DÉCIMO  PRIMEIRO  TROVÁRIO

 

O  INFINDO  E  A  PROFUNDEZA  UNIFICANDO

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1333 e 1401, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1333 - O infindo e a profundeza unificando

 

O infindo e a profundeza unificando,

O poema ruma ao sonho,

Em passo trôpego metrificando

E com a utopia fielmente rimando,

E assim nele como planta me disponho.

 

Tanto no além como no aquém que me ultrapassa

O verso irregular

A fronteira trespassa

Deste meu irrelevante lugar.

 

Com ele me abro, íntimo e restrito,

Aos ignotos horizontes

Onde nos nem chega o grito.

 

Do poema os versos são as pontes

Da infinita sede até do Infinito às fontes.

 

 


1334 - Transitar

 

Nem sempre é fácil mudar.

Transitar dum a outro estado,

Do conhecido ao desconhecido,

É aceitar

As referências perder habituais por atacado,

Outras criando arrancadas ao olvido.

 

Mudar é esquecer

Ou deixar de utilizar

As informações que houver

No mundo familiar.

 

Um cabo delicado há que transpor

Quando dum a outro mundo transitamos,

O cabo sem nome do terror,

O cabo sem rosto de tudo o que temamos.

 

 

1335 - Questões

 

Com a idade, eis as questões fundamentais:

Jamais é tarde demais

 

Para te converteres a uma religião

Ou, em alternativa, a uma espiritual relação

Sem regra, dogma, a uma forma de crença

Na eternidade, ao sabor da presença

 

De todas as coisas

Onde repoisas.

 

Mas é com o tempo que a crença praticada

Dá sentido à vida, a ilumina, em cada curva da estrada.

 

Pode haver a revelação brusca de Deus

(Ou seja do que for de tal jaez)

 

Mas atravessar a vivência de cotio

Em linha com tal crença é um desafio.

 

O pequeno ser humano

Precisa de pôr à prova da realidade

A convicção, desentranhar do engano

A verdade.

 

Viver cada dia,

Cada prova com o nosso deus,

Cada alegria,

- Eis o que permite entrever os céus.

 

Intuir o sentido mais profundo

De nossa íntima experiência

Com que fecundo

O ganho a que orça

Cada vivência,

- Eis o que dá força!

 

 

1336 - Sonhos

 

Nossos sonhos são imagens

Mais ou menos precisas

Que, às avessas

Das viagens

Que realizas,

Nascem dentro das cabeças:

Tempo de respiração

Prévio à concretização.

 

O espírito é a máquina prodigiosa

Capaz de criar,

De construir, de inventar

Estrelas em qualquer nebulosa.

 

É uma mágica fruteira

De frutificar em todas as estações,

A todo o instante, em qualquer que seja a leira,

Em quantidade ilimitada de versões.

 

O imaginário de que disponho

São as minhas árvores do sonho.

 

 

1337 - Fogueiras

 

Há fogueiras positivas e motivadoras

Por trás da mudança:

Mudar é viver, encaminhar pelas horas

A oportunidade que alcança

Questionar e talhar, para além dos ninhos,

Novos caminhos.

 

E há empurrões deterministas:

Nada pode ser eterno,

Tudo tem de transitar por novas pistas

E se tudo muda, estranho ou fraterno,

É que não pode continuar assim,

Já durou demais, o antigo rosto chega ao fim.

 

Então não há lamento, culpabilidade,

A menor decepção,

A transmutação

Ocorre com naturalidade.

 

Mudamos com o tempo, adaptamo-nos ao instante,

Seja lá o que for que ele implante.

 

Em nossa comunidade, porém,

Aprisionamo-nos mais às formas que tem:

 

Aceitamos mal envelhecer,

Questionar modos de ver.

 

Queremos a mudança

Apenas da cor que desejamos.

Ora, isto nunca alcança

Novas flores, novos frutos, novos ramos.

 

Esta enfermidade configura

O que nos diminui de nossa altura.

 

 

1338 - Milagres

 

Os milagres existem,

Por um lado como prendas,

Por outro como indícios que despistem,

Tirando-nos as vendas,

Que algo, além do mundo chão

Que vemos, temos à mão.

 

 

1339 - Fios

 

Todas as coisas, todos os eventos

Se encontram relacionados,

Por fios invisíveis unidos.

Todas as coisas, todos os eventos

Manifestam, atados,

A mesma unidade de que andamos distraídos.

Não há múltiplo nenhum,

Tudo é Um.

 

 

1340 - Deuses

 

Tantos deuses os homens têm

E não passam de reflexos

Dum único deus que a todos contém,

Nos mil perfis complexos.

 

Tal se Deus tivera mil nomes

E cada nome fora um deus

Mas todos remetam para o mesmo, mal em mão os tomes.

 

Diferentes nomes, diferentes rostos

Para a única essência de iguais céus

Onde os olhos temos postos.

 

Todos são um, afinal,

E ele é a matriz,

O único que é real

De raiz.

 

 

1341 - Apesar

 

Apesar de múltiplo parecer

Uno é sempre o real.

Os dados diferentes

Diferentes máscaras são que o uno tiver,

Desdobramentos do magma primitivo e radical,

O impermanente dos impermanentes.

 

As vias de salvação ensinam a ver

Para além das caraças,

A perceber

Que a diferença esconde da unidade as traças,

Levam a caminhar,

Quando a vida com elas coaduno,

Para em mim revelar

O Uno.

 

São tudo caminhos diversos

Por onde me esquivo

Para chegar, com meus pés tersos,

Ao mesmo objectivo.

 

 

1342 - Inequívocos

 

Deus é inexprimível,

Inexprimível é o real:

A raiz última é intangível

Em termos inequívocos, afinal.

 

Lá onde o olho não chega,

Onde não chega a palavra,

Onde a mente esbarra, cega,

Na lavra

Onde não temos lugar,

Não sabemos,

Não compreendemos,

E, portanto, não podemos ensinar.

 

Como justificar o dogma, a condenação

De heresia

Senão como fantasia

De nossa orgulhosa pretensão?

 

 

1343 - Pregamos

 

Pregamos um nome em algo,

O que o distingue do mais.

Quando, porém, o galgo

Para ver o que há do nome por trás,

 

Tropeço, aos montões,

Em subtileza atrás de subtileza,

Sem divisões,

Que me deslumbram de beleza.

 

A iluminação da realidade derradeira

Mora além de palavras e definições.

Chamemos-lhe o que lhe chamemos, inteira

Se mantém, imutável, por dentro das convulsões.

 

Podemos sentir o real numa epifania,

Quebrar as ilusões,

O ciclo das determinações,

De modo a atingir a iluminação que em nós faz dia

 

E chegarmos ao fundamento radical.

Façamos, porém, o que fizermos,

Digamos o que dissermos,

Nunca o poderemos descrever, integral.

 

O real é inexprimível,

O que é deveras é sempre inefável,

Presente embora, irremovível,

Em todas as lavras,

Surpreendentemente irremediável:

Mora fatalmente para além das palavras.

 

 

1344 - Corpo

 

Como o corpo humano

É o corpo cósmico também.

A humana mente irmano

À cósmica mente

Infindamente

Mais além.

 

O microcosmos

Espelha em miniatura o macrocosmos:

Tal qual o átomo e não diverso

É todo o Universo.

 

 

1345 - Caos

 

O caos tem sincronia:

Parece caótico, parece,

Mas determinista movimento evidencia,

A padrões obedece,

Dele as aventuras são regidas

Por regras definidas.

 

Síncrono embora,

Nunca o comportamento se repete.

Determinista a toda a hora,

É indeterminável para quem o interprete.

 

Previsível a curto prazo

Por deterministas leis,

A longo é imprevisível, acaso,

Do real devido à complexidade dos papéis.

 

Haverá sempre um mistério

Do Universo no horizonte sidéreo.

 

 

1346 - Organicamente

 

A matéria está ligada

Organicamente entre si,

A mesma cara é mostrada

Em tudo o que vi.

 

É uma representação, cada objecto diferente,

Do mesmo, em tudo presente.

 

Desvendou-o o pensamento oriental,

A mística ocidental

E, hoje em dia, também,

Inesperadamente,

A ciência experimental

Pelo mundo além.

 

Resumindo, por miúdo:

- O Todo mora em tudo.

 

 

1347 - Busca

 

A busca não é apenas um meio

Para chegar a um fim,

É já o fim, antecipado de permeio:

De verdade, para atingir o confim,

Quem o deveras quiser

O caminho terá, fatal, de percorrer.

 

E o fim sempre estará

No princípio como no meio já:

 

O anseio antecipa

A plenitude que desde agora já visita.

 

 

1348 - Verdadeiro

 

O verdadeiro Deus,

A força inteligente por detrás de tudo,

Uno que no múltiplo se revela

Da infinidade dos céus,

A que mal aludo

Nos rabiscos da minha tela,

O passado e o futuro,

O alfa e o ómega da eternidade do presente

Que hoje me inaugura e que inauguro,

Que em mil nomes se apresente

E não é nenhum sendo afinal todos

Por mil e um insuspeitos modos,

Aquele que veste as roupas de bailarino

E baila o cósmico bailado,

Imutável impermanente no paradoxal destino,

Grande e pequeno no mesmo traslado,

Eterno e efémero, vida e morte,

Tudo e nada por trás dos véus,

Fado livre e livre sorte:

- Deus, Deus, Deus!

 

Cala-te, boca! Cala-te, boca!

Fazes lá ideia da fundura de tua insondável toca!

 

 

1349 - Neurónio

 

Cada neurónio crê

Que vive separado de mim,

Que de mim não é parte, já que me nem vê,

Que tem individualidade própria, do princípio ao fim.

 

No entanto, minha consciência

Resulta do todo destas individualidades

Que individualidade não têm, à evidência,

Mas são do todo partes, dele especificidades.

 

Uma célula do meu braço

Não pensa, tal a pedra na natureza,

Não tem da consciência o abraço,

Ao inerte presa.

 

Mas os neurónios pensam dentro da cabeça,

E encaram-me, se calhar,

Como se eu fora Deus, em que nunca se tropeça,

E não se apercebem, em lugar,

De que o verdadeiro assunto

É que eu sou eles em conjunto.

 

De igual modo, nós, os humanos,

Talvez sejamos os neurónios de Deus

E não nos apercebemos, tolhidos dos danos

Encapelados dos dias, afogados nos escarcéus.

 

Julgamo-nos individuais,

Separados do resto,

Quando somos as partes cruciais

Do apresto

De tudo,

A que eu como todos os mais

Me grudo.

 

Deus é tudo o que vemos e não vemos

E, quando em mim entro,

É que em mãos tomo os verdadeiros remos

Rumo então ao Infinito Centro.

 

 

1350 - Minusculamente

 

Quando raciocino,

Em meu encéfalo desloco

Alguns electrões.

Inclino,

Embora por ínfimas alterações,

Tudo em que toco:

Acabo por influenciar,

Minusculamente embora,

A história de todo o Universo.

 

Leva-me a interrogar

Se nós, em tal hora,

Não somos Deus aqui no berço.

 

 

1351 - Alguém

 

Seremos nós próprios um universo

E o Universo, alguém imensamente grande,

Tão grande pelo infindo disperso

Que o não vemos, limitados à nossa lande,

Tão grandemente incrível

Que devém invisível?

 

Alguém tão grande para nós

Como tão grandes nós somos

Para as células de que dispomos,

Menos que ínfimos pós?

 

Será que estamos para o Universo, a imensidão,

Como nossos neurónios para nós estão?

 

Será que somos dos neurónios o universo

Como seremos, no reverso,

 

Sem o supor,

Os neurónios de alguém muito maior?

 

O Universo é um ente orgânico e pessoal

E nós, minúsculas células de seu mapa cerebral?

 

Então, após,

Afastados os véus,

O deus de nossas células seremos nós

E nós, células de Deus?

 

 

1352 - Condição

 

A condição humana é sofrimento

A emergir de nossa dificuldade

De encararmos da vida o basilar elemento:

- Tudo é transitoriedade.

 

Tudo nasce e morre.

Sofremos porque nos agarramos

Ao sonho duma vida que interminável discorre,

Dos sentidos às ilusões que tenhamos,

À fantasia de que é viável manter

Tudo como estiver,

E não aceitamos, para nossa desgraça,

Que o mundo é um rio que passa.

 

Vivemos na convicção

De sermos individuais

Quando não passamos de mera fracção

Dum todo indivisível, nada mais.

 

É viável quebrar o ciclo do sofrimento

E nos libertarmos,

Atingir um estado de integral desvelamento,

A iluminação,

E aí despertarmos.

 

Desfaremos da individualidade

A ilusão

Com a constatação

De que tudo é unidade

E nós, destarte,

Do uno parte.

 

 

1353 - Verdadeiro

 

Deus que pode ser dito

Não é o verdadeiro Deus,

No infinito

Dos céus.

 

Nome que pode ser nomeado

Não é o verdadeiro nome

No traslado

De minha infinita fome.

 

À derradeira realidade

O olho não chega,

A palavra não chega,

A mente não chega,

Não a captura nenhuma rede nem grade,

 

É o lugar

Que não sabemos,

Não compreendemos,

Não podemos ensinar.

 

No imo embora à mão,

Por mais que seja fiável,

A iluminação

É inefável.

 

Em todas a s culturas, eis o dístico

Perene do místico.

 

Mas que diz o Princípio da Incerteza?

Não poderei prever com precisão

O comportamento duma partícula, dum ião,

Apesar de saber que ele é presa,

Por todo o lado,

Da lei que o já retém determinado.

 

E os Teoremas da Incompletude?

Afirmam que não podemos provar

Dum pressuposto matemático nem virtude

Nem coerência, apesar

De o não-demonstrável por inteiro

Ser verdadeiro.

 

E do Caos a Teoria?

Diz que a complexidade do real

É duma grandeza tal

Que não resta qualquer via

De prever do Universo a evolução futura,

Apesar de sabermos de forma segura

Que a evolução aguardada

Já está determinada.

 

Princípio da Incerteza, Teoremas da Incompletude,

Teoria do Caos provam

Que o real é inacessível e apenas se lhe alude.

Mesmo para os que mais inovam

É intocável, com plena evidência,

Dele na essência.

 

Podemos tentar aproximar-nos dele,

Tentar descrevê-lo,

Nunca chegaremos a tocar-lhe a pele,

Faltará sempre um derradeiro elo.

No fim do Universo, negaceando a sério,

Haverá sempre um mistério.

 

Em última instância,

O Universo é inexprimível em plenitude,

Devido à subtileza da elegância

Do modelo com que nos atrai, ilude

E fatalmente, ao fim, nossa vaidade desilude.

 

Mística e ciência,

Duas vias numa igual correspondência.

 

 

1354 - Momentos

 

Há momentos em que Deus

Liga o cósmico interruptor

E põe em marcha os trilhos sob os pés que foram meus,

Encaminhando as vidas para um qualquer incerto alvor.

 

Apenas duas certezas ficam, aliás:

É melhor

Nem sabermos o que nos espera

E nunca, agrilhoados do tempo à galera,

Poderemos voltar atrás.

 

 

1355 - Descontrai

 

Descontrai ante a presença do que é,

Permite que o eu se estenda

Desde o que te fica ao pé

Até à imensidão de todo o espaço que desvenda.

 

A tua mente própria primordial

Não pode nascer nem morrer,

Não nasceu com este corpo material

Nem morrerá com este corpo nem com outro qualquer.

 

Reconhece que tua mente

É una com o Espírito eternamente.

 

 

1356 - Vontade

 

Da vontade o gesto radical

Não é o esforço, mas o consentimento.

Tentar atingir, afinal,

Algo pela força é o momento

De reforçar o meu e o teu,

- Apenas o falso eu.

 

À medida, porém, que a vontade

Trepa a escada interior da liberdade

Devém cada vez mais

Dela a actividade

O consentimento na vinda dos sinais

De Deus,

É o influxo do pendor dos céus.

 

E mais serei deveras eu

Quão menos em mim houver de meu.

 

 

1357 - Exprimir

 

Medito

Para exprimir algo dentro de mim,

Algo que finda afirmado, quando o concito,

Ao lhe ofertar tempo e atenção, enfim.

 

Sinto-o como uma oferenda

A conceder

A um grande poder

Que me desvenda.

 

Sento-me para meditar

Na atitude de oferenda

Que há-de satisfazer e afirmar,

Embora a não entenda,

Uma parte misteriosa de mim

Que jamais logro descrever até ao fim.

 

Surjam embora quaisquer mudanças,

Não são procuradas,

Não me esforço, em minhas andanças,

Por dirigi-las nas pedregosas estradas.

Se nada mudar, tudo bem,

Por igual, também.

 

A oferenda permanece

E um sabor a paz

Emerge, eficaz,

De meu imo por toda a infinda messe.

 

 

1358 - Tornei-me

 

Tornei-me Deus:

Não que é Deus meu eu particular,

Mas que do mais fundo dos abismos meus,

Vislumbro, pedra angular,

Directamente a realidade

Do que é deveras a eternidade.

 

 

1359 - Concordar

 

Com a morte concordar, aceitá-la, cordial,

É um degrau imprescindível para ocorrer

Um genuíno desabrochamento espiritual:

Para o ego teremos de morrer

A fim de como Espírito despertar

 

Gesto de ateus,

A morte negar

É negar Deus.

 

 

1360 - Separado

 

Teremos de morrer, mesmo que devagar,

Para o eu separado, a fim de, afinal,

Encontrar

O Eu Universal.

Ou, retirados os véus,

Deus.

 

 

1361 - Fundamento

 

Nosso fundamento é a Realidade Suprema,

Não o ego que jamais atrema.

 

Se cuido que meu ego individual

É Deus,

Apenas armarei sarilho!

No real,

Sofro de psicóticos morbos plebeus,

De esquizofrenia paranóide preso ao atilho.

 

A solução

É do ego romper o muro

Para ao Infinito trepar em ascensão

Íntima, seguro:

Então me curo.

 

 

1362 - Duas

 

Há duas formas:

Numa expandes o ego ao infinito,

Noutra, reduzindo-o, em nada o transformas.

Naquela o conhecimento concito,

Nesta, não,

Concito a devoção.

 

Ao fim, o sábio diz:

"Eu sou Deus - a Verdade Universal."

Ao invés, o devoto consigo condiz:

"Eu não sou nada de real.

Contudo,

Ó Deus, tu és Tudo.

Inclusive, por fim,

Tudo em mim."

 

Em ambos os casos o sentido

Do ego desaparece, na imensidão dissolvido.

 

 

1363 - Descubro

 

Ver directamente o clarão

De nossa verdadeira natureza,

Não estes inumeráveis, irrelevantes gomos…

Desta irrupção

Descubro a surpresa:

- Deus e eu, no fundo, o mesmo somos.

 

 

1364 - Unos

 

Na morte, de repente,

Acordamos

E descobrimos que nosso verdadeiro ser

É tudo aquilo que agora olhamos,

Que somos literalmente

Unos com toda e qualquer

Manifestação,

Unos com o Universo, mais que em comunhão.

 

Não nos tornámos de verdade

Unos com Deus e com o Todo,

Sempre fomos tal unidade

Mas nunca havíamos entendido este bodo.

 

 

1365 - Espelho

 

O homem perfeito

Como espelho a mente emprega:

Nada agarra do que nele entra, que a si nada agrega;

Nada recusa, acolhe tudo a eito;

Recebe em barda

E nunca guarda.

 

No fundo,

Como com nada me iludo

Nem confundo,

A nada me grudo.

E então, jucundo,

Em mim vivo todo o mundo.

 

E, liberto,

Sou enfim todo o longe e todo o perto.

 

 

1366 - Natureza

 

Teu eu transcendente

É da mesma natureza de Deus,

Independentemente

De como optes por olhar os céus.

 

Porque é Deus, em instância derradeira,

Final e profunda,

Que por teus olhos olha e de tudo se inteira,

Com teus ouvidos ouve e de mensagens se inunda,

Com tua língua fala

Os sentidos que propala.

 

Eis o que acontece

Nos inescrutáveis abismos teus:

Quem a si próprio se conhece

Conhece Deus.

 

 

1367 - Algo

 

Algo dentro de nós,

Um sentido interior e profundo do Eu,

Que não é memória, pensamento, mente,

(Nem como um todo, nem cada pendor a sós),

Que se não confunde com nada que é meu,

Nem corpo, nem experiência, nem meio ambiente,

Sentimentos, conflitos, sensações,

Estados de espírito, opiniões,

- Algo por trás de tudo existe e lá existo

E aí sou outro não sendo nada disto.

 

Porque todos os vectores mudaram

E podem mudar

Sem afectar

No que se ganhou e se perdeu,

No que findaram,

Este sentido interior do Eu.

 

Isto é o que permanece,

Intocado pelo correr de tempo e modos.

Isto é a testemunha de tudo o que acontece,

O Eu transpessoal de cada um e de todos,

O eu-ponte

Do outro Eu de além do horizonte.

 

 

1368 - Parte

 

O homem faz parte do Todo,

Do Universo,

É uma componente limitada,

Uma fatia do bodo,

É deste por inteiro feito no verso e no reverso,

Mas no tempo-espaço migalha delimitada.

 

A si próprio, todavia,

Se experiencia

Aos pensamentos e sentimentos,

Como algo separado e noutra via

Perante o resto do mundo que seguiria

Outros ventos.

 

É uma espécie de óptica ilusão

De nossa consciência do que somos neste chão.

 

Esta ilusão

É, para nós,

Uma prisão

Que nos restringe e ata aos nós

De nossos desejos pessoais

E ao afecto

De alguns entes individuais

Mais íntimos de nosso tecto.

 

Nossa tarefa, então,

É libertarmo-nos interiormente da prisão,

 

Abrindo as portadas

Do Infinito às estradas.

 

 

1369 - Conformes

 

Quando honramos e agimos

Conformes ao apelo do imo,

Ele devém o espírito-guia rumo aos cimos.

Os que carregam um deus que se desdobra

Desde o seu interior até ao limo,

A marca do génio imprimem

Na obra

Que redimem.

Quando, porém, o deus íntimo não for ouvido

Mas negligenciado,

Transforma-se num demónio desmedido,

Um espírito maligno malfadado.

 

Talento, energia divina degeneram em activa

Corrupção auto-destrutiva.

 

As chamas do inferno não

Passam da negação

 

Do amor de Deus,

De anjos reduzidos

A demónios, dos céus

Caídos.

 

 

1370 - Ênfase

 

Ênfase, não em tentar-agir,

Mas em abrir, receber, consentir,

 

Uma abertura que, de maneira esquiva,

É muito activa.

 

Tentar agir dilui a disposição

Basilar de receptividade

Requerida à contemplativa oração

Em que a fundura nos invade.

 

A receptividade não é inactiva,

É verdadeira actividade

Mas não um esforço, freima viva,

No pendor vulgar

Que a cultura lhe ande a dar.

 

É uma atitude de espera

Pelo Derradeiro Mistério,

Vasculhando no mar ignoto a sombra da galera

Dum novo império.

 

Ignoramos o que isto é.

Mas, à medida

Que depuramos nossa fé

E mais e mais purificada vai ficando em seguida,

Deixamos de querer

Até

De o saber.

 

Abandonados à onda,

Apenas nela

Vislumbraremos acaso a estrela

Que nos responda.

 

 

1371 - Voto

 

O homem repara

Que sem voto próprio nasce

E sem voto próprio morre.

Da solidão tem a cara

E da impotência com que pasce

E corre

 

Pelo pasto alheio das forças da natureza

E da sociedade.

A vida que tanto preza

É a grade

Insofismável

Duma prisão insuportável.

 

Mas tem a magia

De cada arrebol

Lhe dar de prenda um dia

De sol.

 

 

1372 - Atingido

 

O optimista atingido pela adversidade

Cuida que é desventura passageira,

Contratempo transitório,

Do qual, por mais que agora desagrade,

Ele, premonitório,

Há-de recuperar a energia perdida inteira.

 

Ao invés, o pessimista considera

Que da calamidade o efeito

É irreversível, de era em era,

E a ser permanente o dano é sempre atreito.

 

Enquanto este vai ao fundo,

Aquele abre a porta para singrar no mundo.

 

 

1373 - Pendor

 

O pendor optimista, ao tudo explicar,

Dos contratempos o lado positivo

Estimula a procurar

E ajuda-nos a minimizar

Das desgraças o impacto furtivo,

 

O sentido em nós alimenta

De que controlamos nossa vida,

Da subavaliação de nós próprios que nos atormenta

Nos protege e nos convida

A transpor o desânimo, alma repesa,

O sentimento de indefesa.

 

Perante a favorável conjuntura

Leva-nos a aceitar com confiança

A boa sorte que se configura

E a apropriar-nos do êxito que se alcança

Como algo que, no fundo, cremos

Que merecemos.

 

O pendor

Optimista

É o alvor

Onde, no horizonte, da vida o melhor

Já se avista.

 

 

1374 - Felicidade

 

A felicidade futura

É muito mais importante

Que a sorte que o presente inaugura.

Aceitamos viver mal hoje quando adiante

Cuidamos que, porém,

Iremos viver bem.

 

Ao invés, todavia,

Embora nos sintamos bem,

Quando amanhã o mal se prenuncia,

De bem nos sentir deixaremos também.

 

Quando alguém diz "sou feliz!",

Que o irá ser é o que afinal diz.

 

Para além do que alcança,

Nossa boa sorte, então,

É sobretudo esperança,

- Uma ilusão!

 

E é o que torna abençoada

De cada dia a jornada.

 

 

1375 - Predomina

 

O optimismo

É um bem mais alto e geral,

Onde predomina a liberdade individual

Sobre o colectivismo.

 

Persiste nas culturas

Onde preferências, aspirações e metas

Individuais têm prioridades seguras

Sobre imposições de grupo a que te submetas.

 

Quando no colectivo encaixo

O respeito das liberdades

É que ao sonho deito abaixo

Da prisão as grades.

 

 

1376 - Esperança

 

Para reformar

Nossa personalidade afectiva,

A fim de mais da vida desfrutar,

É preciso plantar

Rebentos de esperança viva

 

Que, sem menosprezo, na pendência,

Pela razão e pela prudência,

 

Permitam sempre pressupor

Fazer do náufrago um navegador.

 

 

1377 - Escultor

 

Como o escultor o mármore fere

A estátua a aperfeiçoar,

Assim Deus o homem gere,

A corrigi-lo ao castigar,

 

Limando a aresta

Que prejudica a harmonia

Do contorno que não se presta

Ao que alumia.

 

 

1378 - Crendo

 

Como filho, logo te habituaste

À ideia de que eras teu nome.

E, crendo ser teu nome, nunca dispensaste

O mínimo esforço

À fundamental questão

Que te consome:

Quem sou eu que, verme, aqui me torço?

 

Em teu nome te perdeste,

Ficaste preso dentro dele,

A leste

De tua pele.

 

Eu, que nunca me nomeei,

Que ninguém nunca nomeou,

Eu sei:

Livre, livre sou!

 

Sem nome,

Sou apenas a infinita,

A infinita fome

De dita

Que em mim, frágil, assome

E me concita.

 

 

1379 - Poetiza

 

Quem é, não sei.

Poetiza e canta,

Mas tanto fora da lei

Que não é poema nem canto, mas encanta

Toda a grei.

Pressinto que é alguém

Que deve ser protegido

Enquanto atravessa para mais além

Países e fronteiras, desmedido,

À procura nem sei bem

De quê nem de quem…

 

Deixarás de ser a pessoa

Que eras até agora,

Ao andar com ele, porém.

Prepara-te, não vás à toa

Para a mudança

Que te alcança

A toda a hora.

 

Quem é, não sei,

Mas sei que não há lei

Que lhe resista

Em nada do que exista.

 

É o poema,

É o poeta,

É o lema,

É a meta…

 

Sopro de ar

A divagar, a divagar, a divagar…

 

É de fora,

E de dentro,

Tão longe, tão longe mora

Que é o meu, o teu, o nosso inesperado

E ansiado

Centro.

 

 

1380 - Voltaremos

 

Voltaremos a nos encontrar?

Uma das verdades mais importantes

Que virás a aprender, a vida ao recontar

No rosário dos instantes,

É que sempre voltamos, inelutavelmente,

A encontrar toda a gente.

 

Que mais não seja, no Infinito

Está

Desde já

Consumado fatalmente nosso fito.

 

 

1381 - Muda

 

Não há decadência,

O mundo

Vive e muda a cada segundo

E nós com ele, em paralela cadência.

Mas, no fundo,

Sentimos uma grande saudade

Do tempo primordial

Em que estávamos mergulhados em Deus,

O tempo que ainda nos invade,

Radical,

Da profundeza dos céus.

 

Esta saudade oculta

É que nos leva a lamentar a mudança

Mesmo quando vemos que o que a entrança

É, afinal, a nossa mão inulta.

 

 

1382 - Paraíso

 

Ainda existe quem prometa,

Sem rir,

Um paraíso na terra, meta

De porvir.

 

Mas o paraíso não pode estar

Na terra, por definição:

Não é um lugar,

É uma dimensão.

 

 

1383 - Respostas

 

Ninguém logra saber nada, ninguém,

Com as respostas doutro, que a outro convêm.

 

Quando entenderes isto, aliás,

Muito mais saberás.

 

E mais saberás quando descobrires, em suma,

Que todas as respostas são apenas uma.

 

 

1384 - Medeia

 

Entre as coisas e as palavras medeia um abismo

E é questão de discurso a verdade.

É um sonho com que, falhado, cismo,

É um sonho a racionalidade.

 

Mas como visar outra meta

Quando esta é a única que acometa?

 

 

1385 - Previmos

 

Como gostaria que tudo houvera ocorrido

Doutra maneira!

Mas nada do que vimos e tivemos no sentido

Se realiza. Nem sequer de nós se abeira.

 

Tudo ocorre sempre além

De quaisquer medidas.

Não é caso para humilhar ninguém,

É a vida a nos pregar partidas.

 

A sabedoria singular

É, portanto, que é preciso saber abdicar.

 

 

1386 - Brota

 

Ninguém poderá dizer

Donde um livro vem,

Muito menos quem

O escrever.

 

Brota o livro da ignorância

E, se continua a viver

Depois de inscrito em tal instância,

Há-de ser

Apenas na medida

Em que a mensagem, no fundo, não pode ser entendida.

 

 

1387 - Mais

 

Mesmo os mais fortes são fracos,

Aos mais corajosos falta a coragem.

São os cacos

Da viagem.

 

Agora como dantes,

Mesmo os mais sábios são ignorantes.

 

De nada vale a pena

Inchar o peito a uma rã tão pequena.

 

A infinidade não tem fim:

- Que somos nós perante tal confim?

 

 

1388 - Delirantes

 

Por muito delirantes que sejam

Nossas invenções, jamais logram igualar

Aquilo que sobre nós constantemente despejam

Do mundo real os vectores de espantar.

 

Tudo pode acontecer

E, duma ou doutra maneira,

Acontece mesmo, sempre, a todos e a quenquer

E com muito imprevisível emparceira.

 

É sempre inelutavelmente outro o Além

Que nos desafia e sustém.

 

 

1389 - Corres

 

Se não corres atrás do que queres,

Nunca irás conseguir.

Se não pedires, não esperes,

O efeito é sempre não, a seguir.

 

Se não deres um passo em frente,

Rompendo o limiar,

Permanecerás eternamente

No mesmo lugar.

 

 

1390 - Difícil

 

É tão difícil acreditar

Que há mais coisas

Que aquelas em que podes tocar,

Em que teus sentidos poisas?

 

Já sabes em teu sangue, em teu coração,

Que falta para que inteiro teu imo te ganhe?

Agora é apenas questão

De deixares que a mente acompanhe.

 

Ou preferes que a teia

Do preconceito

Te ate de centopeia

Tuas mil pernas a eito?

 

 

1391 - Apaixonar-se

 

Pode um homem apaixonar-se por um mero sonho,

Se não tiver cuidado.

É muito simples: sem esforço medonho,

Sem trabalho, com as dificuldades de lado…

 

Mas também com esta sina:

- Sem alegria genuína.

 

 

1392 - Importante

 

Acreditar

É importante e satisfatório

Como um começo.

Não é nada ilusório

Nem inegável tropeço:

- Ninguém pode terminar

Enquanto não começar.

 

 

1393 - Querem

 

Alguns querem o simples, o banal

E o harpejo tranquilo.

Não faz com que quem quer, afinal,

O complicado, o emocionante trilo,

É ganancioso ou egoísta.

Aparte o estilo,

Ao correr

Na pista,

Querer é querer,

Quando a tal me predisponho,

Qualquer que seja o sonho.

 

 

1394 - Sonhos

 

Os sonhos, bolas de sabão,

À distância olhados

Que maravilhosos são!

Os olhos, porém, perto demais colocados

Acabarão, sem querer,

Fatalmente a arder.

 

 

1395 - Casa

 

Não podes saber nem eu sabia

Até me ter ido embora:

Estar em casa é uma magia,

Vivemos num lar, temos hora.

 

Não é uma prisão,

É um santuário,

Uma possibilidade,

Raiz no chão,

Perenidade

No tempo precário.

 

Constituo família aqui:

Inauguro,

Em si,

O futuro.

 

 

1396 - Delinear

 

Está tudo no mapa,

Podes delinear uma rota.

Alguns agarram-se a ela como lapa,

Pouco importa se leva à vitória ou à derrota,

 

Sem desvios para explorar

Uma estrada secundária,

Sem o espontâneo travar

A apreciar

Uma Lua solitária…

 

Não sabem o que perdem

E como se queixam

Quando acaso herdem

Becos que os deixem

 

Deslocados

Em recantos inesperados!

 

Mas a maior parte de nós aprecia

Uma aventura pelo caminho,

Aquela via ignota que se desvia

Um bocadinho.

 

Ter a visão clara da meta

Não deve abolir a mensagem

Que em nós despoleta

A surpresa da viagem.

 

 

1397 - Ilimitada

 

De ilimitada bondade

Tenho um mar

E, de amor, a profundidade

Dele, a par.

 

Quão mais te dou, mais para dar

Tenho e concito

Porque o que dou e o que tenho, a par,

São o Infinito.

 

 

1398 - Metas

 

Sem sonhos, não brilha a vida.

Sem metas, sem alicerces

Findam os sonhos de seguida.

Se sem prioridades exerces,

Serão de fuga sinais,

Nunca os sonhos devêm reais.

 

Sonha, pois, aponta metas,

Ordena prioridades,

Corre o risco das vielas indiscretas

Para os sonhos, que jamais são veleidades.

Melhor é errar por tentar

Que, por se omitir, errar.

 

Não temas, de entrada,

Os tropeços da jornada.

 

 

1399 - Fé

 

Tudo aquilo em que acreditas

Consegues.

Se é sucesso o que tu fitas,

Não delegues,

Vê o que fazer quiseres

E não o que não queres.

 

Interioriza este pensamento

Até nele acreditares.

É da fé o momento,

De lhe trepar aos patamares.

Ora, a fé que assim ganhas

É a que remove montanhas.

 

 

1400 - Atinge

 

Aqueles cuja visão

Atinge maior lonjura

Por loucos tidos serão

Por quem não apura

Maior lonjura alcançar

Que da porta o limiar.

 

 

1401 - Água

 

Levamos a vida como água em cachão

A correr monte abaixo,

Permanentemente a tender para a mesma direcção,

Até que um qualquer sacho,

Desviando-nos o percurso,

Nos obriga a procurar um novo curso.

 

Estranho é que ninguém,

Mordendo-o a desilusão,

Repare que é aquilo que lhe convém

Exactamente então.

Perde o tempo e a energia

A excomungar a curva de cada dia.

 

Ora, enquanto excomunga

Nenhum novo mundo o fecunda.