DÉCIMO SEGUNDO TROVÁRIO
NOS LAÇOS QUE DE AFECTO TUDO ABRAÇAM
Escolha aleatoriamente um número entre 1402 e 1480, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1402 - Nos laços que de afecto tudo abraçam
Nos laços que de afecto tudo abraçam
Em sonetos tudo implanto,
Sejam regulares as métricas que traçam,
Sejam irregulares, que me enlaçam
Os sentidos do Todo em quanto canto.
Os versos do soneto,
De quantidade nem longa nem curta,
Farão que a medida de meu tecto
Efeito surta.
Percorro do soneto a casa inteira
Em passo irregular ou regular
E mais de minha casa chego à beira.
É singular
Quanto um poema, afinal, pode amparar.
1403 - Fonte
Fonte silvestre de criatividade
É a flexibilidade mental,
A vegetal possibilidade
De renovar-se permanente cada qual.
Sem tal, todos os carentes dias
Ir-se-ão assemelhar,
Nada é feito, mortas as magias,
Que antes não fora programado no lugar.
Tudo problemático devirá depressa
E findarás a ser mortalmente
Decepcionante, dos pés à cabeça,
E impertinente.
Falta todo o outro lado:
- O sonho que na vida for sonhado.
1404 - Embora
Como ir embora sem magoar,
Sem que outrem se sinta abandonado?
Levamos a vida a ficar
Sozinhos, postos de lado.
Todos cá dentro guardamos
Uma criança triste.
A maior parte da vida não prestamos
Atenção à criança que persiste
Com uma fome inextinguível de amor,
De ternura atenta e de calor.
Em todos nós mora a vontade
Premente
De que alguém goste de nós de verdade,
Incondicionalmente.
1405 - Tempo
Tudo o próprio tempo tem
E aceito que o meu ande a expirar.
Nada na vida permanente é também,
Tudo é transitório, ao outro a dar lugar.
É mais fácil, todavia,
Aceitá-lo quando estamos de saúde,
Do que senti-lo no dia
Em que a doença nos mude.
Saudáveis, podemos afirmar à vontade
A maior barbaridade.
É preciso estar derrubado no chão
Às portas da morte
Para entender como as coisas são,
O fado que nos coube em sorte.
1406 - Tememos
Tememos a morte porque julgamos
Que não somos parte da natureza,
Que não somos ramos
De árvore à terra presa.
Uma coisa seremos nós,
Outra, o Universo,
Mesmo quando atado pelo retrós
Da fantasia ao mesmo verso.
Tudo, porém, na natureza morre
E, como microcosmos, Universo também,
Também cada qual morrerá, por mais vida que aforre.
Recomeça, todavia, no Além,
Como ao Universo, no todo e em cada parte, ocorre
Que regular e fatalmente convém.
1407 - Comer
É verdade que ninguém
Pode comer a atmosfera.
Que o mais importante vem
Da boa cozinha vera
Não é verdade, porém.
Comer deveria ser
Vivência reconfortante
E ninguém há-de poder
Sentir-se bem adiante
Num ambiente a comer
Gélido ou impessoal:
Isto é indigesto, afinal.
Menu que tal não veria
Há-de falir qualquer dia.
1408 - Equilibra
Equilibra a vontade de viver
Com o acolhimento da morte,
Equilíbrio a aprender
Para que a vida conforte.
Se a morte, calmo, aceitas já,
Não te preocupe não ter medo:
Querer morrer nunca significará,
A morte apenas já te não põe quedo.
O que te houver de ocorrer
É desta sorte:
Não queres morrer,
Apenas não tens já medo da morte.
Então viver podes livre a vida
Sem precisar de lhe tirar sempre a medida.
1409 - Passa
Tudo é impermanente,
Tudo passa, nada dura.
Apenas o Todo dura eternamente,
Todas as partes, na sina futura,
Estão condenadas, por essência,
À morte e à decadência.
Na vivência mística e meditativa,
Para além da prisão da individualidade,
Podemos experienciar o todo, plenitude viva,
E escapar ao destino (que nos degrade
E dolorosamente reparte)
De sermos uma despicienda parte.
Somos libertados do sofrimento que nos invade
Escapando ao terror da mortalidade.
1410 - Cumpre
O optimismo é profecia
Que se cumpre por si mesma.
O optimista pressagia
Que atinge o cume da resma
De tudo quanto deseja.
Persevera e tudo em volta
Responde ao que quer que seja
Este entusiasmo à solta.
É o que lhe traz a vantagem
Dos píncaros na saúde,
No amor, trabalho, em viagem,
O que, de tal em virtude,
Da previsão optimista
Ultrapassa a própria lista.
1411 - Humor
Humor é sempre o purgante
Na função primordial
De descarregar adiante
A tensão emocional.
Mesmo o negro alegra a vida
A nós e a quem nos rodeia.
E se provoca em seguida
O riso, então, de mão cheia,
Nos ajuda a receber
Oxigénio, tendo em mente
O físico que o colher
Como a emoção igualmente.
Humor, em todo o sentido,
Purga a vida pelo ouvido.
1412 - Íntimas
As íntimas amizades
Entre sexos diferentes,
Sejam ou não de parentes,
Operam bem, que as persuades
A não serem exclusivas:
Não têm a ver com renunciar
A todo e qualquer outro par,
Pelo contrário, são vivas
Fruições de quem tens em frente
Por ele próprio, simplesmente.
Ao não serem concorrenciais,
Deixam abertos todos os portais.
Ao não atacarem, não são atacadas
A partir de nenhumas outras emboscadas.
1413 - Teorias
Dentre as teorias vigorosas, cruas,
Da competição, até à morte acaso,
Entre mesmo irmãos, espreita humilde e a prazo
O embrião da ideia de as mãos dar nas ruas,
De cooperar a bem da ajuda mútua,
De igualmente em prol do bem-comum lutar,
De toda a família (membro dela, escuto-a
Como uma unidade a ir comigo a par).
Emparelha bem neste de fundo pano,
Ignorado sempre, o altruísmo humano.
É tão requerido, estrutural em mim,
Como competir, tudo emular, enfim.
Entre competir e dar as mãos é que eu
Desenho o meu rumo e o rosto entalho meu.
1414 - Estreita
Amizade estreita de mulher e de homem,
Relação do peito, a par de irmão-irmã,
Podem afrouxar pressões que ali consomem
Laços conjugais e a vida tornam vã.
Isto tem a ver com espalhar singelo
O peso da vida, o que atingido vai
Ser sempre através da rede a que eu apelo
Num pedido forte em que me a fé recai.
Tem em parte a ver após também com algo
Que do mesmo sexo amigos nunca dão:
Uma perspectiva a que o patim não galgo,
Que é do outro sexo arando ao lado o chão.
Aumentando a rede destes laços veros
Aumento os apoios em redor sinceros.
1415 - Protegida
Mulher protegida de sentir não tem
Que incompetente é, como incapaz de todo,
Ou como criança que se mal contém.
Pode antes acaso reparar no engodo
De ser importante, apreciada a sério,
Como uma rainha para alguém que a amar.
Sinal de respeito, de condão sidéreo,
Dum fiel amigo dela sempre a par
E não de piedade que ele ali sentiu.
Ela não precisa então que cuidem dela,
Merece que a cuide, ao invés, quem a viu,
De qualquer amigo feita assim a estrela.
E qualquer amigo apreciado fica,
Jóia lapidar que a coroar se aplica.
1416 - Funcionarão
Poucas relações funcionarão sequer
Quando toda a gente lá estiver tentando
Ser independente. Como o foco a ter
No eu se transforma em exclusivo, inchando,
Mais e mais agudo, o que é deveras nós
Já desaparece na distância em bruma:
Esta realidade nuvens são de pós
Sem mais adquirirem consistência alguma.
Nós não deve ser um eu mais outro eu,
É também a soma de historial, futuro,
Mil interacções e relações sem véu
Entre quantos vão reconstituir seguro
Cada nós comum, recombinado ainda
Com quanto houver fora, que o não-eu não finda.
1417 - Trepou
Aquele que trepou nesta colina
Olhando para baixo
O mesmo que tu não viu:
Não um lugar adorável que se te destina,
Impregnado de magias em cacho
E aconchego que te desvaneceu.
Não, viu uma armadilha
E teria cortado a própria perna
Com serrote de serrilha
Para escapar ao monstro que lá hiberna.
Assim é com toda a gente:
O que um vê de costas outro vê de frente,
Por mais que os factos dados
Os mesmos sejam ocorridos e registados.
1418 - Caminho
Pode a razão bem conter,
Governar as emoções,
Mas o caminho que houver,
De razão prenhe em razões,
Mui difícil é deveras.
Todos que se persuadem
De que é viável esferas
Na multidão ter que os gradem
Ou que os públicos agentes
Vivam segundo a razão,
Sonharão com as sementes
Duma idade de oiro em vão,
Com a ficção se comprazem
E sempre o contrário fazem.
1419 - Parece
Tudo o que na natureza
Ridículo, absurdo ou mau
Nos parece, de certeza
É de crenças varapau
Porque só vemos a parte,
Ignoramos sempre a inteira
Ordem que o Cosmos acarte,
Teia de algas que há na jeira.
Queremos que tudo seja
Conforme à nossa razão,
Mas o mau mau não viceja
Do Cosmos à luz então.
O mau vem unicamente
Da míope nossa mente.
1420 - Paz
A paz não é, com efeito,
A pobre ausência de guerra,
É virtude que eu aleito
De força de alma na terra,
Que transmuda a obediência
Numa vontade constante
De fazer, em consciência,
O que é devido adiante.
Cidade em que a paz é inércia
De súbditos em rebanho,
A servidão logo exerce-a
Tomando a perda por ganho,
- Mais nome é de solidão
Do que de cidade então.
1421 - Temer
Não há que temer dum corpo
Como nem da escuridão.
Só se em mim o mal encorpo
Ambos recearei então.
A morte ou a escuridão
Ao contemplar, receamos
O buraco que há no chão,
Do desconhecido os ramos.
Não há mesmo nada mais
Que ali tenha outros sinais.
Se me abro ao desconhecido,
Logo têm outro sentido.
Se quero ir à descoberta,
Então eis a porta aberta.
1422 - Ferreiro
Um ferreiro forja o ferro
No intenso calor do fogo;
Desbrava um pioneiro o aterro,
Abrindo um trilho ali logo.
Filhos de divorciados
Ambos os rumos farão:
Forjam valores moldados
Na chama que dentro são
E abrem trilhos na floresta
De contradições criada
Por modos que a vida atesta
Que dos pais são a pegada.
Só na afanosa canseira
Deles a vida se abeira.
1423 - Problema
O vero problema humano
Não é questão de ciência,
É da psique o desengano,
É do espírito a falência.
A ciência trepou muito,
O ser humano, bem pouco.
Nalguns aspectos, fortuito,
Regride até, feito louco.
A descrença na verdade
Da ciência é que alertou
Pouco a pouco a humanidade
E a hora de hoje chegou:
- Como resolver iremos
Os séculos que perdemos?
1424 - Inteligente
A solidariedade
Como a infinda tolerância
São tua capacidade
De mudar qualquer instância.
A tolerância respeita
Com fiel arte as diferenças
E não lhes lança a desfeita
De quaisquer mortais sentenças.
A solidariedade
Arte será de entender
A dor e a necessidade
Doutrem e de as atender.
E por estas duas vias
É um mundo novo que trias.
1425 - Milagre
Muitos desejam milagres
Mas o milagre maior
É o segredo onde consagres
Do que é simples o fulgor,
Do que é quase imperceptível.
Quando tu te preocupas
Com o cume inatingível,
O topo em firma que ocupas,
O prestígio social,
As simples coisas da vida
Desprezando, trivial,
Tens a mente em ti delida
Por aquilo que te ilude:
- Que é da emocional saúde?
1426 - Falhas
Se os pais não surpreenderem
Deles os filhos que têm,
Sonhos lhes não conhecerem,
Não valorizarem bem,
Se nas falhas que tiverem
Não encorajam também,
Se além do mais não disserem
Que crêem neles além
E apesar dos erros tidos,
Certamente não desenham
Grande imagem nos sortidos
Solos de evocar que advenham.
Tais barreiras na memória
A ninguém trarão vitória.
1427 - Esquecem
Para dar o mundo aos filhos
Trabalharão muitos pais
Mas esquecem os cadilhos
Da própria vida reais.
Muito professor milhões
Dele aos alunos vai dar
De veras informações,
Mas nunca lhes vai contar
Os capítulos da história
Própria de que tem memória.
Um e outro findarão
Por ninguém fincar ao chão.
Filhos e alunos, ao frio,
Da vida perdem o rio.
1428 - Meses
Durante os meses primeiros
Nem um só termo dizias.
Todos foram, pioneiros,
Falar-te todos os dias.
Quando aprendeste a falar
E alguém buscaste a te ouvir,
Todos vês a se calar.
Sem diálogo, a seguir,
As histórias não se cruzam
E acabamos isolados
Na emoção que nos recusam.
De diálogo sem dados
Perdemos a ferramenta
Que em comunhão nos inventa.
1429 - Protestar
Hoje, ao veres os obstáculos,
Tornaste-te especialista
Em protestar, dos pináculos
Não agradecendo a lista.
Falas de quem te magoa
E de crise financeira,
De frustrações mil à toa…
Gastas a energia inteira
Com críticas que te fazem,
Com quanto te prejudica
Os encantos que te aprazem
No que a vida bonifica.
Talhas a tua desgraça
Cego ao encanto que passa.
1430 - Centro
O mundo é contraditório:
As crianças, quando nascem,
São de milagre envoltório,
No centro do mundo pascem.
Mas, pouco a pouco, os adultos
Deixam na periferia
Das próprias vidas, estultos,
O bebé que lhes crescia,
Vão-se os beijos e as carícias.
Lutam por dar-lhes porvir,
O mundo e quaisquer blandícias.
Não têm tempo, a seguir,
Para a si próprios se darem,
Findam a se desalmarem.
1431 - Diariamente
Diariamente, milhares
De emoções e pensamentos
Se registam, singulares.
As vivências de momentos
De emoção mais elevada
São privilegiadamente
Arquivadas logo à entrada.
Carinho e medo fremente,
A rejeição e o apoio,
A correcção, a injustiça,
Atam num longo comboio
A memória que as enliça.
Cuida a manta de retalhos,
Da vida é cuidar dos galhos.
1432 - Morada
Sem morada, uma pessoa
Poderemos encontrar
Após anos indo à toa
De lugar para lugar.
Na cidade da memória
É uma fracção de segundo
Do encontro para a vitória
Do que importa em nosso mundo.
A inteligência é o mistério
Que, sem mapa nem roteiro,
Nos garante sempre o império
Sobre a memória em ficheiro.
Como não nos encantar
Com um dom tão invulgar?
1433 - Janelas
Se alguém te fechar a porta,
Não te gastes no confronto,
As janelas é que importa
Que busques antes, de pronto.
É de água sabedoria
Que obstáculos não discute:
Contorna-os tu todo o dia,
Chega ao fim noutro azimute.
Se alguém te frustra ou ofende,
És água e quem te feriu,
Obstáculo que se rende
A quem o não discutiu.
E aprende a doar-te sem
Muito esperar de ninguém.
1434 - Empreendedor
Empreendedor sê deveras,
Não tenhas medo de errar.
Se erros forem, não quimeras,
Confessa-os então a par.
E, quando os reconheceres,
Não temas nunca chorar.
De os chorar quando tiveres,
Não temas reavaliar
A tua vida, teu rumo.
Quando a reavaliares,
Não te esqueças, em resumo,
De a ti te proporcionares
A fresta de novidade
De nova oportunidade.
1435 - Erro
O erro que da Razão
A Idade nos cometeu
Será que a superstição,
O fanatismo sandeu
Que inundam hoje a cultura
O arrastaram para o lixo,
Ao real dando figura
Ao anular do erro o nicho?
O racionalista tenta
Reduzir a criação,
No todo com que se alenta,
Ao que não é mais senão
Que peso num balança
- E um Outro Além nunca alcança.
1436 - Cadilhos
Há cadilhos que, adivinhos,
Prendem ao soltar do chão:
A certeza é um dos caminhos
Mais lestos da danação.
Nenhum homem saber pode
Para outrem o melhor.
A certeza que lhe acode
É o engano de a supor.
Deus chamou-nos a pastores
De seu povo sermos todos
Para escolher os melhores
Dos caminhos e dos modos.
Mas como ao certo saber
O caminho a percorrer?
1437 - Fim
Seja o que for que façamos
Para criar o destino,
O cume em todos os ramos
É com Deus, fado divino.
Quão mais ando matutando
Mais certo estou de que nada
Importa a palavra quando
Aponto igual madrugada.
Anátema, excomunhão
Por num dogma crer ou não?
É só do que é fruta em acto
Que a fruteira desempato:
Gera o bom frutos de amor,
Vermes o mau, choro e dor.
1438 - Serve
Para que é que serve a guerra
A não ser para que a paz
De vez se estenda na terra
Como a qualquer povo apraz?
Se um soldado em demasia
Amar aquilo que faz,
Breve se transformaria
Em só de matar capaz.
Então à terra pacífica
O que ele trará dali
É só uma achega específica:
A paixão da guerra em si.
Pervertidos os valores,
Toda a vida são horrores.
1439 - Rejeição
Por trás dos olhos hostis
Há o menino que aprendeu
Que a vida é de tal cariz
Que nunca a ninguém sorriu.
Então, a melhor maneira
De a rejeição prevenir
É doutrem nem pôr-se à beira
E, para se não ferir,
Tornar-se o mais detestável.
Não é nunca então surpresa
O desamor expectável.
Dele é a mágoa sobre a mesa:
Superou a frustração
Dando a morte ao coração.
1440 - Verdade
A luz da verdade é uma
Mas vemo-la repartida
Por cristais, prismas, em suma,
Por mil cores difundida.
Cada uma das maneiras
Pela qual homens, mulheres,
Vêem dos deuses as jeiras
Tem dum pendor os haveres.
De muitas vertentes vemos,
Por muitos nomes chamamos
O segredo-mor que temos
E que ao vento proclamamos:
- Chamem-lhe um nome ou nenhum,
Os deuses são todos Um.
1441 - Única
Cada qual o mundo vê
De forma bem diferente.
O nascimento dele é
De estrelas um ponto assente,
De história única um fio.
Não é despropositado
Permitir-lhe sempre o ousio
Do deus que há percepcionado.
Neste mundo que é tão rico,
De tal modo variado,
Decerto que me não fico
Sem mil formas de traslado
Para que o possa quenquer
Vislumbrar como entender.
1442 - Conforto
Há um conforto curioso
Na ideia de que a tristeza,
As confusões como o gozo
Da vida que por nós reza
No presente que angustia
Têm por trás algo de eterno
Que se não gasta num dia
E nos toca em gesto terno,
Enchendo a dor da magia
Dum céu a cobrir o inferno.
Pôr-de-sol que amanhecia,
Primavera a vir do Inverno,
É o toque que me anuncia
Qual meu ser, enfim, superno.
1443 - Aqueles
Aqueles tão poderosos
E arrogantes nos trabalhos,
Com o empregado dolosos,
Lidando, por entre ralhos
Com clientes, condutores,
Preconceitos e segredos,
Falsa atitude de humores,
Hipocrisias e medos,
Opressão, feitas as contas,
Findam o dia na buate
E pagam mil notas tontas
Por um breve desempate
De deixar de ser quem são
Apenas por um serão.
1444 - Final
Todo o homem é um artista,
Obrigação de saber
Tem de que o final em vista
Do ser humano é entender
Que será o amor total.
Nos outros não mora o amor,
Mora dentro, em cada qual,
Só lhe desperto o calor.
Porém, para o despertar
É que doutrem precisamos.
O sentido revelar
Do mundo, só quando achamos
Alguém com quem partilhemos
Os furacões que vivemos.
1445 - Afecto
Quanto mais longe mais perto
O afecto do coração
De que sofremos o incerto
Murchar, esquecer em vão.
Se condenados a exílio,
Guardamos cada lembrança,
Do antigo olhar cada cílio
Que as raízes nos alcança.
Se do ente amado distantes,
Cada qual que pela rua
Nos passe lembra os instantes
Do distante que flutua
Fora do tempo e lugar
Onde dói seu magoar.
1446 - Pergunta
Ninguém deve perguntar:
- Por que é que estou infeliz?
Esta pergunta é o lugar
Que nos destrói de raiz.
Se o pergunto, vou querer
Descobrir o que é que faz
Feliz de vez a quenquer.
Felicidade o que a traz,
Se é diferente daquilo
Que estivermos a viver,
Ou mudo de vez de estilo
Ou mais infeliz vou ser.
E à vida que por mim passa
Logo lhe aniquilo a traça.
1447 - Bom
Quem é verdadeiro amigo
Ficará sempre a meu lado
Se ocorre o que é bom comigo,
Torce por mim sem enfado,
Alegra-se da vitória…
O falso amigo aparece
Quando o difícil, sem glória,
Todo o meu dia entretece.
Vem com uma cara triste,
Ficta solidariedade,
Quando a dor que em mim persiste
Conforta em profundidade,
De maneira inconfessável,
Dele a vida miserável.
1448 - Será
Que é que será liberdade?
Será ver que teu marido
Não se importa de verdade
Com o que tens no sentido?
É sentires-te sozinha,
Sem ter com quem partilhar
O afecto que se adivinha,
Que quem partilha teu lar
Vive apenas concentrado
No trabalho, na importante
Carreira que haja encetado,
Magnífica, deslumbrante?
Liberdade vai ser esta
Vida que a vida encabresta?
1449 - Força
O amor é força selvagem:
Quando tento controlá-lo,
Destrói-me em sua voragem;
Quando tento aprisioná-lo,
Ele escraviza-me então;
E, quando tento entendê-lo,
Deixa-me na confusão.
Esta força é nosso elo
Para nos dar alegria,
Ao nos achegar aos mais.
Como amamos hoje em dia,
É só um minuto de paz
Que haurimos em cada hora
Que a angústia em nós se demora.
1450 - Guerra
Muitos na guerra há felizes:
O mundo tem um sentido,
O sacrifício raízes
Embebe no que é vivido.
Amam então sem limites,
Que não há nada a perder.
Se o ferido, nos palpites,
Não vê que o salvem sequer,
Seu fôlego derradeiro
É que à mulher, é que ao filho
Digam que os amou inteiro
Até ao último brilho.
No desespero maior
Todos só falam de amor.
1451 - Importa
Todo o relacionamento
Importa pela conversa.
Mas poucos, neste momento,
Acolhem de forma tersa
Sentar-se para falar
E para os outros ouvir.
Vão-se em teatro ocupar,
Em cinema, a distrair,
Vêem a televisão,
Ouvem rádio, livros lêem,
Mas jamais conversarão
Nem sequer sobre o que vêem.
- Quando, à roda da fogueira,
Lendas ouço a noite inteira?
1452 - Gesto
Que será que mais prazer
Há-de dar, no casamento,
A qualquer normal mulher?
Não é de sexo um momento,
É o gesto de alimentar:
Ver todo o lar a comer.
Ir-se-á disto gloriar,
Que o dia inteiro a correr
Tremeu a cuidar da ceia.
É do passado de fome,
Do risco que, volta e meia,
De extinguir-nos nos consome.
Ao sobreviver, o ninho
Propõe-lhe então o caminho.
1453 - Errado
O que há de errado é a maneira
De manifestar o amor.
Se aceitarmos que joeira
De problemas todo um ror,
Poderemos conviver
Com eles e ser felizes.
É uma luta sem fim ter,
O que activa em nós matrizes
De vivos ser e animados
Com ignotos universos
De conquista em mil e um lados.
Acomodados nos berços
Ao invés, sem mais confrontos,
O amor não luz, põe-nos tontos.
1454 - Contaram
O mundo que conhecemos
Hoje é apenas uma história
Que contaram e em que cremos.
Mas esta não é a memória
Da história que é verdadeira.
Estoutra história inclui dons,
O poder da mente inteira,
Faculdades doutros tons
Que irão muito mais além
Que aquilo que conhecemos…
Algo aqui temos também
Que com outrem nós troquemos.
Aqui, lendário, fecundo,
Se enraíza um novo mundo.
1455 - Casal
Num casal que é fracassado,
Se um pára de caminhar,
O outro ver-se-á forçado
O mesmo a fazer, a par.
E, enquanto espera, aparecem
Amantes, piropos dados,
Cuidar dos filhos que esquecem,
Compulsivos outros dados…
Bem mais fácil é falar
Abertamente do tema:
"Vamos em frente!" - gritar -
"Já que o tédio mui se extrema
E é tanta a preocupação
Que o medo nos prega ao chão!"
1456 - Importante
É importante deixar ir,
Soltar e se desprender.
Importa compreender
Que ninguém joga o porvir
Com as cartas já marcadas,
É ganhar e é perder.
Teu génio não vás querer
Que descubram nas jornadas,
Nem que te devolvam algo
Ou reconheçam o esforço,
Quão teu amor é fidalgo…
Fecha o ciclo em cada escorço,
De quem foste afasta os pés,
Transforma-te em quem tu és.
1457 - Refazer
Quantas vezes me esqueci
De refazer o caminho,
Romeiro que me perdi,
Das veredas adivinho!
A bagagem deitar fora
Inútil, manter apenas
O que cada dia implora
A viver horas serenas.
Deixar assim que a energia
Do amor corra livremente,
Fora e dentro todo o dia,
Dentro e fora, qual semente.
Eis-me então, por entre o povo,
Feito romeiro de novo.
1458 - Recontado
Quando tudo tiver sido
Recontado muitas vezes,
Sítios onde houver vivido,
Momentos dos entremezes,
Passos que por ela dei,
Quando tudo se tornar
Lembrança do que passei
Já distante deste lar,
Restará mui simplesmente
Apenas um amor puro.
Não tenho um dever em mente
Nem dela preciso, apuro,
Por ser quem, a cada estrela,
Me abre na vida a janela.
1459 - Deixa
A fixação
Em tudo o que foi passado
Geração a geração
Nunca deixa nenhum dado
Com pergunta sem resposta,
Ocupa o território inteiro,
Nunca permite outra aposta
Dos humanos no viveiro,
Nunca a singularidade
De alguém considerar
A possibilidade
De mudar.
Então quantos, perenemente,
Marcam passo em vez de seguir em frente.!
1460 - Crítico
O crítico é um inseguro,
Nunca sabe o que acontece,
É na política um duro
Democrata que se tece,
Mas se fala de cultura
Há-de ser sempre fascista,
Acha que o povo se apura
Na escolha do eleito à lista
Mas que não sabe escolher
Músicas, livros, cinema…
E crê que tem o dever
De ser ele a impor-lhe o lema.
Acaba ao fim condenado
Por se ter sempre enganado.
1461 - Sofrimento
O sofrimento dimana
De esperarmos que nos amem
Da maneira que se irmana
Com fantasias que acamem
Nosso querer e poder
E não da maneira como
O amor há-de dever ser:
Sem controlo algum de tomo,
Livre, sempre a nos guiar
Com sua indomável força,
A impedir-nos de parar
E sem desvio que o torça.
Mesmo que haja dor, ao fim
Não sofro, quero-me assim.
1462 - Sabe
Deus sabe o que todos somos,
Somos artistas da vida.
De escopro um dia dispomos
Para uma estátua esculpida,
Outro dia são pincéis
E tinta para pintar
Ou são lápis e papéis
De escrever o que calhar.
Mas jamais conseguirei
Com escopro pintar telas
Nem com pincel talharei.
Devo então abrir janelas
Às bênçãos do dia de hoje,
Que a vida só então não foge.
1463 - Vazio
Porque estava vazio, o vento trouxe
Coisas novas, ruídos nunca ouvidos,
Gente com quem jamais termos sentidos
Falara, nem sequer a trouxe-mouxe.
Então voltei a ter, livre do alcouce,
O entusiasmo vivido em tempos idos,
Que de histórias de antanho meus sentidos
Se livram, da vontade pela fouce.
Descubro-me capaz de abençoar,
Descubro que serei muito melhor
E bem mais eficaz do que eu julgar.
A idade só amesquinha quem se impor
Não tenta com coragem, para andar
Com passos próprios, firme a caminhar.
1464 - Condição
Sempre a condição humana
Nos fará compartilhar
Apenas do que dimana
Do que é melhor para dar.
Porque estamos sempre em busca
De amor, duma aceitação.
O meu labor só chamusca
Do fogo que ateio à mão
O cume duma montanha,
Ilha perdida no mar.
Bate-lhe a luz, brilho ganha,
Parece no seu lugar,
Mas por baixo é a treva escura
De quem a si se procura.
1465 - Muros
A vida de lá de fora
Dos muros deste meu lar
Vai ficando de hora a hora
Mais difícil de aturar.
Não é caos, anarquia,
Nem desorganização.
É de ordem antes mania
Que a mais mata o coração.
Há regras cada vez mais,
Leis de regras contrariar,
Regras de às leis pôr taipais,
É um nunca mais acabar…
- O mundo inteiro, assustado,
Nem se atreve a um passo ao lado.
1466 - Prisioneiro
Tudo o que tenho é o presente
Que é deveras muito curto
E é quanto tem toda a gente,
Curto em todos dele o surto.
Alguns cuidam, todavia,
Que amealharam o passado
Cumulado dia a dia,
Que, no pendor do outro lado,
À mão têm um futuro
Onde acumular vão mais.
Contudo, o que eu inauguro
De ambos nunca tem sinais:
Vivo prisioneiro aqui
No agora que me sorri.
1467 - Casamento
Casamento por amor
Não será nunca, à partida,
Mais adequado ou melhor:
- Mas é o mais lindo na vida!
Por amor às vezes casam
E o amor desaparece
Anos após, nada aprazam
Na lareira que arrefece.
Sem amor vão noutros casos
E, após uns anos corridos,
Amam-se fundo e sem prazos
Um ao outro desmedidos.
É que no amor sobretudo
Muito estranho é tudo, tudo.
1468 - Nunca
Quem nunca sofreu de amor
Nunca aprender há-de a amar.
De outrem perder é o terror,
Do silêncio o medo alvar,
Dum quarto feito deserto,
De pensar sem confidente,
De a sós murmurar, que perto
Ouvido não há presente.
E, quando tudo desaba
E atrás só fica o vazio,
Em escombros tudo acaba
Da humilhação entre o frio.
Mas um brasido restou
De saber quanto se amou.
1469 - Adversidade
A adversidade é o vento forte
Que nos desvia do lugar
Aonde poderíamos chegar
Com outro norte.
Também nos arranca tudo, excepto
O que não pode ser arrancado,
De medo que nosso final aspecto
Descabelado
Seja o que vemos e somos deveras.
Perde o sentido
Vermo-nos como gostaríamos de ter sido
Noutras esferas.
Por violento que seja da adversidade o vulcão,
Ele é que nos firma, afinal, o pé no chão.
1470 - Insuportável
Que insuportável tristeza
Perceber que não tomei
O gosto a uma boa mesa,
Às terras onde passei,
Só porque nunca pensei
Mais que no que o sonho preza,
Mesmo se da vida a lei
Me escoa lenta a represa!
Contudo, se eu desviara
Dali o meu pensamento
Que vida, afinal, gozara?
Era actor que praticara
Do palco para o momento
Que afinal jamais chegara.
1471 - Mestre
O vero mestre provoca
No discípulo a coragem
De o mundo que no imo evoca
Descalibrar na triagem,
Embora também esteja
Ele com muito receio
Dos eventos que entreveja,
Quer do passado no enleio,
Quer do que lhe reservar
Além a próxima curva,
Aberta para o lugar
Onde a vista é sempre turva.
Mas é só um desequilíbrio
Que à Luz leva sem ludíbrio.
1472 - Toda
Um sou apenas e sou
Toda a gente que há no mundo.
Porque um sou e todos, vou,
Na centelha em que me inundo
Quando em meus fundões mergulho,
Ouvir instruções precisas.
São de além de todo o entulho
Do dia e suas divisas,
Dum ponto desconhecido
Dentro em mim, a alimentar-me
Do seio da Mãe, bebido
Leite comum, doce carme,
Que às almas todas se aferra
E espalha o saber na Terra.
1473 - Preenche
É o amor, preenche tudo:
Não pode ser desejado,
Que é nele um fim, sobretudo;
Nem trair pode, que atado
Nunca à posse ele há-de estar;
Não pode manter-se preso
Porque é rio a transbordar
Das barreiras, sempre ileso.
Quem o tente aprisionar
Terá de cortar-lhe a fonte
De que ele se alimentar.
Perdido então o horizonte,
Trigo não germina a messe,
É um pântano que apodrece.
1474 - Destino
Será o destino implacável
Com os que queiram viver
Num Universo imutável
Que já findou de mexer.
O novo mundo é o da Mãe
Que com o amor separar
Céus de água veio, porém.
Falhará quem crer falhar;
Quem não logra agir diverso
Destruído é da rotina;
Quem a muda impede, terso,
A mudar em pó se inclina…
Malditos os que não dançam
E os outros de dançar cansam!
1475 - Apenas
Vejo apenas amizade
Onde a paixão se fanou
Há toda uma eternidade:
Cada qual se acostumou…
Por isto é que a terra dá
Apenas o que já deu
No ano anterior, acolá,
Sem no horizonte outro céu.
Por isso, no escuro de alma
Se queixam silentemente:
Nada muda a podre calma
Da vida que há no presente…
É que o medo aos desafios
Tolheu os férteis desvios.
1476 - Serpente
A serpente que devora
A própria cauda nós somos:
Destrói-se a vida na hora
E constrói-se em novos tomos.
Tudo na existência ocorre
De igual modo, do abandono
Ao encontro que socorre,
De ser servo a não ter dono.
E só permanece intacto
O tecido que teceste:
De teu agir todo o impacto,
O filho que à luz tu deste…
Disto respeita o teor,
- É teu fio condutor.
1477 - Precisas
Não precisas de afirmar
Que amado és, forte ou capaz,
Que o sabes sem duvidar.
Mas, se houver dúvida atrás,
Em vez de tentar provar
Que melhor és do que pensas,
Ri-te apenas, em lugar,
Ri de tuas horas tensas,
Ri das preocupações,
Das tuas inseguranças,
Troca a angústia por canções,
De bom humor que lhe entranças.
- Aos poucos, o teu lugar
Há-de a ti se habituar.
1478 - Lavas
Reza quando lavas loiça,
Grato da loiça a lavar,
Que há comida que retoiça
Quem tem fome a alimentar,
Tratou-se alguém com carinho
E alguém cozinhou, serviu…
Quantos milhões adivinho
Que nenhuma loiça viu:
No fogão não têm presa
Nem ninguém a pôr-lhes mesa…
Suspensos na solidão,
Ninguém lhes vai dar a mão.
Reza, pois, de humilde gesto,
Que há mais mundo em teu apresto.
1479 - Reprograma-te
Reprograma-te ao minuto,
No que te faz crescer pensa.
Se te irritas, a sentença
É rir de ti, de teu fruto:
Ri-te alto deste estatuto
De angústia perene e densa,
De a questão ser tão intensa
Que o mais devém diminuto,
Que importas mais do que o mundo…
Tu manifestas a Mãe
Mas Deus crês que é o pai facundo
De regras que não convêm.
É que é disto o mal que integras:
- O mal de só seguir regras.
1480 - Crucificámos-te
Crucificámos-te, Deus,
Não porque somos ingratos,
Mas por medo de teus pactos,
De sermos herdeiros teus.
Foi com medo de aceitar
A nossa capacidade,
Medo de nos transformar
Em deuses, mas de verdade.
Com o tempo e a tradição
Voltaste a ser deus distante
E nós voltámos ao chão,
Neste destino hesitante.
E assim, tudo descansado,
Traímos o nosso fado.