DÉCIMO QUARTO TROVÁRIO
QUE AGASALHAM DA IRONIA E BOM-HUMOR OS TECTOS
Escolha ao acaso um número entre 1644 e 1796, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1644 - Que agasalham da ironia e bom-humor os tectos
Que agasalham da ironia e bom-humor os tectos
São os poemas de todos os feitios,
Trajectos
Que recobrem todos os prospectos
De viageiros de sete mares e rios.
Com a alegria de viver
Motejando,
O poema se alonga de quenquer,
Do como e do quando.
Celebra a festa,
Mesmo no sarcasmo
Que a fúria contida atesta.
É o cómico orgasmo
Que nos arrebata de pasmo.
1645 - Tamanho
O tamanho dum país
São defeitos e virtudes
E o que deles nestas mudes.
Coragem, povos senis,
Coragem, mundos viris,
- Só nos faltam as virtudes!
1646 - Explica
Que é que explica que, adorando
Eu meus filhos, me melhore
Minha disposição quando
Saem donde eu me demore?
1647 - Consiste
O trabalho de ser pai
Só consiste em reagir:
Levar a termo quem vai
Qualquer plano conseguir?
Prisioneiro de emergências,
Como não ter por frustrantes
De ser pai as exigências
Doutro mundo tão instantes?
1648 - Etapas
Quatro etapas tem a vida:
A de crer no Pai Natal;
A de não crer, que é fingida;
A de o sermos, afinal;
E a de o parecer tal qual
Na hora da despedida.
1649 - Escolha
A escolha do lugar à mesa exorta
Ao inverso da ganância:
Quem tem importância não se importa,
Quem se importa não tem importância.
1650 - Director
O director quer,
Em qualquer altura
Poder
Para casa telefonar
A ver se apura,
Se pode certificar
Que nele pensa a mulher,
Os filhos, todos e quenquer.
Se estão sempre prontos
A arrancar por ele o coração,
A pô-lo na língua, hóstia sem descontos,
E a mostrar, na função,
Que do corpo o resto, dele em todo o vigor,
Está pronto para o seu senhor.
É o que espera
Primordialmente
Da mulher sobre que impera.
Para tal a conduz à rédea curta,
Dele sob o olhar omnipotente.
Sobretudo,
Para que todo o efeito surta,
Tem direito ilimitado a informar-se:
Ele vê tudo,
Acutilante, descarado e sem disfarce.
O director, todavia
Não tem como o evite:
Todo o dia
Tem de ver
Para poder
Ter apetite.
E depois, quanto mais come,
Mais se consome.
1651 - Desporto
O desporto, de bola ou de querena,
Corte meta ou marque tento,
É a fortaleza da gente pequena
Onde, apesar de tudo, cobra alento.
1652 - Esgoto
Do fundo de desemprego
Pedem mais do que cuidamos:
Sentar-se do esgoto à beira do rego,
Beber cerveja à sombra dos ramos,
Jogar às cartas…
Nem um cão seria capaz
De paciência
E resistência
Tão fartas,
De aguentar tão tenaz,
Ali acorrentado
Ante as magníficas lojas,
Com as mercadorias proibidas mesmo ao lado,
Montras do sonho de que os despojas,
Bens cujo brilho atroz
Troça deles e de nós.
Nem um cão,
- E são homens. Serão?
1653 - Imagens
As imagens repousam bem melhor
Na memória que na vida.
A sós folheamos, no torpor,
Dos álbuns as páginas de harmonia e despedida,
Coçando vagamente os pés, distraídos,
Deles afastando os momentos vividos,
Ociosos…
- Como a vida, finalmente, nos traz gozos!
1654 - Investem
Como é que ainda se alimentam?
Investem tudo em foto digital,
Computador,
Televisor,
Alta fidelidade…
Que é que tentam,
Afinal,
Com tanta voracidade?
Já não há lugar,
Recanto onde viver, deles no lar:
Tudo se consumou
No acto de comprar.
Tudo findou
Mas nada está acabado,
Senão nada restaria ali.
E a gatunagem também quer um bocado
Para o talento de fugir de si.
1655 - Reduzir
Além da pobreza,
Há mil maneiras, acho eu, acho,
De, com fiabilidade e certeza,
Reduzir outrem a capacho.
1656 - Volante
Um vero volante, de vez,
Não guia:
À pedestre ou motorizada rês
Faz pontaria!
1657 - Represálias
Sem represálias não escapa ninguém
À família e seus pendores:
Exército demasiado disciplinado, não tem
Compaixão por desertores.
1658 - Direito
Do direito à palavra falam
Horas e horas de assentada
E, depois, de morte se abalam
Se alguém diz algo que lhes desagrada!
1659 - Tempo
O tempo pesa mais
Para os que o têm a menos.
Nada mais leve que sermos jovens joviais
E, apesar de pequenos,
Trazermos o mundo às costas.
Sentimos um poder tão sedutor
Que obrigatoriamente tem de haver outras apostas,
Outros reclames,
Que não sujeitar-nos a um empregador
Ou estudar para exames.
1660 - Mata
Mata um homem por dinheiro
E logo és um criminoso.
Mata mil, feito um luzeiro,
E és um herói fabuloso.
1661 - Linha
Quão mais longe da linha da frente,
Mais as tiradas sobre a glória do País
E da raça as bravuras viris
Devêm grandiosas e eloquentes.
O homem das trincheiras
Não fala disto,
Procura de sobreviver as escaleiras
E dos camaradas o visto.
O patriotismo é um luxo
A que não se pode entregar.
Da glória da morte o inesgotável repuxo
Só na boca do que vive no bem-bom sem arriscar.
Apenas a barriga cheia
A viver no conforto
Teoriza de heroísmo e bravura em cada ameia,
Patriotismo em cada horto.
Para o soldado que mal come,
Dorme na lama,
Convive com ratos, partilhando a fome,
Tirita de frio, sem cama,
Treme de medo,
Chora a morte do camarada,
- Apenas a imediata realidade
Conta como credo,
Um desejo de nada:
Normalidade,
Uma sopa quente,
Uma lareira acolhedora,
A roupa seca da ternura ardente,
O carinho da mãe, da moça que o namora,
Da mulher
Que nunca sequer há-de ter…
Fora disto, tudo o mais,
Agora,
É a confirmação dos sinais
Duma barriga traidora.
1662 - Defesa
Em defesa dos políticos:
Eles emanam,
Críticos,
Da sociedade que enganam.
Se todos cuidais apenas
Do dinheiro e do poder
E, quanto a preocupações morais,
Nem grandes nem pequenas,
Não deve surpreender
Que os políticos que gerais
Sejam corruptos,
Uns brutos animais,
Uns brutos.
Embora criticáveis,
Não devemos considerá-los
Os únicos responsáveis
De terras nem de gentes pelos abalos.
1663 - Loira
Só por ser loira em país de morenos
Aprisionam uma comunidade inteira
Num gueto.
E ficam serenos
Ante a asneira
Que cometem, que cometo.
Convencem-nos ininterruptamente
De inferioridade,
Da culpa de serem loiros,
Garantem que os marca Deus, convincente,
Que aspirarem à salvação é insanidade,
São uma vergonha em todos os agoiros.
Depois não admira que tenham alma deturpada,
Que se comportem como o retrato de vergonha,
Que se desprezem de vez
Como os mais, à descarada,
Lhes desprezam a inexistente peçonha
Da tez.
E quem diz: vou resistir,
Recuso-me a acreditar,
A razão nunca irei dar
A quem por tal perseguir,
Bem pode
Esperar,
Nunca lhe acode
Ter lugar.
O branco, o preto, o amarelo,
O homossexual, a mulher,
O crente, o ateu, o doutra religião,
Se é minoria, é escabelo
Da maioria que houver
De o querer bem raso ao chão.
E chamam de racional
Toda esta desrazão
Que de bem pintar o mal!
1664 - Pagar
Aquele que é muito rico
Terá sempre o mundo aos pés.
O dinheiro, verifico,
Comprará, de lés a lés,
Políticos, sociedade,
O poder, a propriedade...
O importante é ter dinheiro
Para pagar tudo aquilo.
Cómico, por derradeiro,
Se como tal me perfilo,
É não ter de pagar nada:
As pessoas se atropelam
A me darem, na esplanada,
Por aquilo por que apelam,
De graça quanto eu quiser:
Basta tocar-me ou me ver!
Tal vai, como sempre, o mundo,
Carnaval triste e jucundo.
1665 - Mentira
A mentira já percorreu, aos desacatos,
Meio mundo sem reflectir,
E a verdade ainda está calçando os sapatos
Para a seguir.
1666 - Eficácia
A eficácia duma companhia
Em lucros é medida.
Mas como vem sendo obtida
Do povo à custa, da vida e da alegria,
Teremos de perguntar também:
- Eficácia para quem?
1667 - Ajuda
A ajuda económica verifico
Que sobre
Que é tirar dinheiro aos pobres do país rico
E dá-lo aos ricos do país pobre.
O efeito é a perpetuação
Do equilíbrio da pobreza
Do terceiro e quarto mundos, sem remissão,
Ambos do primeiro mundo presa.
1668 - Crime
O crime empresarial,
Desbaratando e destruindo o planeta
À escala mundial,
É hoje a mais espalhada e mais secreta
E a menos punida
Actividade criminosa vivida.
1669 - Compram
Quando não há qualidade,
Se não compram a carreira com dinheiro,
Compram-na com lisonja, que há-de
Abrir-lhes, se não caminho, ao menos um carreiro.
1670 - Canalização
Canalização de esgoto fendida,
A ingratidão é o momento
Que transmuda as águas doces da vida
Numa torrente de excremento.
1671 - Fumo
Em ti próprio tem mão,
Senão ainda o pé te tropeça.
Fogo no coração
Acaba enchendo de fumo a cabeça.
1672 - Barriga
O homem comum
Tem a barriga cheia,
Mas quem é, perdido em tal fartum
Da colmeia?
De Deus a mais nobre criatura
É um ente vulgar,
Apenas da sinecura
A tratar.
Não aumentou em dignidade
Nem sabedoria,
Cresceu-lhe apenas a pança em rotundidade,
Em volume a carteira que acaricia.
Renegou Deus,
Concedendo-lhe hipócritas domingos solenes,
Enquanto o coração adora outros céus:
As moedas, as moedas perenes.
Despoja os continentes dos recursos,
Da vida selvagem e da beleza,
Da sabedoria milenar despreza
Os discursos,
Os ancestrais ignora,
Cospe no negro e no mestiço,
Cansa a televisão e o computador a toda a hora,
Fornica a mulher do amigo, enquanto há viço.
Tem remédios milagrosos
Para prolongar a vida
E, depois de tantos gozos,
Aos setenta anos, com que lida?
É uma casca oca oprimida
Ao peso do dinheiro mal ganho
E a uma culpa desmedida,
Aterrorizado com medo tamanho
Da morte
Que a si próprio se lamenta
Da sorte,
Estendido na areia da praia
Que inventa
Em cada raia.
Uma casca, uma casca vazia,
Eis a paga de se ter vendido
À cobiça, dia a dia,
De toda e qualquer alma ter perdido
Por uma nota, agora ao fim sem valor,
Por ter renegado a vida inteira,
O amor,
De vez murcho dele à beira.
1673 - Encasquetado
Um homem com o sexo
Encasquetado nos miolos,
Conexo
De enormes coxas aos rolos,
De cópulas místicas a falar,
De orgasmos frenéticos,
Cujo interesse angular
E gostos estéticos
É o dos filmes e das fotos pornográficas,
É por certo incapaz
Das gramáticas
Que feliz tornam, eficaz
Qualquer
Mulher.
Entre um homem deste tipo
E uma mulher exageradamente recatada
É igual o terror do mesmo quesito:
Um bom coito para eles é uma coisa tão desgraçada
Como da catástrofe o viso
Do dia do Juízo.
1674 - Zangado
Ficar zangado ninguém
Vai conseguir
Com alguém
Que o faz rir.
1675 - Comem
Os maus vivem se se embebem
De comer e de beber.
Os bons comem e bebem
Para viver.
1676 - Infância
Da infância o mais notado
É que se não fatiga de arrebóis.
O tédio só foi inventado
Depois.
1677 - Pior
Embora me falhem meus lemas
Ao primeiro enguiço,
O pior de meus problemas
É que ninguém tem nada com isso.
1678 - Imenso
Os que nada têm a falar,
No desvelo,
Imenso tempo conseguem gastar
A fazê-lo.
1679 - Obras
Qualquer que seja das obras o teor,
É mau se o sábio não aprovar, a seguir.
Se o tolo aplaudir,
É pior.
1680 - Caem
O amor é a rede
Com que eu a vida enfeixe,
Onde os corações adrede
Caem que nem peixe.
1681 - Perseguir
Há-de ser
Cortejar
Perseguir uma mulher
Até nos ela apanhar.
1682 - Crítica
A crítica pode ser evitada
Por quenquer
Se não disser nada,
Se nada fizer,
Se, enfim, não for nada.
1683 - Divã
A vida de quem ama
Tropeça,
É um divã: a cama
Que não tem pés nem cabeça.
1684 - Resolve
O diplomata
É aquele que resolve o conflito
Que entre gente pacata
Nunca teria levantado nenhum grito…
…Se não fora o diplomata!
1685 - Felicidade
A felicidade é um gato:
Se tentarmos lisonjeá-la,
Ela evita-nos, abala,
Tal se fora um desacato.
Se não dermos atenção,
Vem nas pernas se roçar
E salta, de supetão,
Para colo se lhe dar.
1686 - Pai
Pai perfeito é quem alcança
Excelente teoria
Da educação infantil sobre a via
- E não tem nenhuma criança!
1687 - Tribunal
Em tribunal há-de ganhar,
Para má memória,
Aquele que contar
A melhor história.
1688 - Mulheres
São mulheres que não andam a pensar
Nem em filhos nem em casamento
Que, a todo o momento,
Levam os homens ao altar.
1689 - Aprendi
O que aprendi com os anos bem medidos,
Ante a realidade que se furta,
É que a vida é demasiado curta
E os filmes, demasiado compridos.
1690 - Parvo
O que for de fazer
Fá-lo tal qual.
Figura de parvo há-de parecer?
- Fazer figura de parvo é essencial!
1691 - Pensa
Quando toda a gente pensa igual,
Quando no mesmo repoisa,
Então, por sinal,
Ninguém pensa grande coisa.
1692 - Espirrar
Temo encontrar-me com Deus
Um dia qualquer,
Ele espirrar nos altos céus
E eu não saber que dizer!
1693 - Desonra
A desonra das boas esposas e mães,
A contarem pelos dedos ilegítimos meses,
A fazerem contas à duração das gravidezes,
A murmurarem segredinhos à mesa dos améns,
Com os olhos a brilhar de malícia…
Não, não é sevícia, não é sevícia!...
E as desonras permitidas
Dos casamentos sem amor,
Das lisonjas na carreira promovidas,
Da calúnia sem pudor,
Do pretensioso orgulho da herança
A segregar de preconceito quem alcança?
Pois, pois! Isto é virtude
A colar-se nos costumes como grude…
1694 - Estranha
Como estranha a vida ser devia,
Vista de algum ponto sideral
Da eternidade fria!
Que paradoxal
De bípedes o desfilar daquela raça
Que da bruteza se erguera,
A falar aprendera
E a pensar com a mente escassa
Articuladamente
E com ideais,
Que se rodeara duma intérmina corrente
De engenhocas mecânicas triviais
E se gabava delas
(Lendas que sabia falsas)
E dedicava milhões de horas às sequelas
De apurar freios, gatilhos e alças
De engenhosos instrumentos
Para dizimar da própria espécie os elementos!
Estranha raça aquela
Que por mais que realize arte e filosofia
Jamais perdia
A bacoca reverência pela lapela
Do general,
Do guerreiro armado e equipado
Que olha o campo de batalha, do qual
Se ergue o gemido, o estertor desolado
Do moribundo,
E diz calmamente,
Olhando o mundo
De frente:
"Outra vitória como esta
E ficamos aviados…"
E encara como uma festa
Todos os sangues derramados!
1695 - Prende
A humana curiosidade
Nada prende com tal gana
E com tal voracidade
Como uma tragédia humana.
1696 - Verde
O ser humano se assusta
Com o novo. Se chegar
Um homem verde, que custa?
- O que faz é disparar!
1697 - Ficção
Ficção e realidade,
Entre ambas como as divido?
A ficção persuade:
Terá de fazer sentido!
1698 - Negócio
Não há negócio melhor
Do que a vida, logo à entrada:
Obtemo-la sem favor
E sempre a troco de nada.
1699 - Teime
Se encontrar alguma freima
Que adore, adore fazer
Enquanto andar a crescer,
Teime então com toda a teima
A ver se logra viver
De tal, em vez do mau acto
De optar por algo sensato.
1700 - Mosca
Um optimista acredita
Que a mosca dentro de casa
Só busca a saída estrita
E a paciência não lhe arrasa.
1701 - Amigo
Um amigo que é leal
Tirará férias no Inverno,
Vai à praia tropical
E não lhe envia um postal,
A inveja a poupar-lhe, terno.
1702 - Ramo
Um amor não acontece
Quando um ramo mui florido
Alguém lhe atento oferece
E cheira-o você, sentido.
Amor é quando alguém fala
Do cheirete que lhe coube
Todo o dia e não se cala
- E você, paciente, o ouve!
1703 - Meia-idade
Meia-idade quer dizer
Que muda o perfil que valho:
Trabalho não dá prazer
E o prazer já dá trabalho.
1704 - Novo
Se ser novo for defeito,
Saiba que tenho a mania,
O vício de andar afeito
A o corrigir dia a dia.
1705 - Vírus
Um aldeão compra um cavalo
Mas o cavalo adoece
E o motivo deste abalo
É um vírus que é mui refece.
"Vamos tratá-lo três dias.
Se ao fim não ficar curado,
Fora com as simpatias,
Tem de ser sacrificado."
O porco que tal ouviu
Logo correu a avisá-lo:
"Ergue-te, que ele saiu,
Mas vai matar-te, cavalo."
O segundo dia é igual
E nada de reagir.
"Tens de dar algum sinal
Ou vão matar-te a seguir!"
Ao terceiro dia, então,
Quando vão sacrificá-lo,
Grita o porco, em confusão:
"É agora ou nunca, cavalo!"
E o cavalo, de repente,
Um pulo dá, corre a aldeia,
Desencabrestado, em frente.
De alegria a casa é cheia:
"Milagre! A comemorar,"
- Ri o camponês de borco -
"Vamos todos festejar,
Matemos rápido o porco!"
1706 - Activo
Quem activo é como a abelha
E tão forte como um touro,
Trabalha como um cavalo,
Mas no fim já destrambelha,
Cansado, com mau agouro,
Pior que um cão em fundo abalo,
- Deveria consultar
O veterinário pasmo:
Isto porque, se calhar,
Ele é deveras um asno!
1707 - Enxertos
A ganhar conhecimento
Junte enxertos cada dia.
A ganhar sabedoria
Perca-os a cada momento.
1708 - Reformar
Antes de se decidir
A se reformar de vez,
Estas férias vá curtir:
Bem se ponha, estenda os pés,
Diante da televisão
Por uma semana inteira…
- Decida depois então,
Afinal, o que é que queira!
1709 - Fia
Ai quanta perda provém
Da ingenuidade que juntas:
Se se confia em alguém
Nunca se fazem perguntas…
1710 - Maneiras
As maneiras e o dinheiro
São acaso um cavalheiro.
Cavalheiro que é um senhor
É o que nunca inflige dor.
Contudo, o mais importante
É o amor que ele garante.
E tal, cavalheiro ou não,
Anda de todos à mão.
O mais é apenas feitio,
Gosto de quebrar fastio.
1711 - Erro
Desta civilização
O erro é de os protagonistas
Tolerarem à exaustão
Ou provocarem, sofistas,
Guerras, misérias e crimes,
Contanto que cada um
Possa manter os sublimes
Iates e mansões nalgum
Ponto seu de veraneio,
Mais os milhões de recheio.
É sempre neste cinismo
Que se abre a boca do abismo.
1712 - Sempre
Do homem a mulher
Está sempre ao lado
Para o que der e vier.
O homem está sempre ao lado
Da mulher
Que vier e der…
1713 - Ancestral
Vegetariano
É a palavra que tem
Um ancestral falar pré-humano
Para "não-caça-bem".
1714 - Pequeno
Se crês pequeno demais
Que és para influir nos fitos,
Tenta dormir em locais
Que andem cheios de mosquitos.
1715 - Confies
Nunca confies num ente
Que diz que é o chefe lá em casa:
De certeza também mente
No mais, quando bem lhe apraza.
1716 - Herói
Um herói dentro de casa
Não é cómodo, é vigília:
As glórias apenas casam
Com transtornos à família.
1717 - Macaco
Acolher a superstição
Renega Deus nos ritos que o retomem,
É uma espécie de religião
Como um macaco é uma espécie de homem.
1718 - Números
Se com números debato,
Num buraco me prefiro
Para não ver onde bato.
Se ergo os olhos, logo os firo
No mar, árvore ou mulher,
Põe-se o número a mexer,
Troca os pés, baralha as casas,
Diria que nascem-lhe asas.
E sempre há-de ser assim
Com o que mal toca em mim,
Se, sem querer, o comparo
Com o que me for mais caro.
1719 - Respeita
O homem, se és mau com ele,
Logo te respeita e teme;
Se és bom, arranca-te a pele.
Tens de ter-lhe mão no leme.
Se dizes: todos iguais
E com os mesmos direitos,
Logo esmagam, bestiais,
A lei que rege teus preitos,
Ir-te-ão roubar o pão,
Imolar-te vão de fome.
Guarda as distâncias, irmão,
Vigia o que cada tome.
1720 - Perfidamente
Todos têm a sua loucura.
A maior, porém, que de todas é a suma
Perfidamente pura,
É não ter loucura alguma.
1721 - Ambição
Uma ambição verdadeira,
Desejo de algo mais alto,
Move a humanidade inteira.
Altura tão altaneira
Que mede a grandeza a salto.
Eleva-se cada qual
Sempre aos olhos do vizinho.
É refractado tal qual
No conceito que lhe vale:
Avulta o vulto do ninho,
Aumentado na neblina
Sempre umas poucas de vezes,
Da veste que bem combina
Ao piano que nem atina,
Ao gesto e termo corteses…
Vive cada qual a vida
Na pública opinião
Com a imagem reflectida.
Por si nunca tem medida,
Para manter a ilusão.
Se, aos olhos dos similares,
For um nome de importância,
Menos não são os altares
Que eleva nos patamares
Em que se põe desde a infância.
Eis então porque trabalha
Nos escritórios, nas minas,
Sempre de horários na calha:
- Se mais produz no que talha
Maior se vai ler nas sinas.
1722 - Sublime
Gritam que é sublime o amor,
Persistem em afirmá-lo,
Mentirosos sem pudor!
Olha os milhões sem abalo
Que repetem, incansáveis,
Que o amor é sempre o cume
Do mundo de imponderáveis
Que a caridade resume…
Como actuam entretanto?
Dos actos os conhecemos,
Intrujões cheios de encanto,
Que responsáveis não vemos
Nem dos actos nem palavras
Que proferem vida fora!
Isto nunca em nossas lavras
Desmente o facto que mora
No amor: a mais importante
Função que há na humanidade.
A traição, por mais gritante,
Nunca altera esta verdade.
1723 - Rapaz
Todo aquele que porfia
Em tudo dilacerar,
Rapaz que desmancharia
Os brinquedos para olhar
Por dentro como são feitos
Não merece, afinal, preitos.
É tal se nós destruíramos
Ainda em botão uma flor
Para examinar se víramos
Como lhe era o interior:
De florir nada, em verdade,
Tem mais possibilidade.
1724 - Acampar
Acampar onde se quer
É a maneira
De a natureza promover
A indústria hoteleira.
1725 - Porsche
De Volkswagens numa data
Teremos de andar
Até que a vida disponibilizar-nos acata
Nosso Porsche particular.
1726 - Banho
Já nem o Verão me brilha
Neste meu corpo obcecado:
Mau fato de banho humilha
Mais que em vida um sujo dado.
1727 - Falara
Em menino
Falara do povo e da liberdade
Com esmagadora solenidade
Como se cantara um hino.
Mais tarde, em plena prosperidade,
Tendo à ordem um mundo de operários,
Continuara com liberalidade
Os filantrópicos discursos temerários,
Sem reparar que melhor andaria
Falando menos e aumentando os salários
Do pão de cada dia.
Mas o povo e a liberdade
Eram coisas abstractas somente
Que precisava de amar de verdade:
- De amar platonicamente!
1728 - Liberdade
A liberdade reclamada em grande grita
Não passa de costureirinha brejeira,
Miúda e risonha na mesquinha dita,
É uma liberdade de algibeira.
1729 - Jogos
Apenas há jogos de luz
Sobre as jóias e os tecidos ricos.
Salpicos
De pus,
As cabeças de velhos e novos,
No meio daquilo, são ocas
E ocas se farão entre os povos
Por delicadeza, por saber viver fora das tocas.
Todos eles são comediantes, a sorrir,
Em que não,
Ninguém logra distinguir
Nem mente nem coração.
Aquelas mulheres são bonecas
Que os ombros desvelam,
Sentadas nas cadeiras,
Como se foram canecas
De porcelana que se atropelam
Duma estante nas prateleiras.
1730 - Encantos
Esta cultura moderna
Tem seus encantos traidores.
Ser famoso e rico, a eterna
Via dos falsos amores,
E ser bonito, ir a festas
Privadas, a ser feliz…
É marcar a ferro as testas,
A canção cujo cariz
É, afinal, de desespero.
Senão, por que atrás das togas,
Da fama, do nome mero,
Há tanto quem tome drogas?
E por que é que o casamento
Poucos, afinal, mantêm?
E por que a cada momento,
Acabam presos também?
Por que são tão infelizes
Quando não iluminados
De holofotes, das matrizes
De actores bem camuflados?
Esta cultura moderna,
Que mentira mais superna!
1731 - Corre
A vida corre tão fácil
Quando o lar é de alegria
E uns para os outros vivemos!
Se o mundo estoirar, que grácil
Estoire em romaria,
Que é quanto ao fim ganharemos.
1732 - Operários
Em não havendo trabalho,
De operários finda o pão,
O que é uma normal função
Da máquina: quando encalho
Sou roda inútil deitada
À margem tranquilamente.
Serei tal roda dentada
Que ninguém vai ter em mente
Reconhecer por serviços
Prestados: deita-se fora!
Tanto pior nos enguiços
Da vida a quem se demora.
1733 - Caixeira
A freguesa desmaiou,
Que a caixeira cheira aos alhos
Que mal sequer debicou?
Despedida dos trabalhos
Há-de esta ser que estragou,
Nutrida mal, esfaimada,
Da côdea de pão tragada.
A direcção é implacável,
À queixa do comprador.
Desculpa justificável
Nenhuma se há-de propor
Mesmo admiti-la é impensável:
O empregado nunca tem
A razão que lhe convém.
Deve desaparecer,
Instrumento defeituoso
Que prejudica quenquer
No maquinismo fogoso
Do comprar e do vender.
E que baixem a cabeça
Os amigos de tal peça!
1734 - Maravilhosa
Quando parar
De beber,
Tem de lidar
Quenquer
Com aquela maravilhosa personalidade
Que foi quem o fez começar
A beber de verdade.
1735 - Circo
O coração da mulher
Tem sempre dum circo o traço:
Há sempre um lugar qualquer
Para mais qualquer palhaço.
1736 - Colhem
Algumas destas crianças
Nunca ficam satisfeitas,
Nem quando a fruta das franças
Colhem, a que andam afeitas.
Não saboreiam jamais,
- Limitam-se a querer mais!
1737 - Jovens
Em dez noites de trabalho
Pelos jovens prometidas
Sete são de sono orvalho:
Em claro, só adultas vidas.
1738 - Pé
Quem de carro se enlameia
Será sempre gente honrada,
Gente a pé de lama cheia
É sempre uma garotada.
Deite a mão seja ao que for,
É um bicho, de réus em banco;
Dum milhão roubo ou maior
É a virtude com que abanco.
Com a polícia milhões
Se gasta e com a justiça.
E é uma moral de aldrabões
Que se firma e o mundo enguiça.
1739 - Fortuna
O segredo da fortuna de momento
Sem causa aparente de permeio
É um crime tombado no esquecimento
Por haver sido cometido com asseio.
1740 - Casa
Mulher que não casa amarinha,
A cacarejar, por todos os recovos
Como galinha
Que não põe ovos.
1741 - Matar
Matar crianças é um crime.
Matar adultos numa guerra letal
É prerrogativa sublime
Da honra nacional!
1742 - Ditadores
Depressa demais os homens esquecem
E perdem o siso:
Os ditadores não enlouquecem
Mas também nunca lhes volta o juízo.
1743 - Absurdo
É absurdo que atrás do balcão
Haja alguém para quem é importante
Proteger da poeira o blusão
Enquanto diante dele, mesmo diante,
Há uma multidão
De criaturas cujas vidas
No pó são afundadas,
Na lama delidas,
A nada reduzidas,
A nadas.
- Mas o que é importante
É a poeira que no blusão se implante…
1744 - Morre
Quando alguém morre, vê bem,
Torna-se logo importante.
Enquanto é vivo, ninguém
Confia nele o bastante.
1745 - Muda-se
Alguém muda-se em arcanjo,
Em maluco ou em bandido,
Ninguém nota o novo arranjo.
Falta um botão num vestido?
As vestes não se amarrotam,
- Logo, porém, todos notam.
1746 - Acenando
Nossa cultura nos mente
Acenando o fim das penas:
Ninguém vive facilmente,
Será mais barato apenas.
1747 - Técnica
A técnica de escravizar
É também gradualmente depurada.
Ninguém hoje vai chicotear
Na estrebaria uma criada,
Antes damos forma refinada
À escravatura larvar,
Logramos encontrar
Uma desculpa requintada
Para cada caso particular.
Se pudéramos despejar
Sobre operários e empregados
As fezes que tivermos de defecar,
Fá-lo-íamos decerto, descuidados,
Imediatamente com uma justificação:
"Se os melhores foram perder o tempo precioso
Com a função
De desinfecção,
O progresso, em todo o lado,
Corre o risco perigoso
De ficar ameaçado."
O precioso
Progresso
Tem este malcheiroso
Avesso.
1748 - Era
Vivemos em era em que me convenço
De que é inviável encontrar um bocado
De bom senso
Sem de busca um mandado.
1749 - Sabedoria
Se sabedoria é poder
E por poder há tanta querela,
Por que é que não há mais gente a querer
Aspirar a ela?
1750 - Atingir
Para atingir o que quer, afinal,
De tudo é capaz esta gente,
Até de usar um meio legal
E decente!
1751 - Baile
Para vós o que é importante
É que o baile continue,
Na estrutura vigorante
Que ninguém toque ou actue,
Ninguém altere estatutos
Do clube onde o privilégio
Se diverte, enfarta-brutos,
À mesa do poder régio.
A canalha que não pode
Parte activa ter na festa,
Que se amontoa e sacode
Lá fora, ao sereno a testa,
Envergando a fantasia
Da máscara da miséria,
Permanecer deveria
Onde está e sem ter féria,
Porque vós, convivas sérios
E felizes, sempre achais
Que pobres, pelos impérios
Eternos os encontrais.
Pagais, portanto, à polícia
Para que ela vos defenda
No dia em que uma milícia
Da plebe invadir entenda
O salão onde vos dais
Às libações, vossas danças,
Amores com que sonhais,
Diversões e alianças.
Nem vos passa na cabeça
Que outra ética de vida
A inumanidade meça
Que em vós sempre anda escondida.
1752 - Corrompido
O corrompido pela fortuna
E pelo poder
Aparentemente não se coaduna:
Não repara que há-de morrer.
1753 - Marca
Em tempo bicudo,
O dinheiro
A que me grudo
Já não tem marca nem cheiro.
1754 - Lar
No lar, com a esposa,
O dever, o respeito, o pudor,
Cama de gerar filhos.
Na rua, com amante ou cortesã saborosa,
O prazer, o requinte do impudor,
A libertinagem sem cadilhos.
É a divisa
Lapidar
Do casal que exterioriza
Alta moralidade familiar.
Como o cônjuge tratar
Que, por preconceito
Ou idealizado respeito,
Considera o par
Uma coisa, um vaso,
Corpo inerte,
Pedaço de carne que, por acaso,
Afinal das profundezas o desperte?
Que admiração,
Se, afinal,
Tomba no chão
Todo o céu do ideal?
1755 - Beneméritas
Beneméritas pestes!
Sem elas era inviável
A indústria tão rentável
Das misérias e mortes mais agrestes.
Sem elas como manter
A civilização constituída,
O povo como conter,
Das pragas a mais descomedida?
Todos com saúde
E a saber ler e discernir,
Que perigo medonho para a virtude,
Que história mais sem porvir!
- E assim rasteja pelo chão
A grande civilização.
1756 - Come
Quando alguém com o diabo
Come, então terá de ter
Muito comprida a colher
E bem mais comprido o cabo.
1757 - Regra
A regra do jogo afirma
Que os homens serão mortais,
Mas qualquer gigante firma
É sagrada, eterna ou mais…
1758 - Imenso
Dele é imenso o patriotismo,
Mas, como ocorre com o comum dos patriotas,
Identifica do êxito próprio o brilhantismo,
Do interesse do país com as nobres cotas.
1759 - Textos
Os grandes textos religiosos
Têm de estranho e singular
Que neles podemos encontrar
Tudo, tudo, laboriosos,
- Desde que saibamos o que procurar!
1760 - Cone
Qualquer uma hierarquia
Sempre é um cone de gelado:
Tem de se lambê-la, esguia,
Da base ao topo elevado.
Os poucos que lá mais perto
Do erecto cume se alteiam
São só língua em céu aberto
A lamber ao que alto ameiam.
Têm língua de mamute
Num cérebro reduzido,
De tanto ser o desfrute
De lambidelas vivido.
1761 - Dinheiro
Há muitas coisas na vida
Que mais que o dinheiro importarão.
A alínea aborrecida
É que normalmente custam um dinheirão!
1762 - Conselho
Bom conselho é bom de dar,
Mas de tomar, muito mau.
Muitos o dão, ao calhar,
Poucos o tomam, a par,
E menos põem-se a pau.
1763 - Viva
O conselho e o dinheiro
Ambos são mui milagrosos.
Quem os não viva, primeiro,
Não há, de tão saborosos.
É cada tão costumeiro,
Que nem reparo, ligeiro.
De moeda ninguém se queixa
Que lhe pegara doença,
De nojo nenhuma deixa
Vejo que a ela pertença
E que mal a ninguém cheira
É uma certeza cimeira.
Tal é o conselho: se é bom,
Nenhum mal a ninguém faz;
Se é mau, ninguém de bom tom
Tem nojo dele capaz
De impedir quem se lhe abeira.
E assim tal de ambos se inteira.
1764 - Bisonha
Gente
Indisciplinada,
Bisonha, incompetente,
Provoca em cada jornada,
Com ignorâncias lerdas,
Intoleráveis perdas.
O que devemos saber
E advertir
Nem desculpa tem sequer
Nem escusa com porvir.
Como, porém, não há morte sem achaque,
Todos sabem dar saída
Aos próprios erros, passando ao ataque:
Dão então por homicida
A fortuna cujo grito
É inocente no delito.
1765 - Ganha
Mais se ganha no paço
Às barretadas
Que em campanha ao compasso
Das emboscadas.
1766 - Política
A política do mundo
Tem dois preceitos a sós:
O bom para mim, jucundo,
O mau para vós.
1767 - Repugnância
A repugnância voluntária
Tornar queremos necessária,
Desde que não nos fira a pele
Em tudo o que ela então repele.
Ir violar a boa-fé
Nunca nos serve de embaraço
Se a violação que pus de pé
A outrem logo lha trespasso:
Ser minha a culpa não importa
Se ela parece ser alheia.
A receber eu abro a porta:
Não quero dar, quero a mancheia.
1768 - Evitar
Como um mal é permitido
A evitar outro maior,
Tem-se tal norma estendido,
Subtilizado em teor,
De ilação em ilação,
A ponto de que já não
Há mal, por maior que seja,
Que tolerável não veja.
Então, de efeito em efeito,
Já não há uma iniquidade
Que por vezes não dê jeito,
Nem injustiça, em verdade,
Seja do que for à custa,
Que, afinal, não seja justa.
1769 - Engenho
O nosso engenho se esforça
Numa perspectiva tal
Que tudo pareça, à força,
O que eu quero, bem ou mal,
E jamais, com boa fé,
Deveras aquilo que é.
O discurso é um instrumento
Para o próprio lisonjeiro,
Por meio do qual o evento
Vemos falso ou verdadeiro,
Grande ou pequeno também,
Tal como tal nos convém.
É que o nosso pensamento
Aos dados não se acomoda.
A meu gosto, a meu intento
É que aplica a veia toda:
A vaidade, o interesse
Molde são do que aparece.
1770 - Molesta
Não há maior inimigo
Da ciência que a ignorância:
De alto o que fique ao abrigo
Molesta vista e ganância.
Só o que está onde estivermos
Não é de nos ofendermos.
A igualdade é natural,
Uniformidade em tudo.
Quem à lei universal
Escapa, se não há escudo,
Odioso é na sequela
Aos que se conservam nela.
Há meios para subir
E a vaidade os guia a todos.
Sem vaidade ninguém ir
Vai querer, por sem engodos.
Como dali nada augura,
Nem sequer subir procura.
1771 - Manter
É o que faz largar um vício
Mera impossibilidade
De o manter em exercício.
Ainda então o que se evade
É o uso, não a vontade:
Nós largamos a função,
Todavia, não o afecto.
Desisto da ocupação,
Mas a inclinação projecto
A coberto de meu tecto.
No fundo não somos nós
Que dos vícios nos deixamos,
Deixam-nos eles a sós.
Nós de longe os divisamos,
Seguindo-os por entre os ramos.
E por mais que ali cansados
Lhes persigamos a pista,
Na verdade, desolados,
Nunca os perdemos de vista,
Nem há ninguém que desista.
Quando não podemos ir,
Os objectos nos arrastam:
A memória há-de servir
De vícios presentes: bastam
Para ver que não se afastam.
1772 - Pessimista
O pessimista olha para o bolo
Redondo e cheio
E apenas vê, tolo,
O buraco que houver no meio.
1773 - Bom
Que bom é ser avô!
Brincamos, damos, amamos - é o lema,
Depois devolvemo-los, tão-só,
- E vamos ao cinema.
1774 - Faça
"Não há nada que eu não faça por ela,
Não há nada que ela não faça por mim."
Depois a sequela
É assim:
Vão vivendo, jornada a jornada,
Um pelo outro fazendo nada!
1775 - Pastor
O pastor ganha o rebanho
Perdido no alto do monte.
Um automóvel tamanho
Que lhe escondeu o horizonte
Até lá trepou ligeiro
Com um jovem mui lampeiro.
"Se eu disser exactamente
Quantas ovelhas tiver,
Vai dar-me uma de presente
Que eu no rebanho escolher?"
- Pergunta o jovem portento,
De espantar o outro no intento.
Concorda o zagal e então
O outro, com computador,
De satélite olha o chão
E o mapeia com rigor:
"Mil e quinhentas ovelhas,
Mais oitenta além, mais velhas."
"Correcto" - diz o pastor.
O jovem escolhe um bicho,
Dentro do carro o vai pôr.
Torna o zagal: "É um capricho:
Se o mister lhe adivinhar
Volta-me o animal a dar?"
Tendo o jovem concordado,
Diz-lhe o outro: "É consultor!"
"Como adivinhou tal dado?"
"Fácil: veio-se-me impor,
Embora ninguém o queira;
Quer ser pago em conta inteira
Por algo que eu já sabia,
Respondendo a uma questão
Que jamais eu lhe poria,
E de meu negócio não
Percebe deveras nada:
- Devolva o meu cão à estrada!"
1776 - Afeição
Odiar os teus não logra
Uma afeição nesta linha:
"Gosto mais da tua sogra,
Afinal, do que da minha!"
1777 - Exímio
Ninguém tão exímio fica
A acertar num alvo em movimento
Como a mulher que despica,
A um bebé dando o alimento.
1778 - Milhões
Milhões de crianças podem estar a morrer de fome
De África no coração
Que não há uma consciência que tal tome
Em mão.
Mas a mulher do vizinho ser vista
Com um desconhecido
De cabelo comprido,
Que notícia mais imprevista!
Notícia para ser transmitida,
Mastigada,
Despertando sensualidades carnais quando servida
Em lauta jantarada
À mesa da mente faminta:
É a novidade do ano, nem que mais nada pressinta.
Quando o horizonte da vida
É a porta de entrada,
Não há medida
Ao alheamento do que pese na jornada.
1779 - Educar-se
A educar-se cada geração anda com requinte
Para ganhar dinheiro bastante
Para educar a geração seguinte.
E ninguém faz nada com tal educação,
Pela história adiante,
Senão tal repetição.
Arrasas-te para educar teus filhos,
Para que possam arrasar-se a educar os filhos deles,
Cadilhos a atar cadilhos,
De idade em idade,
Pelas mil noites que veles.
- Com que finalidade?
1780 - Fortuna
Da fortuna apanha o nervo,
Que o custo ta não rejeite:
- Trata melhor o teu servo
E a vaca dar-te-á mais leite.
1781 - Favor
No mundo mais que agitado
Do poder, da economia,
Um senhor determinado
Deve a um outro a cortesia
Dum favor com que há lucrado,
Enquanto, por sua vez,
Outro indivíduo qualquer
Um favor que antes lhe fez
Lhe fica a ele a dever,
E outro a este… E o entremez
Vai por aí adiante
Na cadeia das promessas
E obrigações mais constante.
- Que é do metro com que meças
O valor, por mais gritante,
Das gentes a tal avessas?
1782 - Véspera
Véspera de Natal,
Que alegria!
É dia
De consoada,
O mágico fanal
Duma eterna madrugada.
Amanhã, por esta hora,
Milhões de pessoas,
Esquecidas do frémito de agora,
Afundadas até ao joelho no entulho
De fitas e papel de embrulho,
Trincando as broas,
Queixar-se-ão, sentidas,
Ignorando o Cristo:
"Que somíticas vidas!
Só me deram isto?!"
1783 - Cuidado
Livros de saúde ao ler,
Cuidado atento lhe valha:
- Pode morrer
Por causa duma gralha!
1784 - Tem
Não vai nunca ser bonito,
Mas se um homem tem dinheiro,
Não é feio, é só esquisito.
E, por mais gordo que seja,
Quando um homem tem dinheiro
É só forte que se veja.
E, se é grosseiro de impante,
Quando um homem tem dinheiro
Tal é ser interessante.
O absurdo da distinção,
Quando um homem tem dinheiro
Gosta dele até mais não.
1785 - Pague
Crime que pague a passagem
Pode viajar livremente,
Virtude pobre a triagem
Na raia a retém cogente.
1786 - Contra
Ir contra não vale nada?
Que então o céu nos acuda:
Todos nós temos pancada,
Agora só com ajuda!
1787 - Acaba
Embora o homem goste do companheiro,
Por essência,
Como também gosta de dinheiro,
Logo lhe acaba a benevolência.
1788 - Culpa
A culpa é terrível:
Nunca perdoamos,
É infalível,
Àqueles que prejudicamos.
1789 - Penduram-se
Nos tempos difíceis e selvagens
Os ladrões penduravam-se na cruz.
Nestes tempos fáceis, de civis imagens,
Tudo reconduz
A outros pendões:
Penduram-se cruzes ao peito dos ladrões!
1790 - Magnate
Para muito magnate eminente
Deus é um poço de petróleo inesgotável
E a religião,
A companhia petrolífera presente
E fiável,
Com exclusiva autorização
De exploração.
E ele, por seu lado,
É quem tem o dedo
Pousado
No credo.
1791 - Preferimos
Embora todos saibamos
Que a felicidade mora,
Nunca no ter, mas no ser,
Depressa nos enganamos
E preferimos agora
A prioridade inverter.
Em geral, quando o véu cai,
Entendemos o sumário:
O supérfluo me dai,
Passo sem o necessário.
1792 - Ataca
Coloca os pés no chão,
Ataca este monstro que te ferra:
O superior tem sempre razão,
Em particular quando erra.
1793 - Ideias
As ideias era preciso deixá-las
Do céu sob o dossel.
Descendo à terra, a nenhuma a calas
Que não dê uma escapadela ao bordel.
1794 - Ironia
Suma ironia da vida
É que é difícil alguém
Da vida sair um dia
Tal qual, com vida também.
1795 - Banco
Sempre um banco foi lugar
Onde o dinheiro se emprestava
A quem conseguia provar
Que dele não precisava.
1796 - Sexo
O amor é a resposta
Mas, enquanto esperamos,
O sexo é uma aposta
Que levanta, em vários ramos,
Às multidões,
Algumas excelentes questões.