntese que acolha.
Toda a vez que nós julgamos
Rejeitamos um dos lados:
Um do outro separados,
Tudo desarmonizamos.
Desarmonizo a matéria,
Toda a perda então enfuno
Quando a divisão é séria.
Se os dois lados não coaduno,
Que perda até ficar uno!
1552 - Fará
Ninguém o fará por mal,
Mas pior não há que alguém
Que de auto-estima o sinal,
A glória individual,
Da vida doutrem retém.
Quanto mais alguém precisa
Doutrem para se encontrar,
Ao seu Eu, onde enraíza,
Mais vai desenergizar.
Se outrem quer para julgá-lo,
Perdeu a própria energia,
De si se alheia no abalo.
E a doença principia
No buraco que anuncia.
1553 - Culpa
A culpa tem-na quem foi ajudado,
Quem é levado pela conjuntura
A agradecer o nunca deprecado,
Que a ver com ele nada, doutro lado,
Terá por fim, por vir doutra figura.
Pois martiriza-se ao cuidar que não
Correspondeu ao gesto que ajudou:
Eis como o intuito de ajudar ao chão
Esmaga alguém que grato ser tentou.
Quando o ajudado já só culpa sente,
Por vezes faz o que é-lhe aconselhado
E corre mal o intento, de repente,
Não dará conta do solicitado:
- É vida doutrem que lhe corre ao lado.
1554 - Ajuda
Uma ajuda corre mal
Se a energia da pessoa
Ajudada, enquanto tal,
Não confere como igual
Com a da que a ajuda à toa.
Corre mal, que a solução
De meus problemas é dentro
De mim que tem o portão,
Não doutro onde jamais entro.
A culpa sempre obedece,
Por medo de recusar
O que as pegadas lhe empece.
É por isto errado andar
Que corre mal ajudar.
1555 - Requer
Em perda quem estiver
Como quem tem um problema,
Requer, para o resolver,
A energia que tiver
Por si próprio como lema.
E limpo terá de estar,
De espírito positivo.
Que o deixem utilizar
A lógica que o tem vivo.
O problema dum não pode
Na lógica resolver-se
Doutro qualquer que lhe acode.
Ajudar é que outrem verse
A raiz que em si converse.
1556 - Foges
Tu foges da própria vida
Ao ir ajudar alguém,
Se é mais fácil resolvida
Ver doutrem a dor ferida
Que a que em ti próprio te tem.
É que outrem merece pena
E tu pões-te aqui na altura,
Mais te vendo ante a pequena
Coisa que ele é na figura.
Ajudo e então me distraio
E mostro como sou bom,
Doutrem bom conceito atraio.
Mas só Deus julga: em meu tom
De ser Deus me arrogo o dom.
1557 - Sinto
Quando não estou centrado
Em minha vida, a agressão
Sinto do que me for dado
De fora e nunca gerado
De meu imo na impulsão.
Todos em redor requerem
De nós o que adorariam
De nossas vidas fazerem
E em vez de nós tal aviam.
Todos querem ajudar
O coitadinho, com pena.
Se a tal não sou similar,
Invade e rasga-me a cena
Toda esta gente pequena.
1558 - Invadem
Invadem a nossa vida
Com as próprias opiniões,
Na perspectiva mentida
De que sabem a medida
Melhor de nossas funções.
Querem que façamos tudo
Conforme tais instruções.
Pretendem-me sempre mudo,
Mexem eles meus botões.
Eles vão manipular
Afinal, a nossa vida.
Depois, o mais singular
É que ver agradecida
Querem a invasão sofrida.
1559 - Estratégia
Nem sempre tudo faremos
Do que quiserem de nós,
Nem sempre concordaremos
Com a estratégia que vemos
Por eles moldada após.
Nem sempre quero que os mais
Resolvam os meus problemas,
Nem agradeço que os tais
Me invadam em meus dilemas
Com suas próprias certezas.
Pior, se num caos vivem,
Da infelicidade presas.
A ajuda encobre o que esquivem:
- Buscam vanglórias que arquivem.
1560 - Bebé
Primeiro o bebé nasce e logo ei-lo culpado
De tudo o que acontece: quando algo de mal
Em redor dele ocorre, um pendor há tão grado
A culpabilizar-se que, por todo o lado,
Apazigua tudo, atento e serviçal.
Vida própria não tem, precisa de outrem ver
Que fica bem antes de bem ficar por si,
O mundo inteiro em ordem antes de sequer
Poder ir descansar. Com tanto frenesi
Que nos sufoca a todos de preocupação:
Sentimos desconforto de ter de andar bem
Para então bem andar quem nos aplana o chão.
E daí maior culpa lhe impomos também
E o cerco continua, tudo ao fim refém.
1561 - Agarra
Tem medo de perder e então que faz?
Agarra, agarra tudo: os indivíduos,
Os materiais bens que o ganho traz…
Quanto mais se agarrar mais dele atrás
Vai arrastando pesos desmedidos
Do sistema de opostos a um dos lados.
Eu não devo julgar nem escolher
Do mundo entre os pendores, que os vetados
Dentre os medos virão para os viver.
O contrário de ter será perder:
Então a perda vem, num desafio,
De tanto a me escapar ainda me ver.
Se o medo de perder da vida é o fio,
Então atraio a perda em longo rio.
1562 - Odeia
Alguém odeia o mundo, colhe-o doutras vidas,
Desde o berço rejeita tudo o que o rodeia,
Confronta-se, entra em choque. Em redor, comovidas
Tudo para agradar-lhe irão fazer, rendidas,
As pessoas que o ódio combale e permeia.
Mas ele não acolhe este amor que lhe toca,
Cada vez mais arisco e dividido fica,
Rejeita o mundo inteiro que ao ódio convoca.
Aos poucos cada qual se afasta, o amor aplica
A quem de devolver mais capaz é o amor.
Aquele mais e mais há-de findar sozinho
Mais ataca e mais todos afasta em redor.
Quem se pautar por ódio, de ódio tece o ninho,
Quanto mais o semeia, mais dele é vizinho.
1563 - Sofre
Alguém que sofre muito, por tudo e por nada,
E que não visa nada, não vai para a frente,
Vontade de ajudar noutrem suscita grada,
Mas não a aceita nunca, pois julga de entrada
Que mérito não tem para tal precedente.
Apesar de andar sempre a pedir desalmado
Não consegue sair donde está prisioneiro.
Tem pena dele próprio, não se crê julgado
Merecedor de livre se achar do atoleiro.
Vive com isso e bem, com tanto sofrimento
Muita atenção dos mais há-de atrair, enfim,
Até que estes se cansam, ninguém fica atento.
Se eu tiver de mim pena, pena atraio a mim,
O que vai volta sempre e nunca mais tem fim.
1564 - Protótipo
O protótipo do adulto,
Limpo, esclarecido, tem
Alguns valores de culto
De elitismo bem estulto
Que ao humano não convêm.
É que os contrários na terra
Causam desapontamentos:
Tudo se rege e se aferra
Em inversos elementos.
É o bem contraste do mal,
Humano, do desumano,
Luz das trevas, por igual…
No contraste não me engano,
Frente e avesso, é todo o pano.
1565 - Duas
Há duas forças contrárias
Em nós em luta constante,
Emoção-mente primárias,
Coração de pistas várias,
Raciocínio olhando adiante.
Lutamos interiormente
Contrários a harmonizar
Mas a educação nos mente,
É escolher e rejeitar.
Requer dum o afastamento,
Tudo se desarmoniza,
Desequilibra no intento.
A rejeição que isto visa
Nunca mais nos totaliza.
1566 - Entre
Entre o coração e a mente,
Um pior, outra melhor,
Querem que eu a escolha tente
Que não ajuda quem sente,
É fraco quem por lá for.
Só quem usar a cabeça
Deveras é inteligente,
Este é que jamais tropeça
E na vida segue em frente.
Quantos, porém, não acertam
Na vida com a razão,
Quando amor nunca despertam?
O sinal disto é o guião
Da vida: a insatisfação.
1567 - Troca-me
A linguagem da emoção
É das almas a linguagem:
O grau de insatisfação
Que sinto no coração
Troca-me de vez a imagem.
Meu imo não é feliz
Mesmo se a mente diz bem,
Só porque a razão condiz.
Outro mundo há para além:
Só vives se algo te agrada
No contraste com o inverso
Que venceste em tua estrada.
E é quando infeliz converso
Que de ser feliz eu verso.
1568 - Ego
O ego é poder, resistência,
O ego é guerra e salvaguarda,
Quatro pedras de evidência
Que constituem a essência
De má vida a montar guarda.
Primeiro um ego é poder,
Ser mais bonito, mais rico,
Ter mais quem reconhecer,
Mais reino onde pontifico…
Necessidade de ser
E de ser mais do que os mais
É vontade de poder.
- Em troca de laços reais,
Só isolamentos letais.
1569 - Garantir
Um ego faz resistência:
Se algo houver que funciona,
Ninguém lhe muda a existência,
A garantir a valência
Do bem que proporciona.
O problema é, se apesar
Da vida boa que der,
Deprimido se ficar,
De ineficaz tudo ser.
Cuida que não faz sofrer
Teu ego, que não tens medo,
Que não te leva a perder.
Dor, medo e perda - eis o credo
Com que te leva ao degredo.
1570 - Insistes
O problema é que apesar
Dos esforços do teu ego,
Tu insistes em deixar
O teu coração falar,
Mudar para um outro apego.
Teu ego então te resiste,
Com o medo de perder
E o sofrimento que existe
Numa mudança qualquer.
Nos medos de que mais foges
Ganha a batalha da vida,
Faz que no ego mais te alojes.
Só que a dor que assim te elida
A maior dor te convida.
1571 - Defendes-te
Medo do desconhecido
Se tens, como do amanhã,
Da ideia nova e sentido,
Do ramo reverdecido,
- Defendes-te com afã.
Nunca te expões mas te escondes
Numa máscara falseada,
É atrás de ti que respondes,
Dum tu de face inventada.
Reténs o velho, não te abres
A novos mundos, conceitos,
À defesa com mil sabres.
De feliz crês nisto os jeitos
E à dor só são mesmo atreitos.
1572 - Guerra
Ter a guerra como certa
É de jogar à defesa
Justificação esperta:
O ego sempre se acoberta
Do sol, chuva, da tristeza…
Se o mundo é mau, o melhor
Então é fugir do mundo:
O ego livra do temor,
Crê-se cumprindo, fecundo.
Não nos deixa conectar
Com o imo. Mas ser feliz
Não vem doutro caminhar:
Só no imo achas a matriz
Do porvir de teu cariz.
1573 - Desenvolve
Desde sempre o ser humano
Desenvolve uma estadia
Mais fecunda de ano em ano,
Duma geração o arcano
Dando a outra em melhoria:
Vive mais e mais aprende.
Seria de acreditar
Que em desenvolver-se rende
Igual no espírito a par.
Porém, não ocorre tal:
Os antigos aos céus iam,
Hoje a poucos isto vale.
Os cultos hoje desviam
Da raiz donde irradiam.
1574 - Culto
O culto da inteligência
Para tudo é meio passo.
Premiamos com urgência
Quem dela trepa à eminência,
Cientista, inventor colaço…
O culto da inteligência
Vem matando a humanidade:
Quão maior a refulgência
Mais murcha a interioridade.
A inteligência não chega,
Aniquilou o melhor
Dos recursos que ela nega:
Do sentimento o calor,
A emoção que gera o amor.
1575 - Órgão
Órgão vira o coração
Que se estuda, que se opera…
Desistiram da emoção,
De sentir os pés no chão,
A clínica é que lidera.
Eis como o intelecto tapa,
Como obstrui, mata e perfura
A vivência com a capa
Da matéria que ali cura.
Ninguém convida a sentir,
Mas sentir é a comunhão,
Coração e alma a se unir.
Ele ao Todo dá fusão
E o código é o coração.
1576 - Vivenciar
A missão do ser humano
É vivenciar os opostos
Da matéria em qualquer plano:
Mente e coração, sem dano,
Pensar e sentir os gostos,
Racional-emocional…
Bem difícil de vencer
Vai ser duelo que tal,
Sempre às turras em quenquer.
Nunca conjugar os dois
Logramos na perfeição:
Quem manda, quem ganha, pois?
- De hoje a pior condenação
É que mato o coração.
1577 - Irresponsáveis
Irresponsáveis, loucos, despropositados,
Como irrealistas são os que do coração
Pretenderem viver: os bem intencionados
Juntam-se a convencer os jovens descuidados
Deles a esquecer sonhos, que a terra é que é chão.
O caminho espedaçam que o coração dita:
"Se tu vais por aí, repara, irás sofrer,
Qual vida para ti!" Quando um sonho palpita
Logo um frustrado advém, o trilho a interromper.
Dele o sonho seguir não conseguiu, portanto,
Não suporta que alguém possa seguir o seu:
Jamais a inteligência empolada foi tanto.
A inteligência a lógica quer e teceu,
Lógica o coração não tem nem a pediu.
1578 - Ilógico
O que é ilógico não presta,
Só serve o que a mente entenda
- É o que ensina a quem se apresta
A cultura que nos resta,
Sem ver quanto nos ofenda.
Quem acorda triste um dia,
(Sonhou com a mãe defunta)
Quer chorar em demasia,
É o que o coração lhe assunta.
Só no fim da dor há paz:
Ele devia chorar
Até dor não ter atrás.
Mas não, tem de ir trabalhar,
- Vida contra si trilhar!
1579 - Lógica
Não tem lógica a tristeza
Que súbita atinge alguém.
Como apenas razão preza
Quem na vida nada lesa,
Logo o choro enxuga bem:
"Ainda bem que inteligente
Sou e que uso da cabeça
E não caio, de repente,
Numa estéril dor à peça!"
Mesmo prontas a sair
Ficam tristezas à espera,
Juntam-se às mais sem porvir,
Morre de lógica a era,
Não tem realidade vera.
1580 - Bloqueio
A tristeza acumulada
É bloqueio emocional.
A lágrima não chorada,
De a nao sentir, camuflada,
Um dia devém letal.
Ninguém já se ergue da cama
E não acha graça a nada,
Só quer morrer, fim do drama,
É a depressão consumada.
Tristeza que não saiu
Fica, amplia, toma tudo.
Quando a lógica morreu,
Que fazem do espinho agudo?
- A mezinha mata-o mudo!...
1581 - Remédios
A razão remédios cria,
Em utilizá-los teima.
Quem tem fé, tem companhia,
Chora a dor de cada dia,
A luz virá sem dar freima.
Quem tem fé nunca está só,
A vida tem vários planos,
Farinha faz muita mó,
É o que minimiza os danos.
Quem não tem fé fica em si,
Julga que sabe e que pode,
Tem um ego imenso ali
E a mente a emoção sacode:
- Sem saída, a perda acode.
1582 - Linguagem
A razão a compreender
A fala do coração,
Os afectos de quenquer,
Mente a melhor atender
De sentir a profusão,
- Completa a harmonização
De opostos do ser humano,
Entre intelecto e afeição.
De harmonia neste plano
Tudo passa a ter sentido:
É a lógica dos afectos,
A abundância do vivido.
Mente é só de homem ter tectos,
O amor são do Infindo aspectos.
1583 - Mantém
Como se mantém o amor?
Pega um punhado de areia
E fecha a mão com furor:
Vazia fica a mão cheia.
E, se abres completamente,
Logo o vento, ao grão que resta,
O levará na corrente,
Nada te dá nem te empresta.
Mas, se a mão semi-abeta
Manténs como uma colher,
Proteges a areia certa,
Já não te escapa a escorrer.
É assim que se faz durar
Um amor que é de ficar.
1584 - Adultos
Adultos, vós tudo fareis
Para matardes nossos sonhos.
De tão amargos, sois cruéis,
Práticos, ásperos, medonhos.
Assumis ares de eficiência,
Sabedoria, e vos julgais
O sal da terra e, de experiência
Vivendo em nome, então falais,
Dela, da idade e o mais que calha…
E, ao fim e ao cabo, o que fazeis
É só matar, já que atrapalha,
Toda a poesia que encontreis.
Tornais a terra estéril, fria
Do belo e bom: morre a magia.
1585 - Ajudar
Quem é bom samaritano
Não se faz de esquisitices
Com o que ajuda no dano.
A vítima das sandices
Apoia que vier no vento,
A de aspecto divergente,
A que não entende o intento…
Enfrenta o medo cogente
Dos que vivem pelas franjas,
Em locais onde não vai,
Perdidos de vez das granjas.
Bom samaritano sai
E ajuda, em tudo o que visa,
Seja quem for que precisa.
1586 - Alto
Quando no alto da montanha
Os pés ponho, lavro a lei,
Sinto-me como quem ganha,
Sinto-me tal como um rei.
Mas no louro realengo
O homem domina a mulher,
Por poder devém mostrengo
Insensível a quenquer,
Ébrio de realeza
Calca, esmaga os que em caminho
Se lhe cruzam à defesa
Pior que se se encharca em vinho.
E o que fora exaltação
É, no fim, condenação.
1587 - Estranho
Estranho bem lamentável
É que o que, em nossa fraqueza,
Cuidamos a mais louvável
Das afeições, mais fiável,
De nós possa fazer presa,
Ser ao fim uma armadilha,
Ratoeira a nossos pés.
O cru brilha então talvez
E o puro ali se envencilha.
Ora, o dom do amor de mãe,
O dum pai por filho dele,
Se este não educam bem,
Não afaga em brisa a pele,
É um tufão que os atropele.
1588 - Muda
Tudo muda e o esquecemos.
Cuidamos que cada dia
Vai ser o mesmo que houvemos,
Que ao lar onde repousemos
Cada pegada nos guia.
Buscamos a segurança
E às vezes irremediável
É deveras a mudança:
No doente inevitável,
Ao morrer quem mais nos toca…
Então vemos o passado
Quão feliz se nos coloca:
E em tal era sem cuidado
Vivo o melhor de meu fado.
1589 - Passageiro
Do passageiro indo a par,
Por vezes os dados mudam
E só nos resta arranjar
A maneira de mudar
Com o que eles em nós grudam.
Se não quero acompanhar
A muda, se tudo muda
Sempre em redor de lugar,
O mal é doença aguda.
Portanto, não sendo eu
Acostumado à aventura,
Nela lavro solo meu
Porque mudo a conjuntura
E mudo eu no que me augura.
1590 - Solidão
Quando é que me hei-de retirar
Na solidão, sem companheiros,
Sem alegria que contar
Nem a tristeza que ande a par,
Com a certeza de os luzeiros
Que em mente tenho serem sonhos?
Com meus farrapos, sem desejos,
Quando levar os meus harpejos
Do monte ao cume dos medronhos?
Quando é que, vendo que o meu corpo
É doença apenas que em empesta,
Velhice e morte que me encorpo,
Livre, sem medo, sempre em festa,
Fôlego tomo na floresta?
1591 - Desmoronar-se
Desmoronar-se sei que vai,
Porém não sei o que irá ser,
Sobre as ruínas, cai não cai,
Edificado, pois não sai
De entulho o paço de quenquer.
Isto ninguém pode sabê-lo
Com a certeza da evidência.
O velho mundo táctil, belo,
Palpável, sólido, é existência,
Com ele luto a cada instante.
O do futuro não nasceu,
É imperceptível, hesitante
Luz de que o sonho se teceu
Que os ventos batem que há no céu.
1592 - Sentirei
Enquanto a felicidade
Eu viver, dificilmente
A sentirei de verdade.
Se findou, não for presente,
É que olhamos para trás
E sentimos, de repente,
Com surpresa acaso, aliás,
Que bom foi o tempo ausente.
É que a doçura do mel
À primeira colherada
É que a sentimos na boca.
À segunda, o sabor dele
Já não saboreia nada
A língua que feliz toca.
1593 - Noitinha
O prazer da refeição:
À noitinha acendo o lume,
Cozinho no meu fogão
E atingimos logo o cume.
Comer e beber assume,
Mais conversar ao serão,
O inefável que resume
Duma festa a animação.
Entendo, enfim, que comer
É também espiritual,
Que a carne, o pão e o vinho
Matéria-prima vão ser
De que é gerado, afinal,
O espírito em meu cadinho.
1594 - Ensinar
Ensinar a pele toda
A gozar, a compreender,
Descobrir, correr à roda,
Lutar, nadar e colher
O trigo, a fruta da boda,
Cavalgar, remar se houver
Lago, mar, o que me engoda,
- Meu imo de carne encher
E encher minha carne de alma
Reconciliaria em mim,
Finalmente, em paz e calma,
Inimigos milenares:
Alma e carne, cujo fim
É serem Eu, em meus lares.
1595 - Simples
Sinto que a felicidade
É simples coisa e frugal:
Um vinho que nos agrade,
Uma castanha banal,
Um lume a aquentar real,
Do mar rumor que me invade…
Nada mais, é o principal,
É tudo simplicidade.
E para sentir que tudo
Isto é que é viver feliz,
Sem nada de façanhudo,
Bastará ter, afinal,
Um coração de raiz
Que simples seja e frugal.
1596 - Prenhes
Prenhes de tristeza são as horas
De molinha fina, voluptuosa.
Voltam ao espírito, a desoras,
As recordações que mal decoras
Enterradas lá, lama amargosa,
- As separações de amigos velhos,
Apagados risos de mulheres,
Esperanças vãs que, pelos quelhos,
Perderam as asas dos quereres,
Borboletas lindas de que resta
O verme enquistado a andar no escuro.
E o verme pousado está na cesta
De meu coração em que rói duro
As folhas viris onde me apuro.
1597 - Alegria
A minha alegria é grande
Porque é muito simples, feita
Do eterno que nos comande:
De ar puro, sol, mar, da sande
Do pão de trigo em colheita…
À noite, sentado à turca,
À minha frente, Sindbad
Fala marinho da urca,
Dilata o mundo que invade.
E, se a palavra não chega,
Levanta-se, salta e dança.
E, se não basta, então pega
Na viola e o trilo alcança
Mil almas que a vida entrança.
1598 - Ária
Quando ouvir ária selvagem,
Sinto-me então sufocar
Bruscamente com a imagem
De que da vida a viagem
É miserável, vulgar,
Indigna, afinal, dum homem.
Se for ária que é dorida,
Sinto que as vidas se somem,
Areia a escoar, delida,
Por entre os dedos e não
Há salvação nunca mais.
Vai e vem meu coração
De meu peito entre os varais,
Tecendo alegria entre ais.
1599 - Manda
Mesmo sendo um disparate,
Sem hesitar obedeço.
Por conta fica o dislate
De quem manda que eu acate
De cara alegre o tropeço.
E não é só no fazer,
Por igual é no pensar,
Se eu nunca a opor me atrever
A meu amo o que eu julgar.
Se tal for viver, porém,
Existir não é por certo.
A vida fácil devém
Sem responsabilidade,
Mas que sentido a persuade?
1600 - Beleza
A beleza exterior
Poderá sobressair
De imediato fulgor
Ao olhar observador
Que o fascínio distinguir.
Inteligência e paixão
Bastante mais atraentes
Com tempo se mostrarão
Que belezas refulgentes.
Levam bem mais que um instante
A decifrar e a beleza
Nada tem com tal quadrante.
A longo prazo o que pesa
É o que o coração mais preza.
1601 - Casamento
Num casamento qualquer
Há um equilíbrio subtil
Entre o que um quiser fazer
E o que o outro pretender.
Enquanto tal é o perfil
Ninguém vai sentir problema.
A dificuldade ocorre
Quando um corre por um lema
E o outro por outro corre.
Como em qualquer relação,
A precisão pessoal
É do parceiro a função
E a do outro por igual:
- Só o amor consegue tal.
1602 - Formas
Há mil formas de mostrar
Um amor sem ser comprando:
Um gesto é de sublinhar
Que amável se ali foi dando,
Reconhecer em conversa
Dum filho o ponto de vista,
Se uma descoberta versa
Se entusiasmar com tal pista,
As histórias dele ouvir
Da vida que for correndo…
- Ninguém paga de assim ir
Laços e afectos tecendo.
E a febre do consumismo
Já nos não lança no abismo.
1603 - Falsos
Se eu não disser a verdade
E construir falsos eus,
Ninguém, mesmo a quem agrade,
Consegue ou se persuade
A amar-me tais camafeus.
Portanto, a única forma
De ser deveras amado,
Aceite de vez por norma,
É ser tal qual sou formado.
Só dando-me a conhecer
É possível aceitar
Pela parte de quenquer
Quem sou neste meu lugar
Sem nem a mim me enganar.
1604 - Sobrecarregar
É talvez da natureza
Sobrecarregar com tudo
Quem tudo sofre em fraqueza,
De humilhado gesto mudo
Que indiferente se preza.
Não gostamos de provar
Sempre a nossa força à custa
De alguém ou do que calhar,
Sem ligar se a causa é justa?
A mais débil criatura,
O gaiato, há-de tocar
As campainhas que apura
Rua fora: é calcorrear
Um sonho com que acordar.
1605 - Estranho
Há muito quem desconfie
Dos próximos e se entregue
A um vago estranho que o guie.
Não há lucro que encarregue
De quem perto o desafie:
Patente o vazio de alma,
Este o julga sem bondade.
Mas ele do encómio palma
Quer vinda em profundidade.
Espera captar a estima
Do estranho que vier do acaso.
Quão mais perto alguém o anima
Menos o ama ou sonha, a prazo,
Os longes a que der azo.
1606 - Espelho
Se um espelho reflectir
Acto ou facto escandaloso,
O espelho quebro a seguir,
Volto as costas, vitorioso,
Ao acto ou facto de engulho,
Dou tudo por resolvido.
Resta o mesmo podre entulho,
Mas não tenho lá o sentido.
Assim é que no País
A chaga arrasto a cordel:
Questões sociais mais vis
Resolvo-as só no papel.
Dou tudo por encerrado:
- Fica igual em todo o lado.
1607 - Teatral
Que somos mais que aparências,
Teatral figuração,
Vaidade a agitar pendências
Que ao fim nem pendências são?
A fatal revolução
Do tempo em rápido curso,
Sem paragem, suspensão,
Tudo arrasta no percurso,
Afoga em profundidade
Na mais muda eternidade.
Tudo entra ali, nada sai,
Sempre a vitória ali cai
E mesmo os loiros mais sérios
Se afundam com os Impérios.
1608 - Sombras
Tudo no mundo sombras são que passam.
Agigantadas, as maiores são
As que mais duram, mas ao fim se vão,
Alguns instantes as, enfim, deslaçam.
Mil imortais objectos finge o ardor,
Deseja a fama com maior vaidade,
E a mesma aragem que seu ego invade
Lhe extingue a voz e lhe confunde o teor.
A permanência nunca vinga e muda,
É variável mesmo em pedra dura,
Gasta mais tempo só, no fim que augura,
Que noutro objecto de hora mais miúda.
Dizer podemos que se estão finando
Todas as coisas, mais que a ser estando.
1609 - Aceso
O valor guerreiro
Aceso em campanha
Num ermo é ligeiro,
Cobarde e sem sanha.
Falta-lhe ter alma
Se falta a vaidade,
O braço se acalma
Sem vigor que o fade,
Sem alento o peito.
Risco em que não há
Vaidade em proveito
Lembra à vida já
A provável sina:
- O horror da ruína.
1610 - Dúvida
Contra o nosso parecer
Nunca a dúvida é bastante,
Contra o dos mais, de quenquer,
Sempre a dúvida é constante.
A vaidade usa de engenho
Doirando o que vem de nós,
Reprovando com empenho
Doutrem o que vem após.
Deste engenho as produções
Têm qualquer criação:
Ninguém desdiz tais acções
Sem lhe repugnar, então.
Por isso é que proliferam:
- Vaidade é o que todos geram.
1611 - Decide
Em guerra decide a espada
O que em paz decide a pena:
Também corta esta à chegada
E ao corte todos condena.
Aflige com lentidão
Como se mistério fora,
A ser maior a lesão
É com vagar que demora:
Não parece a morte morte
Quando a morte enfim nos chega,
Mas quando se espera à sorte,
Chegando vai, mas se nega.
Da pena tal lentidão
À guerra é condenação.
1612 - Somente
Somente a vaidade sabe
Fumo emprestar de existência
A quanto nesta não cabe.
E duns nadas de excelência
Idólatras nos erige,
Quando corpo mais não têm
Que o que nosso modo exige
De os entender vida além.
A vaidade nos induz
A buscarmos estes nadas
Como meios de ser luz,
De nós sermos madrugadas,
Quando nem a natureza
Nem Deus distingue tal reza.
1613 - Governa
Não governa a regra o homem,
Este é que governa a regra.
Quem legisla não se integra
Na lei com que os mais se domem.
E não só o legislador
Mas os que estão junto dele:
As vantagens de senhor
Comunicam-se daquele
Até uma certa distância.
Depois é que a luz se apaga,
Para baixo não afaga
A espera de qualquer ânsia.
Morre nesta perversão
Do que é justo o senso e a mão.
1614 - Lonjura
A própria lonjura põe
Certas coisas bem mais perto:
O que escondemos supõe
Que o mostremos mais, por certo.
O recato e a modéstia
Mais chamam do que desviam,
Convidam da luz à réstia,
Nada afasta o que encobriam.
O mesmo é cobrir o rosto
Do que incitar mil vontades
De o descobrir, tal o gosto
Do escondido atrás de grades
Que nos move a vida inteira:
É o mistério nossa leira.
1615 - Explicação
Aquilo que não tem nada
Que lhe seja semelhante
Fica sozinho, de entrada,
Sem explicação bastante.
É o que ocorre com o amor:
Ninguém o pode explicar,
Nada com que o contrapor
Consegue alguém encontrar.
O mais que o conceito alega
São opostos entre si,
É o fogo e a neve que o nega,
Pena e alívio que vivi,
É sombra, igualmente luz…
- E nada, ao fim, o traduz.
1616 - Descobrir
Nem glória nem louvor quero
Senão de descobrir mundos
Que Deus criou por inteiro
Para que, em passo ligeiro,
Os eu descubra profundos.
Por isso me deu os olhos
De ver infinito mar,
À razão me opôs escolhos
Para certo interpretar,
E me pôs no coração
Uma saudade ao contrário,
Saudade dum outro chão
Que ainda não vi, precário,
Mas que amo em meu correr vário.
1617 - Morrem
De certezas morreremos
Quando morrem as certezas.
Seremos todos blasfemos,
Sejam quais forem as rezas.
A verdade nunca muda,
Idêntica permanece,
Seja orador quem lhe acuda
Ou charlatão quem a tece.
O loquaz não a enriquece
E o gago não a empobrece.
Quando, porém, se desnuda,
Só vive quem se lhe gruda.
Se, fementida, emurchece,
Mata quem falsa a estremece.
1618 - Corrige-lhes
Qualquer coisa de verdade
Se encontras mesmo em perversos,
Corrige-lhes a maldade
Sem violar, com dignidade,
Aquilo que eles, conversos,
Terão, afinal, de justos.
Então, na mesma pessoa,
Emenda os erros e os custos
A partir donde ela é boa,
Das verdades que admitir
Evitando com cuidado
O que é vero destruir
Com a crítica do dado
Que falso for e malvado.
1619 - Governo
Governo que não aceita
Discutir o diferente
Já pouco a pouco se ajeita
A regime de maleita
Que entende que nada o tente,
Nem precisa de propostas
De imbecis subordinados
Que livres são de supostas
Palmas só, sem mais traslados.
Ora, quem quer melhorar
Sempre a crítica encoraja,
Pronto a capitalizar.
A amordaçá-la quem aja
Tédio só faz que vil haja.
1620 - Prolifera
Se prolifera a suspeita,
O rancor e o ciúme
Contra o dotado, a que atreita
Sempre há-de ser tal maleita
Contra o mais capaz no cume,
O ambiente, sem valores,
Torna-se de tirania.
Ora, crítica sem dores
Supõe a democracia.
Cega o déspota o respeito
Pela autoridade e giza
De si culto a que anda afeito,
Cala a boca a quem o visa
E ao fim todos martiriza.
1621 - Justo
Não quem grite por justiça
Mas quem é justo deveras
É o que queremos na liça,
Enquanto o mundo se enguiça
Preso à polé nas galeras.
Bem-aventurado não
É quem se crê possuidor
Da justiça tida à mão,
De bem consigo a se pôr,
Mas antes aqueles pobres
De fome e sede maciça,
Sem oiros, pratas nem cobres,
Sede e fome, ante a cobiça,
Sede e fome de justiça.
1622 - Critérios
Admissão e promoção
Têm critérios de escolha.
Superior que os tenha à mão
À completa discrição
Gera sempre má recolha.
Preferem satisfazer
Medíocres manobráveis,
Mais que os dotados que houver
Decididos e fiáveis.
Intelectualmente pobres,
São também os mais mesquinhos,
Querem que a cerviz lhes dobres.
De mediocridade ninhos,
São para o abismo caminhos.
1623 - Ultrapassado
Dando embora o melhor e a própria vida,
Quem for ultrapassado e abandonado
Por outros que avançaram sem medida,
Sem pudor, com basófia fementida,
Num exibicionismo dementado,
Repara que fazer uma carreira
Nesta assim corrompida conjuntura
Quer dizer fuzilar a linha inteira
Doutros colegas que ninguém apura,
Implicando assentar cotoveladas
Oportunas em quem correr ao lado,
Se entre os primeiros tem pistas contadas.
É o concurso selvagem que anulado
Tem a fraternidade em nosso fado.
1624 - Mesclada
Uma espúria tradição
Mesclada de astúcia branda
Aprecia de obra a mão
Como a amassa, em sujeição,
Molda-a, não como quer que anda,
Mas como nunca queria
Esta ser alguma vez:
Misturando dia a dia
Vero e falso em tal jaez
Que o bom-senso e o preconceito
Se amalgamam num teor
Que no fim tudo é suspeito.
Perde a virtude o valor:
Vale apenas o exterior.
1625 - Recíproca
Vivemos num ambiente
Que nos leva a conviver
Ao lado, anonimamente,
Sem, por entre tanta gente,
Nada a fundo conhecer.
Não há recíproca estima:
Cotovelo a cotovelo,
Mas de comunhão sem clima,
Só com tal material elo.
Em asséptico contacto
Divididos pêlo a pêlo,
Só consigo alguém tem pacto:
Enaltece a própria alfombra,
Rebaixa quem lhe faz sombra.
1626 - Eleva
Um amor que é verdadeiro
Não rebaixa, eleva o homem
Completo, integral, inteiro,
Enriquecendo o viveiro
Das forças que dentro o tomem,
Em comunhão com os mais.
Recusa a monotonia,
Pré-fabricados taipais,
Estandardizada guia.
Cada vocação difere
Em rica diversidade,
Mesmo se o confronto fere,
Beneficia a unidade
A intérmina variedade.
1627 - Domina
Domina ao desprezado injustamente
Um complexo de inferioridade
Lentamente,
Levando o que o sente
A atrofiar a personalidade.
Deixa de aspirar ao aperfeiçoamento
No canto
De que for encarregado elemento.
O desencanto
Do porvir
Não moraliza,
Murcha-lhe o crescimento, ao deprimir.
O caracol fecha-se à brisa
E tentação de ser carrasco mais e mais enfatiza.
1628 - Ensinar
Quantas vezes o juízo humano
Tenta ensinar a Deus como deveria
Intervir no mundo insano
E é sempre através de tal juízo de engano!
Não vigia
Por identificar a intervenção divina
Na selva temporal
E ao invés opina
Optando pela reprovação formal
Do desnorteante carisma
Desencadeado para o ensinar.
Quantas vezes cisma,
Oposto ao que Deus operar,
Que correcto é apenas o que ele julgar!
1629 - Temer
Devem as religiões
Mais temer do interior,
Em guetos, as vis lesões,
Mais do que as perseguições
Movidas do exterior.
A estas, conseguirão
Converter, santificar.
Àquelas, contudo, não,
Vão-nas dentro estrangular,
Corrompendo-as nas entranhas.
As lesões que irão sofrer
Serão no fundo tamanhas
Que já ninguém pode crer
Em nenhuma fé que houver.
1630 - Motor
Fazem da religião
Motor auxiliar
Da própria ambição:
Conjecturas, activa e passiva adulação,
Carreirismo e hierarquismo a par,
Indisciplina interior,
Cultura superficial de chavões,
Sobrevalorização de si, sem pudor,
Alianças e traições,
São para os carreiristas virtudes
De fazer constar.
De fingida religiosidade tangendo alaúdes,
Tendo em mira a meta a alcançar,
São cangalheiros grinaldas de morte a juntar.
1631 - Irradiado
Fazer carreira
Deveria ser irradiado do chão
Da feira
Que joeira
Qualquer religião.
Quem entra na vida religiosa
A apostar na carreira não deveria
Ter o acolhimento de que goza,
Mas encontrar bloqueada a via.
Deus ignora que fazer
De soberbos e presunçosos,
Vomita-os a todos e qualquer.
Carreira é de arrogantes gananciosos,
Os do lugar derradeiro é que são de Deus esposos.
1632 - Factos
Por que não acreditar?
Os factos são o que são,
Não importa que creiam ou não
Os habitantes do lugar.
Se havia luzes no céu
A noite transacta,
E não eram estrelas sem véu
Na calma pacata,
Alguém pode até
Fingir que não vê
E pôr-se a flanar,
Para outra banda a olhar:
Mesmo assim as luzes vão
Continuar lá na imensidão.
1633 - Lágrimas
Lágrimas depuradoras,
As que mais nos purificam
São as do amor a desoras
Que entrar, após mil demoras,
Permito onde pontificam
Coração e consciência,
Devêm sinal visível,
De unicidade a vivência
Que evidente então, credível,
É para o que se liberta
Do isolamento de andar
Longe do amor que desperta:
Depois de todo o penar
O pródigo volta ao lar.
1634 - Operam
Os rituais
Operam como alavanca.
Neles de energia coloca um pouco mais
E leis cósmicas moverás, espaciais,
A partir de tua tosca banca.
É o que assegura
De energia uma enorme quantidade
A movimentar-se, pura,
Até à fímbria da infinidade.
Perene fluindo embora a cósmica energia,
Tornam-te os rituais mais receptivo
E abres-te consciente à força de tal via.
Aceleras em ti o efeito, ao vivo,
A que antes foras esquivo.
1635 - Vivo
A mesma energia divina
Tem cada ser vivo dentro dele,
Que é o que deveras a todos anima.
A liberdade de escolha é uma cristalina
Parte decisiva de Deus em nossa pele.
Reparar nesta liberdade
E conhecê-la
É trepar na idade,
Cumprir de devir homem os degraus da tabela.
Aceitar que nos modele a vida
É acolher-me como sou,
Em seguida.
Até aos outros e a Deus calmo então vou:
- Todos asas somos do Infinito voo.
1636 - Distúrbios
Todos os problemas e distúrbios humanos
Derivam, em derradeira instância, da ilusão,
Matriz de todos os danos,
Forja de enganos,
De em relação ao Mundo haver separação.
Movidas pela falsa solidão,
Procuram companhia e segurança
As vítimas que aquela ilusão
Alcança.
Algumas tentam obter
Segurança e amor
Através do poder.
No píncaro do poder, porém, é que é maior
Da solidão a dor.
1637 - Transformar
Transformar o mundo vão querer
Para deles às necessidades
Vir atender.
Assim, todavia, ao proceder,
Hão-de precaver-se contra as entidades
Que as tentativas lhes podem frustrar.
Ei-los então em postura competitiva,
O que nunca lhes irá propiciar
Com Deus a unidade viver definitiva.
Outros primeiro resgatar acreditam
A culpa para então o amor receber
E o apoio de Deus que concitam.
Jamais o consegue, naturalmente, quenquer:
A culpa é ilusão, qualquer amor a tolher.
1638 - Via
Alguns vivem convencidos
De que a via para Deus podem encontrar
Evitando a alegria, a festa dos sentidos,
Que seriam limites proibidos
Sexo, comer, dançar, beber, celebrar…
Não é máquina, porém,
Quem negar e reprimir todo o prazer?
De Deus não se afasta mais além,
Que é vitalidade, que é amor, que é ser?
Tudo é fruto da mesma ilusão
De relativamente ao divino
Vivermos em separação.
Desta culpa a ilusão sela o destino
De qualquer sinal de Deus tornar clandestino.
1639 - Obstáculos
Quanto mais se avança
Maiores obstáculos advêm.
A frustração no mundo externo entrança
Bloqueios do interior à dança
Que nos sustém.
Qualquer um adoece,
Descontente com a vida,
E enfraquece
Em igual medida.
Partirá desesperado
Em busca de solução
Para tal fado.
No mundo externo, porém, não há portão,
Dentro em cada qual é que todos estão.
1640 - Turbina
O que a autodescoberta
Fomenta,
Turbina a acelerar, desperta,
Da energia a fonte aberta,
Alimenta
Mas não substitui a vida em si.
Aumenta a vitalidade e compreensão,
Não serve de alibi
À falta de convívio, de pés no chão.
A iluminação não é alcançada
Pela dieta correcta, a atitude certa,
A meditação praticada…
Estamos na terra para viver a vida alerta,
Já que a iluminação é um dom com hora incerta.
1641 - Parte
Faz parte de mim entusiasmar-me
Com o que o dia-a-dia me oferta,
Sem da realidade afastar-me
Nem nela me prender, que me aperta.
Mergulhar profundamente
No que me é dado viver
Permite-me ultrapassá-lo, de repente,
Para outra dimensão qualquer,
Ir aprendendo a olhar, deste plano,
Para mais longe e mais alto
Que o quotidiano
A que não falto,
Mas de cuja estreiteza o dano
Definitivamente salto.
1642 - Inúteis
Existem inúteis medos,
Fobias, de terror crises,
Que nos entortam os dedos,
Nos arrancam as raízes.
Alguns medos, porém, todos
Temos direito de tê-los.
É mesmo o melhor dos modos
De ter de coragem selos.
É não ter medo do medo
Que temos: só percebendo
Porque é que temos o tredo
É que vamos aprendendo,
Da vida ao correr da viagem,
A transformá-lo em coragem.
1643 - Chão
Somos nós os que criamos
O nosso próprio universo,
O chão onde remontamos
Da realidade os tramos
Com o desenho mais terso.
Ora, o controlo total
Só sobre minha atitude
É que o terei, afinal.
O termo, o gesto a que grude
Provocam uma cadeia:
Se eu agir com harmonia,
De amor crio a onda cheia.
Se o mundo mudar queria,
Meu gesto é que mudaria.