DÉCIMO PRIMEIRO TROVÁRIO
O INFINDO E A PROFUNDEZA UNIFICANDO
Escolha aleatoriamente um número entre 1333 e 1401, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1333 - O infindo e a profundeza unificando
O infindo e a profundeza unificando,
O poema ruma ao sonho,
Em passo trôpego metrificando
E com a utopia fielmente rimando,
E assim nele como planta me disponho.
Tanto no além como no aquém que me ultrapassa
O verso irregular
A fronteira trespassa
Deste meu irrelevante lugar.
Com ele me abro, íntimo e restrito,
Aos ignotos horizontes
Onde nos nem chega o grito.
Do poema os versos são as pontes
Da infinita sede até do Infinito às fontes.
1334 - Transitar
Nem sempre é fácil mudar.
Transitar dum a outro estado,
Do conhecido ao desconhecido,
É aceitar
As referências perder habituais por atacado,
Outras criando arrancadas ao olvido.
Mudar é esquecer
Ou deixar de utilizar
As informações que houver
No mundo familiar.
Um cabo delicado há que transpor
Quando dum a outro mundo transitamos,
O cabo sem nome do terror,
O cabo sem rosto de tudo o que temamos.
1335 - Questões
Com a idade, eis as questões fundamentais:
Jamais é tarde demais
Para te converteres a uma religião
Ou, em alternativa, a uma espiritual relação
Sem regra, dogma, a uma forma de crença
Na eternidade, ao sabor da presença
De todas as coisas
Onde repoisas.
Mas é com o tempo que a crença praticada
Dá sentido à vida, a ilumina, em cada curva da estrada.
Pode haver a revelação brusca de Deus
(Ou seja do que for de tal jaez)
Mas atravessar a vivência de cotio
Em linha com tal crença é um desafio.
O pequeno ser humano
Precisa de pôr à prova da realidade
A convicção, desentranhar do engano
A verdade.
Viver cada dia,
Cada prova com o nosso deus,
Cada alegria,
- Eis o que permite entrever os céus.
Intuir o sentido mais profundo
De nossa íntima experiência
Com que fecundo
O ganho a que orça
Cada vivência,
- Eis o que dá força!
1336 - Sonhos
Nossos sonhos são imagens
Mais ou menos precisas
Que, às avessas
Das viagens
Que realizas,
Nascem dentro das cabeças:
Tempo de respiração
Prévio à concretização.
O espírito é a máquina prodigiosa
Capaz de criar,
De construir, de inventar
Estrelas em qualquer nebulosa.
É uma mágica fruteira
De frutificar em todas as estações,
A todo o instante, em qualquer que seja a leira,
Em quantidade ilimitada de versões.
O imaginário de que disponho
São as minhas árvores do sonho.
1337 - Fogueiras
Há fogueiras positivas e motivadoras
Por trás da mudança:
Mudar é viver, encaminhar pelas horas
A oportunidade que alcança
Questionar e talhar, para além dos ninhos,
Novos caminhos.
E há empurrões deterministas:
Nada pode ser eterno,
Tudo tem de transitar por novas pistas
E se tudo muda, estranho ou fraterno,
É que não pode continuar assim,
Já durou demais, o antigo rosto chega ao fim.
Então não há lamento, culpabilidade,
A menor decepção,
A transmutação
Ocorre com naturalidade.
Mudamos com o tempo, adaptamo-nos ao instante,
Seja lá o que for que ele implante.
Em nossa comunidade, porém,
Aprisionamo-nos mais às formas que tem:
Aceitamos mal envelhecer,
Questionar modos de ver.
Queremos a mudança
Apenas da cor que desejamos.
Ora, isto nunca alcança
Novas flores, novos frutos, novos ramos.
Esta enfermidade configura
O que nos diminui de nossa altura.
1338 - Milagres
Os milagres existem,
Por um lado como prendas,
Por outro como indícios que despistem,
Tirando-nos as vendas,
Que algo, além do mundo chão
Que vemos, temos à mão.
1339 - Fios
Todas as coisas, todos os eventos
Se encontram relacionados,
Por fios invisíveis unidos.
Todas as coisas, todos os eventos
Manifestam, atados,
A mesma unidade de que andamos distraídos.
Não há múltiplo nenhum,
Tudo é Um.
1340 - Deuses
Tantos deuses os homens têm
E não passam de reflexos
Dum único deus que a todos contém,
Nos mil perfis complexos.
Tal se Deus tivera mil nomes
E cada nome fora um deus
Mas todos remetam para o mesmo, mal em mão os tomes.
Diferentes nomes, diferentes rostos
Para a única essência de iguais céus
Onde os olhos temos postos.
Todos são um, afinal,
E ele é a matriz,
O único que é real
De raiz.
1341 - Apesar
Apesar de múltiplo parecer
Uno é sempre o real.
Os dados diferentes
Diferentes máscaras são que o uno tiver,
Desdobramentos do magma primitivo e radical,
O impermanente dos impermanentes.
As vias de salvação ensinam a ver
Para além das caraças,
A perceber
Que a diferença esconde da unidade as traças,
Levam a caminhar,
Quando a vida com elas coaduno,
Para em mim revelar
O Uno.
São tudo caminhos diversos
Por onde me esquivo
Para chegar, com meus pés tersos,
Ao mesmo objectivo.
1342 - Inequívocos
Deus é inexprimível,
Inexprimível é o real:
A raiz última é intangível
Em termos inequívocos, afinal.
Lá onde o olho não chega,
Onde não chega a palavra,
Onde a mente esbarra, cega,
Na lavra
Onde não temos lugar,
Não sabemos,
Não compreendemos,
E, portanto, não podemos ensinar.
Como justificar o dogma, a condenação
De heresia
Senão como fantasia
De nossa orgulhosa pretensão?
1343 - Pregamos
Pregamos um nome em algo,
O que o distingue do mais.
Quando, porém, o galgo
Para ver o que há do nome por trás,
Tropeço, aos montões,
Em subtileza atrás de subtileza,
Sem divisões,
Que me deslumbram de beleza.
A iluminação da realidade derradeira
Mora além de palavras e definições.
Chamemos-lhe o que lhe chamemos, inteira
Se mantém, imutável, por dentro das convulsões.
Podemos sentir o real numa epifania,
Quebrar as ilusões,
O ciclo das determinações,
De modo a atingir a iluminação que em nós faz dia
E chegarmos ao fundamento radical.
Façamos, porém, o que fizermos,
Digamos o que dissermos,
Nunca o poderemos descrever, integral.
O real é inexprimível,
O que é deveras é sempre inefável,
Presente embora, irremovível,
Em todas as lavras,
Surpreendentemente irremediável:
Mora fatalmente para além das palavras.
1344 - Corpo
Como o corpo humano
É o corpo cósmico também.
A humana mente irmano
À cósmica mente
Infindamente
Mais além.
O microcosmos
Espelha em miniatura o macrocosmos:
Tal qual o átomo e não diverso
É todo o Universo.
1345 - Caos
O caos tem sincronia:
Parece caótico, parece,
Mas determinista movimento evidencia,
A padrões obedece,
Dele as aventuras são regidas
Por regras definidas.
Síncrono embora,
Nunca o comportamento se repete.
Determinista a toda a hora,
É indeterminável para quem o interprete.
Previsível a curto prazo
Por deterministas leis,
A longo é imprevisível, acaso,
Do real devido à complexidade dos papéis.
Haverá sempre um mistério
Do Universo no horizonte sidéreo.
1346 - Organicamente
A matéria está ligada
Organicamente entre si,
A mesma cara é mostrada
Em tudo o que vi.
É uma representação, cada objecto diferente,
Do mesmo, em tudo presente.
Desvendou-o o pensamento oriental,
A mística ocidental
E, hoje em dia, também,
Inesperadamente,
A ciência experimental
Pelo mundo além.
Resumindo, por miúdo:
- O Todo mora em tudo.
1347 - Busca
A busca não é apenas um meio
Para chegar a um fim,
É já o fim, antecipado de permeio:
De verdade, para atingir o confim,
Quem o deveras quiser
O caminho terá, fatal, de percorrer.
E o fim sempre estará
No princípio como no meio já:
O anseio antecipa
A plenitude que desde agora já visita.
1348 - Verdadeiro
O verdadeiro Deus,
A força inteligente por detrás de tudo,
Uno que no múltiplo se revela
Da infinidade dos céus,
A que mal aludo
Nos rabiscos da minha tela,
O passado e o futuro,
O alfa e o ómega da eternidade do presente
Que hoje me inaugura e que inauguro,
Que em mil nomes se apresente
E não é nenhum sendo afinal todos
Por mil e um insuspeitos modos,
Aquele que veste as roupas de bailarino
E baila o cósmico bailado,
Imutável impermanente no paradoxal destino,
Grande e pequeno no mesmo traslado,
Eterno e efémero, vida e morte,
Tudo e nada por trás dos véus,
Fado livre e livre sorte:
- Deus, Deus, Deus!
Cala-te, boca! Cala-te, boca!
Fazes lá ideia da fundura de tua insondável toca!
1349 - Neurónio
Cada neurónio crê
Que vive separado de mim,
Que de mim não é parte, já que me nem vê,
Que tem individualidade própria, do princípio ao fim.
No entanto, minha consciência
Resulta do todo destas individualidades
Que individualidade não têm, à evidência,
Mas são do todo partes, dele especificidades.
Uma célula do meu braço
Não pensa, tal a pedra na natureza,
Não tem da consciência o abraço,
Ao inerte presa.
Mas os neurónios pensam dentro da cabeça,
E encaram-me, se calhar,
Como se eu fora Deus, em que nunca se tropeça,
E não se apercebem, em lugar,
De que o verdadeiro assunto
É que eu sou eles em conjunto.
De igual modo, nós, os humanos,
Talvez sejamos os neurónios de Deus
E não nos apercebemos, tolhidos dos danos
Encapelados dos dias, afogados nos escarcéus.
Julgamo-nos individuais,
Separados do resto,
Quando somos as partes cruciais
Do apresto
De tudo,
A que eu como todos os mais
Me grudo.
Deus é tudo o que vemos e não vemos
E, quando em mim entro,
É que em mãos tomo os verdadeiros remos
Rumo então ao Infinito Centro.
1350 - Minusculamente
Quando raciocino,
Em meu encéfalo desloco
Alguns electrões.
Inclino,
Embora por ínfimas alterações,
Tudo em que toco:
Acabo por influenciar,
Minusculamente embora,
A história de todo o Universo.
Leva-me a interrogar
Se nós, em tal hora,
Não somos Deus aqui no berço.
1351 - Alguém
Seremos nós próprios um universo
E o Universo, alguém imensamente grande,
Tão grande pelo infindo disperso
Que o não vemos, limitados à nossa lande,
Tão grandemente incrível
Que devém invisível?
Alguém tão grande para nós
Como tão grandes nós somos
Para as células de que dispomos,
Menos que ínfimos pós?
Será que estamos para o Universo, a imensidão,
Como nossos neurónios para nós estão?
Será que somos dos neurónios o universo
Como seremos, no reverso,
Sem o supor,
Os neurónios de alguém muito maior?
O Universo é um ente orgânico e pessoal
E nós, minúsculas células de seu mapa cerebral?
Então, após,
Afastados os véus,
O deus de nossas células seremos nós
E nós, células de Deus?
1352 - Condição
A condição humana é sofrimento
A emergir de nossa dificuldade
De encararmos da vida o basilar elemento:
- Tudo é transitoriedade.
Tudo nasce e morre.
Sofremos porque nos agarramos
Ao sonho duma vida que interminável discorre,
Dos sentidos às ilusões que tenhamos,
À fantasia de que é viável manter
Tudo como estiver,
E não aceitamos, para nossa desgraça,
Que o mundo é um rio que passa.
Vivemos na convicção
De sermos individuais
Quando não passamos de mera fracção
Dum todo indivisível, nada mais.
É viável quebrar o ciclo do sofrimento
E nos libertarmos,
Atingir um estado de integral desvelamento,
A iluminação,
E aí despertarmos.
Desfaremos da individualidade
A ilusão
Com a constatação
De que tudo é unidade
E nós, destarte,
Do uno parte.
1353 - Verdadeiro
Deus que pode ser dito
Não é o verdadeiro Deus,
No infinito
Dos céus.
Nome que pode ser nomeado
Não é o verdadeiro nome
No traslado
De minha infinita fome.
À derradeira realidade
O olho não chega,
A palavra não chega,
A mente não chega,
Não a captura nenhuma rede nem grade,
É o lugar
Que não sabemos,
Não compreendemos,
Não podemos ensinar.
No imo embora à mão,
Por mais que seja fiável,
A iluminação
É inefável.
Em todas a s culturas, eis o dístico
Perene do místico.
Mas que diz o Princípio da Incerteza?
Não poderei prever com precisão
O comportamento duma partícula, dum ião,
Apesar de saber que ele é presa,
Por todo o lado,
Da lei que o já retém determinado.
E os Teoremas da Incompletude?
Afirmam que não podemos provar
Dum pressuposto matemático nem virtude
Nem coerência, apesar
De o não-demonstrável por inteiro
Ser verdadeiro.
E do Caos a Teoria?
Diz que a complexidade do real
É duma grandeza tal
Que não resta qualquer via
De prever do Universo a evolução futura,
Apesar de sabermos de forma segura
Que a evolução aguardada
Já está determinada.
Princípio da Incerteza, Teoremas da Incompletude,
Teoria do Caos provam
Que o real é inacessível e apenas se lhe alude.
Mesmo para os que mais inovam
É intocável, com plena evidência,
Dele na essência.
Podemos tentar aproximar-nos dele,
Tentar descrevê-lo,
Nunca chegaremos a tocar-lhe a pele,
Faltará sempre um derradeiro elo.
No fim do Universo, negaceando a sério,
Haverá sempre um mistério.
Em última instância,
O Universo é inexprimível em plenitude,
Devido à subtileza da elegância
Do modelo com que nos atrai, ilude
E fatalmente, ao fim, nossa vaidade desilude.
Mística e ciência,
Duas vias numa igual correspondência.
1354 - Momentos
Há momentos em que Deus
Liga o cósmico interruptor
E põe em marcha os trilhos sob os pés que foram meus,
Encaminhando as vidas para um qualquer incerto alvor.
Apenas duas certezas ficam, aliás:
É melhor
Nem sabermos o que nos espera
E nunca, agrilhoados do tempo à galera,
Poderemos voltar atrás.
1355 - Descontrai
Descontrai ante a presença do que é,
Permite que o eu se estenda
Desde o que te fica ao pé
Até à imensidão de todo o espaço que desvenda.
A tua mente própria primordial
Não pode nascer nem morrer,
Não nasceu com este corpo material
Nem morrerá com este corpo nem com outro qualquer.
Reconhece que tua mente
É una com o Espírito eternamente.
1356 - Vontade
Da vontade o gesto radical
Não é o esforço, mas o consentimento.
Tentar atingir, afinal,
Algo pela força é o momento
De reforçar o meu e o teu,
- Apenas o falso eu.
À medida, porém, que a vontade
Trepa a escada interior da liberdade
Devém cada vez mais
Dela a actividade
O consentimento na vinda dos sinais
De Deus,
É o influxo do pendor dos céus.
E mais serei deveras eu
Quão menos em mim houver de meu.
1357 - Exprimir
Medito
Para exprimir algo dentro de mim,
Algo que finda afirmado, quando o concito,
Ao lhe ofertar tempo e atenção, enfim.
Sinto-o como uma oferenda
A conceder
A um grande poder
Que me desvenda.
Sento-me para meditar
Na atitude de oferenda
Que há-de satisfazer e afirmar,
Embora a não entenda,
Uma parte misteriosa de mim
Que jamais logro descrever até ao fim.
Surjam embora quaisquer mudanças,
Não são procuradas,
Não me esforço, em minhas andanças,
Por dirigi-las nas pedregosas estradas.
Se nada mudar, tudo bem,
Por igual, também.
A oferenda permanece
E um sabor a paz
Emerge, eficaz,
De meu imo por toda a infinda messe.
1358 - Tornei-me
Tornei-me Deus:
Não que é Deus meu eu particular,
Mas que do mais fundo dos abismos meus,
Vislumbro, pedra angular,
Directamente a realidade
Do que é deveras a eternidade.
1359 - Concordar
Com a morte concordar, aceitá-la, cordial,
É um degrau imprescindível para ocorrer
Um genuíno desabrochamento espiritual:
Para o ego teremos de morrer
A fim de como Espírito despertar
Gesto de ateus,
A morte negar
É negar Deus.
1360 - Separado
Teremos de morrer, mesmo que devagar,
Para o eu separado, a fim de, afinal,
Encontrar
O Eu Universal.
Ou, retirados os véus,
Deus.
1361 - Fundamento
Nosso fundamento é a Realidade Suprema,
Não o ego que jamais atrema.
Se cuido que meu ego individual
É Deus,
Apenas armarei sarilho!
No real,
Sofro de psicóticos morbos plebeus,
De esquizofrenia paranóide preso ao atilho.
A solução
É do ego romper o muro
Para ao Infinito trepar em ascensão
Íntima, seguro:
Então me curo.
1362 - Duas
Há duas formas:
Numa expandes o ego ao infinito,
Noutra, reduzindo-o, em nada o transformas.
Naquela o conhecimento concito,
Nesta, não,
Concito a devoção.
Ao fim, o sábio diz:
"Eu sou Deus - a Verdade Universal."
Ao invés, o devoto consigo condiz:
"Eu não sou nada de real.
Contudo,
Ó Deus, tu és Tudo.
Inclusive, por fim,
Tudo em mim."
Em ambos os casos o sentido
Do ego desaparece, na imensidão dissolvido.
1363 - Descubro
Ver directamente o clarão
De nossa verdadeira natureza,
Não estes inumeráveis, irrelevantes gomos…
Desta irrupção
Descubro a surpresa:
- Deus e eu, no fundo, o mesmo somos.
1364 - Unos
Na morte, de repente,
Acordamos
E descobrimos que nosso verdadeiro ser
É tudo aquilo que agora olhamos,
Que somos literalmente
Unos com toda e qualquer
Manifestação,
Unos com o Universo, mais que em comunhão.
Não nos tornámos de verdade
Unos com Deus e com o Todo,
Sempre fomos tal unidade
Mas nunca havíamos entendido este bodo.
1365 - Espelho
O homem perfeito
Como espelho a mente emprega:
Nada agarra do que nele entra, que a si nada agrega;
Nada recusa, acolhe tudo a eito;
Recebe em barda
E nunca guarda.
No fundo,
Como com nada me iludo
Nem confundo,
A nada me grudo.
E então, jucundo,
Em mim vivo todo o mundo.
E, liberto,
Sou enfim todo o longe e todo o perto.
1366 - Natureza
Teu eu transcendente
É da mesma natureza de Deus,
Independentemente
De como optes por olhar os céus.
Porque é Deus, em instância derradeira,
Final e profunda,
Que por teus olhos olha e de tudo se inteira,
Com teus ouvidos ouve e de mensagens se inunda,
Com tua língua fala
Os sentidos que propala.
Eis o que acontece
Nos inescrutáveis abismos teus:
Quem a si próprio se conhece
Conhece Deus.
1367 - Algo
Algo dentro de nós,
Um sentido interior e profundo do Eu,
Que não é memória, pensamento, mente,
(Nem como um todo, nem cada pendor a sós),
Que se não confunde com nada que é meu,
Nem corpo, nem experiência, nem meio ambiente,
Sentimentos, conflitos, sensações,
Estados de espírito, opiniões,
- Algo por trás de tudo existe e lá existo
E aí sou outro não sendo nada disto.
Porque todos os vectores mudaram
E podem mudar
Sem afectar
No que se ganhou e se perdeu,
No que findaram,
Este sentido interior do Eu.
Isto é o que permanece,
Intocado pelo correr de tempo e modos.
Isto é a testemunha de tudo o que acontece,
O Eu transpessoal de cada um e de todos,
O eu-ponte
Do outro Eu de além do horizonte.
1368 - Parte
O homem faz parte do Todo,
Do Universo,
É uma componente limitada,
Uma fatia do bodo,
É deste por inteiro feito no verso e no reverso,
Mas no tempo-espaço migalha delimitada.
A si próprio, todavia,
Se experiencia
Aos pensamentos e sentimentos,
Como algo separado e noutra via
Perante o resto do mundo que seguiria
Outros ventos.
É uma espécie de óptica ilusão
De nossa consciência do que somos neste chão.
Esta ilusão
É, para nós,
Uma prisão
Que nos restringe e ata aos nós
De nossos desejos pessoais
E ao afecto
De alguns entes individuais
Mais íntimos de nosso tecto.
Nossa tarefa, então,
É libertarmo-nos interiormente da prisão,
Abrindo as portadas
Do Infinito às estradas.
1369 - Conformes
Quando honramos e agimos
Conformes ao apelo do imo,
Ele devém o espírito-guia rumo aos cimos.
Os que carregam um deus que se desdobra
Desde o seu interior até ao limo,
A marca do génio imprimem
Na obra
Que redimem.
Quando, porém, o deus íntimo não for ouvido
Mas negligenciado,
Transforma-se num demónio desmedido,
Um espírito maligno malfadado.
Talento, energia divina degeneram em activa
Corrupção auto-destrutiva.
As chamas do inferno não
Passam da negação
Do amor de Deus,
De anjos reduzidos
A demónios, dos céus
Caídos.
1370 - Ênfase
Ênfase, não em tentar-agir,
Mas em abrir, receber, consentir,
Uma abertura que, de maneira esquiva,
É muito activa.
Tentar agir dilui a disposição
Basilar de receptividade
Requerida à contemplativa oração
Em que a fundura nos invade.
A receptividade não é inactiva,
É verdadeira actividade
Mas não um esforço, freima viva,
No pendor vulgar
Que a cultura lhe ande a dar.
É uma atitude de espera
Pelo Derradeiro Mistério,
Vasculhando no mar ignoto a sombra da galera
Dum novo império.
Ignoramos o que isto é.
Mas, à medida
Que depuramos nossa fé
E mais e mais purificada vai ficando em seguida,
Deixamos de querer
Até
De o saber.
Abandonados à onda,
Apenas nela
Vislumbraremos acaso a estrela
Que nos responda.
1371 - Voto
O homem repara
Que sem voto próprio nasce
E sem voto próprio morre.
Da solidão tem a cara
E da impotência com que pasce
E corre
Pelo pasto alheio das forças da natureza
E da sociedade.
A vida que tanto preza
É a grade
Insofismável
Duma prisão insuportável.
Mas tem a magia
De cada arrebol
Lhe dar de prenda um dia
De sol.
1372 - Atingido
O optimista atingido pela adversidade
Cuida que é desventura passageira,
Contratempo transitório,
Do qual, por mais que agora desagrade,
Ele, premonitório,
Há-de recuperar a energia perdida inteira.
Ao invés, o pessimista considera
Que da calamidade o efeito
É irreversível, de era em era,
E a ser permanente o dano é sempre atreito.
Enquanto este vai ao fundo,
Aquele abre a porta para singrar no mundo.
1373 - Pendor
O pendor optimista, ao tudo explicar,
Dos contratempos o lado positivo
Estimula a procurar
E ajuda-nos a minimizar
Das desgraças o impacto furtivo,
O sentido em nós alimenta
De que controlamos nossa vida,
Da subavaliação de nós próprios que nos atormenta
Nos protege e nos convida
A transpor o desânimo, alma repesa,
O sentimento de indefesa.
Perante a favorável conjuntura
Leva-nos a aceitar com confiança
A boa sorte que se configura
E a apropriar-nos do êxito que se alcança
Como algo que, no fundo, cremos
Que merecemos.
O pendor
Optimista
É o alvor
Onde, no horizonte, da vida o melhor
Já se avista.
1374 - Felicidade
A felicidade futura
É muito mais importante
Que a sorte que o presente inaugura.
Aceitamos viver mal hoje quando adiante
Cuidamos que, porém,
Iremos viver bem.
Ao invés, todavia,
Embora nos sintamos bem,
Quando amanhã o mal se prenuncia,
De bem nos sentir deixaremos também.
Quando alguém diz "sou feliz!",
Que o irá ser é o que afinal diz.
Para além do que alcança,
Nossa boa sorte, então,
É sobretudo esperança,
- Uma ilusão!
E é o que torna abençoada
De cada dia a jornada.
1375 - Predomina
O optimismo
É um bem mais alto e geral,
Onde predomina a liberdade individual
Sobre o colectivismo.
Persiste nas culturas
Onde preferências, aspirações e metas
Individuais têm prioridades seguras
Sobre imposições de grupo a que te submetas.
Quando no colectivo encaixo
O respeito das liberdades
É que ao sonho deito abaixo
Da prisão as grades.
1376 - Esperança
Para reformar
Nossa personalidade afectiva,
A fim de mais da vida desfrutar,
É preciso plantar
Rebentos de esperança viva
Que, sem menosprezo, na pendência,
Pela razão e pela prudência,
Permitam sempre pressupor
Fazer do náufrago um navegador.
1377 - Escultor
Como o escultor o mármore fere
A estátua a aperfeiçoar,
Assim Deus o homem gere,
A corrigi-lo ao castigar,
Limando a aresta
Que prejudica a harmonia
Do contorno que não se presta
Ao que alumia.
1378 - Crendo
Como filho, logo te habituaste
À ideia de que eras teu nome.
E, crendo ser teu nome, nunca dispensaste
O mínimo esforço
À fundamental questão
Que te consome:
Quem sou eu que, verme, aqui me torço?
Em teu nome te perdeste,
Ficaste preso dentro dele,
A leste
De tua pele.
Eu, que nunca me nomeei,
Que ninguém nunca nomeou,
Eu sei:
Livre, livre sou!
Sem nome,
Sou apenas a infinita,
A infinita fome
De dita
Que em mim, frágil, assome
E me concita.
1379 - Poetiza
Quem é, não sei.
Poetiza e canta,
Mas tanto fora da lei
Que não é poema nem canto, mas encanta
Toda a grei.
Pressinto que é alguém
Que deve ser protegido
Enquanto atravessa para mais além
Países e fronteiras, desmedido,
À procura nem sei bem
De quê nem de quem…
Deixarás de ser a pessoa
Que eras até agora,
Ao andar com ele, porém.
Prepara-te, não vás à toa
Para a mudança
Que te alcança
A toda a hora.
Quem é, não sei,
Mas sei que não há lei
Que lhe resista
Em nada do que exista.
É o poema,
É o poeta,
É o lema,
É a meta…
Sopro de ar
A divagar, a divagar, a divagar…
É de fora,
E de dentro,
Tão longe, tão longe mora
Que é o meu, o teu, o nosso inesperado
E ansiado
Centro.
1380 - Voltaremos
Voltaremos a nos encontrar?
Uma das verdades mais importantes
Que virás a aprender, a vida ao recontar
No rosário dos instantes,
É que sempre voltamos, inelutavelmente,
A encontrar toda a gente.
Que mais não seja, no Infinito
Está
Desde já
Consumado fatalmente nosso fito.
1381 - Muda
Não há decadência,
O mundo
Vive e muda a cada segundo
E nós com ele, em paralela cadência.
Mas, no fundo,
Sentimos uma grande saudade
Do tempo primordial
Em que estávamos mergulhados em Deus,
O tempo que ainda nos invade,
Radical,
Da profundeza dos céus.
Esta saudade oculta
É que nos leva a lamentar a mudança
Mesmo quando vemos que o que a entrança
É, afinal, a nossa mão inulta.
1382 - Paraíso
Ainda existe quem prometa,
Sem rir,
Um paraíso na terra, meta
De porvir.
Mas o paraíso não pode estar
Na terra, por definição:
Não é um lugar,
É uma dimensão.
1383 - Respostas
Ninguém logra saber nada, ninguém,
Com as respostas doutro, que a outro convêm.
Quando entenderes isto, aliás,
Muito mais saberás.
E mais saberás quando descobrires, em suma,
Que todas as respostas são apenas uma.
1384 - Medeia
Entre as coisas e as palavras medeia um abismo
E é questão de discurso a verdade.
É um sonho com que, falhado, cismo,
É um sonho a racionalidade.
Mas como visar outra meta
Quando esta é a única que acometa?
1385 - Previmos
Como gostaria que tudo houvera ocorrido
Doutra maneira!
Mas nada do que vimos e tivemos no sentido
Se realiza. Nem sequer de nós se abeira.
Tudo ocorre sempre além
De quaisquer medidas.
Não é caso para humilhar ninguém,
É a vida a nos pregar partidas.
A sabedoria singular
É, portanto, que é preciso saber abdicar.
1386 - Brota
Ninguém poderá dizer
Donde um livro vem,
Muito menos quem
O escrever.
Brota o livro da ignorância
E, se continua a viver
Depois de inscrito em tal instância,
Há-de ser
Apenas na medida
Em que a mensagem, no fundo, não pode ser entendida.
1387 - Mais
Mesmo os mais fortes são fracos,
Aos mais corajosos falta a coragem.
São os cacos
Da viagem.
Agora como dantes,
Mesmo os mais sábios são ignorantes.
De nada vale a pena
Inchar o peito a uma rã tão pequena.
A infinidade não tem fim:
- Que somos nós perante tal confim?
1388 - Delirantes
Por muito delirantes que sejam
Nossas invenções, jamais logram igualar
Aquilo que sobre nós constantemente despejam
Do mundo real os vectores de espantar.
Tudo pode acontecer
E, duma ou doutra maneira,
Acontece mesmo, sempre, a todos e a quenquer
E com muito imprevisível emparceira.
É sempre inelutavelmente outro o Além
Que nos desafia e sustém.
1389 - Corres
Se não corres atrás do que queres,
Nunca irás conseguir.
Se não pedires, não esperes,
O efeito é sempre não, a seguir.
Se não deres um passo em frente,
Rompendo o limiar,
Permanecerás eternamente
No mesmo lugar.
1390 - Difícil
É tão difícil acreditar
Que há mais coisas
Que aquelas em que podes tocar,
Em que teus sentidos poisas?
Já sabes em teu sangue, em teu coração,
Que falta para que inteiro teu imo te ganhe?
Agora é apenas questão
De deixares que a mente acompanhe.
Ou preferes que a teia
Do preconceito
Te ate de centopeia
Tuas mil pernas a eito?
1391 - Apaixonar-se
Pode um homem apaixonar-se por um mero sonho,
Se não tiver cuidado.
É muito simples: sem esforço medonho,
Sem trabalho, com as dificuldades de lado…
Mas também com esta sina:
- Sem alegria genuína.
1392 - Importante
Acreditar
É importante e satisfatório
Como um começo.
Não é nada ilusório
Nem inegável tropeço:
- Ninguém pode terminar
Enquanto não começar.
1393 - Querem
Alguns querem o simples, o banal
E o harpejo tranquilo.
Não faz com que quem quer, afinal,
O complicado, o emocionante trilo,
É ganancioso ou egoísta.
Aparte o estilo,
Ao correr
Na pista,
Querer é querer,
Quando a tal me predisponho,
Qualquer que seja o sonho.
1394 - Sonhos
Os sonhos, bolas de sabão,
À distância olhados
Que maravilhosos são!
Os olhos, porém, perto demais colocados
Acabarão, sem querer,
Fatalmente a arder.
1395 - Casa
Não podes saber nem eu sabia
Até me ter ido embora:
Estar em casa é uma magia,
Vivemos num lar, temos hora.
Não é uma prisão,
É um santuário,
Uma possibilidade,
Raiz no chão,
Perenidade
No tempo precário.
Constituo família aqui:
Inauguro,
Em si,
O futuro.
1396 - Delinear
Está tudo no mapa,
Podes delinear uma rota.
Alguns agarram-se a ela como lapa,
Pouco importa se leva à vitória ou à derrota,
Sem desvios para explorar
Uma estrada secundária,
Sem o espontâneo travar
A apreciar
Uma Lua solitária…
Não sabem o que perdem
E como se queixam
Quando acaso herdem
Becos que os deixem
Deslocados
Em recantos inesperados!
Mas a maior parte de nós aprecia
Uma aventura pelo caminho,
Aquela via ignota que se desvia
Um bocadinho.
Ter a visão clara da meta
Não deve abolir a mensagem
Que em nós despoleta
A surpresa da viagem.
1397 - Ilimitada
De ilimitada bondade
Tenho um mar
E, de amor, a profundidade
Dele, a par.
Quão mais te dou, mais para dar
Tenho e concito
Porque o que dou e o que tenho, a par,
São o Infinito.
1398 - Metas
Sem sonhos, não brilha a vida.
Sem metas, sem alicerces
Findam os sonhos de seguida.
Se sem prioridades exerces,
Serão de fuga sinais,
Nunca os sonhos devêm reais.
Sonha, pois, aponta metas,
Ordena prioridades,
Corre o risco das vielas indiscretas
Para os sonhos, que jamais são veleidades.
Melhor é errar por tentar
Que, por se omitir, errar.
Não temas, de entrada,
Os tropeços da jornada.
1399 - Fé
Tudo aquilo em que acreditas
Consegues.
Se é sucesso o que tu fitas,
Não delegues,
Vê o que fazer quiseres
E não o que não queres.
Interioriza este pensamento
Até nele acreditares.
É da fé o momento,
De lhe trepar aos patamares.
Ora, a fé que assim ganhas
É a que remove montanhas.
1400 - Atinge
Aqueles cuja visão
Atinge maior lonjura
Por loucos tidos serão
Por quem não apura
Maior lonjura alcançar
Que da porta o limiar.
1401 - Água
Levamos a vida como água em cachão
A correr monte abaixo,
Permanentemente a tender para a mesma direcção,
Até que um qualquer sacho,
Desviando-nos o percurso,
Nos obriga a procurar um novo curso.
Estranho é que ninguém,
Mordendo-o a desilusão,
Repare que é aquilo que lhe convém
Exactamente então.
Perde o tempo e a energia
A excomungar a curva de cada dia.
Ora, enquanto excomunga
Nenhum novo mundo o fecunda.