DÉCIMO QUARTO TROVÁRIO
SEI QUE A ALEGRIA POR AQUI ME VAI TALHANDO
Escolha aleatoriamente um número entre 1593 e 1695, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1593 - Sei que a alegria por aqui me vai talhando
Sei que a alegria por aqui me vai talhando
Em toda e qualquer forma de poema,
Regular, irregular, sempre rimando,
No gozo da ironia chasqueando
Da vida sobre o tema.
É bom humor ou sarcasmo,
Uma irónica anedota,
É da estupidez o pasmo,
Do pedantismo a chacota…
Tudo é bom pretexto de alegria
Depois da suada freima
Do dia-a-dia.
As achas do poema a lareira queima,
É de festa a minha teima.
1594 - Beber
Vejamos a sério, vejamos
Que beber de forma sistemática
É a única coisa em que não melhoramos
Com a prática.
1595 - Orador
Dum bom orador a pedra angular
A erigir
É parar de falar
Antes de os ouvintes pararem de ouvir.
1596 - Copo
Mal se concebe:
Um copo é tão pequeno, ali ao centro!
Como é que um homem bebe, bebe,
E não logra sair-lhe de dentro?
1597 - Amaste
Nunca amaste deveras ninguém,
Pois, se tal houvera ocorrido,
Compreenderias que o amor nunca advém
Como um qualquer rasquido
Que se pode varrer à mão
E ultrapassar como incómoda constipação.
1598 - Inflação
Inflação, reparando bem,
É lograr viver este mês com o ordenado
Do mês que vem,
Sonhando com os preços do mês passado.
1599 - Noite
À noite, ao abrir tudo
Para a casa arejar,
"Não abras!" - grita um miúdo -
"Senão o escuro vai entrar!..."
1600 - Divergem
Divergem os pareceres
Conforme o ângulo em que te pões:
Os homens casam com mulheres,
As mulheres, com situações.
1601 - Apostar
Pensar que o futuro é cor-de-rosa
É tão natural
Como a fantasia sexual.
Apostar na esperança ditosa
Ante a incerteza das escuras matas
É tão natural
Em nossa espécie racional
Como andar com duas patas.
1602 - Sardinha
A fé na cura pela cabeça
Duma sardinha morta do lixo do prédio
Converte-a bem depressa
Num poderoso remédio.
1603 - Feliz
Minha vida não tem conteúdo,
Fim, direcção, significado por aí além…
Mas sou feliz, apesar de tudo.
Não entendo: que é que andarei a fazer bem?
1604 - Prática
É simples entender as ideias,
Levá-las à prática, não.
Teu cabedal não gastes às mancheias
Para ter um piano à mão,
Se ao fim te vais queixar, desanimado:
"Tocar piano não funciona!
Toquei-o por todo o lado
E é pior a guinchar que uma marafona."
1605 - Deixam
Os que deixam de dar importância
Ao pó que a criada não limpou,
Às batatas que a cozinheira não cozinhou,
À fuligem que o detergente não retirou,
Notam que a vida ganha relevância,
Que é bem mais agradável cada jornada
Que quando se sentiam constantemente
Preocupados ou irritados com um nada
Que lhes abolorecia cada semente.
1606 - Estimular
Para estimular a disposição optimista
Que promova a sociabilidade,
Que facilite a tomada de decisões
E a solução criativa tenha em vista
De problemas com que o dia-a-dia nos invade,
Mais benéficas serão as emoções
De encontrar cinco euros controláveis na pública via
Que ganhar cinco incontáveis milhões
Na lotaria.
1607 - Lunáticos
Onde o optimismo mais floresce e não é pouco
É de lunáticos no asilo pacato,
Mas é preferível ser um optimista louco
Que um pessimista cordato.
1608 - Lotaria
As probabilidades com que acertamos
Na lotaria baixíssimas serão.
Porém, se não jogamos,
São nulas então.
1609 - Burro
Qualquer burro que carrega um dignitário,
Ante as homenagens sofre a tentação
De cuidar ser ele o alvo primário
Da adoração.
1610 - Políticos
Aos políticos de outrora
Bastava adular os reis.
De aprender têm os de agora
A seduzir os fiéis.
Vão divertir, fascinar,
Nos votantes esperança
Terão, enfim, de criar
Ou seu fito não se alcança.
Na porcaria geral,
Iguais moscas, afinal.
1611 - Abatido
No mais difícil dia te demoras
Quando comentas, abatido e sem alarde:
- São apenas duas horas…
A esta hora já costuma ser mais tarde.
1612 - Repara
A vida, paciente, repara alguns reveses
Mas depois, quando demais, é um par de estalos:
Deus dá-nos dentes duas vezes;
À terceira, temos de pagá-los.
1613 - Negócio
A vida é um negócio pouco chão,
Nada leveiro:
Requer ocupação
A tempo inteiro.
1614 - Ricaço
Como é que o ricaço há-de ter, paciente,
Tempo, disponibilidade,
Para o filho?
O cifrão é absorvente!
A amantíssima, a garantir a paridade,
Para polir da imagem o brilho,
Finda tanto mais absorvida
Quanto do cifrão a medida.
Então, o filho deste consórcio
Acaba sempre pedindo o divórcio.
E aqueles tanto menos o desenlace entendem
Quanto mais os cifrões lhes rendem.
1615 - Velho
Velho, sou duma era, má ou boa,
Que acabou, findo o prestígio.
Já me não sinto pessoa,
Sinto-me vestígio.
1616 - Esperteza
A esperteza é contrária à inteligência
E os espertos é que herdarão a terra.
Aliás, herdaram-na já decerto, é uma evidência:
Para matá-la e a nós, ao fim, o que a todos,
Desiludidos dos engodos,
Mais nos aterra.
1617 - Déspota
Nenhum déspota gosta de novidades
Que não sejam pensadas nem programadas
Por ele próprio, a sumidade das sumidades.
Dele nas lógicas arrevesadas,
Qualquer evento fora do vulgar
Pode ameaçá-lo
E há-de exame atento, no mínimo, implicar.
O Estado é a lã de seu regalo,
Temos de o cardar,
Não vá nele picar
Algum persistente calo
Que a vida colectiva ande a infectar
E traga abalo
Fora de tempo e de lugar.
Segundo o critério sem engano,
Obviamente, do tirano.
1618 - Lei
A lei é menos importante
Que um primo bem colocado.
Naquilo que adiante,
Nosso triste fado
É que a lei serve para o parente e amigo
Bem colocado pôr a bom abrigo
O mal colocado amigo e parente.
Sabe-o bem e amarga-o toda a gente.
Não é aqui apenas,
É mundo fora, em todas as arenas.
1619 - Partido
Vai um partido, outro vem
E o buraco em minha rua
Eterno ali continua
Tal e qual sempre também.
Tal buraco é, de evidência,
Um precioso buraco:
Serve a comprar a pataco
Do eleitor a consciência.
Faz parte do sonho meu
Vê-lo tapado, é-me interno:
Tem por isso algo de eterno,
Quase um pouquinho de céu.
É um buraco que é sagrado:
- Ninguém nunca lhe há tocado!
1620 - Alternativa
Não podendo demolir
A grande obra em seu teor,
Há quem corra a destruir,
Em alternativa, o autor.
1621 - Malícia
Mais forte que a fé que remove montanhas
É a malícia feminina que derruba reis,
Imperadores e arromba quaisquer manhas
De cofres e de anéis.
Mais que a paz, mais que a guerra,
Este é o verdadeiro poder sobre a terra.
1622 - Destruir
O Homem acorrenta a criação ao infrene impulso
De tudo agora destruir da terra aos céus.
Não foi o homem que do Paraíso foi expulso,
Foi Deus.
1623 - Revela
Um cão revela o que deveras importa
Na vida:
Coragem, dedicação, lealdade,
Alegria, simplicidade.
E abandona fora da porta,
Esquecida,
A lista do que não tem importância:
Não liga nada à elegância,
Carros de luxo, roupas de marca, mansões…
Símbolo de estatuto, que são tais questões?
Um pau qualquer, atirado de repente,
Serve perfeitamente.
Um cão avalia quenquer
Não pela cor da pele que tiver,
Religião ou classe social maior ou menor,
Mas pelo que no íntimo cada qual for.
Que lhe importa se é rico ou pobre,
Estúpido ou inteligente?
O que para ele sobre
É que é pertinente:
- Gosta, fiel,
De quem gostar dele.
É tão simples, afinal,
E nós, homens, tão sábios e sofisticados
(E tão mentalmente aleijados)
Sempre com esta dificuldade real
Em perceber o que conta em cada jornada
E o que não conta para nada!
1624 - Liberdade
A liberdade que temos
Pode ser perigosa, ao deslumbrar-nos.
Se não nos precavemos,
Ainda acaba tudo por matar-nos.
1625 - Coscuvilhice
A coscuvilhice dos vizinhos
É o combustível que faz andar
As cidades pequenas, quando aos ninhos
Andam todos, feitos miúdos, por todo o lugar.
E, se toda a gente falar,
Vão aparecer
Em teu lar
Para te ver.
E, afinal,
Que mal há nisso, que mal?
1626 - Aguardam
Talvez tenhas conseguido o que querias,
Mas não implica que as vias estejam certas.
Aguardam que sejas inteligente, aprendas teorias,
Descubras veredas espertas.
E, enquanto aprendes teu ofício,
Impedem que te comportes bem,
Impõem que fales baixo, em teu benefício,
Não corras pela casa além…
Entretanto, o lar é o lugar de treino
Para a boa esposa,
O bom casamento,
Como ocorreu da mãe com o reino,
Da avó com o elemento
De que hoje a progénie goza.
Nunca ninguém te perguntou
Se querias algo mais,
Algo diferente.
Quando questionaste, alguém te mandou
Calar pretensões tais,
Já tudo foi previsto à tua frente.
Lê um livro, rapariga,
Para o discutires de modo inteligente,
Mas não inteligente demais,
Não vá o rapaz que regular te liga
Cuidar
Que mais inteligente do que ele hás-de acabar!
É teu dever inefável,
Ao casar,
Construir um lar
Agradável.
É a soma de todas as femininas ambições
Da traição.
- Que admira que no coração os tições
Ateiem contra tudo aquilo a contradição?
1627 - Filhos
Os filhos, sinto orgulho deles,
Por eles fico feliz.
Crescem, porém, de tão imbeles
De raiz,
Muito mais depressa do que poderia
Prever
Algum dia
Que viria a acontecer.
Num minuto esfregas sujinhas caras,
Com jeitos comedidos,
No instante seguinte contigo deparas
De noiva a comprar vestidos!
E mal de espanto a boca destapas
Já te andam eles a dar-te nela as papas.
1628 - Mutuamente
Recordem, quando mutuamente se desencantam
E tudo forem fitas,
Que passarinhos apaixonados nem sempre cantam
As melodias mais bonitas.
1629 - Trucidados
Trucidados da vida nos rolos,
O que importa é preservar o crítico elo:
- Se o amor não nos transforma em tolos,
Que mais poderá fazê-lo?
1630 - Despejar
Quantos de despejar precisam
Os próprios problemas, de topo a topo,
Mais do que visam
Que o criado lhes despeje uísque no copo!
1631 - Atinge
Que homem há que não perca o juízo
E a mão desarme
Quando a mulher o atinge com o sorriso
De anda-aqui-buscar-me?
1632 - Encantamentos
- Uma mulher como tu, a mente sem mito,
Crê de encantamentos nos avanços?
- Se acredito?!
Eu lanço-os!...
1633 - Objecto
Um objecto que é louvado
Não é tornado por isto
Pior ou melhor um bocado,
É-lhe só mudado o isco.
1634 - Fugir
Há quem seja tão, tão rico,
Buscando fugir do oblívio,
Que já nem vê nenhum pico
Aonde encontrar alívio.
1635 - Estranha
Que estranha a tua conduta!
Para teus concidadãos
Não terás nenhum louvor
Mas só para quem te escuta
E que brotar destes chãos,
Que for o teu sucessor
Que não viste nem verás,
Que és da geração de trás.
É como se te afligiras
Por quem já te precedeu
Não cantar dele nas liras
Lisonjas em louvor teu!
1636 - Virá
Virá cada qual ao mundo,
Deveras, a bem dizer,
Seja infecundo ou fecundo,
No fundo para morrer.
1637 - Teia
Num mundo aprisionado
Numa teia de crendices e superstições,
Qualquer sinal de alarme arrepiado
É verdade acolhida sem questões
E ditada, evidentemente,
Por um poder transcendente.
E ai de quem duvide:
Não há mais quem o acolha nem convide.
1638 - Mestre
Um mestre a representar,
Todo o dia faz de conta
Que é um grande senhor, sem par,
Quando não passa da tonta
Criaturinha mais reles.
Mais reles do que qualquer
Destes plebeus cujas peles
De viés nem vê sequer.
Sempre a classe dominante
É a deste sapo gigante.
1639 - Maleita
A maleita das cidades
É que estão de preguiçosos
Pejadas quando as invades.
A trabalhar, nulidades,
Parasitas buliçosos,
Entretêm-se a inventar
Mentiras de quem calhar.
Não te rales, não te rales.
Perante tais nulidades
Tu vales sempre o que vales
E eis porque lhes não agrades.
1640 - Reino
O nosso é o reino onde a inveja
Já deixou de ser pecado
E é virtude que se almeja
E de cultivo esmerado
Nos salões de gente de alta
Onde só juízo falta.
1641 - Defende
Cada qual doutrem a causa
Defende enquanto ele crer
Que assim firma, nesta pausa,
Vantagem que dela aufere.
1642 - Escravos
Aos escravos, não aos livres, é que se pensa
Dar a todo o momento
Recompensa
Por bom comportamento.
1643 - Rir
Rir de alguém nunca é de rir,
Que de alguém rir não convém,
O que bem me há-de convir
É bem me rir com alguém.
1644 - Apresenta
Quase sempre a natureza
Se apresenta em seu melhor,
De estonteante beleza,
- Sem pessoas em redor.
1645 - Custo
Há quem use avaliar
Doutro homem o valor
Pelo custo a que trepar
O carro que ele use expor.
1646 - Fúteis
Sejamos nós quem sejamos,
Não logramos resistir,
Quando ante os mais nos mostramos,
Fúteis a nos exibir.
1647 - Divórcio
"O divórcio duma actriz
E dum cantor baladeiro?!
Como se os negócios vis
Valeram sequer o argueiro
De quem tem olhos subtis!"
- Funga o vozeirão arteiro
De quem, com gestos servis,
Se inteira obsessivamente
Da história em toda a revista
Em que tenha lauda assente
E a que deita mão, na pista
De maior coscuvilhice
- Que enjeita ante quem o visse!
1648 - Errado
É mais fácil perdoar
Ao errado ou de errar perto
Que àquele que haja de estar
Certo.
1649 - Pagar
Todos andamos a pagar com dinheiro
Mais ou menos desonestamente,
Despesas falsas com um fingido parceiro
Dum qualquer negócio corrente
E, lavrada a lauda a nosso gosto,
Escapamos da vida ao imposto.
Do ladrão o apresto
É apenas mais abertamente desonesto.
Se honesto eu for nesta vigília,
Concluo que o ladrão também faz parte da família.
1650 - Fartei-me
Eu adoro estar casado:
Tempo imenso fui solteiro
E fartei-me de acabado
As frases ter por inteiro!
1651 - Quinze
Afirmam que todos têm
Quinze minutos de fama.
O primeiro, espero bem,
Dos meus este é que me aclama
E que os mais catorze à frente
Passem muito lentamente…
1652 - Filme
Nenhum bom filme decerto
Longo é demais para ver,
Nenhum mau filme anda perto
De curto o bastante ser.
1653 - Meca
Numa meca de cinema,
Divórcio equitativo
É cada parte de gema
Receber, negócio esquivo,
A bem medida metade
De toda a publicidade.
1654 - Quanto
Toda a gente deveria
Ficar rica e bem famosa,
Fazer quanto sonharia,
Para descobrir, na prosa,
Que, finalmente, essa não
É jamais a solução.
1655 - Resume-se
A vida devia ter
Sempre um pouco de loucura,
Senão resume-se a ser
Quintas-feiras sem mistura,
Sem atrás nem adiante
Fim-de-semana constante.
1656 - Óculos
Com meus óculos de sol
Sou mesmo artista afamado.
Sem eles, sou gordo e mole,
De anos muitos embotado.
1657 - Aluno
O aluno do liceu é canibal,
Alimenta-se do coração partido das donzelas,
Enquanto elas ficam a assistir ao que é fatal.
E depois ele encolhe os ombros às sequelas,
Exibindo um sorriso ensanguentado
De apologia ao que se houver passado.
1658 - Melhor
A melhor das decisões
Num casamento talvez
Se baseie no que expões,
Não enquanto sincero és,
Mas enquanto somas baixas
Que a verdade causaria
A comparar ao que encaixas
De salvamentos por dia
Provenientes da instância
Que resulta da ignorância.
1659 - Vento
Se te ama, podes-lhe dar
Vento em saco de papel,
Que ele o vai apreciar
Tal tu dentro em tua pele.
1660 - Compra
Compra a um homem-papagaio
Na loja da passarada
Um cliente e, como ensaio,
Treina-o na língua falada.
Mas, após uma semana,
Ele nem um termo diz.
Torna à loja que o engana
A devolvê-lo, infeliz.
Mas o lojista sugere:
"Arranje-lhe um bom espelho,
Que, ao olhar-se como quer,
Logo fala, é o que aconselho."
Compra-lhe o espelho o cliente,
Mas recusa-se a falar,
Do modo mais renitente,
O homem-papagaio alvar.
Uma semana mais tarde
Torna à loja o comprador.
Diz-lhe o dono com alarde:
"Dê-lhe música, senhor,
Que ela obriga a que ele fale!"
Uma semana depois,
Num jeito que os fundo abale,
Conversam de novo os dois:
"Ele para o espelho olhou
E tocou a campainha,
Uns termos lá murmurou…
Do poleiro que o sustinha
Tombou, finalmente, morto."
E o comprador já definha,
Vergado o pescoço torto,
Da má sorte que detinha.
"Que é que o homem-papagaio
Disse, afinal?" - quis saber
O lojista, já cambaio.
O cliente, a entristecer,
Conta o que ele mal entende
Que ouviu da voz dolorida:
"Mas essa loja não vende
Para pássaros comida?!"
1661 - Excepção
Claro que vosso filho
A todos é superior!
Ora, como nisto são todos tais quais,
Por que é que de excepção o brilho
Nele mais que nos mais
Hei-de supor?
1662 - Antecipado
Costumas fazer velório
Antes de algo te morrer,
Sofres na carne o mortório
De antecipado te haver:
Os problemas que te ulceram
Ainda nem aconteceram!
1663 - Cérebro
Nosso cérebro juízo
Do que nós próprios tem mais,
Fecha as janelas, preciso,
Das memórias e do mais
Quando é de pensarmos menos,
De menos força gastarmos.
Ante ela, somos pequenos,
Basta um pouco exagerarmos!
1664 - Ficando
Mesmo quando houvera paz,
Paz não terá quem comanda.
Ficando o inimigo atrás,
É o amigo que então anda
A lutar, que mais não seja
Para ter dele o favor.
Quem não tem coroa veja
Como alegre é seu pendor:
Não é motivo de inveja,
Ninguém lhe busca o calor.
De vez pode ter a paz
Que quem manda nunca traz.
1665 - Padre
Não há mente mais daninha
Que a duma boa mulher,
Só dum padre a que maninha
É do amor que não tiver.
1666 - Lágrima
A lágrima que a mulher
Derrama, por mais profundo
Que seja o grito que clama,
Bem pouco nos marca o mundo.
1667 - Azar
Para mim a vida é um gozo
Singular:
Não sou supersticioso,
Dá-me azar.
1668 - Resposta
Se um lar precisa de ajuda,
A resposta é divertir-se:
Larga as queixas, tudo muda
Na montanha-russa ao ir-se.
1669 - Atender
Tempo maior de atenção
Não existe: sou capaz
De atender sem medição
Quem de entreter-me é capaz.
1670 - Ementa
A ementa de antigamente
Opções duas tinha a par,
Sem terceira haver presente:
- Era pegar ou largar!
1671 - Comer
Não se pode com verdade
Dizer que se vive bem
Se a par comer bem não há-de
Confirmar-se então também.
1672 - Vegetais
Se os vegetais na dieta
São deveras essenciais,
De cenoura o bolo enceta,
Pão de curgetes completa
De cabaça em tartes reais.
Se ficas um pipo ao fim,
Se calhar é mesmo assim…
1673 - Cuidado
Cuidado, solerte,
Com aquilo por que oras distraído:
- Pode vir a ser-te
Concedido!
1674 - Tenta
Tenta viver sem nunca
Chamares, na ocasião
Da flor que a vida junca,
Do príncipe a atenção.
1675 - Confunde-os
Se com ciência ofuscá-los
Não consegues, outras vias
Então lhes trarão abalos:
Confunde-os com ninharias.
1676 - Ouriço
Os que a mim me aborreceram
Não são de ouriço arremedo
Cujo picos só se ergueram
Quando ele tem muito medo?
1677 - Fome
A temperar o alimento
Com os mais sápidos tratos,
Fome é o melhor condimento
Para os mais grosseiros pratos.
1678 - Olho
Como não ter por blasfemo
Falar mal do imperador,
Se o olho que o Deus supremo
Tal se fora ainda maior?
1679 - Findar
Nunca aos homens (não às mulheres) agrada
Uma guerra findar qualquer:
- Fixos na jogada,
Querem-na vencer.
1680 - Sonhar
Sonhar é mui confortável
Desde que nunca façamos
Aquilo com que sonhamos.
Então o risco é evitável:
Não sofremos frustrações,
Difíceis desilusões.
E, quando ficamos velhos,
Podemos sempre culpar
Outrem (nossos pais, o lar,
Os filhos de maus conselhos…)
Por não termos realizado
O sonho que foi sonhado.
1681 - Falam
Como se souberam tudo
Todos falam, tal é o mundo.
Se ouso perguntar, agudo,
Não sabem nada, no fundo.
1682 - Mascaradas
As mascaradas do sexo:
Quantas caraças encontro,
Usadas em cada anexo,
A escapar a um vero encontro!
1683 - Estúpidos
Os estúpidos merecem
Bilhete de identidade
Exclusivo, que abastecem
De loucos a humanidade!
1684 - Finge
Apenas quem é mendigo
Nunca finge andar contente.
Ao invés, se dou-lhe abrigo,
Faz de triste eternamente.
1685 - Gravata
Gravata é distanciamento,
É poder de escravidão.
Útil será, de momento,
Para chegar ao serão,
Tirá-la, na sensação
De que fico ali em pé
Livre de nem sei o quê.
Engravatamos o dia,
Nem vemos que é que anuncia.
1686 - Enricar
Quando a miséria sacodem,
Povos a enricar se aplicam.
Quão ser mais felizes podem
Mais desinfelizes ficam:
Acorrem aos hospitais
E às romarias, jamais.
Quão mais cresce a economia
Mais se lhes vai a alegria.
Mais vive da moeda o mundo,
Mais lhe morre o que é jucundo.
- Como é que nem mesmo a custo
Advém o equilíbrio justo?
1687 - Escândalo
Quando o marido arranjou
Uma amante desejável,
Um escândalo estalou,
Ela perdeu peso, instável,
Partiu copos, sem maneiras,
E, por semanas inteiras,
Nenhum vizinho dormia
Dela com a gritaria.
Por estranho que pareça,
Foi o tempo mais feliz:
Lutou, ergueu a cabeça,
Buscou aquilo que quis,
Sentiu-se viva e capaz
De reagir ao desafio
Do modo mais eficaz:
- Viveu, por fim, sem fastio!
1688 - Tragédias
Quando uma comunidade
Tragédias tem de enfrentar,
Se o suicídio a invade,
Depressões vão acabar,
Paranóias e psicoses
Já de ninguém são algozes.
Porém, quando ultrapassado
O problema, são normais
Os números de tal fado,
Retornam os tremedais.
Ser louco serei então
Só de tal se há condição.
1689 - Arrastar
Homem que ande a arrastar asa
À mulher deste e daquele
Merece na própria casa
Quem lho faça igual a ele.
1690 - Mudar
Há quem queira mudar tudo
E ao mesmo tempo deseja
Tudo igual e, neste Entrudo,
Só Carnaval lhe viceja.
1691 - Tipos
Há dois tipos de idiota:
Um não faz, de ameaçado,
Outro aposta em sua quota
De ameaçar, por seu lado.
1692 - Cuidei
Num mundo cuidei viver
Com Deus em todo o lugar
Entre homens até me ver
Que o nunca deixam entrar.
1693 - Usos
Melhor nos usos da espada
É quem for mesmo de pedra:
Com a lâmina embainhada
Logra provar que o que integra
Nenhum fogo, nenhum gelo
Nunca poderão vencê-lo.
1694 - Feliz
Tenho sido feliz sozinho
E tenho sido infeliz sem ti, todavia.
Se me podes tornar infeliz, adivinho,
Também feliz me podes tornar cada dia.
1695 - Sempre
Sempre o forte compreende,
Enquanto o frágil condena.
A falha para que tende
Conhece o forte com pena;
O frágil só mal responde
E atrás da falha se esconde.