NONO  TROVÁRIO

 

 

É  AMOR  APENAS  QUANTO  SOU

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1110 e 1206, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1110 - É amor apenas quanto sou

 

É amor apenas quanto sou,

Embora irregular no que lhe assino.

Em métrica irregular a mão lhe dou

E assim me vou

Com ele à sintonia a que me inclino.

 

Em versos rimados no atropelo,

Trocando o passo no desencontro silabado,

O poema cose o elo

Ao amor a que hei-de ser predestinado.

 

São laços em que ferverá paixão,

Corre o leite da fraternidade,

Das amizades o salutar cachão.

 

O poema aqui me invade

As mais úberes terras que me grade.

 

 


1111 - Mesmo

 

Vêem ao mesmo tempo as mesmas pessoas,

A ouvir e contar as mesmas falas.

Em conjunto compram as boroas,

Saem em conjunto para conjuntas galas,

Como em conjunto ficam em casa

Soprando a mesma chama à mesma brasa.

 

O casal devém louco hospício de ideias,

Descobertas, opiniões,

Internamento de notícias a adoentar as ceias,

Acamadas relações:

Nem há mais nada, sequer,

Um ao outro a dizer.

 

Quando já não houver que contar,

Contam e recontam obsessivamente

Os mesmos pequenos nadas sem luar

Na noite do desencanto que se mente.

 

O derradeiro recurso

É doutrem falar mal,

O discurso

De julgar, comparar, criticar

Em frenesim terminal.

 

Nada que valorize

O casal que espalhe a revitalizadora notícia,

Na mal disfarçada sevícia

Que vise.

 

De crítica em crítica,

Cada qual reforça a ideia

Paralítica

Com que acometa,

Agrilhoado à mórbida cadeia,

Contra o resto do planeta.

 

 

1112 - Novidade

 

Se cada qual

Tiver a liberdade de partir,

Dentro dum casal,

Para um lugar diferente a descobrir,

Haverá sempre novidades a contar

Dum mundo novo singular.

 

Se cada qual do outro o regresso

Costuma celebrar,

Se de itinerários o excesso

Aprendeu a valorizar,

Tais marinheiras estratégias,

Evitando que o casal dele próprio ande à roda,

São no mapa da vida roteiros

De vias régias

Para a nupcial boda

Em inesgotáveis píncaros soalheiros.

 

 

1113 - Encarar

 

Quanto mais encarar as inóspitas diferenças

Como riquezas para o casal,

Tanto mais o casal tirará delas.

E as iluminadas sentenças,

Afinal,

Devirão matriz

Duma vida que será bem mais feliz

Em todas as janelas.

 

O outro revela-se, vivo,

Tem novas para contar

E nelas se partilhar,

Festivo.

 

Enquanto dormias ou te banhavas de sol,

Ela leu um livro, falou a um vizinho,

Correu dos telefonemas o rol…

É agir sobre a vida, adivinho,

Mesmo a mais quotidiana

A estalar de secura,

Para a transformar, de plana,

Numa pequena aventura.

 

 

1114 - Receberem

 

Muitos deixam de dar

Por não receberem em retorno

O que era de esperar.

Mas será que em torno

Da macieira obrigado

Tudo grita em todo o lado?

 

E a macieira, ante a ignorância malsã,

Deixa de produzir maçã?

 

Oferecer, comunicar, transmitir

São a gesta humana

Que gerar laços nos há-de permitir

E manter, semana a semana.

 

Sem tal criação

O meio ambiente enfraquece,

Falho de alimentação,

E, murcho, lentamente fenece.

 

Somente

Aquele que dá

Constantemente

Certo está

Da alegria

De receber algum dia.

 

 

1115 - Muda

 

Muda sempre a nervosa colectividade

E cada vez mais depressa.

Mas a busca do amor por igual nos invade,

Idêntica nos atravessa,

Ainda que não revista, por norma,

A mesma forma.

 

O confronto com a doença,

Com a morte,

O desejo de criar vida própria sem avença,

A urgência de avançar, com boa ou má sorte,

A frustração,

- Vive-os cada geração.

 

Embora os usos e costumes se transformem,

Os corpos envelheçam,

Dentro de nós dormem

Perenidades que jamais tropeçam:

O coração dos homens é imutável

E este é o tesoiro

De manancial inesgotável

A transmitir a prata e o oiro

De mão em mão,

Geração a geração.

 

 

1116 - Generoso

 

Se a natureza lhe deu de generoso o dom,

As mãos nasceram-lhe abertas,

Tanto quanto o coração.

E, embora em horas incertas

 

As mãos lhe estejam vazias,

O coração, a compensar,

Estará cheio todos os dias

E permite-lhe dar.

 

 

1117 - Enlaçam

 

Uns aos outros nunca nós nos possuímos:

Os homens e as mulheres

Não se fundem da vida nos escorregadios limos.

 

Se não há galinha-mestra de capoeira,

Também não há, do amor nos haveres,

De capoeira o galo que a todos enfileira.

 

Também é amor o poder e a autoridade:

Só como bem-servir qualquer deles persuade.

 

 

1118 - Amigo

 

O amigo capaz de silêncio connosco

Em hora de desespero e confusão,

Capaz de connosco estar no fosco

Momento de dor e aflição,

 

Que tolera não conhecer, não curar, não sanar,

E nos acolhe na realidade

De nossa impotência singular

- Este é um amigo de verdade.

 

 

1119 - Víveres

 

Os indivíduos não são para cercar-se,

Sem víveres fortaleza,

Mas antes para deles cada qual acercar-se

E entrar lá dentro, porque os preza.

 

Não é de ficar à espera

Uma eternidade

De que morram, de era em era,

Dentro da solitária cidade.

 

Se antes de nos matar isto nos mata,

Aquilo o nó da morte até desata.

 

 

1120 - Corpo

 

Meu corpo adulto, para a criança

Vive pejado de magia,

Não da aparência que alcança

Mas do que pode operar cada dia:

 

Levá-la às cavalitas

Quando ela está fatigada demais

Para vir a pé, balançando as fitas,

Dos caminhos da vida pelos pedregais;

 

Esconder-lhe os chocolates

Na prateleira

Para ela não os atingir com os dislates

De lambareira;

 

Salvá-la do gatinho

Quando ele arma das garras o trabuco,

Assanhado, no caminho,

Feito gato maluco…

 

E a criança é que tem razão:

Para quê preocupar-me tanto

Com o encanto ou desencanto

Da aparência que tenho ou não?

 

 

1121 - Algo

 

Deus é tudo:

Quando algo olhas da natureza,

Estás a ver, mudo,

De Deus a grandeza

Extasiada

Numa faceta de nada.

 

Ora, como da natureza somos parte,

Mais que filhos seus,

Nós, destarte,

Também somos Deus!

 

Isto é que no outro o amor

Descobre como apaixonado fulgor.

 

 

1122 - Fome

 

Porque têm fome de amor,

De amor, e o não encontram nunca,

O acessório a tudo irão antepor,

Os carros, as casas, roupas, jóias,

O lixo que tudo junca

Em mil frustrantes tramóias.

 

E tudo são meros substitutos:

Não têm amor e procuram produtos.

 

Ora, o vazio, assim,

Não tem fim, não tem fim, não tem fim…

 

 

1123 - Pressa

 

Nada satisfaz duradoiramente

Quando nada é deveras importante:

Todos com pressa correrão na procura fremente

Do que jamais encontram adiante.

 

Quando compram o que querem,

Descobrem-se vazios:

O que compraram conferem,

Por entre fastios,

Que não era, afinal,

O que tinham por ideal.

 

Querem amor,

Não querem coisas, não.

As coisas são um sucedâneo menor,

Acessórios de zircão

Que mascaram, afinal,

O diamante crucial.

 

E, sem este,

Na vida sem amor

Grassa, fatal, um odor

De peste.

 

 

1124 - Ofertarei

 

O amor, quando é verdadeiro,

É preocupar-me mais

Da plenitude com o aceiro,

Venturas reais

Que ofertarei a quem amo,

Mais que com a felicidade

Que a mim próprio teço e enramo,

Seja a dor qual for que invade

(Repare eu nisso ou não repare)

As opções com que na vida me depare.

 

 

1125 - Orfanato

 

Num mundo onde o mal triunfa

Grande parte das vezes,

Dos miúdos dum orfanato a alegre trunfa

É um valor

Bem maior

Que o de crianças que nunca viveram reveses.

 

É que somos nós, não eles, a requerer

Salvação no que ali se alcança.

O orfanato é mais que um lugar qualquer,

- É a esperança.

 

 

1126 - Trata

 

A vida do que trata é da oportunidade

De a nós próprios nos encontrarmos,

A seguir

A nos disponibilizarmos

De verdade

Outrem a servir.

 

 

1127 - Milénios

 

Durante milénios, os marinheiros

Navegaram pela estrela Polar.

Sempre olhámos as estrelas como luzeiros

Em busca de nos orientar,

Indicadores certeiros

Do rumo ao lar.

 

Alguns acreditam, por este signo,

Que elas lhes ditam o próprio destino.

 

 

1128 - Trocando

 

Servimo-nos mutuamente

Duma forma simples e directa,

Trocando o eu pelo outro regularmente,

E desta forma vislumbrando, discreta,

A Intimidade eterna que transcende

O eu e o outro, por igual,

Tanto o eu que me prende

Quanto o meu, sempre irreal.

 

Então, no horizonte, após,

Desponta o nós.

 

 

1129 - Ferida

 

A ferida acolhe do amor,

O amor verdadeiro dói,

Torna-nos, com pudor,

Por inteiro vulneráveis

E abertos, enquanto nos rói.

 

O amor verdadeiro levar-nos -á,

Inevitáveis,

Os passos muito para além de nós,

Irá

Devastar-nos, até perdermos a voz.

 

Se o amor não nos despedaça,

Não conhecemos o amor,

É uma trapaça,

Não tem fulgor.

 

Despedaçados, porém,

Mortos os dois,

É sempre o Além

Que somos depois.

 

 

1130 - Esponja

 

Ser uma esponja meramente

Leva a sentir-nos inúteis e desamparados

Por não fazermos nada, simplesmente:

Somos apenas presença ali presente,

Inerme perante os desolados.

 

É o que tantos terão

Tanta dificuldade em aprender:

Deixar de tentar resolver

Cada questão,

De tentar contra a lesão

Melhorá-la,

Estar apenas presente

Quando o sofrimento abala

Algum querido ente.

 

Por isto é que ninguém

Em doenças crónicas anda interessado

Porque não podemos nada também

Ante a lesão do lesionado:

Só podemos ali ficar,

Estar, apenas estar…

 

Quando cuidamos que devemos

Algo fazer para ajudar

E descobrimos que o que faremos

Não ajuda nada, a par,

Ficamos, sejam quais forem os cuidados,

Deveras desarmados.

 

Que podemos fazer entrementes?

Nada, apenas estar presentes.

 

Contudo,

Por mais estranho que pareça,

É isto que toca tudo,

É por isto que me transmudo

Da raiz até à cabeça.

 

 

1131 - Sofrimento

 

Como poderei pedir

Que meu sofrimento acabe

Com o mundo inteiro de dor a fremir,

Esta minha outra família

Que de egoísta dor minha vigília

Menoscabe?

 

A consciência de minha dor

Consciente da dor deles me mantém,

Mantém-me o coração aberto ao sofredor

E às marés de mágoa que contém.

 

Já não ignora nem resiste

À dor universal que me toca a pele:

O sofrimento existe,

Tenhamos compaixão dele!

 

 

1132 - Uno

 

Um só mulher e homem foram outrora

Mas em dois findaram divididos.

À busca e desejo do todo, agora,

Chamamos amor.

Do uno ao fulgor

Vivemos eternamente referidos.

 

 

1133 - Absorver

 

Nossa indisponibilidade

Para doutrem absorver o sofrimento

No nosso nos enclausura em soledade.

Não poderemos escapar ao tormento

Porque em nosso eu nos encerra:

Imposto um ponto final, não há mais terra.

 

A partilha é nosso fado

Para que o juízo final

Venha encontrar-nos num estado

De aniquilação total

De nosso ego excerbado,

De modo que eu não seja tomado

E entregue às mãos da atrocidade

De minha mesquinha identidade.

 

 

1134 - Decisão

 

O homem baseia

A decisão a que é atreito

Na ideia

De regra, lei, julgamento e direito.

 

A mulher, valorizando o coração,

Vai pelo sentimento, o laço, a relação.

 

Nem um nem outro é melhor

Agente:

Nenhum resultado é inferior,

Apenas diferente.

 

Quando, perante o mesmo evento,

Um com outro se integra,

O rapaz passará por cima do sentimento

Para salvar a regra,

A rapariga passará por cima da regra,

Para salvar o sentimento.

 

Quando se coordenam, porém, a meio

Acertarão

Então

Em cheio.

 

 

1135 - Pratica

 

Pratica a ferida do amor,

Não podes evitar ser ferido,

Mas limita-te a observar a ferida em seu teor,

Não te contraias, continua a amar, decidido.

 

Se ferido apenas fores,

Continuarás a abrir-te à urgência dos amores,

 

E hás-de continuar

A abrir-te à necessidade de amar.

 

 

1136 - Trilho

 

O amor é um trilho antigo

E por isto venerável

De transcender o estreito postigo

Do eu separado, degradável,

E de saltar, sem nada a que se arrime,

Rumo ao sublime.

 

Damos as mãos na ponta dos ramos,

Fechamos os olhos e saltamos.

 

 

1137 - Deixa

 

Deixa ir, deixa com Deus!

Em lugar

De a ti e aos outros tentar mudar

Por primários fitos teus,

Tenta a ti e aos outros perdoar.

 

Se não consegues perdoar a alguém,

Que teu ego to impede,

Ao Espírito pede,

Ao que dentro de ti se encontra e que então vem

Perdoar aos outros e a ti te perdoar

Também.

 

Este é o teu voo

Então singular:

Deus é o amor no qual perdoo.

 

 

1138 - Entre

 

Entre mim e o outro a distinção

Rígida e apressada

É que me bloqueia do caminho a função,

Me impede de ser deveras bom

Para mim próprio, em cada jornada.

 

À distinção preso,

Se bom for para os mais, sinto-me privado,

Se o for para mim próprio, coeso,

Sinto-me mesquinho e malvado.

 

E é tão mais fácil abdicar disto,

Apreciar o gesto de dar

Que a mim e aos outros avisto

Em comum a nos beneficiar!

 

É no concreto

Que vemos o caminho alternativo

Como é recto

E definitivo.

 

 

1139 - Contextos

 

Em contextos de liberdade individual,

Toma-se em âmbitos reduzidos

Qualquer decisão fundamental,

No seio familiar, no laço do casal,

Num grupo de amigos escolhidos,

 

Entre sócios duma sociedade,

Não nos amplos ambientes,

Alargados, indiferentes,

Da nacional comunidade.

 

A cultura da liberdade individual

Fomenta a crença

De que o indivíduo é o responsável principal

Do êxito ou fracasso que lhe pertença.

Os miúdos rápido aprendem a viver no tom

De que depender doutrem é mau

E ser independente é bom

E a salvo transpõem este vau.

 

Os adultos atendem às agruras do semelhante

Por vocação pessoal,

Não tanto por exigência cultural

Do meio em que vivem, instante a instante.

 

Aqui os infelizes são os primeiros

Responsáveis das próprias desventuras

E, devendo ser da libertação os pioneiros

A colectividade não se ocupa de mesuras,

Nem intervém

Para ajudar em primeiro lugar ninguém.

 

Então todos se tendem a ajustar

A modelos de vida

Que lhes permitam o mais possível controlar

Os destinos e tudo os convida

Aos maiores esforços

Para assegurar,

Definitivos,

Que dos eventos os positivos escorços

Hão-de superar

Perenemente os negativos.

 

 

1140 - Benefício

 

O benefício emocional de falar!

Pelo vínculo entre palavra e emoção,

Falar é desabafar,

Libertar a preocupação,

Experimentar

Agradáveis sentimentos

Que acompanham a comunicação

Entre quem é querido, ao sabor dos ventos.

 

Evocar, ordenar, verbalizar

Nossos pensamentos

Num ambiente acolhedor

É sempre tão gratificante

Como um acto de amor.

Por isso tantos, pelo dia solitário adiante,

Quando não encontram humano interlocutor,

Falam ao cão, ao gato, ao pardal

Ou à planta que regam no quintal.

 

E quantos se sentem melhor,

Doutrem apesar da falta,

Quando, num sozinho e pobre amor,

Consigo falam em voz alta!

 

 

1141 - Pilha

 

Ante a casa esbarrondada

Numa pilha de escombros,

A criança murmura à mãe desesperada,

Afagando-lhe os ombros:

 

"Mamã, tudo perdemos,

Não há esquivas,

- Mas, repara, ainda a sorte temos

De estarmos ambas vivas!"

 

 

1142 - Fala

 

Fala apenas do divórcio, fala apenas.

A gente pensa que vai ser um alívio

E nalguns casos é.

Um alívio de coisas pequenas.

Mas há tanta coisa sem oblívio

Que fazia parte de nossa vida,

Ali sem arredar pé,

E que se quebra, irremediável, à despedida!

 

Tudo falsos acenos:

O próprio alívio, inesperado,

Nos primeiros tempos, ao menos,

Precisa de ser aliviado.

 

 

1143 - Opções

 

Amar alguém

Implica encorajar e apoiar

Também

As opções próprias que tomar.

E jamais violar a fronteira

De que é dele ali a palavra derradeira.

 

Um passo além, o amante a sério quer

O que o amado quiser.

 

Então o amor a dualidade desempata

E os dois num finalmente ata.

 

 

1144 - Seguir

 

Nunca sabemos nada sobre ninguém.

Já é difícil seguir nosso próprio rasto,

Quanto mais o doutrem, imo além.

Quando se trata doutrem, para o verdejante pasto

Que no imo dele exista,

Não temos uma única pista.

 

 

1145 - Contaram

 

Tenho a certeza

De que me contaram a verdade,

A verdade neles presa,

Tal como a viam em luminosa obscuridade.

Mesmo assim,

A verdade, enfim.

 

Nenhum deles pretendeu enganar-me,

Nenhum deles mentiu intencionalmente,

O que obriga a que eu desarme

As mãos e a mente.

 

Não há verdade universal

Para eles mas também,

Afinal,

Para mais ninguém.

 

Não há réu nem vítima

E a única reacção

Defensável e legítima

É a compaixão.

 

 

1146 - Âncoras

 

As âncoras emocionais

Mais valiosas e eficazes

Dependem duma cadeia de apoios tais

Que solidamente devenham fortes e tenazes

Em laços instrumentais

Em vez dos esquivos

Laços afectivos.

 

Ou o amor ali chega

Ou no pó se derrete

Do fogo que o acomete

E então só uma amizade no esquife pega

E cumpre a função instrumental

De que aquele dera sinal.

 

O amigo, o irmão presta o serviço

De que nutro então meu viço.

 

 

1147 - Esmagam

 

Independência e individualismo

Esmagam a humildade.

Se como membro da comunidade

Operar cismo,

 

Ela é tão requerida

No que entrança

Como a auto-estima atingida

E a autoconfiança.

 

Três madeixas

Com que sólido atarás quanto enfeixas.

 

 

1148 - Crise

 

As épocas de crise genuína

Revelam os amigos verdadeiros.

Estar bem na vida, porém, nos inclina

A nunca descobrirmos, certeiros,

 

Se contamos, no abrigo,

Com algum verdadeiro amigo.

 

No melhor da vida há sempre um revés

Que nos pega de través.

 

Só então se nos revela

Onde há um buraco negro e onde, uma estrela.

 

 

1149 - Culturas

 

Em culturas menos individualistas,

Menos ricas, entre familiares com mais cipós,

As listas

De irmãos são parte de "nós".

 

Nas mais individualistas em que o "eu"

Importa mais que o "nós" que seles,

Os irmãos não são troféu,

Os irmãos são "eles".

 

 

1150 - Contexto

 

No contexto da amizade

Entre o homem e a mulher,

"Gosto de ti" diz só esta verdade,

Não outra verdade qualquer.

 

Na relação romântica sexual

"Amo-te" é "amo-nos" também, logo após

Ou porventura, afinal,

"Amo a minha ideia de nós".

 

Esta absorção exclusiva

Da plenitude

É que a torna tão esquiva

E faz que tanto nos ilude.

 

 

1151 - Encantamentos

 

Encantamentos de amor não existem,

Enguiços não há do coração,

Que mais poderoso é que quantas magias se alistem

Na escuridão.

 

A luxúria podemos despertá-la

Com um piscar de olhos,

O desejo com um sorriso abala

A saltar por cima dos escolhos.

 

Mas o amor é o amor e, no secreto, íntimo lugar,

Não há nada tão profundo que o possa afectar.

 

 

1152 - Sabes

 

Sabes melhor que ninguém

O que te convém

Ou não.

Chega, porém,

A ocasião

Em que a cabeça está a dizer

E o resto de ti nem ouvir quer.

 

Pode um homem devir criança

Quando se trata duma mulher,

Querendo o que não deve ter,

Pegando em mais do que alcança,

Em mais do que o peso singular

Com que pode lidar.

 

O paradoxo em si

De teus deveres

É que saber o que não é bom para ti

Não te impede de o quereres.

 

 

1153 - Jóia

 

Guarda tua jóia até entenderes

A quem a deves dar.

Quando a ofereceres,

Oferece também palavras a acompanhar:

 

São mais mágicas do que a jóia

Em que tua mão se apoia.

 

E tua vida desliza

Quando nelas se fertiliza.

 

 

1154 - Cuida

 

Teu amor cuida que sabe o que há em ti,

Mas ainda não escavou à fundura requerida.

Cuidado, para não lhe mostrar demais aí,

Nem depressa demais, mas antes à medida.

 

Para não assustar,

Vai devagar.

 

A fundura

Requer o tempo que depura.

 

 

1155 - Brotem

 

Não é riqueza, posição nem imortalidade

O que ela quer de mim,

Mas promessas, juras, palavras de verdade

Que do coração brotem do confim.

 

Por que é difícil "amo-te" dizer?

Ficamos mudos

Como um túmulo qualquer,

Só porque aquilo remove todos os escudos.

 

Ora, no abandono de criança

É que a plenitude nos alcança.

 

 

1156 - Descansa

 

Descansa quanto precisares,

Que há por aí muito sossego,

Mas não te mantenhas à distância dos lares

Por tempo demais sem apego,

Apenas a observar, infecundo,

O resto do mundo.

 

A vida que declinas,

Frio,

É bem mais curta do que imaginas

E acabarás vazio.

 

 

1157 - Fábulas

 

Amor à primeira vista,

Em fábulas muito usado,

Coração que reconhece coração…

 

À primeira vista é uma atracção

Que se regista,

Um tiro disparado.

 

Amor, não,

Não bastam tão

 

Dúbios sinais:

O amor exige mais tempo e muito mais.

 

Sem prescindir

Fatalmente

De àquele lume ir

Atear o archote ardente

Permanentemente,

Senão deixa o fogo algum dia se extinguir.

 

 

1158 - Sabedoria

 

Com a sabedoria da idade

O que foi feito importa compreender:

Quantas vezes foi rejeitado o amor pelo formal dever

Meramente por não se confiar, em perenidade,

No apelo são

Do próprio coração?

 

 

1159 - Traz

 

Traz amor,

Não tragas pedras preciosas!

Fala de amor,

Não de paixão, ânsia ou constância saborosas!

 

Talvez então

Acabe por prevalecer

O coração

Sobre a rotina do dever.

 

Se fores orgulhoso demais,

Ela então

Findará cega aos sinais

De seu próprio coração.

 

E a oportunidade perdida

Como é que alguma vez poderá ser reavida?

 

 

1160 - Solidão

 

A solidão é tranquilizadora

Mas poderá devir sufocante

E deixa-nos esquecidos do dia e da hora,

Adiante.

Quando preciso de consultar o calendário,

Chegou o momento de abrir a porta do solário.

 

 

1161 - Importante

 

A palavra é importante para a mulher,

Importante para todos.

Quando não é dita sequer,

Deixa lacunas espalhadas pelo melhor dos bodos,

 

Lacunas profundas e escuras

Donde proliferam dúvidas e fracassos.

Não deve ser dita apenas quando apuras

Que recusada fere tanto como os insultos mais crassos.

 

Se queres deveras abrir o dia,

É a palavra que o anuncia.

 

 

1162 - Insignificante

 

Que bom estar apaixonado,

Mesmo que doa!

Não se pode sentir insignificante, de lado,

Se estiver apaixonada uma pessoa.

Tornou-se, de repente, o fecundo,

Centro do mundo.

 

 

1163 - Simples

 

Uma amizade,

Que simples era!

Do campo ou da cidade

Não dependera,

Nem, do analfabeto à Universidade,

De onde estudara quem a merecera,

Nem do que faria, singular,

Para a vida ganhar,

Nem de onde desabrochado,

Fora criado.

 

Apenas conta, de boa fé,

Quem o amigo é,

 

O que a quenquer

Tem a dizer,

Como, defronte presente,

Afinal se sente.

 

 

1164 - Apareçam

 

Um lar,

Um lugar

Onde aqueles de quem eu gosto

E que gostam de mim

Apareçam com o verdadeiro rosto

Sempre que queiram, que o dia não tem fim.

 

Onde sintam a liberdade

À vontade.

 

Talvez, no fim de contas,

Não seja solidão

Para onde apontas,

Mas o que encontras neste chão:

 

Companheirismo cada dia,

Riso,

Descontraída alegria

E romance com o siso

Da enorme festa duma falta de juízo.

 

 

1165 - Parente

 

É uma magia,

Parente estreita das lendas de fadas e feitiços,

Cavalos alados da fantasia:

Sou aceite aqui, do amor atado com os liços,

 

Não pelo que faço,

Nem pelo lugar donde venho,

Nem pela escola onde colhi meu traço

De desenho.

 

Sou aceite e aqui estou

Por quem sou!

 

Por quem estou finalmente

A permitir-me ser no presente,

 

O que é, mesmo hesitante,

Deveras o mais importante.

 

 

1166 - Aquele

 

Aquele homem é dela, é seu

Enquanto durar,

Para acariciar, possuir, saborear.

Era a ela que ele queria,

Fatia

De céu,

Era a ela que ele procurava,

Era ela quem faria

O coração dele disparar

Do peito na caverna cava.

 

Da mulher,

Jucundo,

Ou de quenquer,

Este é o maior poder

Que há no mundo.

 

 

1167 - Comando

 

Por que não poderei fazer o que adoro

Sem impor restrições?

Por que não viver num lugar

Que seja mais o lar

Onde moro

Do que um fardo de senões?

 

Ao olhar da quotidiana lida

O escarcéu,

Quem está no comando da minha vida

Senão eu?

 

 

1168 - Antes

 

Antes, era o desespero por escapar,

Ver algo, o que quer que fora

Que não fora de contemplar

Todos os dias que a vida lhe demora.

 

A inquietação era o estrado

A que andava acostumado

E chegara a apreciar.

 

Todavia, era

Como se houvera,

A andar de lado a lado,

Dentro dele uma pantera

Presa, rosnando,

Pronta a cravar as garras,

Atacando

Quem mais amava, no perímetro das amarras.

 

Viajar fora o melhor

Que poderia ter feito

Por mor

Dele próprio, ao próprio jeito,

Sem falar

De quem lhe era familiar.

 

A inquietação persistia,

Sempre no íntimo se agitaria,

 

Mas o rosnido,

As pegadas intermináveis

Dum lado para o outro, sem sentido,

Terminaram, amáveis,

Num familiar balido.

 

 

1169 - Ignoramos

 

Quando ignoramos o que temos

Por aquilo que perdemos,

 

O pesar

É auto-indulgência

E arrasta, a par,

Por quem me rodeia,

Inapelável negligência,

Vida meia.

 

E nunca mais farei jus

Ao que na vida me propus.

 

 

1170 - Sinto

 

Embora solitário,

Ainda sinto amor dentro de mim,

Angústia e alegria,

Manto e sudário,

Princípio e fim.

 

É muito fácil o amor andar escondido

Por baixo da paixão

E não ser reconhecido:

Na multidão

Anda um com a outra confundido.

 

Ambos são reais mas há quem tema o fogo

Ao mesmo tempo que anseia

Por que o queime logo.

E, com medo do que ameia,

Jamais olha para a chama das estrelas,

Não procura as pedras preciosas

Que por ele esperam nelas.

Morre afogado em inertes prosas

Na vida de poesia cheia.

 

 

1171 - Custo

 

Quem ama

Aprende

O custo e paga:

Quão mais quente a chama,

Mais breve acende

E mais cedo apaga.

 

É preciso cuidar

Do diamante que ficar.

 

Se forem cinzas apenas,

O amor não era amor,

Apenas era, afinal, um ror

De coisas pequenas.

 

 

1172 - Gente

 

O que se constrói

Nem sempre é de madeira e pedra

Mas, mesmo então, dura.

 

E, se foi

Gente que medra,

Ainda apura

Melhor sorte:

Dura mesmo depois da morte.

 

 

1173 - Cozinha

 

À mesa da cozinha recorda

As reuniões de tua própria família:

Antes do primeiro dia na escola, acorda

A memória em vigília,

Também quando ias começar

No campo a jogar,

Ou fazer, em primeira mão,

O exame de condução

E assim por diante

Em qualquer momentoso instante…

 

Todos os rituais de passagem

Foram conferidos na cozinha,

Os castigos mais sérios dos anos na viagem,

Os maiores elogios que cada vitória adivinha.

 

Tudo justificava o encontro em torno

Da mesa da cozinha:

O forno

Do pão de vida que a cada um mais convinha.

 

 

1174 - Sinal

 

Se ele puder magoá-la,

É sinal de que é importante.

Até agora, dela na mala,

Cada qual era um brinquedo hesitante.

 

Se além de passatempo, distracção,

Algum devém importante deveras,

Que melhor lição

Esperas?

 

Que melhor aprendizagem

Nos ritos de passagem?

 

 

1175 - Orgulho

 

Estás aqui parado,

Preocupado com a possibilidade

De ser enganado,

O que é um tipo de orgulho que te invade,

Quando só precisas de pegar

No que já te foi dado,

Tua pedra angular:

Teu sangue ferve por ela,

Tua mente por ela é dominada,

Mas tu paras um momento, no meio da procela,

Antes de explorar, de entrada,

O saguão

Que há no teu coração.

 

Sangue quente e mente dominada

Com o coração não têm a ver nada?

 

Então

Para o amor o entremeio

Não é a paixão

E o anseio?

 

Cruzaste o primeiro,

Encontras-te no segundo,

Mas és teimoso demais, por derradeiro,

Para admiti-lo, infecundo.

 

Vais aguardar. Que ganhas

Com posturas de trair-te tão estranhas?

 

 

1176 - Dádiva

 

Depois de parares de pensar

Em teu coração como arma,

Em vez de dádiva a entregar,

Encontrarás o que procuras.

Como perenemente o descuras,

Perenemente tal postura te desarma.

 

 

1177 - Sentes-te

 

Sentes-te solitário sem ela,

Um vazio dentro de ti,

Um lugar de espera, uma janela…

E esperas, esperas, sem frenesi.

 

Se o encantamento não for rompido,

Não for denunciado,

Continuas aí, vendo-a no coração combalido

Por todo o tempo que te durar o fado,

 

Por todo o tempo de existir.

Mas tens opções:

Precisas apenas de te decidir,

Rompendo caminho por entre raios e trovões.

 

 

1178 - Cuidava

 

Amo.

Não é o que cuidava que seria,

Não tem nada de tranquilo e fácil,

Não é um ramo

De magia

Que me torne um príncipe grácil

Ante uma rainha de fantasia.

 

Muita coisa mudou em mim

Desde o momento em que olhei

E a avistei:

O temor do abismo no confim.

 

Durante um momento senti

Que o mundo se abolia,

Que mais ninguém havia

Ali.

 

Por isso deveria adivinhar,

Sem mais,

Que já era tarde demais

Para evitar.

 

E não evito.

Antes, na esperança e na ilusão,

Concito

O aflito

Coração.

 

Nunca mais me tendo à mão,

Hesito e não hesito.

 

 

1179 - Insosso

 

Há paixão

E há quimera

E o amor que insosso era

Sem tal vulcão!

 

Há carinho e há ternura,

O que evita que seja apenas paixão pura.

 

Mas há um passo em falta,

Uma frieza que irradia,

Que impõe que faça alta

Um pouco antes de que nasça o dia:

 

Falta a confiança,

Falta a aceitação.

- E de repente já nenhum amor alcança

O coração.

 

 

1180 - Estupidamente

 

Andam estupidamente apaixonados

E tal é a dificuldade:

Nenhum dos dois enleados

Adivinha como lidar de vez

Com a realidade

Da estupidez.

 

Têm medo do que são,

Têm medo de entregar-se à insensatez

Do coração

E deixar, em ambos e qualquer,

O amor prevalecer.

 

 

1181 - Pedra

 

O amor é uma pedra preciosa

Com facetas demais para contar.

A força e a fraqueza de que goza

Correm a par.

Além de alerta,

Ninguém pode receber nem dar

Sem uma mão aberta.

 

 

1182 - Queimam

 

Quando te queimam as chamas,

Que te impede de dizer

À mulher que amas

O que em teu coração houver?

 

A vulnerabilidade do homem…

Quantos, para não ficarem vulneráveis,

Nela definitivamente se consomem,

Inelutáveis.

 

E os membros destroçados que então retomem

Já estarão de vez irrecuperáveis.

 

 

1183 - Promete

 

Promete isto, oferta aquilo,

Jura que lhe vai dar o mundo,

Como se o mundo fora seguro e tranquilo

Quando há o bastante para dispensar, fecundo.

 

Mas, no fim de contas, cada qual

Tem apenas um coração

E entregá-lo, afinal,

É muito mais difícil que qualquer outra prestação.

 

 

1184 - Perfura

 

Quando do amor a agulha

Te perfura o coração,

Nada a pode parar

Então.

Até sangrar

Devém prazer que te orgulha.

Ante a inevitável garra adunca

Nunca, portanto, digas nunca.

 

Quanto mais te empertigas

Mais a te afundar te obrigas.

 

 

1185 - Sente-se

 

Ela sente-se perdida,

Apercebe-se agora.

Pergunta se ele entenderia, em seguida,

Como era saber onde ela está, onde mora,

E crer que sabia

Para onde ia,

Mas ela estar, mesmo assim,

Perdida sem fim.

 

E ela intuía

Que ele podia…

 

 

1186 - Duro

 

É duro perder alguém da família,

Quando a família é um lar deveras,

Sem quezílias

Nem traiçoeiras mútuas esperas.

 

Rouba-nos um enorme

Escudo de segurança.

Nada mais conforme

Se alcança.

 

Expõe-nos perante a espia

Negra da sorte,

A fria

Inevitabilidade da morte.

 

 

1187 - Melhor

 

Quando a cabeça não lhe der resposta,

É melhor ouvir o coração.

Da resposta não gosta

Que ele dá, que todos dão?

 

Então fique alerta:

Pode ter a certeza

De que a resposta que despreza

É a resposta certa.

 

 

1188 - Identidade

 

Todo o amante procura a ilusão

Dos dois numa identidade única:

Uma amorosa ligação

Ocorre quase toda a coberto da túnica

Da imaginação.

 

 

1189 - Fulminante

 

O amor

Não é apenas somatório

De fulminante fulgor

De cumprimentos, de envoltório

De despedidas dolentes,

De beijos e abraços presentes,

 

É mais recordar

O que ocorreu,

Como imaginar,

A seguir,

O que está para vir

De céu.

 

 

1190 - Impaciente

 

Impaciente é a mente,

Intoleravelmente:

 

É capaz de imaginar, gozosa,

A totalidade esfusiante

Duma ligação amorosa

Num instante

Sem mais adiante,

E o tempo esvazia

De terror e de magia.

 

Como é que hão-de dar a mão

A mente e o coração?

 

 

1191 - Motivo

 

Por que motivo o amor

Tem de ser tão inclemente?

Por que motivo ao fulgor

Do momento

Da felicidade evanescente

Hão-de seguir sempre, em mil clivagens,

Do sofrimento

As imagens?

 

 

1192 - Erro

 

O erro deveras cometido

Não é só de virar costas momentaneamente.

É crer que podemos ter perdido

Quem amamos, de repente,

 

Quando ele em verdade é um sendeiro

Que meses, anos, permanece na demora,

A vida por inteiro

A cada hora.

 

 

1193 - Relação

 

Todos dizem que a melhor

Relação de pais e filhos

É a da comunicação que for

Aberta sem empecilhos.

 

Melhor, porém, é que ambos os lados

Se esforcem no sentido

De que o outro, em nenhum traslado,

Fique desiludido.

 

É comunicação

E todavia é mais:

É de amor a comunhão

Em todos os sinais.

 

 

1194 - Brincar

 

Quando andamos por aí

A brincar ao sexo sem sentimento,

Tal pode não significar nada por si,

Perdido no vento,

- Mas nós também, daquilo ramos,

Nada significamos.

 

 

1195 - Falta

 

Quando nos falta o ente amado,

Não é a mesma a cama,

Há um buraco negro do outro lado

Cósmico que tudo reclama.

 

Não podemos aproximar-nos demais

Sem cair nas escórias

Dos punhais

Dum abismo de memórias.

 

 

1196 - Vítima

 

A vítima de violação

E a dum acidente mortal

Desaparecem para sempre no fundão

Abismal.

 

A diferença é que vítima de violação

Ainda tem de sofrer, esquiva,

As contingências do senão

De estar viva.

 

 

1197 - Pedra

 

A traição

É a pedra debaixo do colchão,

 

Na cama que partilhamos,

Que sentimos que cravamos

 

Em nosso corpo, por muito que mudemos

De posição com cuidados extremos.

 

De que serve ser capaz de perdoar

Se temos de admitir

Que nunca esqueceremos, a par,

Este espinho a nos ferir?

 

 

1198 - Atraídos

 

O abalo

De haver sido

Traído

Continua a atormentá-lo.

 

Pequena marca

Numa mesa bem polida,

Tentamos ver o resto que o olhar abarca

Mas olhos e dedos, em seguida,

 

São atraídos para a mossa,

Única maleita

De desvio numa peça que roça

Quase ser perfeita.

 

 

1199 - Recordam

 

Todos te recordam e de ti têm fome,

Falam de ti na comunidade

E sorriem ao dizerem o teu nome.

Na hora da verdade,

É o epitáfio mais lapidar

Que alguém pode desejar.

 

 

1200 - Amares

 

Se não amares, nem de fugida,

Se não queres que uma criança cresça,

Isto pode destruir-te a vida,

Tanto quanto aconteça

Que amá-la e desejá-la, a par,

A pode iluminar.

 

 

1201 - Objecto

 

Ser posto de parte magoa,

Magoa ser objecto de piedade,

À toa,

Por parte da comunidade.

 

"Pobre

Do coitadinho,

Abandonado quanto sobre

À soleira do ninho!..."

 

- Basta da humilhação que se tem

De não ser ninguém!

 

 

1202 - Decidir

 

Por via do sangue somos família,

Nós, os humanos.

Cabe-nos decidir se, além de qualquer quezília,

Então

Nos irmanamos

Por via do coração.

 

 

1203 - Amigo

 

Um amigo não se mantém

Afastado de qualquer

Amigo que também

Esteja a sofrer:

Em tal hora é que se apura

Que amizade será pura.

É a que convém

A quenquer

E perdura.

 

 

1204 - Alguns

 

Querem alguns acreditar

Na felicidade em laboratório

E aí a vão cultivar,

E guardar no cibório.

 

Do mundo se isolam,

Banem a gente atrabiliária

Da gesta a que se imolam,

Varrem a vida diária.

 

Livres de problemas,

A felicidade, porém, lhes anota

Que é no meio da gente que lhe germinam os lemas,

Nos transtornos da vida que cada qual lhe atinge a cota.

 

 

1205 - Dizes

 

Dizes que amas, prova-o lá!

Senão

Tudo terá

Sido em vão.

 

Esforçar-nos não adianta

Se o erro que cometemos, indiferente,

Permanece e se implanta

Eternamente.

 

Prova que não é assim,

Prova que, qualquer que seja

O erro cometido, enfim,

Arrepiar caminho (a meta que o sonho almeja)

É sempre viável, por fim.

E recomeça de novo, mesmo no meio do inferno,

De modo que nenhum erro seja

Eterno.

 

 

1206 - Definitivamente

 

Definitivamente, regressar a casa

Não é de todo possível:

A reencontrada brasa

É já doutro combustível.

No fundo mais fundo que comigo casa,

Todavia, apenas isto é vivível:

O retorno que me abrasa

À casa de meu sonho imperecível.