DÉCIMO  QUARTO  TROVÁRIO

 

 

QUE  AGASALHAM  DA  IRONIA  E  BOM-HUMOR  OS  TECTOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 1644 e 1796, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                             1644 - Que agasalham da ironia e bom-humor os tectos

 

                                    Que agasalham da ironia e bom-humor os tectos

                                    São os poemas de todos os feitios,

                                    Trajectos

                                    Que recobrem todos os prospectos

                                    De viageiros de sete mares e rios.

 

                                    Com a alegria de viver

                                    Motejando,

                                    O poema se alonga de quenquer,

                                    Do como e do quando.

 

                                    Celebra a festa,

                                    Mesmo no sarcasmo

                                    Que a fúria contida atesta.

 

                                    É o cómico orgasmo

                                    Que nos arrebata de pasmo.

 

 


1645 - Tamanho

 

O tamanho dum país

São defeitos e virtudes

E o que deles nestas mudes.

 

Coragem, povos senis,

Coragem, mundos viris,

- Só nos faltam as virtudes!

 

 

1646 - Explica

 

Que é que explica que, adorando

Eu meus filhos, me melhore

Minha disposição quando

Saem donde eu me demore?

 

 

1647 - Consiste

 

O trabalho de ser pai

Só consiste em reagir:

Levar a termo quem vai

Qualquer plano conseguir?

 

Prisioneiro de emergências,

Como não ter por frustrantes

De ser pai as exigências

Doutro mundo tão instantes?

 

 

1648 - Etapas

 

Quatro etapas tem a vida:

A de crer no Pai Natal;

A de não crer, que é fingida;

A de o sermos, afinal;

E a de o parecer tal qual

Na hora da despedida.

 

 

1649 - Escolha

 

A escolha do lugar à mesa exorta

Ao inverso da ganância:

Quem tem importância não se importa,

Quem se importa não tem importância.

 

 

1650 - Director

 

O director quer,

Em qualquer altura

Poder

Para casa telefonar

A ver se apura,

Se pode certificar

Que nele pensa a mulher,

Os filhos, todos e quenquer.

 

Se estão sempre prontos

A arrancar por ele o coração,

A pô-lo na língua, hóstia sem descontos,

E a mostrar, na função,

Que do corpo o resto, dele em todo o vigor,

Está pronto para o seu senhor.

 

É o que espera

Primordialmente

Da mulher sobre que impera.

Para tal a conduz à rédea curta,

Dele sob o olhar omnipotente.

Sobretudo,

Para que todo o efeito surta,

Tem direito ilimitado a informar-se:

Ele vê tudo,

Acutilante, descarado e sem disfarce.

 

O director, todavia

Não tem como o evite:

Todo o dia

Tem de ver

Para poder

Ter apetite.

 

E depois, quanto mais come,

Mais se consome.

 

 

1651 - Desporto

 

O desporto, de bola ou de querena,

Corte meta ou marque tento,

É a fortaleza da gente pequena

Onde, apesar de tudo, cobra alento.

 

 

1652 - Esgoto

 

Do fundo de desemprego

Pedem mais do que cuidamos:

Sentar-se do esgoto à beira do rego,

Beber cerveja à sombra dos ramos,

 

Jogar às cartas…

Nem um cão seria capaz

De paciência

E resistência

Tão fartas,

De aguentar tão tenaz,

 

Ali acorrentado

Ante as magníficas lojas,

Com as mercadorias proibidas mesmo ao lado,

Montras do sonho de que os despojas,

Bens cujo brilho atroz

Troça deles e de nós.

 

Nem um cão,

- E são homens. Serão?

 

 

1653 - Imagens

 

As imagens repousam bem melhor

Na memória que na vida.

A sós folheamos, no torpor,

Dos álbuns as páginas de harmonia e despedida,

Coçando vagamente os pés, distraídos,

Deles afastando os momentos vividos,

Ociosos…

- Como a vida, finalmente, nos traz gozos!

 

 

1654 - Investem

 

Como é que ainda se alimentam?

Investem tudo em foto digital,

Computador,

Televisor,

Alta fidelidade…

Que é que tentam,

Afinal,

Com tanta voracidade?

 

Já não há lugar,

Recanto onde viver, deles no lar:

 

Tudo se consumou

No acto de comprar.

Tudo findou

Mas nada está acabado,

Senão nada restaria ali.

 

E a gatunagem também quer um bocado

Para o talento de fugir de si.

 

 

1655 - Reduzir

 

Além da pobreza,

Há mil maneiras, acho eu, acho,

De, com fiabilidade e certeza,

Reduzir outrem a capacho.

 

 

1656 - Volante

 

Um vero volante, de vez,

Não guia:

À pedestre ou motorizada rês

Faz pontaria!

 

 

1657 - Represálias

 

Sem represálias não escapa ninguém

À família e seus pendores:

Exército demasiado disciplinado, não tem

Compaixão por desertores.

 

 

1658 - Direito

 

Do direito à palavra falam

Horas e horas de assentada

E, depois, de morte se abalam

Se alguém diz algo que lhes desagrada!

 

 

1659 - Tempo

 

O tempo pesa mais

Para os que o têm a menos.

Nada mais leve que sermos jovens joviais

E, apesar de pequenos,

Trazermos o mundo às costas.

Sentimos um poder tão sedutor

Que obrigatoriamente tem de haver outras apostas,

Outros reclames,

Que não sujeitar-nos a um empregador

Ou estudar para exames.

 

 

1660 - Mata

 

Mata um homem por dinheiro

E logo és um criminoso.

Mata mil, feito um luzeiro,

E és um herói fabuloso.

 

 

1661 - Linha

 

Quão mais longe da linha da frente,

Mais as tiradas sobre a glória do País

E da raça as bravuras viris

Devêm grandiosas e eloquentes.

 

O homem das trincheiras

Não fala disto,

Procura de sobreviver as escaleiras

E dos camaradas o visto.

 

O patriotismo é um luxo

A que não se pode entregar.

Da glória da morte o inesgotável repuxo

Só na boca do que vive no bem-bom sem arriscar.

Apenas a barriga cheia

A viver no conforto

Teoriza de heroísmo e bravura em cada ameia,

Patriotismo em cada horto.

 

Para o soldado que mal come,

Dorme na lama,

Convive com ratos, partilhando a fome,

Tirita de frio, sem cama,

 

Treme de medo,

Chora a morte do camarada,

- Apenas a imediata realidade

Conta como credo,

Um desejo de nada:

Normalidade,

Uma sopa quente,

Uma lareira acolhedora,

A roupa seca da ternura ardente,

O carinho da mãe, da moça que o namora,

Da mulher

Que nunca sequer há-de ter…

 

Fora disto, tudo o mais,

Agora,

É a confirmação dos sinais

Duma barriga traidora.

 

 

1662 - Defesa

 

Em defesa dos políticos:

Eles emanam,

Críticos,

Da sociedade que enganam.

 

Se todos cuidais apenas

Do dinheiro e do poder

E, quanto a preocupações morais,

Nem grandes nem pequenas,

Não deve surpreender

Que os políticos que gerais

Sejam corruptos,

Uns brutos animais,

Uns brutos.

 

Embora criticáveis,

Não devemos considerá-los

Os únicos responsáveis

De terras nem de gentes pelos abalos.

 

 

1663 - Loira

 

Só por ser loira em país de morenos

Aprisionam uma comunidade inteira

Num gueto.

E ficam serenos

Ante a asneira

Que cometem, que cometo.

 

Convencem-nos ininterruptamente

De inferioridade,

Da culpa de serem loiros,

Garantem que os marca Deus, convincente,

Que aspirarem à salvação é insanidade,

São uma vergonha em todos os agoiros.

 

Depois não admira que tenham alma deturpada,

Que se comportem como o retrato de vergonha,

Que se desprezem de vez

Como os mais, à descarada,

Lhes desprezam a inexistente peçonha

Da tez.

 

E quem diz: vou resistir,

Recuso-me a acreditar,

A razão nunca irei dar

A quem por tal perseguir,

 

Bem pode

Esperar,

Nunca lhe acode

Ter lugar.

 

O branco, o preto, o amarelo,

O homossexual, a mulher,

O crente, o ateu, o doutra religião,

Se é minoria, é escabelo

Da maioria que houver

De o querer bem raso ao chão.

 

E chamam de racional

Toda esta desrazão

Que de bem pintar o mal!

 

 

1664 - Pagar

 

Aquele que é muito rico

Terá sempre o mundo aos pés.

O dinheiro, verifico,

Comprará, de lés a lés,

Políticos, sociedade,

O poder, a propriedade...

 

O importante é ter dinheiro

Para pagar tudo aquilo.

Cómico, por derradeiro,

Se como tal me perfilo,

 

É não ter de pagar nada:

As pessoas se atropelam

A me darem, na esplanada,

Por aquilo por que apelam,

 

De graça quanto eu quiser:

Basta tocar-me ou me ver!

Tal vai, como sempre, o mundo,

Carnaval triste e jucundo.

 

 

1665 - Mentira

 

A mentira já percorreu, aos desacatos,

Meio mundo sem reflectir,

E a verdade ainda está calçando os sapatos

Para a seguir.

 

 

1666 - Eficácia

 

A eficácia duma companhia

Em lucros é medida.

Mas como vem sendo obtida

Do povo à custa, da vida e da alegria,

 

Teremos de perguntar também:

- Eficácia para quem?

 

 

1667 - Ajuda

 

A ajuda económica verifico

Que sobre

Que é tirar dinheiro aos pobres do país rico

E dá-lo aos ricos do país pobre.

 

O efeito é a perpetuação

Do equilíbrio da pobreza

Do terceiro e quarto mundos, sem remissão,

Ambos do primeiro mundo presa.

 

 

1668 - Crime

 

O crime empresarial,

Desbaratando e destruindo o planeta

À escala mundial,

É hoje a mais espalhada e mais secreta

E a menos punida

Actividade criminosa vivida.

 

 

1669 - Compram

 

Quando não há qualidade,

Se não compram a carreira com dinheiro,

Compram-na com lisonja, que há-de

Abrir-lhes, se não caminho, ao menos um carreiro.

 

 

1670 - Canalização

 

Canalização de esgoto fendida,

A ingratidão é o momento

Que transmuda as águas doces da vida

Numa torrente de excremento.

 

 

1671 - Fumo

 

Em ti próprio tem mão,

Senão ainda o pé te tropeça.

Fogo no coração

Acaba enchendo de fumo a cabeça.

 

 

1672 - Barriga

 

O homem comum

Tem a barriga cheia,

Mas quem é, perdido em tal fartum

Da colmeia?

 

De Deus a mais nobre criatura

É um ente vulgar,

Apenas da sinecura

A tratar.

 

Não aumentou em dignidade

Nem sabedoria,

Cresceu-lhe apenas a pança em rotundidade,

Em volume a carteira que acaricia.

 

Renegou Deus,

Concedendo-lhe hipócritas domingos solenes,

Enquanto o coração adora outros céus:

As moedas, as moedas perenes.

 

Despoja os continentes dos recursos,

Da vida selvagem e da beleza,

Da sabedoria milenar despreza

Os discursos,

 

Os ancestrais ignora,

Cospe no negro e no mestiço,

Cansa a televisão e o computador a toda a hora,

Fornica a mulher do amigo, enquanto há viço.

 

Tem remédios milagrosos

Para prolongar a vida

E, depois de tantos gozos,

Aos setenta anos, com que lida?

 

 

É uma casca oca oprimida

Ao peso do dinheiro mal ganho

E a uma culpa desmedida,

Aterrorizado com medo tamanho

 

Da morte

Que a si próprio se lamenta

Da sorte,

Estendido na areia da praia

Que inventa

Em cada raia.

 

Uma casca, uma casca vazia,

Eis a paga de se ter vendido

À cobiça, dia a dia,

De toda e qualquer alma ter perdido

Por uma nota, agora ao fim sem valor,

Por ter renegado a vida inteira,

O amor,

De vez murcho dele à beira.

 

 

1673 - Encasquetado

 

Um homem com o sexo

Encasquetado nos miolos,

Conexo

De enormes coxas aos rolos,

De cópulas místicas a falar,

De orgasmos frenéticos,

Cujo interesse angular

E gostos estéticos

É o dos filmes e das fotos pornográficas,

 

É por certo incapaz

Das gramáticas

Que feliz tornam, eficaz

Qualquer

Mulher.

 

Entre um homem deste tipo

E uma mulher exageradamente recatada

É igual o terror do mesmo quesito:

Um bom coito para eles é uma coisa tão desgraçada

Como da catástrofe o viso

Do dia do Juízo.

 

 

1674 - Zangado

 

Ficar zangado ninguém

Vai conseguir

Com alguém

Que o faz rir.

 

 

1675 - Comem

 

Os maus vivem se se embebem

De comer e de beber.

Os bons comem e bebem

Para viver.

 

 

1676 - Infância

 

Da infância o mais notado

É que se não fatiga de arrebóis.

O tédio só foi inventado

Depois.

 

 

1677 - Pior

 

Embora me falhem meus lemas

Ao primeiro enguiço,

O pior de meus problemas

É que ninguém tem nada com isso.

 

 

1678 - Imenso

 

Os que nada têm a falar,

No desvelo,

Imenso tempo conseguem gastar

A fazê-lo.

 

 

1679 - Obras

 

Qualquer que seja das obras o teor,

É mau se o sábio não aprovar, a seguir.

Se o tolo aplaudir,

É pior.

 

 

1680 - Caem

 

O amor é a rede

Com que eu a vida enfeixe,

Onde os corações adrede

Caem que nem peixe.

 

 

1681 - Perseguir

 

Há-de ser

Cortejar

Perseguir uma mulher

Até nos ela apanhar.

 

 

1682 - Crítica

 

A crítica pode ser evitada

Por quenquer

Se não disser nada,

Se nada fizer,

Se, enfim, não for nada.

 

 

1683 - Divã

 

A vida de quem ama

Tropeça,

É um divã: a cama

Que não tem pés nem cabeça.

 

 

1684 - Resolve

 

O diplomata

É aquele que resolve o conflito

Que entre gente pacata

Nunca teria levantado nenhum grito…

…Se não fora o diplomata!

 

 

1685 - Felicidade

 

A felicidade é um gato:

Se tentarmos lisonjeá-la,

Ela evita-nos, abala,

Tal se fora um desacato.

 

Se não dermos atenção,

Vem nas pernas se roçar

E salta, de supetão,

Para colo se lhe dar.

 

 

1686 - Pai

 

Pai perfeito é quem alcança

Excelente teoria

Da educação infantil sobre a via

- E não tem nenhuma criança!

 

 

1687 - Tribunal

 

Em tribunal há-de ganhar,

Para má memória,

Aquele que contar

A melhor história.

 

 

1688 - Mulheres

 

São mulheres que não andam a pensar

Nem em filhos nem em casamento

Que, a todo o momento,

Levam os homens ao altar.

 

 

1689 - Aprendi

 

O que aprendi com os anos bem medidos,

Ante a realidade que se furta,

É que a vida é demasiado curta

E os filmes, demasiado compridos.

 

 

1690 - Parvo

 

O que for de fazer

Fá-lo tal qual.

Figura de parvo há-de parecer?

- Fazer figura de parvo é essencial!

 

 

1691 - Pensa

 

Quando toda a gente pensa igual,

Quando no mesmo repoisa,

Então, por sinal,

Ninguém pensa grande coisa.

 

 

1692 - Espirrar

 

Temo encontrar-me com Deus

Um dia qualquer,

Ele espirrar nos altos céus

E eu não saber que dizer!

 

 

1693 - Desonra

 

A desonra das boas esposas e mães,

A contarem pelos dedos ilegítimos meses,

A fazerem contas à duração das gravidezes,

A murmurarem segredinhos à mesa dos améns,

Com os olhos a brilhar de malícia…

 

Não, não é sevícia, não é sevícia!...

 

E as desonras permitidas

Dos casamentos sem amor,

Das lisonjas na carreira promovidas,

Da calúnia sem pudor,

Do pretensioso orgulho da herança

A segregar de preconceito quem alcança?

 

Pois, pois! Isto é virtude

A colar-se nos costumes como grude…

 

 

1694 - Estranha

 

Como estranha a vida ser devia,

Vista de algum ponto sideral

Da eternidade fria!

Que paradoxal

De bípedes o desfilar daquela raça

Que da bruteza se erguera,

A falar aprendera

E a pensar com a mente escassa

 

Articuladamente

E com ideais,

Que se rodeara duma intérmina corrente

De engenhocas mecânicas triviais

 

E se gabava delas

(Lendas que sabia falsas)

E dedicava milhões de horas às sequelas

De apurar freios, gatilhos e alças

De engenhosos instrumentos

Para dizimar da própria espécie os elementos!

 

Estranha raça aquela

Que por mais que realize arte e filosofia

Jamais perdia

A bacoca reverência pela lapela

 

Do general,

Do guerreiro armado e equipado

Que olha o campo de batalha, do qual

Se ergue o gemido, o estertor desolado

 

Do moribundo,

E diz calmamente,

Olhando o mundo

De frente:

 

"Outra vitória como esta

E ficamos aviados…"

E encara como uma festa

Todos os sangues derramados!

 

 

1695 - Prende

 

A humana curiosidade

Nada prende com tal gana

E com tal voracidade

Como uma tragédia humana.

 

 

1696 - Verde

 

O ser humano se assusta

Com o novo. Se chegar

Um homem verde, que custa?

- O que faz é disparar!

 

 

1697 - Ficção

 

Ficção e realidade,

Entre ambas como as divido?

A ficção persuade:

Terá de fazer sentido!

 

 

1698 - Negócio

 

Não há negócio melhor

Do que a vida, logo à entrada:

Obtemo-la sem favor

E sempre a troco de nada.

 

 

1699 - Teime

 

Se encontrar alguma freima

Que adore, adore fazer

Enquanto andar a crescer,

Teime então com toda a teima

A ver se logra viver

De tal, em vez do mau acto

De optar por algo sensato.

 

 

1700 - Mosca

 

Um optimista acredita

Que a mosca dentro de casa

Só busca a saída estrita

E a paciência não lhe arrasa.

 

 

1701 - Amigo

 

Um amigo que é leal

Tirará férias no Inverno,

Vai à praia tropical

E não lhe envia um postal,

A inveja a poupar-lhe, terno.

 

 

1702 - Ramo

 

Um amor não acontece

Quando um ramo mui florido

Alguém lhe atento oferece

E cheira-o você, sentido.

 

Amor é quando alguém fala

Do cheirete que lhe coube

Todo o dia e não se cala

- E você, paciente, o ouve!

 

 

1703 - Meia-idade

 

Meia-idade quer dizer

Que muda o perfil que valho:

Trabalho não dá prazer

E o prazer já dá trabalho.

 

 

1704 - Novo

 

Se ser novo for defeito,

Saiba que tenho a mania,

O vício de andar afeito

A o corrigir dia a dia.

 

 

1705 - Vírus

 

Um aldeão compra um cavalo

Mas o cavalo adoece

E o motivo deste abalo

É um vírus que é mui refece.

 

"Vamos tratá-lo três dias.

Se ao fim não ficar curado,

Fora com as simpatias,

Tem de ser sacrificado."

 

O porco que tal ouviu

Logo correu a avisá-lo:

"Ergue-te, que ele saiu,

Mas vai matar-te, cavalo."

 

O segundo dia é igual

E nada de reagir.

"Tens de dar algum sinal

Ou vão matar-te a seguir!"

 

Ao terceiro dia, então,

Quando vão sacrificá-lo,

Grita o porco, em confusão:

"É agora ou nunca, cavalo!"

 

E o cavalo, de repente,

Um pulo dá, corre a aldeia,

Desencabrestado, em frente.

De alegria a casa é cheia:

 

"Milagre! A comemorar,"

- Ri o camponês de borco -

"Vamos todos festejar,

Matemos rápido o porco!"

 

 

1706 - Activo

 

Quem activo é como a abelha

E tão forte como um touro,

Trabalha como um cavalo,

Mas no fim já destrambelha,

Cansado, com mau agouro,

Pior que um cão em fundo abalo,

- Deveria consultar

O veterinário pasmo:

Isto porque, se calhar,

Ele é deveras um asno!

 

 

1707 - Enxertos

 

A ganhar conhecimento

Junte enxertos cada dia.

A ganhar sabedoria

Perca-os a cada momento.

 

 

1708 - Reformar

 

Antes de se decidir

A se reformar de vez,

Estas férias vá curtir:

Bem se ponha, estenda os pés,

 

Diante da televisão

Por uma semana inteira…

- Decida depois então,

Afinal, o que é que queira!

 

 

1709 - Fia

 

Ai quanta perda provém

Da ingenuidade que juntas:

Se se confia em alguém

Nunca se fazem perguntas…

 

 

1710 - Maneiras

 

As maneiras e o dinheiro

São acaso um cavalheiro.

 

Cavalheiro que é um senhor

É o que nunca inflige dor.

 

Contudo, o mais importante

É o amor que ele garante.

 

E tal, cavalheiro ou não,

Anda de todos à mão.

 

O mais é apenas feitio,

Gosto de quebrar fastio.

 

 

1711 - Erro

 

Desta civilização

O erro é de os protagonistas

Tolerarem à exaustão

Ou provocarem, sofistas,

 

Guerras, misérias e crimes,

Contanto que cada um

Possa manter os sublimes

Iates e mansões nalgum

 

Ponto seu de veraneio,

Mais os milhões de recheio.

 

É sempre neste cinismo

Que se abre a boca do abismo.

 

 

1712 - Sempre

 

Do homem a mulher

Está sempre ao lado

Para o que der e vier.

O homem está sempre ao lado

Da mulher

Que vier e der…

 

 

1713 - Ancestral

 

Vegetariano

É a palavra que tem

Um ancestral falar pré-humano

Para "não-caça-bem".

 

 

1714 - Pequeno

 

Se crês pequeno demais

Que és para influir nos fitos,

Tenta dormir em locais

Que andem cheios de mosquitos.

 

 

1715 - Confies

 

Nunca confies num ente

Que diz que é o chefe lá em casa:

De certeza também mente

No mais, quando bem lhe apraza.

 

 

1716 - Herói

 

Um herói dentro de casa

Não é cómodo, é vigília:

As glórias apenas casam

Com transtornos à família.

 

 

1717 - Macaco

 

Acolher a superstição

Renega Deus nos ritos que o retomem,

É uma espécie de religião

Como um macaco é uma espécie de homem.

 

 

1718 - Números

 

Se com números debato,

Num buraco me prefiro

Para não ver onde bato.

Se ergo os olhos, logo os firo

 

No mar, árvore ou mulher,

Põe-se o número a mexer,

 

Troca os pés, baralha as casas,

Diria que nascem-lhe asas.

 

 

E sempre há-de ser assim

Com o que mal toca em mim,

 

Se, sem querer, o comparo

Com o que me for mais caro.

 

 

1719 - Respeita

 

O homem, se és mau com ele,

Logo te respeita e teme;

Se és bom, arranca-te a pele.

Tens de ter-lhe mão no leme.

 

Se dizes: todos iguais

E com os mesmos direitos,

Logo esmagam, bestiais,

A lei que rege teus preitos,

 

Ir-te-ão roubar o pão,

Imolar-te vão de fome.

Guarda as distâncias, irmão,

Vigia o que cada tome.

 

 

1720 - Perfidamente

 

Todos têm a sua loucura.

A maior, porém, que de todas é a suma

Perfidamente pura,

É não ter loucura alguma.

 

 

1721 - Ambição

 

Uma ambição verdadeira,

Desejo de algo mais alto,

Move a humanidade inteira.

Altura tão altaneira

Que mede a grandeza a salto.

 

Eleva-se cada qual

Sempre aos olhos do vizinho.

É refractado tal qual

No conceito que lhe vale:

Avulta o vulto do ninho,

Aumentado na neblina

Sempre umas poucas de vezes,

Da veste que bem combina

Ao piano que nem atina,

Ao gesto e termo corteses…

 

Vive cada qual a vida

Na pública opinião

Com a imagem reflectida.

Por si nunca tem medida,

Para manter a ilusão.

 

Se, aos olhos dos similares,

For um nome de importância,

Menos não são os altares

Que eleva nos patamares

Em que se põe desde a infância.

 

Eis então porque trabalha

Nos escritórios, nas minas,

Sempre de horários na calha:

- Se mais produz no que talha

Maior se vai ler nas sinas.

 

 

1722 - Sublime

 

Gritam que é sublime o amor,

Persistem em afirmá-lo,

Mentirosos sem pudor!

Olha os milhões sem abalo

 

Que repetem, incansáveis,

Que o amor é sempre o cume

Do mundo de imponderáveis

Que a caridade resume…

 

Como actuam entretanto?

Dos actos os conhecemos,

Intrujões cheios de encanto,

Que responsáveis não vemos

 

Nem dos actos nem palavras

Que proferem vida fora!

Isto nunca em nossas lavras

Desmente o facto que mora

No amor: a mais importante

Função que há na humanidade.

A traição, por mais gritante,

Nunca altera esta verdade.

 

 

1723 - Rapaz

 

Todo aquele que porfia

Em tudo dilacerar,

Rapaz que desmancharia

Os brinquedos para olhar

Por dentro como são feitos

Não merece, afinal, preitos.

 

É tal se nós destruíramos

Ainda em botão uma flor

Para examinar se víramos

Como lhe era o interior:

De florir nada, em verdade,

Tem mais possibilidade.

 

 

1724 - Acampar

 

Acampar onde se quer

É a maneira

De a natureza promover

A indústria hoteleira.

 

 

1725 - Porsche

 

De Volkswagens numa data

Teremos de andar

Até que a vida disponibilizar-nos acata

Nosso Porsche particular.

 

 

1726 - Banho

 

Já nem o Verão me brilha

Neste meu corpo obcecado:

Mau fato de banho humilha

Mais que em vida um sujo dado.

 

 

1727 - Falara

 

Em menino

Falara do povo e da liberdade

Com esmagadora solenidade

Como se cantara um hino.

 

Mais tarde, em plena prosperidade,

Tendo à ordem um mundo de operários,

Continuara com liberalidade

Os filantrópicos discursos temerários,

Sem reparar que melhor andaria

Falando menos e aumentando os salários

Do pão de cada dia.

 

Mas o povo e a liberdade

Eram coisas abstractas somente

Que precisava de amar de verdade:

- De amar platonicamente!

 

 

1728 - Liberdade

 

A liberdade reclamada em grande grita

Não passa de costureirinha brejeira,

Miúda e risonha na mesquinha dita,

É uma liberdade de algibeira.

 

 

1729 - Jogos

 

Apenas há jogos de luz

Sobre as jóias e os tecidos ricos.

Salpicos

De pus,

As cabeças de velhos e novos,

No meio daquilo, são ocas

E ocas se farão entre os povos

Por delicadeza, por saber viver fora das tocas.

 

Todos eles são comediantes, a sorrir,

Em que não,

Ninguém logra distinguir

Nem mente nem coração.

 

Aquelas mulheres são bonecas

Que os ombros desvelam,

Sentadas nas cadeiras,

Como se foram canecas

De porcelana que se atropelam

Duma estante nas prateleiras.

 

 

1730 - Encantos

 

Esta cultura moderna

Tem seus encantos traidores.

Ser famoso e rico, a eterna

Via dos falsos amores,

 

E ser bonito, ir a festas

Privadas, a ser feliz…

É marcar a ferro as testas,

A canção cujo cariz

 

É, afinal, de desespero.

Senão, por que atrás das togas,

Da fama, do nome mero,

Há tanto quem tome drogas?

 

E por que é que o casamento

Poucos, afinal, mantêm?

E por que a cada momento,

Acabam presos também?

 

Por que são tão infelizes

Quando não iluminados

De holofotes, das matrizes

De actores bem camuflados?

 

Esta cultura moderna,

Que mentira mais superna!

 

 

1731 - Corre

 

A vida corre tão fácil

Quando o lar é de alegria

E uns para os outros vivemos!

Se o mundo estoirar, que grácil

Estoire em romaria,

Que é quanto ao fim ganharemos.

 

 

1732 - Operários

 

Em não havendo trabalho,

De operários finda o pão,

O que é uma normal função

Da máquina: quando encalho

 

Sou roda inútil deitada

À margem tranquilamente.

Serei tal roda dentada

Que ninguém vai ter em mente

 

Reconhecer por serviços

Prestados: deita-se fora!

Tanto pior nos enguiços

Da vida a quem se demora.

 

 

1733 - Caixeira

 

A freguesa desmaiou,

Que a caixeira cheira aos alhos

Que mal sequer debicou?

Despedida dos trabalhos

Há-de esta ser que estragou,

Nutrida mal, esfaimada,

Da côdea de pão tragada.

 

A direcção é implacável,

À queixa do comprador.

Desculpa justificável

Nenhuma se há-de propor

Mesmo admiti-la é impensável:

O empregado nunca tem

A razão que lhe convém.

 

Deve desaparecer,

Instrumento defeituoso

Que prejudica quenquer

No maquinismo fogoso

Do comprar e do vender.

E que baixem a cabeça

Os amigos de tal peça!

 

 

1734 - Maravilhosa

 

Quando parar

De beber,

Tem de lidar

Quenquer

Com aquela maravilhosa personalidade

Que foi quem o fez começar

A beber de verdade.

 

 

1735 - Circo

 

O coração da mulher

Tem sempre dum circo o traço:

Há sempre um lugar qualquer

Para mais qualquer palhaço.

 

 

1736 - Colhem

 

Algumas destas crianças

Nunca ficam satisfeitas,

Nem quando a fruta das franças

Colhem, a que andam afeitas.

 

Não saboreiam jamais,

- Limitam-se a querer mais!

 

 

1737 - Jovens

 

Em dez noites de trabalho

Pelos jovens prometidas

Sete são de sono orvalho:

Em claro, só adultas vidas.

 

 

1738 - Pé

 

Quem de carro se enlameia

Será sempre gente honrada,

Gente a pé de lama cheia

É sempre uma garotada.

 

Deite a mão seja ao que for,

É um bicho, de réus em banco;

Dum milhão roubo ou maior

É a virtude com que abanco.

 

Com a polícia milhões

Se gasta e com a justiça.

E é uma moral de aldrabões

Que se firma e o mundo enguiça.

 

 

1739 - Fortuna

 

O segredo da fortuna de momento

Sem causa aparente de permeio

É um crime tombado no esquecimento

Por haver sido cometido com asseio.

 

 

1740 - Casa

 

Mulher que não casa amarinha,

A cacarejar, por todos os recovos

Como galinha

Que não põe ovos.

 

 

1741 - Matar

 

Matar crianças é um crime.

Matar adultos numa guerra letal

É prerrogativa sublime

Da honra nacional!

 

 

1742 - Ditadores

 

Depressa demais os homens esquecem

E perdem o siso:

Os ditadores não enlouquecem

Mas também nunca lhes volta o juízo.

 

 

1743 - Absurdo

 

É absurdo que atrás do balcão

Haja alguém para quem é importante

Proteger da poeira o blusão

Enquanto diante dele, mesmo diante,

Há uma multidão

De criaturas cujas vidas

No pó são afundadas,

Na lama delidas,

A nada reduzidas,

A nadas.

 

- Mas o que é importante

É a poeira que no blusão se implante…

 

 

1744 - Morre

 

Quando alguém morre, vê bem,

Torna-se logo importante.

Enquanto é vivo, ninguém

Confia nele o bastante.

 

 

1745 - Muda-se

 

Alguém muda-se em arcanjo,

Em maluco ou em bandido,

Ninguém nota o novo arranjo.

Falta um botão num vestido?

As vestes não se amarrotam,

- Logo, porém, todos notam.

 

 

1746 - Acenando

 

Nossa cultura nos mente

Acenando o fim das penas:

Ninguém vive facilmente,

Será mais barato apenas.

 

 

1747 - Técnica

 

A técnica de escravizar

É também gradualmente depurada.

Ninguém hoje vai chicotear

Na estrebaria uma criada,

Antes damos forma refinada

À escravatura larvar,

Logramos encontrar

Uma desculpa requintada

Para cada caso particular.

 

Se pudéramos despejar

Sobre operários e empregados

As fezes que tivermos de defecar,

Fá-lo-íamos decerto, descuidados,

Imediatamente com uma justificação:

"Se os melhores foram perder o tempo precioso

Com a função

De desinfecção,

O progresso, em todo o lado,

Corre o risco perigoso

De ficar ameaçado."

 

O precioso

Progresso

Tem este malcheiroso

Avesso.

 

 

1748 - Era

 

Vivemos em era em que me convenço

De que é inviável encontrar um bocado

De bom senso

Sem de busca um mandado.

 

 

1749 - Sabedoria

 

Se sabedoria é poder

E por poder há tanta querela,

Por que é que não há mais gente a querer

Aspirar a ela?

 

 

1750 - Atingir

 

Para atingir o que quer, afinal,

De tudo é capaz esta gente,

Até de usar um meio legal

E decente!

 

 

1751 - Baile

 

Para vós o que é importante

É que o baile continue,

Na estrutura vigorante

Que ninguém toque ou actue,

 

Ninguém altere estatutos

Do clube onde o privilégio

Se diverte, enfarta-brutos,

À mesa do poder régio.

 

A canalha que não pode

Parte activa ter na festa,

Que se amontoa e sacode

Lá fora, ao sereno a testa,

 

Envergando a fantasia

Da máscara da miséria,

Permanecer deveria

Onde está e sem ter féria,

 

Porque vós, convivas sérios

E felizes, sempre achais

Que pobres, pelos impérios

Eternos os encontrais.

 

Pagais, portanto, à polícia

Para que ela vos defenda

No dia em que uma milícia

Da plebe invadir entenda

 

O salão onde vos dais

Às libações, vossas danças,

Amores com que sonhais,

Diversões e alianças.

 

Nem vos passa na cabeça

Que outra ética de vida

A inumanidade meça

Que em vós sempre anda escondida.

 

 

1752 - Corrompido

 

O corrompido pela fortuna

E pelo poder

Aparentemente não se coaduna:

Não repara que há-de morrer.

 

 

1753 - Marca

 

Em tempo bicudo,

O dinheiro

A que me grudo

Já não tem marca nem cheiro.

 

 

1754 - Lar

 

No lar, com a esposa,

O dever, o respeito, o pudor,

Cama de gerar filhos.

Na rua, com amante ou cortesã saborosa,

O prazer, o requinte do impudor,

A libertinagem sem cadilhos.

 

É a divisa

Lapidar

Do casal que exterioriza

Alta moralidade familiar.

 

Como o cônjuge tratar

Que, por preconceito

Ou idealizado respeito,

Considera o par

 

Uma coisa, um vaso,

Corpo inerte,

Pedaço de carne que, por acaso,

Afinal das profundezas o desperte?

 

Que admiração,

Se, afinal,

Tomba no chão

Todo o céu do ideal?

 

 

1755 - Beneméritas

 

Beneméritas pestes!

Sem elas era inviável

A indústria tão rentável

Das misérias e mortes mais agrestes.

 

Sem elas como manter

A civilização constituída,

O povo como conter,

Das pragas a mais descomedida?

 

Todos com saúde

E a saber ler e discernir,

Que perigo medonho para a virtude,

Que história mais sem porvir!

 

- E assim rasteja pelo chão

A grande civilização.

 

 

1756 - Come

 

Quando alguém com o diabo

Come, então terá de ter

Muito comprida a colher

E bem mais comprido o cabo.

 

 

1757 - Regra

 

A regra do jogo afirma

Que os homens serão mortais,

Mas qualquer gigante firma

É sagrada, eterna ou mais…

 

 

1758 - Imenso

 

Dele é imenso o patriotismo,

Mas, como ocorre com o comum dos patriotas,

Identifica do êxito próprio o brilhantismo,

Do interesse do país com as nobres cotas.

 

 

1759 - Textos

 

Os grandes textos religiosos

Têm de estranho e singular

Que neles podemos encontrar

Tudo, tudo, laboriosos,

- Desde que saibamos o que procurar!

 

 

1760 - Cone

 

Qualquer uma hierarquia

Sempre é um cone de gelado:

Tem de se lambê-la, esguia,

Da base ao topo elevado.

 

Os poucos que lá mais perto

Do erecto cume se alteiam

São só língua em céu aberto

A lamber ao que alto ameiam.

 

Têm língua de mamute

Num cérebro reduzido,

De tanto ser o desfrute

De lambidelas vivido.

 

 

1761 - Dinheiro

 

Há muitas coisas na vida

Que mais que o dinheiro importarão.

A alínea aborrecida

É que normalmente custam um dinheirão!

 

 

1762 - Conselho

 

Bom conselho é bom de dar,

Mas de tomar, muito mau.

Muitos o dão, ao calhar,

Poucos o tomam, a par,

E menos põem-se a pau.

 

 

1763 - Viva

 

O conselho e o dinheiro

Ambos são mui milagrosos.

Quem os não viva, primeiro,

Não há, de tão saborosos.

É cada tão costumeiro,

Que nem reparo, ligeiro.

 

De moeda ninguém se queixa

Que lhe pegara doença,

De nojo nenhuma deixa

Vejo que a ela pertença

E que mal a ninguém cheira

É uma certeza cimeira.

 

Tal é o conselho: se é bom,

Nenhum mal a ninguém faz;

Se é mau, ninguém de bom tom

Tem nojo dele capaz

De impedir quem se lhe abeira.

E assim tal de ambos se inteira.

 

 

1764 - Bisonha

 

Gente

Indisciplinada,

Bisonha, incompetente,

Provoca em cada jornada,

Com ignorâncias lerdas,

Intoleráveis perdas.

 

O que devemos saber

E advertir

Nem desculpa tem sequer

Nem escusa com porvir.

 

Como, porém, não há morte sem achaque,

Todos sabem dar saída

Aos próprios erros, passando ao ataque:

Dão então por homicida

A fortuna cujo grito

É inocente no delito.

 

 

1765 - Ganha

 

Mais se ganha no paço

Às barretadas

Que em campanha ao compasso

Das emboscadas.

 

 

1766 - Política

 

A política do mundo

Tem dois preceitos a sós:

O bom para mim, jucundo,

O mau para vós.

 

 

1767 - Repugnância

 

A repugnância voluntária

Tornar queremos necessária,

 

Desde que não nos fira a pele

Em tudo o que ela então repele.

 

Ir violar a boa-fé

Nunca nos serve de embaraço

Se a violação que pus de pé

A outrem logo lha trespasso:

 

Ser minha a culpa não importa

Se ela parece ser alheia.

A receber eu abro a porta:

Não quero dar, quero a mancheia.

 

 

1768 - Evitar

 

Como um mal é permitido

A evitar outro maior,

Tem-se tal norma estendido,

Subtilizado em teor,

 

De ilação em ilação,

A ponto de que já não

 

Há mal, por maior que seja,

Que tolerável não veja.

 

Então, de efeito em efeito,

Já não há uma iniquidade

Que por vezes não dê jeito,

Nem injustiça, em verdade,

Seja do que for à custa,

Que, afinal, não seja justa.

 

 

1769 - Engenho

 

O nosso engenho se esforça

Numa perspectiva tal

Que tudo pareça, à força,

O que eu quero, bem ou mal,

E jamais, com boa fé,

Deveras aquilo que é.

 

O discurso é um instrumento

Para o próprio lisonjeiro,

Por meio do qual o evento

Vemos falso ou verdadeiro,

Grande ou pequeno também,

Tal como tal nos convém.

 

É que o nosso pensamento

Aos dados não se acomoda.

A meu gosto, a meu intento

É que aplica a veia toda:

A vaidade, o interesse

Molde são do que aparece.

 

 

1770 - Molesta

 

Não há maior inimigo

Da ciência que a ignorância:

De alto o que fique ao abrigo

Molesta vista e ganância.

Só o que está onde estivermos

Não é de nos ofendermos.

 

A igualdade é natural,

Uniformidade em tudo.

Quem à lei universal

Escapa, se não há escudo,

Odioso é na sequela

Aos que se conservam nela.

 

Há meios para subir

E a vaidade os guia a todos.

Sem vaidade ninguém ir

Vai querer, por sem engodos.

Como dali nada augura,

Nem sequer subir procura.

 

 

1771 - Manter

 

É o que faz largar um vício

Mera impossibilidade

De o manter em exercício.

Ainda então o que se evade

É o uso, não a vontade:

Nós largamos a função,

Todavia, não o afecto.

Desisto da ocupação,

Mas a inclinação projecto

A coberto de meu tecto.

 

No fundo não somos nós

Que dos vícios nos deixamos,

Deixam-nos eles a sós.

Nós de longe os divisamos,

Seguindo-os por entre os ramos.

 

E por mais que ali cansados

Lhes persigamos a pista,

Na verdade, desolados,

Nunca os perdemos de vista,

Nem há ninguém que desista.

 

Quando não podemos ir,

Os objectos nos arrastam:

A memória há-de servir

De vícios presentes: bastam

Para ver que não se afastam.

 

 

1772 - Pessimista

 

O pessimista olha para o bolo

Redondo e cheio

E apenas vê, tolo,

O buraco que houver no meio.

 

 

1773 - Bom

 

Que bom é ser avô!

Brincamos, damos, amamos - é o lema,

Depois devolvemo-los, tão-só,

- E vamos ao cinema.

 

 

1774 - Faça

 

"Não há nada que eu não faça por ela,

Não há nada que ela não faça por mim."

Depois a sequela

É assim:

Vão vivendo, jornada a jornada,

Um pelo outro fazendo nada!

 

 

1775 - Pastor

 

O pastor ganha o rebanho

Perdido no alto do monte.

Um automóvel tamanho

Que lhe escondeu o horizonte

Até lá trepou ligeiro

Com um jovem mui lampeiro.

 

"Se eu disser exactamente

Quantas ovelhas tiver,

Vai dar-me uma de presente

Que eu no rebanho escolher?"

- Pergunta o jovem portento,

De espantar o outro no intento.

 

Concorda o zagal e então

O outro, com computador,

De satélite olha o chão

E o mapeia com rigor:

"Mil e quinhentas ovelhas,

Mais oitenta além, mais velhas."

 

"Correcto" - diz o pastor.

O jovem escolhe um bicho,

Dentro do carro o vai pôr.

Torna o zagal: "É um capricho:

Se o mister lhe adivinhar

Volta-me o animal a dar?"

 

Tendo o jovem concordado,

Diz-lhe o outro: "É consultor!"

"Como adivinhou tal dado?"

"Fácil: veio-se-me impor,

Embora ninguém o queira;

Quer ser pago em conta inteira

Por algo que eu já sabia,

Respondendo a uma questão

Que jamais eu lhe poria,

E de meu negócio não

Percebe deveras nada:

- Devolva o meu cão à estrada!"

 

 

1776 - Afeição

 

Odiar os teus não logra

Uma afeição nesta linha:

"Gosto mais da tua sogra,

Afinal, do que da minha!"

 

 

1777 - Exímio

 

Ninguém tão exímio fica

A acertar num alvo em movimento

Como a mulher que despica,

A um bebé dando o alimento.

 

 

1778 - Milhões

 

Milhões de crianças podem estar a morrer de fome

De África no coração

Que não há uma consciência que tal tome

Em mão.

 

Mas a mulher do vizinho ser vista

Com um desconhecido

De cabelo comprido,

Que notícia mais imprevista!

 

Notícia para ser transmitida,

Mastigada,

Despertando sensualidades carnais quando servida

Em lauta jantarada

À mesa da mente faminta:

É a novidade do ano, nem que mais nada pressinta.

 

Quando o horizonte da vida

É a porta de entrada,

Não há medida

Ao alheamento do que pese na jornada.

 

 

1779 - Educar-se

 

A educar-se cada geração anda com requinte

Para ganhar dinheiro bastante

Para educar a geração seguinte.

E ninguém faz nada com tal educação,

Pela história adiante,

Senão tal repetição.

 

Arrasas-te para educar teus filhos,

Para que possam arrasar-se a educar os filhos deles,

Cadilhos a atar cadilhos,

De idade em idade,

Pelas mil noites que veles.

 

- Com que finalidade?

 

 

1780 - Fortuna

 

Da fortuna apanha o nervo,

Que o custo ta não rejeite:

- Trata melhor o teu servo

E a vaca dar-te-á mais leite.

 

 

1781 - Favor

 

No mundo mais que agitado

Do poder, da economia,

Um senhor determinado

Deve a um outro a cortesia

Dum favor com que há lucrado,

 

Enquanto, por sua vez,

Outro indivíduo qualquer

Um favor que antes lhe fez

Lhe fica a ele a dever,

E outro a este… E o entremez

 

Vai por aí adiante

Na cadeia das promessas

E obrigações mais constante.

- Que é do metro com que meças

O valor, por mais gritante,

Das gentes a tal avessas?

 

 

1782 - Véspera

 

Véspera de Natal,

Que alegria!

É dia

De consoada,

O mágico fanal

Duma eterna madrugada.

 

Amanhã, por esta hora,

Milhões de pessoas,

Esquecidas do frémito de agora,

Afundadas até ao joelho no entulho

De fitas e papel de embrulho,

Trincando as broas,

Queixar-se-ão, sentidas,

Ignorando o Cristo:

"Que somíticas vidas!

Só me deram isto?!"

 

 

1783 - Cuidado

 

Livros de saúde ao ler,

Cuidado atento lhe valha:

- Pode morrer

Por causa duma gralha!

 

 

1784 - Tem

 

Não vai nunca ser bonito,

Mas se um homem tem dinheiro,

Não é feio, é só esquisito.

 

E, por mais gordo que seja,

Quando um homem tem dinheiro

É só forte que se veja.

 

E, se é grosseiro de impante,

Quando um homem tem dinheiro

Tal é ser interessante.

 

O absurdo da distinção,

Quando um homem tem dinheiro

Gosta dele até mais não.

 

 

1785 - Pague

 

Crime que pague a passagem

Pode viajar livremente,

Virtude pobre a triagem

Na raia a retém cogente.

 

 

1786 - Contra

 

Ir contra não vale nada?

Que então o céu nos acuda:

Todos nós temos pancada,

Agora só com ajuda!

 

 

1787 - Acaba

 

Embora o homem goste do companheiro,

Por essência,

Como também gosta de dinheiro,

Logo lhe acaba a benevolência.

 

 

1788 - Culpa

 

A culpa é terrível:

Nunca perdoamos,

É infalível,

Àqueles que prejudicamos.

 

 

1789 - Penduram-se

 

Nos tempos difíceis e selvagens

Os ladrões penduravam-se na cruz.

Nestes tempos fáceis, de civis imagens,

Tudo reconduz

A outros pendões:

Penduram-se cruzes ao peito dos ladrões!

 

 

1790 - Magnate

 

Para muito magnate eminente

Deus é um poço de petróleo inesgotável

E a religião,

A companhia petrolífera presente

E fiável,

Com exclusiva autorização

De exploração.

 

E ele, por seu lado,

É quem tem o dedo

Pousado

No credo.

 

 

1791 - Preferimos

 

Embora todos saibamos

Que a felicidade mora,

Nunca no ter, mas no ser,

Depressa nos enganamos

E preferimos agora

A prioridade inverter.

 

Em geral, quando o véu cai,

Entendemos o sumário:

O supérfluo me dai,

Passo sem o necessário.

 

 

1792 - Ataca

 

Coloca os pés no chão,

Ataca este monstro que te ferra:

O superior tem sempre razão,

Em particular quando erra.

 

 

1793 - Ideias

 

As ideias era preciso deixá-las

Do céu sob o dossel.

Descendo à terra, a nenhuma a calas

Que não dê uma escapadela ao bordel.

 

 

1794 - Ironia

 

Suma ironia da vida

É que é difícil alguém

Da vida sair um dia

Tal qual, com vida também.

 

 

1795 - Banco

 

Sempre um banco foi lugar

Onde o dinheiro se emprestava

A quem conseguia provar

Que dele não precisava.

 

 

1796 - Sexo

 

O amor é a resposta

Mas, enquanto esperamos,

O sexo é uma aposta

Que levanta, em vários ramos,

Às multidões,

Algumas excelentes questões.