QUARTO  TROVÁRIO

 

 

DO  ABISMO  DO  INFINITO  VISLUMBRANDO  QUE  PROPOR

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 431 e 542, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

431 - Do abismo do infinito vislumbrando que propor

 

Do abismo do infinito vislumbrando que propor,

Da abismal fundura da interioridade,

O poema em metro certo olha o alvor

E rima o dentro e o fora no fulgor

Que clareie a visão que o imo invade.

 

É no sonho e na utopia

Como no êxtase do arroubamento

Que o poema aflora o dia

Do final completamento.

 

É no tempo o além,

É o além no espaço

E de mim no fundo outro além também.

 

O poema é desmesura de meu braço:

- O infinito nada no infinito abraço.

 

 


432 - Trabalhador

 

Trabalhador na pedreira,

Agricultor, operário…

Um poeta, nesta jeira,

Não é preciso, ao contrário.

 

É um engano, todavia.

Por trabalhar no exterior,

Usando mas mãos dia a dia,

Não é jamais de supor

 

Que não sonhe cada qual.

Há-de precisar de termos

Que descrevam, por igual,

Sentimentos que vivermos

 

E música que nos erga

Do silêncio raso ao chão

Para um reino que nos verga,

Sagrado de inspiração.

 

O peito nos anuncia:

- Fome de arte é o dia-a-dia.

 

 

433 - Perder

 

Perder um pai, uma mãe,

Com que a vida se teceu

Sempre à lama atira alguém,

Rasga-lhe o manto dum céu.

 

A morte é sobre ir abaixo

E de ir abaixo teremos

Para depois, sacho a sacho,

Cultivar quanto restemos.

 

Após a morte já não

Somos a mesma pessoa.

Mas aprendemos ou não?

Vivo ou ando a vida à toa?

 

 

434 - Dádiva

 

As experiências ofertam

Alguma dádiva em norma.

Se as buscas a malha apertam,

Verão que lá toma forma.

 

Por vezes será um problema

Por entre as lágrimas vê-la,

Mas acabar-se-á, por lema,

A descobri-la, singela.

 

Não é bem o que esperamos?

É o melhor rumo a tomar

Para a meta que aguardamos

Sem sequer a vislumbrar.

 

 

435 - Encontra

 

Encontra a parte de ti

Que ousou sonhar que podia

Fazer diferença em si

No ambiente em que vivia.

 

Ainda podes criar

Um efeito positivo

De onda em teu breve lugar

Que ao mundo se estenda vivo.

 

Se deixares de tentar

Ligar-te às pessoas, ficas

Isolado a sufocar,

Autista pião das nicas.

 

Crescer é adquirir poder

Para alcançar objectivos

No mundo adulto que houver.

Algures no trilho, esquivos,

 

Começamos a ignorar

Gatinhos perdidos, gente

Sem abrigo que a penar

Caminhe anonimamente,

 

Porque é mais fácil fechar-se

Do que com necessitados

Alguém solidarizar-se,

Só para não ter cuidados.

 

Então é que pára em germe

Cada qual, de todo inerme.

 

 

436 - Caridade

 

A caridade alimenta

As almas, mas realismo:

Ninguém tem, nem quando o tenta,

De o mundo salvar do abismo.

Saboreia só, conexa,

Dele a beleza complexa.

 

Muita maneira há-de haver

De fazer a diferença

E todas são de estender

As mãos a quanto convença.

Dão-me os que ajudei, real,

Um impulso espiritual.

 

A energia positiva

A si própria se alimenta

E a nós retorna mais viva:

Quão mais se der, mais aumenta.

 

 

437 - Encontrar

 

Quando uma verdade, entre as paisagens vistas,

Encontrar logrei com que, jamais hostis,

Concordam cristãos como subtis budistas,

E também judeus, de Maomé sufis,

 

Então é provável que encontrado tenha

Algo de importância mais que bem profunda,

Algo que nos fala, de verdades senha

Universais, últimas, que o mundo inunda

 

De significados e que toca, enfim,

Do destino humano fundamento e fim.

 

 

438 - Todos

 

Somos todos, felizmente,

Parte dum todo maior.

Gosto de estar consciente

De verdades deste teor,

Muito embora isto me implique

Menor controlo que fique.

 

Estamos todos demais

Interligados a tudo,

Quer uns com os outros mais,

Quer com o ambiente a que grudo,

(A vida enfeitiça o dia

E é complexa em demasia)

 

Para a mera convicção

"Crias tua realidade"

Ter uma fulcral função.

Pois, de facto, na verdade,

A crença de que controlo,

Crio a teia em que me enrolo,

 

Vai é privar-me do rico

Contexto misterioso

E complicado em que fico

Com o apoio de que gozo.

Finda, do controlo em nome,

Negando os laços que eu tome,

 

A teia de relações

Que me sustém e dá vida

Como a cada que supões

Diariamente em perene ida

Do mundo até aos balcões

Onde é servida a iguaria

Do Homem para a romaria.

 

 

439 - Fresta

 

Qualquer alma é testemunha

Que em nós há, na intimidade.

Do Espírito indica a cunha

Que abre a fresta à eternidade

Mas é a última barreira

Do Espírito ao pôr-me à beira.

 

É a partir da posição

De testemunha que posso

Ao Espírito do chão

Saltar o perene fosso.

Mas a própria testemunha

A se dissolver propunha.

 

É que nossa interior alma

Tem de ser sacrificada

E libertada da palma

Da vitória, renunciada,

Há que morrer para ela

Para a última sequela,

 

Derradeira identidade

Com o Espírito poder

Irradiar de verdade.

Qualquer alma tem de ser

Apenas a contracção

De apreender um eu vão,

 

O subtil nó que restringe

O Espírito universal,

Última forma que finge

Um eu separado igual,

O nó final que terá

De ser desfeito acolá.

 

Eis a morte terminal:

Primeiro para o eu morro

Que em mim for material;

Depois não busco socorro

Num eu corporal idêntico

E o mental finda inautêntico;

 

Para qualquer alma, enfim,

Finalmente morrerei.

Grande morte do eu em mim,

É o degrau com que erguerei

De meus eus mortos a escada

Do Infinito que me agrada.

 

Cada morte para um eu

Detrás é um renascimento

Mais alto no rumo ao céu,

Até ao ressurgimento,

Alumiação derradeira,

- A libertação cimeira.

 

 

440 - Castelos

 

Se constróis castelos no ar,

Teu trabalho não é vão,

Lá se devem elevar,

Que primeiro sonhos são.

 

Trabalha após o cimento,

Constrói-os: que os ventos venham

E, qualquer que seja o vento,

Que os castelos se sustenham!

 

 

441 - Precisam

 

O que os humanos requerem

Não é vida sem tensões.

Precisam, quando o conferem,

Ao sentir os repelões,

De responder, à porfia,

Com renovada energia,

 

À chamada do difuso

Que à frente anda à sua espera,

Para poder, com bom uso,

Realizar-se a quimera,

Que é sempre do nevoeiro

Que vem o sonho cimeiro.

 

 

442 - Maldição

 

A maldição de sonhar!

A diferença entre o sonho

E a realidade, a par,

É tão grande que, bisonho,

 

Tudo, afinal, nos faz mal

Quando observamos, sumida,

A distância radical

Que há sempre entre o sonho e a vida.

 

 

443 - Escava

 

Escava no imo de ti:

É no imo que está do bem

A fonte que brota ali

E ela pode brotar sem

Cessar, permanentemente,

Se escavares sempre em frente.

 

 

444 - Resto

 

Viste acaso a mão cortada,

Pé, cabeça separada,

 

Caída a alguma distância

Do resto do corpo em ânsia?

 

É o que a ele próprio faz,

Na medida de seus meios

Quem rejeita para trás,

Recusa e aperta os freios

 

A tudo o que lhe sucede,

Que se corta do conjunto,

Que pratica (e nada impede)

Contra o todo em todo o assunto.

 

Repele a união natural

De que é parte em nascimento

E separa-se, afinal,

Dele mesmo em cada evento.

 

Mas a possibilidade

Tem de reunir-se de novo

Ao todo de que é metade

Cortada de único ovo.

 

É o homem único ser

A que é dado o privilégio

De ao todo voltar, se quer,

Mesmo após um corte régio.

 

Então pode retomar

De membro participante

O abandonado lugar

E segue uno por diante.

 

 

445 - Construí

 

Construí uma utopia

A partir de projecções

Ancestrais: esbarraria

Nos quotidianos senões,

 

Pela inércia entorpecidos

Do tempo, feito de estratos

De idades envelhecidos.

Ali nunca os novos actos

 

Vingarão, de tão estranhos:

- Só perdas junto, não ganhos.

 

As camadas das idades

Ao céu matam veleidades.

 

 

446 - Contos

 

Os contos são meros sonhos:

Tudo o que vês é habitado

Por alegres ou tristonhos

Sonhos que há por todo o lado

E teceram os sentidos

Mil que há por aqui vividos.

 

 

447 - Nenhuma

 

Nenhuma religião

É a religião verdadeira.

Eis a absoluta razão:

Nunca a razão a joeira.

Mas todas são, por igual,

Frestas do Infindo abismal.

 

 

448 - Trauma

 

Se o trauma não superar,

Não logro seguir em frente.

Porém, se o supero, a par,

Abro voluntariamente

Mão da pessoa que eu era

Antes que tudo ocorrera.

 

A vida é de facto assim,

Abro sempre mão de mim

Para noutro me tornar

Até me infinitizar.

 

A vida é aquilo que invade:

- Semente de eternidade!

 

 

449 - Lonjura

 

Problema do casamento

Ou dele talvez a força

É correr cada momento

A um longe que me distorça

E ao fim não há nem resquício

Do que eu seria no início.

 

Se ambos tivéramos sorte,

Ainda nos reconhecemos

Anos após, noutro norte

Que juntos atingiremos.

Sempre o lar é gabinete

Que o desafio repete,

 

Que não desiste jamais,

De fadiga sem sinais,

 

Até reduzir-me ao grito

De eu me visar no Infinito.

 

 

450 - Cadastro

 

O problema de ficar

De consciência tranquila

É que pensamos limpar

Nosso cadastro à má fila

E recomeçar, enfim.

Mas tal não é nunca assim.

 

Não podemos apagar

Aquilo que nós fizemos,

Há-de a nódoa ainda lá estar

Sempre que para lá olhemos

Sem nos lembrar de esconder

A desilusão que houver.

 

O passado é o intocável,

Por isso é irrecuperável

 

À escala de nossa vida:

Sempre o além é o que convida.

 

 

451 - Conta

 

Gostas de contar estrelas?

Ninguém consegue acabar.

Não é só da conta delas

O que se conta ao contar,

 

Não é o número, é o assombro

Daquilo tudo de além.

E é o que vejo de teu ombro

Quando te olho a ti também.

 

É a maravilha de tudo,

O Infinito a pôr-me mudo.

 

 

452 - Simples

 

Fruir do belo extrair

É do que é simples prazer.

Criatividade haurir

É o imprevisto fazer

 

Para alimentar a história

(Feita rotina e secura)

Com renovada memória

De sabor e de aventura.

 

 

453 - Prefere

 

Um empreendedor não culpa

Os mais, prefere mudar,

Põe-se à estrada sem desculpa,

Não lhe basta detectar

Os erros que atrás houver,

Corre em frente sem temer.

 

- Rasga, pois, os teus caminhos,

Não te escondas nos vizinhos.

 

 

454 - Aumenta

 

A espiritual razão

Aumenta o conhecimento

De erros que nas trilhas vão,

Como aumenta a percepção

Dos limites do que tento.

Aumenta a compreensão

 

Da vastidão dos aspectos

De viver sem raia ou tectos

 

Que, por trás de nosso grito,

Abre, afinal, o Infinito.

 

 

455 - Âmago

 

O âmago de nossas almas,

Buraco negro vazio,

Nos suga a paz, queima as palmas,

Ante as dores, o fastio

 

Da vida como da morte:

O fim de nossa existência

É uma angustiante sorte

Que enfrentamos com premência.

 

É sempre tensão gritante

Ter o mistério diante.

 

 

456 - Miseráveis

 

Há ricos que vivem tristes

E miseráveis, alegres

Que do dia em que desistes

Fazem dia em que te integres.

 

Não têm roupas de marca,

Automóveis luxuosos,

Nem casa na areia parca,

Mas na memória, gostosos,

 

Há jardins por onde brotam

Espontâneas emoções

Ricas que o negrume enxotam,

Ideias com corações.

 

Para os barcos neles surtos

De sonhos em que te alongas,

Os teus Invernos são curtos

Mas as Primaveras, longas.

 

 

457 - Defesa

 

Negar é a primeira linha

De defesa contra aquilo

Que vejo que não se alinha

Ao prévio saber tranquilo,

O preconceito que tinha.

 

Mas que assustador não é

Gritar alguém, lá dos cimos

Que não vimos, de má fé,

O que sabemos que vimos!

Até de mim perco o pé!...

 

- O mal da mente fechada

É que ao mundo fecha a estrada.

 

 

458 - Cabe

 

Não te cabe construir

Catedrais nem demoli-las,

Só reparar, no porvir,

O que doutras mãos as filas

 

Hão de antanho construído,

De modo que as que se houverem

Após as tuas erguido

Possam, ao amanhecerem,

 

Continuar, ao fresco orvalho,

O interminável trabalho.

 

 

459 - Coincidências

 

Coincidências não existem

E, como as não há jamais,

Há um padrão vasto demais

Para que os traços se avistem,

 

Para o lograr discernir,

Cuja teia poderemos

Tecer enquanto vivemos

Ou, ao invés, destruir,

 

Consoante a qualidade

Do que escolher a vontade.

 

Sempre aos rumos do Universo

Terei de adestrar-me, terso.

 

 

460 - Falhanço

 

O falhanço é provação

Que o iniciado à Luz

Acolhe em aceitação,

Em elegância traduz.

 

Para o mundo o que é falhanço

É para o iniciado

Adiamento do lanço

Ou escolha em que haja errado.

 

Em qualquer caso, a seu ver,

Só tem que tudo rever

 

Para o futuro aceitar

Com o que o Cosmos marcar.

 

 

461 - Tentar

 

Tem de haver sempre mudanças,

Tem de haver sempre o disposto

A tentar mais contradanças,

Afoito ao perigo imposto,

Trilhando onde, em tempos idos,

Foram rumos proibidos.

 

Tem de haver a aventurar-se

Quem disposto em territórios

Queira além ir do disfarce

Dos totais de agora inglórios,

Além do que é conhecido,

Seguro mal-entendido.

 

Quem trazer a informação

Da existência de locais

Que nem a imaginação

Logre alcançar como tais

Possa, correndo então risco

De acabar fora do aprisco.

 

 

462 - Sonho

 

O sonho está vivo, vivo,

Nos corações e nas mentes

Dos homens todos, arquivo

Do mundo inteiro, sementes

 

Dos que acreditam, que lutam

E morrem para atingir

Algo que ignoto disputam,

Fé na qual põem porvir.

 

Uma nação não é só

De carne, de pedra e terra.

Primeiro ergue-se do pó

No coração que ela encerra

 

E depois na mente a agir.

Noite não vence, é vencida:

Um dissidente é o luzir

Da madrugada da vida,

 

Cada resistente entalha

Pegadas fora da rota,

Mantém acesa a mortalha,

É meu, meu compatriota.

 

 

463 - Único

 

O que os padres nunca sabem,

Que não sabem os rabis,

Que os pastores menoscabem,

Que não sabem os muftis,

Deles com o único Deus,

Verdade única dos céus,

 

É que uma pretensão vã

Duma história verdadeira

Não existe e que é malsã

Através da história inteira:

A verdade muita face

Tem perante quem a abrace.

 

Pende de nossa vontade

E de nosso pensamento

Que é que em rota nos invade,

Onde leva o som do vento,

Se no fim é Eternidade

Ou vazia soledade.

 

E ninguém nunca à partida

Saberá disto a medida.

 

 

464 - Adorada

 

A energia que criou

Do Universo a infinidade

Sempre adorada acabou

Na casa como na herdade

 

Por mãos de homem construída

E não por estar contida

 

Dentro dum dogma, prisão

Dos homens erguida à mão.

 

Esta sempre os prisioneiros

Matou pelos atoleiros.

 

 

465 - Crente

 

Se o crente, a razão tacanha,

Considera o deus dos mais

Como do demo barganha,

Mais pobre fica e reais

São perdas com que se amanha:

Os deuses, enquanto tais,

São o que são, Deus-quase-é,

Sempre além de qualquer fé.

 

Deus nunca se justifica

Ante quem cá pontifica.

 

Qualquer que seja o modelo,

Tem sempre com Ele um elo.

 

 

466 - Melhor

 

O deus melhor que adoramos

É o que for menos fanático

Que do sacerdócio os ramos,

Que de fé qualquer os práticos,

 

E nunca deu dele aval

A quem dele dá sinal.

 

Por trás de homem pretensão

Há só muda escuridão

 

Mais o sacrílego orgulho

De por oiro dar entulho.

 

 

467 - Mesmo

 

Deus tem sempre muitos nomes

Mas é o mesmo em toda a parte.

Quando Maria-mãe tomes,

Rezas sem saber, destarte,

À mãe do mundo, na forma

Que reveste em tua norma.

 

Deus do padre, do rabino,

Do mulá, do Dalai-lama,

Um só são no igual destino,

Um só tronco em muita rama.

Deus cristão ou dos druídas

São o mesmo em muitas vidas.

 

E jamais se esgotará

O Infindo no que houver cá.

 

Quem lhe condena uma pista

Somente empobrece a lista.

 

 

468 - Prefiro

 

Prefiro ter a mãe terna

Que ter um deus rigoroso

Que exige, norma superna,

Que viva e morra, com gozo,

Segundo dele a vontade,

Sem prezar-me a liberdade,

 

Pois só cumprirei tal regra

Quando a mim ela me integra.

 

Então, erguido do pó,

Eu e Deus somos um só.

 

 

469 - Tremes

 

Nunca estarás preparado:

Segundo o tempo do mundo

Tremes ainda em todo o lado

E choras, sempre infecundo,

Pelo que ser evitado

Não pode, quando Eu te inundo.

Não olhes, pois, desviado,

No teu centro é que Eu abundo,

Eu-tu: somos um só dado!

 

 

470 - Perto

 

Minha fé perto de Deus

Mais há-de estar do que a tua

Se do bruxo crês que os véus

Nos desfarão quanto actua

No que Deus fez pelos céus:

Estamos todos nas mãos

De Deus, sem fuga ou desvãos.

 

 

471 - Uno

 

Deus é uno e só há um Deus,

Tudo o mais são meras formas

De ignorantes e de ateus

Representarem as normas

Do que entendem termos seus:

São imagens, são conceitos

Ou de agir alguns preceitos…

 

Mas nada ocorre no mundo

Daquele Uno sem o aval,

Vitórias de que me inundo

Ou derrotas, por meu mal,

Tudo vem do abismo fundo.

Imagens, dogmas, o rito…?

- Nosso apelo ao Infinito!

 

 

472 - Música

 

Ouço a música. Ao ouvi-la,

Sou para um mundo levado

Onde a escolha me é tranquila:

 

Cristão ser, ateu, pagão,

A sério nunca há importado,

Nem paz nem guerra serão.

 

Somente o espírito humano

Flameja na escuridão:

É o que importa e não traz dano

Na infinita solidão.

E esta luz de nada assim

Chora de emoção em mim.

 

 

473 - Fins

 

Ninguém Deus pode invocar

Para os próprios fins servir.

Deus, fatal, há-de soprar

Através dos fins que vir

Que a peito o homem tomar

Ao traçar qualquer porvir,

- E de Seu vento nos traços

Desfaz tais fins em pedaços.

 

 

474 - Importância

 

O que faremos ou não

Mui pouca importância tem.

Segundo o seu coração

E a vontade que mantém,

Com ou sem olhar a engodos,

Deus nos coordena a todos,

 

Seja o que for que pensemos

Que estivermos a fazer:

De peões não passaremos

De Deus na mão que nos der.

Mas terei sempre uma escolha

Entre isto ou outro que acolha.

 

 

475 - Cuido

 

"Cuido de meus filhos todos,

Mesmo quando entre eles brigam,

Nos tempos todos e modos

E não só nos que hoje os ligam.

 

A minha luz pode ser

Tua eterna escuridão

E um teu Inverno qualquer,

Da Primavera meu chão.

 

Aceitas que isto, a seguir,

É um bem maior que há-de vir?"

 

- Este amor que a Deus nos liga

Como a vida nos castiga!

 

 

476 - Mesmo

 

Se bem que todos tenhamos

Dos deuses diversos nomes,

O mesmo afinal visamos

Na essência das mesmas fomes.

 

Qualquer deles adorar

É igual devoção, a par.

 

A distância a que distamos

É só do amor com que amamos,

 

Não do dogma ou teologia:

- Sem o amor são fantasia.

 

 

477 - Chorei

 

Bem chorei na escuridão

Cuidando se tinha feito

A tarefa certa ou não,

Que é vão dos choros o leito.

 

Podes nunca vir a ter

Uma certeza evidente.

Tudo o que podes fazer

São as freimas do presente

 

E aguardar então que um dia

Deus venha acaso explicar

A razão da correria

A que te ande a espicaçar.

 

 

478 - Queima

 

Há dias em que o poder

De Deus queima como o sol,

Depois há-de escurecer

E é luz sonhar o arrebol.

Desde sempre assim tem sido

E há-de ser até o olvido.

 

Só temos a alternativa

De crer que ao fim tudo viva.

 

Todo o Cosmos é um ser vivo

E Deus, o imo de tal crivo.

 

 

479 - Espírito

 

O espírito se movia

Do mundo através dos lábios

E de quanto se veria…

Aprender em harmonia

A viver com astrolábios

De tal movimento é a via,

A eterna via dos sábios.

 

 

480 - Face

 

A face externa do mundo

É sempre a mais variada,

Cheia de contradições.

À superfície, fecundo,

Há sempre verdade em cada

Culto de fé com funções.

 

Mas a um nível mais profundo

É que se pode encontrar

Uma única verdade

Por trás deles, onde afundo

Num só Deus a que adorar,

Principiador sem idade.

 

Por trás de todos os rostos

É o mesmo Deus sempre a postos.

 

 

481 - Humano

 

Podemos em nossas mentes

Entender o Deus supremo.

Mas ao viver, entrementes,

Em humano corpo, eu gemo,

 

Neste mundo variado,

Por algo que possa ver,

Tocar, amar, a meu lado.

E do supremo poder

 

Cada imagem é uma parte

E todas as partes juntas,

A ideia que se reparte

Do Todo que então assuntas.

 

Quem insiste num só Deus

Há-de estar com a razão

Como hão-de estar os ateus,

Como os que a muitos se dão.

 

Todos são, todas as frentes,

Um em modos diferentes.

 

 

482 - Único

 

Deus único todos querem.

Nossa falha, deste modo,

É que um só rosto conferem

Confundindo-o com o Todo.

Se abrirem lugar aos mais,

Reina a paz pelos quintais.

 

 

483 - Servir

 

Fazes bem em servir Cristo,

Como outrem servindo Alá

E um terceiro, a Jeová…

Porque no fim, tudo visto,

 

Só errarão ao supor

Que não há outra verdade

Que aquela a que dão a cor,

Que o Além é falsidade.

 

Confundem o aqui-agora

Com o Infindo que demora.

 

 

484 - Verdade

 

De Deus a verdade, o Ser,

É sempre mais importante

Que uma palavra qualquer

De homem que a língua disser

E, nos princípios, garante

 

Que as crenças todas, em suma,

Serão sempre apenas uma.

 

 

485 - Coração

 

Deus anda sempre a falar

Nas árvores, na colina,

No coração que escutar

Dum homem que se lhe inclina.

 

Por era um iluminado

Dos humanos na linguagem

Nos terá sempre falado.

Porém, após a triagem,

 

Apenas alguns conseguem

Ouvir o que, ao fim, perseguem.

 

É a nossa condenação:

- Mal vemos o coração.

 

 

486 - Semente

 

A semente compreende

O poder que a irromper faz

Da escuridão que a lá prende

Para a luz que o dia traz?

 

Entende a criança a força

Que andar a empurrá-la em frente,

Calcular vai a quanto orça

Não ter mais seguro em mente?

 

- Tudo o que exige teu posto

É só que estejas disposto.

 

 

487 - Alcance

 

Será que irei ansiar

Por uma felicidade

Sempre além de alcance a andar?

 

Ou com o tempo e a idade

Vou aprender a viver

Conformado à opacidade

 

Da bruma que em volta houver,

Emparedado na grade

Que empareda aqui quenquer?

 

Em nós o mais fundo grito

É saudade do Infinito.

 

 

488 - Árvore

 

Árvore que abriga o povo

Estende os braços ao céu

Mas finca em terra o renovo,

Na raiz que lá prendeu,

Porque, senão, morrerá

E a ninguém ajuda já.

 

Deste diálogo atento

É que o grão gera o rebento.

 

 

489 - Nadas

 

Haver pode santidade

Nos nadas do dia-a-dia.

Se lhes toco sem verdade,

Sem preparar-me à magia,

Aura que dentro os invade,

Então significa a morte

O que deles colho em sorte.

 

É que tocar no mistério

Sem estar bem preparado

É da morte sob o império

Tombar sempre derribado.

 

 

490 - Procuras

 

Tu, que procuras a Deus

E crês saber o que queres,

Sabe agora que estes céus

Não são nunca o que teceres:

- Deus é sempre outro e, à toa,

Algo mais que te atordoa.

 

 

491 - Confinado

 

Não consigo crer que Deus

More confinado às caixas

Em que os homens, sempre incréus,

O sepultam, credo em faixas:

Ele é sempre outro e além,

Por mais que o queiram refém.

 

Se o vejo mãe e tu, pai,

Não serão as duas formas

De ver como Ele se esvai

Sempre além de quaisquer normas?

Por que então nos custa tanto

Tolerar doutrem o encanto?

 

 

492 - Quarto

 

A vida é um pequeno quarto

De águas-furtadas, normal,

Mais aquela luz que acarto,

Luz de céu, pairando igual

Sobre mim, que logro ver

A piscar-me do nadir,

Mas não consigo prender,

Mas não consigo atingir…

 

 

493 - Egoísmo

 

Precisamos de despir

O egoísmo do eu acima

Do outro que em frente vir

E teremos de assumir

Que somos entes em clima

Duma relação inteira:

Só nesta o todo se abeira.

 

Se outro enlaço de verdade,

Começa a totalidade

 

 

494 - Longe

 

Há um lugar que longe mora,

Vasto é o mundo, imensidão,

E a minha aldeia demora,

De pequena, em minha mão.

 

Ora, quem é interessante

Embora vai num instante

 

E é na aldeia ou na cidade

Que até o mundo é nulidade

 

Ante a imensa vastidão

Do longe a estender-me a mão.

 

 

495 - Sequer

 

Fizemos amor dobrado

Mesmo sem ter-nos despido

Nem ter por ti dentro entrado,

Nem sequer ter-te tocado:

Tivemo-nos no sentido

E os afectos explodido

Hão num vulcão inflamado.

 

Trocámos mil e um afectos

Nas palavras mal trocadas

E o mundo inteiro são tectos

Ao infindo abrindo estradas.

 

Na hora de percorrê-las

Nosso céu tem mil estrelas.

 

 

496 - Procuram

 

Ninguém deseja sofrer

Mas todos procuram dores,

Sacrifícios, a se ver

Puros e merecedores

 

Do respeito dos maridos,

Dos filhos ou dos vizinhos…

- Que é, por trás destes sentidos,

Do Deus onde estão seus ninhos.

 

 

497 - Encontros

 

Os encontros nos esperam

E a maior parte das vezes

Evitamos que aconteçam.

Mas, se os pés nos desesperam

E se mais nenhuns reveses

Piorarão os que feneçam,

 

Ou se muito entusiasmados

Estivermos com a vida,

Então o desconhecido

Advém de todos os lados,

Todo o Universo, em seguida,

Muda de rumo e sentido.

 

Momento de descoberta,

Sempre encontro a porta aberta.

 

 

498 - Voz

 

"Eu nunca ouvi voz alguma"

- É o que sempre todos pensam.

No entanto, todos, em suma,

Quando os gestos mais se adensam,

 

Sempre andam ouvindo vozes:

É o que te faz suspeitar,

Quando à vida os fios coses,

Que um sinal vem-te acenar.

 

Quando dele estás diante,

Súbita a luz to garante.

 

 

499 - Liberdade

 

Liberdade de fazer

Aquilo em que acreditemos,

Não o que a igreja quiser,

Que um Governo quer que armemos…

 

- Descobrimos novamente

Que o passado contém puro

O caminho do presente

Que é resposta do futuro.

 

 

500 - Crescendo

 

Tal como uma catedral

Sou eu como todos nós,

Vamos crescendo, fanal,

Mudamos de forma após,

 

As fraquezas enfrentamos

Que devem ser corrigidas,

Nem sempre o melhor achamos,

Tocamos em frente as vidas

 

A tentar ter-nos erectos,

Honrando, não as paredes,

Não os portais nem os tectos,

Mas a fonte para as sedes:

 

O espaço vago ali dentro

Onde sempre veneramos

O que é caro e onde não entro,

O que importa e nunca achamos.

 

 

501 - Custou

 

Custou muito até que o mundo

Chegou onde aqui chegou.

Organizámos fecundo

O trilho que se trilhou.

 

Não é jamais o ideal,

Mas permite conviver.

Algo falta a cada qual,

Há sempre falha em quenquer,

 

Por isso nos reunimos,

Que ninguém fique sozinho:

- Talvez, do que compartimos,

Rasguemos outro caminho.

 

 

502 - Convive

 

Deus mora e convive aqui,

Porém todos acreditam

Que é preciso o frenesi

De o procurar no que habitam.

 

Parece-lhes que é demais

Aceitar de boa-fé

A simpleza dos sinais:

- Que a vida é um acto de fé!

 

 

503 - Espírito

 

Preocupar-se, chorar,

Irritar-se tal quenquer,

Sem, porém, nunca ignorar

Que, lá em cima, há-de entrever

O seu espírito a rir

Do difícil que auferir.

 

Muito além morará, grácil,

Do difícil ou do fácil:

 

- Ao acolher o infinito,

Nunca o fere nenhum grito.

 

 

504 - Frágil

 

Onde será que deixei

A frágil alma perdida?

No passado onde sonhei

Que seria a minha vida.

 

Deixei-a presa ao momento

Onde houve um lar, a família,

Um emprego de tormento

De que livrar-me em quezília

 

E a que faltou-me a coragem.

Tenho alma em muito passado,

Para aqui não há bagagem.

Quando olho cá deste lado,

 

Não sei bem o que fazer,

Constato apenas que a vida

Me empurra a um rumo qualquer

Diferente, em minha lida,

 

E eu nunca quero lá ir,

- Quando ali é que é o porvir.

 

 

505 - Aumenta

 

Muita gente, neste afã

Dum mundo sem ameaças,

Aumenta cada manhã

De defesa muitas traças,

Que do mundo exterior

Não entre cá nem palor.

 

Deixam o mundo interior

Para trás desguarnecido.

Então, daqui, o amargor

Tredo ataca o distraído,

Em toques quase invisíveis,

Com danos irreversíveis.

 

O grande alvo é o da vontade:

Perdem desejos de tudo,

Ninguém outro mundo invade,

Do seu não sai, sobretudo.

Evitam ataque externo,

Tolhem crescimento interno.

 

Como sempre, continuam

A trabalhar, protestar,

Filhos a ter que lhes fluam

Pelo rotineiro lar,

Mas tudo sem emoção,

Que controlam tudo à mão.

 

Grandes paixões, raiva, amor,

Desespero ou entusiasmo

Jamais se irão sobrepor

Ao tédio mortal sem pasmo:

Nem vontade de viver,

Nem a de morrer, sequer.

 

Para tais amargurados

São os heróis como os loucos

Que os mantêm fascinados:

São estes aqueles poucos

Ante o risco indiferentes

Que são doutro mundo agentes,

 

Ofertam raros momentos

De a muralha de defesa

Saltar ao uivar dos ventos,

Espreitar a vida acesa.

Mas àqueles os pés cansam,

Voltam à vida onde rançam.

 

 

506 - Inferno

 

O inferno de Deus amor

É pelos homens que tem,

Que o atormenta o teor

Das atitudes que advêm

Cada momento que passa

Quando a eternidade abraça.

 

Um homem sempre precisa

Do que nele há de pior

Para aprender, quando visa

O melhor a se propor.

E quanto no fim recolha

Depende apenas da escolha.

 

Deus há-de sofrer, assim,

Até os tempos terem fim.

 

 

507 - Ignorantes

 

Todos são ignorantes, conformados,

Não acreditam nunca no incomum,

Apenas no que estão acostumados

A acreditar, matando enigma algum.

Recusando ir além de seus ilhéus,

Todos têm, enfim, medo de Deus.

 

 

508 - -Qual

 

Mas qual das religiões

Afinal, é verdadeira?

Nenhuma delas, supões,

E todas de igual maneira.

 

Nem verdadeira nem falsa

É qualquer religião:

As propostas que realça

São modos de arrotear chão

 

E, para quem a acolher,

Um ideal de viver.

 

 

509 - Trocar

 

No Inverno vejo o cenário

Coberto de neve um dia;

Na Primavera o sudário

Ninguém o imaginaria.

Dentro de nós semelhante

Muda ninguém vê diante.

 

E, contudo, vida fora,

Trocar de era não demora.

 

Não é jogar roupa ao chão,

- Mudamos de coração.

 

 

510 - Vaguear

 

Ao vaguear por aí,

Pisando acabo um besoiro

E na aragem que movi

Uma mosca que nem vi

Escapa, em zumbido de oiro,

 

E acaba por ir parar

Onde há pouco era meu chão.

Se do insecto no lugar

Em mim então reparar

E vir do Cosmos a mão

 

A moldar o meu papel,

É por demais evidente

Que todo o dia me impele

Força tal que me revele

Que de mim de vez ausente

 

Me fica qualquer controle,

Como o de meu pé lhe fica

Ao besoiro que em chão bole.

Que fazer sem que me imole?

Só quem a entender se aplica

 

Do Universo o movimento

Que em torno de nós nos molda

E a calcular o momento

De actuar conforme o vento

É que no todo se solda,

 

A fim de que não lutemos

Contra correntes fatais:

Só então nelas nos movemos.

- E assim é que nós seremos

Da infinidade sinais.

 

 

511 - Objectivo

 

Todo o objectivo da vida

É sermos revelação,

Um canal feito à medida.

Ouves-te a ti próprio, não

Compreendes, em seguida,

Que jeito tem tua mão

Ao surpreender-te, erguida,

Admira-te o que serás

De fazer mesmo capaz…

 

- De cada qual, do mais fundo,

Aflora mesmo outro mundo.

 

 

512 - Muda

 

Gosta de agir e acredita

No que estiver a operar,

Ninguém pode crer na dita

Daquilo que não amar.

Então muda e, ao mudar,

Muda o mundo inteiro a par.

 

 

513 - Vive

 

O mundo não vive cheio

De fantasmas, maldições,

Como aos ancestrais conveio,

Ao nos imporem travões.

 

Vive repleto de amor

Que se manifesta a esmo,

Perdoa-nos cada error,

Redime o pecado mesmo.

 

Da vida para a sentença

É o que faz a diferença.

 

E assim é que nos liberta:

- Cosmos é uma porta aberta.

 

 

514 - Pesquise

 

Não tentarás convencer

Ninguém acerca de nada.

Aquele que não souber

Pergunte, pesquise a estrada.

 

Mas, à medida que agir,

Que seja um rio que flui,

Silentemente a se abrir

À força maior que intui.

 

Acredita que és capaz,

Que de tua profundeza

Corre outro mundo, lá atrás,

Que é a final nossa inteireza.

 

 

515 - Danças

 

Quando danças, quando crias,

És tu próprio quase inteiro.

Depois assustam-te as vias,

Importante te querias

Mais do que és em teu quinteiro.

 

Então tentas sempre mais

Ser que o que foste jamais.

 

- Afinal, quando te fito,

És trajecto de Infinito.

 

 

516 - Ignora

 

Ignora de vez a ideia

De que um caminho é maneira

De alguém ir chegando à beira

Dum destino que lhe ameia.

 

É que na verdade estamos

Sempre a chegar, a chegar,

A cada passo que damos:

Isto repete, ao andar.

 

Verás quão mais fácil é

Contactar com a magia

Que anda a engrinaldar teu pé

Cada segundo, em teu dia.

 

 

517 - Preferem

 

Por que é que em algo distante

Preferem acreditar

Ignorando o que é visível,

O milagre a se mostrar?

É assim tão reconfortante

Apostar no incognoscível?

 

É que lá em cima alguém guia,

Dá-nos as ordens certeiras,

Pelas nuvens escondido,

De insofismáveis maneiras.

Detendo a sabedoria,

Ninguém questiona o sentido.

 

Ora, é cá em baixo que temos

Nosso físico contacto

Com a realidade mágica.

E a liberdade de facto

De escolher: é o que escolhemos

Que é boa via ou que é trágica.

 

O mais é o alheamento

Do chão, ao sabor do vento.

 

 

518 - Perder-te

 

Vais em rumo diferente,

Irás perder-te: é o melhor

Para encontrar em redor

Um recanto transcendente.

 

Preenche a vida de novo

Com nacos de fantasia.

Sobre nós dos céus o ovo

Explica-o a teoria.

 

Ignora quanto aprendeste

Das estrelas que além voam:

São anjos de luz em teste,

Crianças que te atordoam,

 

São aquilo em que acredites

No momento de sonhar…

É brincadeira? A brincar

Se enliça a vida que fites.

 

 

519 - Mundo

 

Da televisão à frente

O menino experiencia

Um mundo que é diferente

Do mundo do dia-a-dia.

 

Como ele troco a atitude:

Não busco a felicidade,

Não dependo do que ilude,

De meu olho olho a verdade

 

E não a dos outros olhos,

Vou em busca da aventura

De estar vivo entre os escolhos.

Todos me ensinam a cura

 

De ir no roteiro comum.

Por que não, se me ensinaram

Que não há mais trilho algum?

Risco onde outros não riscaram?

 

Mas o que é felicidade?

Amor, dizem. Mas amor

Tem sempre outra identidade,

Mistura angústia com dor,

 

Êxtase mais agonia.

Dirão que é paz, mas a paz,

Se olho a mãe-terra algum dia,

Não é o que vejo que traz,

 

Verão luta com Inverno,

Sol e Lua não se encontram,

Da gazela é o tigre o inferno,

Todos cá se desencontram.

 

Com o dinheiro é pior:

Quem tem o suficiente

Deveria as mãos depor

Mas ao invés, persistente,

 

Busca mais, não tem sossego…

- Já não busco ser feliz,

Antes à festa me apego

De Um ser com minha raiz.

 

 

520 - Sono

 

Contra o conforto do chão,

De meu sono de semente,

A vida sobre o torrão

É mais bela e convincente.

 

Poderei sempre nascer

Quantas vezes eu quiser

 

Até que meu braço seja

Do tamanho que ele almeja

 

Para poder abraçar

O chão donde eu aflorar.

 

- Pés na terra, olhos no céu,

Que tamanho terei eu?

 

 

521 - Mora

 

Deus mora no que nos cerca

E deve ser pressentido,

Não por lógica, é vivido,

Toda a palavra é de perca.

 

Caminha, pois, devagar:

Tomarás conhecimento

Cada dia mais, a par,

Da Presença em teu momento.

 

É mais de saborear

Do que de entender deveras

E vai pôr-te a palmilhar

O infindo trilho das eras.

 

 

522 - Sábio

 

Quenquer que sábio se julga

Indeciso é no mandar

E, ao servir, o que divulga

É um guião bem singular:

 

Dar ordens é uma vergonha

E desonra, recebê-las…

- Quem as mãos a tal disponha

Jamais atinge as estrelas.

 

 

523 - Mostra

 

Todos temos preconceitos

Relativamente à morte

E ela apenas presta preitos

Ao amor que nos conforte:

É de ágape uma expressão,

- Mostra a final comunhão.

 

 

524 - Ágape

 

Ágape é o amor total,

O amor que devora quem

O vive como fanal.

Quem o vê, vê que não tem

 

Nada mais qualquer valor:

Amar só, que tudo é amor.

 

Aqui um homem é Deus:

- Num abraço, Terra e Céus.

 

 

525 - Tempestade

 

Mesmo quando um terramoto

Ou tempestade assassina

Cruel mostra o mundo ignoto,

Tudo é só do rumo a sina:

Como nós, viaja o chão

Buscando a iluminação.

 

 

526 - Pesca

 

Pesca é minha relação

Com o mundo que inauguro:

Sei o que quero do chão,

Logro-o, se insistir seguro,

Mas o tempo de chegar

É de quão Deus ajudar.

 

É bom sempre operar lento

Antes duma decisão

Que importe à vida que tento.

Uns pedras crescer verão,

Outros a calma pescar

Vão dum sonho a germinar.

 

 

527 - Viagem

 

A viagem é tortura

Se apenas se quer chegar,

Transmuda-se em aventura

Quando é o prazer de buscar.

Com isto é que se alimenta

O sonho que a vida inventa.

 

Um homem não pode nunca

Parar de sonhar de vez.

De alma alimento que a junca

É o sonho, corpo do invés.

Quanta vez fica desfeito,

Mas torna do mesmo jeito!

 

É preciso continuar

Senão alma é o que nos morre,

O sonho é de comungar,

Amor que ao ágape corre.

Se não sonhar, de oiro estrela

Nenhuma me entra à janela.

 

 

528 - Absoluto

 

Se experimentarmos juntos,

Juntos o amor que devora,

Partilho em quaisquer assuntos

O Absoluto que em nós mora.

 

O Absoluto mostra a todos

O que realmente são,

Causa-efeito de mil modos,

Cadeias de mão na mão.

 

E cada pequeno gesto

Na vida doutro reflecte,

E assim, de apresto em apresto,

Grava no Infindo o sinete.

 

 

529 - Sequer

 

Todos nós já conhecemos

Tudo, antes mesmo de alguém

Nos ter falado de além,

Do que além nem sequer vemos.

 

A vida ensina perene

E o segredo é de aceitar,

Com o que a vida ensinar,

Que sábio serei solene

 

Como os mais sábios do mundo.

Só, porém, reparo nisto

Se alguém ensinar insisto,

Semeando-o do que abundo,

 

Se da aventura partilho

Em que alguém busca seu fito

E com ele não hesito

Do Infinito em pôr-me ao trilho.

 

 

530 - Explicação

 

É preciso ter piedade

De quem o Cosmos reduz

A uma explicação sem luz,

Deus, à magia que agrade

E o homem, a um corpo ser

Que importa satisfazer.

 

Estes jamais ouvirão

A música das esferas,

De olho enterrado no chão

Onde morrem as quimeras.

 

Mas é mais piedade urgente

Com quem tiver a fé cega,

Que às alquimias se apega,

Estuda livros, demente,

 

Buscando o insano tesoiro

De esterco mudar em oiro.

 

Ignoram do céu que o reino,

Afinal, é das crianças

E perdem tempo num treino

Onde ao céu não trançam tranças.

 

 

531 - Caminho

 

Quando rumo a um objectivo

Viajamos, é que importa

Ao caminho atender vivo:

O caminho é que abre a porta

 

À maneira de chegar,

Ensina e nos enriquece

Enquanto o iremos cruzar,

Preliminar que entretece

 

O finalizar da festa.

Um objectivo na vida

Melhor ou pior nos presta

Conforme a trilha seguida,

 

Dependendo do caminho

Que escolho para atingi-lo,

De o cruzar bem maneirinho

Ou de nem ver-lhe o sigilo.

 

 

532 - Andamos

 

Andamos a conquistar

Adeptos das teorias

Que o Cosmos vão explicar

Conforme a nossas manias.

 

Julgamos que a quantidade

Dos que acreditam no mesmo

É que muda em realidade

O que realmente anda a esmo.

 

Não é, porém, nunca assim.

Apenas a grande festa

Celebra livre o confim,

O sonho que o ar me empresta,

 

Sonho de casar um filho,

Da noiva rumo ao altar,

Dum bebé pleno de brilho,

De rumo aos astros voar…

 

No sonho é que acreditamos

E apenas mostrar queremos

As metas que ultrapassámos.

Bom é que isto celebremos.

 

Festa não é convencer

Ninguém do que quer que seja

E é por isto que há-de ter

A plena alegria que almeja.

 

 

533 - Viajas

 

Se viajas, experimentas,

Duma prática maneira,

Teu acto de renascer.

De conjunturas à beira

Novas ficas quando o tentas,

Devagar tudo a ocorrer,

Nem sequer a língua entendes

Que falar quem surpreendes.

 

Tal e qual como a criança

Do ventre materno advinda

Tudo aquilo que te alcança

É uma maravilha ainda.

 

Dás muito mais importância

A tudo quanto te cerca,

Que disto depende a tua

Sobrevivência ou a perca.

Acessível e sem ânsia

És então a toda a rua,

Que poderá dar-te a mão

Na difícil situação.

 

Recebes qualquer favor

Com uma grande alegria,

Revestirá tal teor

Que o celebras cada dia.

 

E, como tudo são novas,

Apenas vês a beleza

E ficarás mais feliz

Por vivo estar, de certeza.

O turismo dá-te provas

De que és outro, de raiz.

É uma peregrinação:

Trilhas a iluminação.

 

Que importa se são ateus

Ou crentes na caminhada?

Todos ombreiam com Deus,

Mesmo sem vê-Lo de entrada.

 

 

534 - Andamos

 

Andamos sonho a matar

Quando houver de tempo falta.

É o ocupado, em lugar,

Que em tudo tem tempo em alta.

 

Aquele que nada faz

É que anda sempre cansado,

Não dá conta, de incapaz,

Do labor que lhe for dado.

 

Matam-nos sonho as certezas,

Que não olhamos a vida

Como aventura que às mesas

Nos serve ignota comida.

 

Sábios, justos e correctos

Nos julgamos na evidência

Do pouco que, sob os tectos,

Nós pedimos à existência.

 

Olho fora das muralhas

De meu tíbio dia-a-dia,

Ouço lanças e metralhas,

Cheiro a suor e gritaria.

 

E nunca entendo a alegria

Do coração de quem luta,

Que o bom combate é magia

Que até derrota disfruta.

 

Também mata ao sonho a paz,

Que a vida é Verão parado,

De pedir muito incapaz,

Só quer o que lhe for dado.

 

Julgamo-nos já maduros,

De infância sem fantasias,

Da realização seguros

No labor, no lar dos dias.

 

No íntimo do coração

Renunciámos à luta

Pelos sonhos que nos vão

Dar bom combate em disputa.

 

Quando ao sonho renuncio

E encontro paz, é um pequeno

Período em que anuncio

Que é tranquilo meu terreno.

 

Os sonhos mortos começam

A apodrecer dentro em nós,

O ambiente em que tropeçam

Infestando logo após.

 

E tornamo-nos cruéis

Com aqueles que nos cercam,

Vão-se os dedos e os anéis

Com mil danos que nos percam.

 

Vem a doença, a psicose

E o que queria evitar,

Das derrotas toda a dose,

É o que terei de aguentar.

 

Vem um dia o sonho morto,

Apodrecido meu ar,

Dificultar meu conforto,

Meu acto de respirar.

 

Passo a desejar a morte

Que me livre da certeza

Das ocupações sem norte,

Da paz morta onde sou presa.

 

 

535 - Volta

 

Já não lemos a Palavra,

Mas onde é que fica escrita?

No mundo à volta se lavra,

Atende ao que ela te dita.

 

Vais então descobrir onde

As palavras e a vontade

Ele afinal nos esconde.

O que te pede e lhe agrade

 

Procura cumprir à risca:

É o motivo mais profundo

De andares lançando a isca

Nos oceanos do mundo.

 

 

536 - Desistiram

 

Desistiram de viver,

Não se aborrecem, não choram,

Olham o tempo a escorrer…

Não aceitam mas deploram

 

Os desafios da vida

E a vida não desafia

Qualquer alma demitida.

Muito arriscas nesta via!

 

Reage, enfrenta a procela

E nunca, nunca desistas:

- Algum dia a caravela

Vê dum novo mundo as vistas.

 

 

537 - Além

 

Queremos tanto falar

Com o Além que não escuto

O que anda a comunicar.

Não é fácil ser arguto:

 

Em nossas preces buscamos

Sempre afirmar onde errámos

 

E que é que teremos gosto

Que venha a ocorrer connosco.

 

O Senhor já sabe tudo,

Pede-nos só para ouvir

O que o Cosmos diz que iludo

E ter paciência a seguir.

 

Custa ver do Eterno o surto

A quem o tempo é tão curto.

 

Então vou tentar-me impor

E a vida afundo e o amor.

 

 

538 - Profeta

 

Um profeta solitário

Que importa para haver via?

No céu que importa o Sol vário

A correr sem companhia?

 

Uma montanha que importa

A meio do vale erguida?

Um poço, sem haver horta,

Só, na terra ressequida?

 

- São quem indica o caminho

A seguir, à caravana,

Quem, sempre estando sozinho,

Ser solidário me emana.

 

 

539 - Feita

 

É de nossas atitudes

Que a vida é feita, afinal.

De Deus só te não iludes

Com o que se impõe fatal.

 

Não importa que razão

Ele para tal tiver

E nada adiantarão

Os esforços que eu fizer

 

Para que de longe passe:

Dele é o que fatal me enlace.

 

Tudo o mais, até ao fim,

Depende apenas de mim.

 

 

540 - Lutei

 

Lutei, Senhor, contra ti

E não me envergonho, não.

Por isso é que descobri

Que vou, no meu ramerrão,

 

Por caminhos que desejo,

Não porque me são impostos

Por meus pais, por um ensejo,

Da tradição pelos gostos,

 

Ou mesmo acaso por ti,

Pelo menos da maneira

Como te narram aqui

Os que lavram tua jeira,

 

Sempre tão contraditórios.

Sigo o mapa do tesoiro:

- Olho de meus promontórios,

Este é o trilho de meu oiro.

 

 

541 - Viu

 

Cada qual, nalgum momento,

Viu a tragédia cruzar

Da própria vida o alento:

É uma aldeia a soçobrar,

 

Dum filho a morte inaudita,

Uma acusação falseada,

Doença que o debilita,

Perdido algures na estrada…

 

Aí Deus o desafia

A enfrentá-Lo e a responder:

"Por que agarras a fasquia

De teu tão curto viver,

 

Pejada de sofrimento?

Qual a razão da disputa,

Que sentido ou fundamento

Tem, afinal, tua luta?"

 

 

542 - Filho

 

A teu filho guardarás

E perdê-lo-ás por fim.

Teu coração pisa, atrás,

De seu fado em frenesim.

 

As mudanças que trará

Não poderão ser previstas

Nem controladas de cá.

Não desesperes nas pistas,

 

Que, mesmo que sofrimento

Ele te traga deveras,

A mudança, o crescimento,

Alteração de maneiras,

 

Parte são do Grande Plano

E há-de duplicar um dia

O que se perder este ano

No poder da nova via.