DÉCIMO  TROVÁRIO

 

 

 

LAÇOS  CANTO  EM  METRO  INCERTO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1015 e 1077 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1015 – Laços canto em metro incerto

                                                              

Laços canto em metro incerto,

Das fronteiras buscando para além

O que o amor contém ao longe e ao perto,

Conjugando o que rimar desperto

Na vida e na palavra que a retém.

 

No ritmo desencontrado

Encontro a rima perfeita

Com quanto por todo o lado

Nos espreita.

 

Neste encontro aos encontrões

É que vislumbro o cariz

Mais constante das humanas relações.

 

Suspeito que o que me diz

Afinal é dos afectos a matriz.

 

 

 

1016 - Alterar

 

Oiro,

Como pode o oiro alterar o homem,

Homem que é meramente humano?

Como é que o tesoiro

Comem

Os olhos de água que de mim dimano?

É que também nós o queremos

E pagamos, regulares,

Tributos extremos

Aos que o oiro exibem, alvares.

 

- Depois queixamo-nos, no meio da trama,

De que, no fundo, ninguém nos ama.

 

 

1017 - Vida

 

Já que a vida é um portão,

Uma trilha,

Uma via

A rumar ao Paraíso,

Por que não

Viver a maravilha,

O prazer, a alegria,

O amor de que preciso

Com quem me quer

À minha beira,

Aqui junto à fogueira

De quanto no mundo arder?

 

Por que não buscar

E prosseguir

Tudo quanto desejar

E rir e rir e rir?

 

 

1018 – Sangue

 

De meu sangue quem não for

De assalto as emoções há-de lograr

Mais fácil me tomar

Que alguém de meu teor.

 

Nos braços dum estranho,

Dele no coração,

Lucro o inesperado ganho:

- Ganho um espelho de eleição.

 

 

1019 – Porta

 

Pode ela não ser mais esperta,

Importa, porém, que o creias

Para te apaixonares, a porta aberta

Por inteiro e não a meias.

 

Porque todos queremos saber

Mais dados do mistério,

Como encaixa a peça que ocorrer

Nas mais do pâzle sidéreo.

 

A palavra seduz,

Encurrala-nos num beco sem saída,

Ela apenas ali sustenta a luz

Na mão erguida.

 

Todos queremos, acima de tudo,

Crescer e mudar,

Admirável mundo novo a que me grudo,

Mesmo quando nunca saio do lugar.

 

 

1020 – Afectos

 

Alguns afectos facilmente,

Quando à luz pública expostos,

Se corrompem de repente

Nas praças, nas ruas, nos gostos.

 

Do mártir a relíquia guarda-se no segredo

Do templo para que o mistério

A acrescente no credo,

Lhe preserve o império.

 

A jóia mais rara

No cofre anda fechada,

Cara

E vigiada.

 

A sacra sabedoria

É do clero monopólio,

Assim garantindo a magia

E o sólio.

 

Divulgar,

Ao mesmo tempo que emana,

É sempre banalizar,

Profana.

 

Se nosso amor é sagrado,

(E é sagrado e mui discreto),

Deve então ser preservado,

Permanecer secreto.

 

 

1021 – Gera

 

Um homem gera um filho,

Este oferta-lhe dois netos

E estes, quatro bisnetos,

De modo que deste rastilho

 

Borbota um caudal barulhento

De gente com igual nome,

Sangue igual que, lento e lento,

O tempo longo consome

 

A mimar eternidade.

Gerar um filho desencadeia

Um universo:

Vem ódio, vem amizade,

Anjos e demónios espalhados pela aldeia,

O sublime e o abominável por todo o lado disperso.

 

Reparo,

Quando olho os meus,

Neste sentido raro:

- Sou quase Deus!

 

 

1022 – Contem

 

Gostamos todos que nos contem histórias,

Crianças eternas,

Imaginamos verdadeiras as ternas

Memórias

Das palavras,

Pomo-nos à rabiça do arado

Do herói que rasga as lavras

E, no fim de tudo imaginado,

Julgamos compreendê-lo

Porque a nós nos compreendemos,

Perfeito e acabado

O elo

Entre ambos os extremos.

 

E é tudo ilusão,

Temos, às vezes, um vislumbre de quem somos

E, no fim, não,

Nunca temos a certeza que supomos.

 

E, conforme a vida continua,

Cada vez mais opacos a nós próprios devimos,

Cada vez nos fere mais a pua

De nossa incoerência:

Quão mais nos cimos,

Mais na decadência.

 

Não há como atravessar a fronteira

Doutrem para dentro

Apenas porque não há mesmo maneira:

- Em mim não entro.

 

 

1023 – Admirar

 

O amor tem o privilégio

De levar a admirar mesmo a tolice.

A ternura da mãe não tem limites

Ante o sortilégio

(Para os mais sandice)

Do primeiro passo desajeitado

Do filho à procura de desquites,

Mal atremado.

 

Espreita ali, entretanto,

Dum novo mundo o encanto.

 

 

1024 – Atrair

 

Não há como a eloquência

Para atrair a mulher.

Jamais logra compreender

Que um marido que a escutar

Deve ter a prevalência

Sobre o que sabe falar.

 

Mas é a força da palavra

Ouvida

Que sempre por dentro a lavra,

Em seguida.

 

 

1025 – Maltrato

 

Não maltrato coisa alguma

Neste mundo.

Nele entrei pelo amor fecundo

Doutrem, em suma,

E, para levar meu corpo e meu imo

Da maturidade ao cimo

Muita gente

Teve de trabalhar e de estudar, renitente.

 

Seria muita arrogância

E bem mesquinha

Destruir tanta fragrância

Que seria incapaz

De fazer renascer de minha vinha

Em paz,

Por quaisquer actividades precárias

De minhas mãos solitárias.

 

 

1026 – Vagueiam

 

Os que vagueiam pelo derradeiro lugar

No espectáculo do mundo

Não têm outro meio de alcançar

Os que adiante correm no longe profundo

 

Senão pedras lhes atirando.

Muitos povos vivem em tal conjuntura.

Se muito para trás os forem deixando

Os que se guindam a píncaros de formosura,

 

Voando sozinhos, egoístas, distraídos,

Alvos devirão das pedras dos ofendidos

 

Que se sentirão justamente maltratados

- Porque ignorados.

 

 

1027 – Enfrentam

 

Aqueles que enfrentam a morte

Não cuidam nos degraus que galgaram,

Nos feudos que ocuparam,

Nos oiros que acumularam.

 

O que quer que seja que lhes importe,

No final,

(Boa medida da vida desfiada),

O que os empenha, real,

São aqueles

Que amaram e os amaram a eles,

Mais nada, mais nada.

No fim, desnudo,

O anel do amor é tudo.

 

 

1028 – Dinheiro

 

Não creio que o dinheiro seja nobre.

Entretanto, é desproporcionado

Negar-lhe quanta importância lhe sobre,

Embora avilte por excelência

Havê-lo tornado

O centro da existência.

 

Do amor, porém, na periferia,

Compra-lhe o azeite da almotolia

 

Que alumia cada hora

Que a vida nos demora..

 

 

1029 – Sexual

 

O amor sexual a vantagem

Tem de a carne ser

Confirmação de qualquer

Acto, evento,

Fantasiosa viagem,

Naquele momento.

 

Tem a inelutável escala

Do fado:

O corpo fala

E tudo é silenciado.

 

 

1030 – Perto

 

Anda bem perto de nós

A felicidade acaso longe procurada,

Num afecto natural,

Na fraternidade de amigos, amor de pais, de avós,

No abraço conjugal…

 

Perante isto,

Marcos da minha estrada

Pelos quais subsisto,

Tudo o mais é nada.

 

 

1031 – Empenhar-se

 

Empenhar-se pela humanidade em geral,

Que fácil!

A multidão anónima , que pungente ideal,

Tão grácil

Ser por aqueles, acolá,

Cujo sofrimento nunca ninguém verá!…

 

Isto não é nada, porém,

Que amar o próximo verdadeiro,

Aquele cuja dor descobrimos, enterrado no lameiro,

Refém,

Aqui colado quase a nós,

Num dia inadiável desatá-lo dos cipós,

Isto é que é amar,

Tem da cordialidade o tom,

O coração a sangrar,

- Isto é que é ser bom!

 

O mais que para o geral daqui vier

É que então desta bondade há-de viver.

 

 

1032 – Velocidade

 

Um amor que me seduz

Atinge-me à velocidade da luz.

 

A separação é doutro tom:

Chega à do som.

 

Por isso,

Depois do bom

Que tudo foi,

Queimado o chamiço,

Remói

E dói e dói e dói…

 

 

1033 – Íntima

 

Da vida uma estranheza

É que ao vermos uma pessoa durante meses,

Tão íntima se nos preza

Que nem logramos imaginar, corteses,

A vida sem ela.

 

Um corte, porém,

Na sequela

Sobrevém

E após a separação tudo continua

De idêntica maneira.

 

A companhia

Que tão imprescindível parecia

Actua,

Afinal, como inútil parceira.

 

A vida corre indiferente pela rua

E nem sentimos, ao menos,

A perda do amigo que perdemos.

 

 

1034 – Canto

 

Nada mais vão

Que sobre quem amamos meditar.

Tais cadeias

De ideias

São

Como o canto guerreiro e popular

Donde borbotam episódios

Aos milhares

De amores e de ódios,

Mas cujo refrão,

Contumaz, há-de sempre retornar

E se repete, de versos aos pares,

Mesmo quando para ninguém

A propósito vem.

 

 

1035 – Viu

 

Ninguém me viu, ninguém,

E nunca vim a descobrir se ela

Chegou a pressentir meu parabém.

Escarpas rochosas eu trepei, porém,

Arrisquei a vida ao saltar cada cancela,

A fim de poisar um ramo de rosas perfumadas

De casa dela nas escadas.

 

Sempre houve ali algo de doce,

De alegremente triste,

Dum poema que se esboce

E só vagamente existe.

Sempre me foi benfazejo

E leva a que em mim tão fundo se aloje

Que ainda hoje

O sinto, mesmo se nada vejo.

 

Apenas em horas de descrença

De rosas esta aventura

Se me antolha e apura

Como inútil quixotesca benquerença.

 

Haja Deus, haja Deus,

Que dali ressuma um qualquer apelo aos céus.

 

 

1036 – Sofri

 

Tal é o amor:

Muito sofri nas eras dele, entrementes,

Como arrasta com ele tanta dor!

E como tais cores não são nunca pertinentes:

Afinal, que importarão

Mil dores que por ele sofra ou não?

 

Desde que borbote o inebriante convívio,

O estreito e vital nó que nos liga a quanto é vivo,

E o amor, de oblívio,

Não arrefeça, esquivo…

 

Darás tudo, mesmo os dias mais alegres,

À custa embora de gritos e de prantos,

Só para que teu olhar de novo integres

No interior do santo dos santos.

 

Dói amargo aos olhos e ao coração,

Orgulho e vaidade aparam golpes cruéis,

Mas depois, que pacificação:

Ficamos tão humildes, tão calmos, tão fiéis

E tão mais maduros em cada ramo podado!

É de tal sorte

Que, desta morte,

Cada qual ressuscita por uma vez vivificado.

 

 

1037 – Lume

 

Relativamente ao amor,

Toda a vida sou miúdo:

O amor pela mulher sempre foi adorador,

Culto depurador,

Lume erguido a libertar-se, mudo,

De meu coração turvado,

Mãos erguidas para o céu estrelado

Sob o manto azul.

 

Venero a mulher como diferente,

Enigmática e bela,

Quentura soalheira do sul,

Superior no encanto ausente-presente,

Na unidade de ser caravela

Para todos os roteiros

De sonhos cimeiros.

 

Estrelas,

Picos de montes,

Distam de nós, voláteis filomelas,

Mais perto de Deus nos longínquos horizontes.

 

Como da vida a agrura

Lhe juntou abundante condimento,

O amor pela mulher tanta amargura

Me ofertou por alimento

Como doçura.

 

Permanecendo ela embora

No alto pedestal,

De druída minha atitude adoradora

Facilmente naqueloutra se há transmudado,

Cómica, penosa, irracional,

De bobo troçado.

 

 

1038 – Escapava-me

 

Escapava-me e fugia,

Fixava o mundo perdido,

Para o ar livre me escapulia

Em sonhos maravilhosos.

E que sortido

De gozos!

 

De repente via tudo

Como era cheio de cor,

Belo demais sobretudo,

Como a luz e como o alento

Fluíam com estupor

De tudo, livres ao vento.

Verde límpido, eis o rio

E vermelhos os telhados

E os montes, tecido o fio,

São azuis, com cambiantes

De contraluz pelos lados,

Mudam todos os instantes.

 

E, contudo, esta beleza

Em redor não me distrai.

Em silêncio triste a preza

Quem a goza e ali se esvai.

 

Quanto mais belo era tudo

Mais distante parecia

De mim ficar, pois não tinha

Parte alguma em tal entrudo,

Ficava fora da via

Como um doente de tinha.

 

Meu pensamento sombrio

Reencontrava o caminho

Para ela em tal desvio:

Se eu morrera de mansinho,

Jamais ela o saberia,

Por mim não perguntaria,

Nem mesmo desgraça tal

A perturbaria,

Afinal.

 

E, contudo, não sentia

Desejo, nesta sequela,

De ser notado algum dia

Por ela.

 

Por ela gostaria de fazer

Ou de ofertar-lhe, em dádiva comezinha,

Um inaudito qualquer

Sem ela sequer adivinhar de quem provinha.

 

 

1039 – Dignidade

 

Apenas a via caminhar

Em silente dignidade alegre

E sentia-lhe, a par,

A nobreza

De ser tão simples que nem lei quer que lhe regre

A cristalina simpleza.

 

Depois, à tardinha,

Sentava-me, pensativo, ao lusco-fusco,

Até representar ante minha

Evocação,

Com a nitidez da emoção com que me ofusco,

A aparição.

 

Um temor secreto e doce

Perpassava então

Em minha alma de rapaz tímido e precoce.

 

O momento breve de prazer se enevoava

De rápidos horrores

E logo me provocava

Inesperadas dores.

 

Como ela me era estranha, de repente,

Me não conhecia,

Nem, definitivamente,

Por mim inquiria!

E como meu belo sonho

Era um assalto velado

E medonho

Dela ao ser bem-aventurado!

 

Com tamanha acutilância e dor

Quando isto sentia

É que tão autêntica, viva, palpitante e com fulgor

Por momentos a imagem lhe via

Que uma onda escura e cálida o coração me enchia

E provocava, no mesmo instante,

Um doloroso estupor

Até à pulsação mais distante.

 

 

1040 – Tragédias

 

As tragédias aproximam

Muito mais profundamente

Aqueles que elas vitimam.

 

Irrelevante,

É evidente

A pequenez de cada instante,

Do dia-a-dia a maldade

Devém insignificante,

Doravante não persuade

Nenhum desentendimento.

 

E quanto apoio e consolo

Nos vem, naquele momento,

Deste inesperado colo!

 

 

1041 – Fraqueza

 

A fraqueza do coração

Dominado,

Quando escravizado

Pela paixão!

 

O amor é uma posse fatal,

Ninguém lhe desvenda a origem,

Ninguém vislumbra por que vias chega, afinal,

Ignoramos-lhe o remédio para a vertigem

Do bem, do mal.

 

Germina e desaparece

Ordenado por leis obscuras,

Ininteligíveis, sempre refece,

E penetra-nos, no gozo

E nas agruras,

De terror misterioso.

 

É o prazer e a maldição

De nossa vida,

Delícia e logo contusão

De seguida,

Eterno sofrimento

Escondido por trás de cada momento.

 

É tudo o que viso

No sonho superno:

O meu paraíso,

O meu inferno.

 

 

1042 – Precioso

 

O mais precioso bem é o amor

Mas, por isto mesmo, é o mais caro.

Como não se dispor

A pagá-lo, quando é tão raro?

 

Pagam o custo duma carreira,

O montante duma casa,

Duma viagem passageira,

Mas o dum amor que abrasa,

 

Que é muito mais valioso

Do que tudo isto, não!

Apenas aceitam o gozo

Gratuito, à mão.

 

É verdade que fatiga na jornada,

Mas o amor é tão jucundo

Que o não trocaria por nada

Que em troca me oferte o mundo.

 

 

1043 – Unida

 

Manter uma família

Unida e feliz

Requer perene vigília,

Muito sacrifício,

Humildade de raiz,

Cedência constante e compromisso

E a perenidade do exercício

Para atear a chama em qualquer chamiço.

 

Uma família erigida no amor

Mora cada vez mais perto do céu.

Quem a não pagar com suor

E um bilhete de férias requereu,

Aquele piquenique,

Inicialmente belo,

De egoísmos fica marcado pelo tique,

De discussões pelo escalpelo.

 

Mesmo que isto não seja eterno

Será verdadeiramente o inferno.

 

 

1044 – Estúpida

 

Não compreende que definha

A estúpida civilização

Porque atrofiou o sentimento.

Quero o ciúme que tinha,

O amor, a compaixão,

- Vivos a voar ao vento.

É o que de criador

Me resta individualmente.

Abomino a tibieza sem cor

Que me empalidece a mente.

 

Uns para os outros misteriosos

Seremos definitivamente.

Não atentemos, gulosos,

Do amor contra o império

Que se alimenta deste mistério

 

A vida espreita

Ao respirar a maravilha que ali suspeita.

 

 

1045 – Anónimas

 

Com facilidade demais

Os mortos mudam-se em anónimas fotografias

A desbotar pelos cunhais,

A amarelecer junto a lareiras vazias,

Se não houver

Nem amor nem ódio, mesmo esquivos,

Que os venham manter

Vivos.

 

 

1046 – Carícias

 

A melhor maneira de esquecer

Carícias culpadas

É afogá-las quenquer

Nas delícias

Desenfreadas

De milhares doutras carícias.

 

Para esquecer o pecado

Que a miúdo

Nos faz sentir soezes

Como uma chaga de lado,

O melhor é despojá-lo de conteúdo

Cometendo-o mil vezes.

 

Eis como a culpa

Rodopia

E, enquanto nos inculpa,

Asfixia.

 

Quantos desastres cometidos

Para obliterar um só, de tempos idos!

 

 

1047 – Quarto

 

O quarto dum jovem morto,

Duma ausência santuário,

É de cobardia um horto

Do vivo tumultuário.

 

Poucos ousam conviver

Com as lembranças

E vi-las entretecer

Do presente nas tranças.

 

O sorriso infantil

Da fotografia,

Sempre igual em tal perfil,

Ignora o correr de cada dia.

 

Todos envelhecemos

Enquanto ele rejuvenesce.

Culpados nos vemos

De não termos aproveitado

A fugaz presença que lenta esquece,

De não termos adivinhado

Que se iria, num enleio,

Abandonando tudo a meio,

Deixando por resolver

Uma tola querela qualquer…

 

Apesar dos gestos tortos,

Apesar do desatino,

Nada agora pode ressuscitar os mortos

Nem completar o destino.

 

 

1948 – Imagem

 

A imagem saudosa dum ente amado

É fruto não apenas da memória,

É o corpo inteiro avassalado

A falar a todos os sentidos,

 

Neles permanece guardada em glória

A imagem saudosa dos gestos fugitivos,

Indizível,

De modo que nada faremos.

Sem sentir o outro ao nosso lado

Empunhando connosco os frágeis remos,

Silente, invisível,

Como o eterno desejado.

 

 

1049 – Calendário

 

O que realizam os romeiros

No calendário dos séculos anda inscrito,

É, nos carreiros,

Um raio das rodas do carro que incito

O tempo a calcorrear.

 

Caminham rumo ao santuário,

Devagar,

Tal como fizeram as gerações passadas

E como as vindoiras.

No trilho vário,

As pegadas

São duradoiras.

 

Ao caminharem com parentes,

Vizinhos e conhecidos,

Caminham também com os mortos jacentes

E com os que estão ainda por nascer,

Já prevenidos:

A multidão visível

É uma parte qualquer

Da inumerável turbamulta invisível.

 

Caminham todos juntos, todos,

Através dos séculos, pelo mesmo caminho,

O caminho que anula os tempos e os modos

E une os vivos e os mortos no mesmo cadinho.

 

Por tal caminho debandámos amanhã

E chegaremos ontem: hoje

É a eterna manhã

Que jamais foge.

 

 

1050 – Plétora

 

Nem entre todos somos um,

Nem cada um é o todo:

Não há nem houve uno nenhum

Mas cada um é tudo, de algum modo.

Porém, não há todo,

Falta sempre um.

Não há todo nem um: há uns e todos,

Sempre o plural dos engodos,

A plétora incompleta,

O nós buscando, com modos,

O seu cada um, a meta

Intransigente:

Dele o complemento igual no diferente.

 

 

1051 – Beijos

 

Com os beijos o que importa

É ser muito diligente.

São nossa porta

Da frente

Da união,

Beijar,

É solene afirmação,

O aperto de mão secreto

A identificar

Cada membro do grupo em concreto.

 

Mesmo sabendo, porém,

Como beijar é importante,

Ocorre esquecê-lo por completo

Por igual também.

De repente, em dado instante,

Descobrimos que há semanas

Não trocamos o beijo de amante

Entre esposa e marido,

As antigas ganas

Esmoreceram de olvido,

E, num contexto de prosa,

Doravante o apelo

É de beijar apenas enquanto se goza

Em pêlo.

 

E, mesmo assim,

É já uma sorte

Se este beijo ainda não sofreu o corte,

De vez no fim.

 

 

1052 – Deveras

 

Faça o que fizer na vida,

Tenha o dinheiro que tiver,

Se deveras apaixonado

Não estiver

Por tudo quanto fizer

E se em prol dos outros, em seguida,

Nada promover,

Empenhado,

- Jamais poderei, de raiz,

Ser feliz.

 

Perdi a vida, enganado,

Por todo o lado.

 

 

1053 – Produzem

 

Biologicamente,

Os adultos geram crianças.

Espiritualmente,

As crianças geram adultos.

Quantos, nas franças

Não crescem, estultos,

Por ajudado não haverem

As crianças a o fazerem!

 

Assim formam as gerações

Um cordão entrelaçado

Que o mundo mantém atado

Por gestos e corações.

 

 

1054 – Capaz

 

Ser capaz de ouvir atentamente,

Expor a própria posição

Sem nada esconder ao companheiro presente

É qualidade em primeira mão.

 

As crinças que tais quais

Vejam os pais

Deixam de temer a divergência,

Uma vez que já não é desgraça,

Mas o que numa convergência

Mais tarde ou mais cedo se ultrapassa.

 

 

1055 – Casamento

 

O casamento é edificado

Dos materiais disponíveis,

Por isso em grande parte é improvisado,

Feito de espontâneos consumíveis.

 

Eis porque tão pouco sabemos

Dele a respeito.

Demasiadamente

Pendente

De aleatória inspiração,

Inquietante demais,

Jamais

O entenderemos

A preceito,

Então.

 

Dois amantes lado a lado,

Que nevoeiro mais cerrado!

 

 

1056 – Compartilhámos

 

Tudo o que compartilhámos na jornada

Foi um quarto, uma cama,

Um tempo de nada.

Jamais compartilhámos o sol, o vento na rama,

Da chuva a chicotada.

 

Quando estávamos juntos

Era tão transitoriamente

Que janais, em tempo tão veloz,

Houve tempo suficiente

Para nenhuns assuntos

De sermos nós.

 

O amor que acarto

Não pode amadurecer

Num quarto,

Tem de sair por cada beco miúdo,

Tem de acolher

A partilha total de tudo:

Alegrias dos terreiros,

Aspirações ao píncaro mais agudo,

Aguaceiros,

O luar

A murmurar

Um mistério mudo,

Tudo, tudo, tudo…

 

- É o único trilho certeiro

Para um amor verdadeiro.

 

 

1057 – Açúcar

 

O amor põe a cobertura

Da açúcar na vida,

Mas se o não encontro, o que me apura

É uma perene ânsia

Desmedida

Por evocações da infância:

A encontrar alento

São o derradeiro apresto,

O alimento

Com que sustento

Da vida o lento resto,

Da beleza um longínquo grito,

- Minha humilde fresta de infinito.

 

 

1058 – Ganha

 

Que ganha alguém,

Por derradeiro,

Se não tem

O amor dum parceiro?

 

Apenas um par,

Um noutro um refúgio secreto

Capaz de criar,

É capaz de manter, discreto,

Longe, longe, a pestilência, momento a momento,

Deste mundo de sofrimento.

 

O refúgio anuncia,

Em contrapolo permanente,

A semente

Da alegria.

 

 

1059 – Grupo

 

Viver em grupo é o formato,

O conteúdo é viver sozinho:

Sou primeiro, no meu recato,

E depois com os outros caminho.

Então estarei com quenquer

Sem deixar de ser.

 

 

1060 – Deficientes

 

Os deficientes vêm-nos ensinar,

Não tanto corpos, mas almas a amar.

Revelam que existe,

Além do corpo retorcido,

Algo que jamais viste

Lá dentro escondido.

 

Por detrás daquele olhar,

Daquele sorriso,

Daquela expressão alvar,

Há o mágico aviso.

 

Algo de infinito os une, tenaz,

A quem os ama,

Como mais ninguém é capaz.

A trama

Incondicional

Dos que cuidam deles

É o amor, o amor total

Pelos cordeiros imbeles

De sacrifício.

 

E é de salvação

Divino ofício,

A verdadeira

E mais sacral

Oração,

A cimeira

Oração derradeira.

 

 

1061 – Recebes

 

Só recebes o que dás.

A questão é que de teu

Nem sempre tens para dar

Ou o que deres não faz

Parte de teu eu,

É só casca de secar,

Defesa de quem perdeu.

 

Quando realmente tens,

Sentes tudo o que conténs

E dás.

 

A frequência do que deres

Cada dia

E a do que receberes,

São a mesma energia.

 

 

1062 – Abrir

 

Abundância abrir é teu coração,

Ir lá acima por ti dentro,

O Amor incondicional vê-lo à mão,

Senti-lo mergulhando em teu centro,

 

Levá-lo à terra e dividi-lo:

Nada mais será como dantes.

Logo ficarás tranquilo,

Quão mais sementes implantes

Mais enriqueces teu silo.

 

É com tal rumo de vida

Te sintonizar

E, com responsabilidade acrescida,

Nunca mais te vitimizar.

 

Reparar

No que tiveres de fazer,

Não no retorno que houver.

 

Atrais abundância no dia

Em que da abundância te desfocares,

Para te focares no acto que principia

Sem ligar à fartura que desencadeares.

 

 

1063 – Vandalismo

 

O vandalismo pede ajuda,

Criança a chamar a atenção,

A bater o pé no chão

Enquanto de vez se não desgruda.

 

Gente que precisa que a olhemos,

Nos emocionemos com as histórias:

Deles os olhos que vemos

Duma imensa solidão carregam as memórias.

 

O vândalo grita em desespero,

O barulho é uivo de alerta.

Saber porquê, eis o tempero

Que a cuidar deles desperta.

 

Não julgues tanto,

Rótulos não coloques,

Pois nada é rotulável, entretanto,

Quando de perto o foques.

 

 

1064 – Sexo

 

O sexo é o que à terra te prende

E a alegria te dá mais fácil de confundir

Com a da eternidade.

Todos julgam que a mente é que rende:

O cérebro é que há-de imprimir

Um rosto à temporalidade.

 

Não é verdade, não é verdade.

O mundo anda mal encaminhado,

Por parâmetros mentais escravizado.

 

Quando a sexualidade

Se puder expandir,

Irão as paranóias diminuir

A as doenças de obsessão,

Oriundas do bloqueio

Dos instintos sexuais,

Murcharão

A meio

Dos friorentos tremedais.

 

O liberto a nível sexual

Mais livre deixa fluir o coração

E o afecto, de emocional,

É meio caminho para o turbilhão

Lá de cima,

Iniciação

À espiritualidade onde tudo se arrima.

 

O instinto sexual

É pacífico, humano.

Dele a repressão

Leva ao anormal,

À compulsão:

É a base do dano,

Desde a pedofilia ao abuso,

E tudo pelo não-uso.

 

Germina como instinto normal,

Puro, libertador.

Aí principia tudo, afinal:

- Está na tua mão o amor,

Podes ser celestial.

 

 

1065 – Ego

 

O ego, o ego é que gora o ovo

E os homens nunca entendem.

 

É o que faz com que comprem de novo,

Não remendem.

Ao comprar

Sentem-se capazes, realizados,

Nem reparam que se estão a concentrar

Fora, fora de si, dispersados.

 

Nunca mais ninguém se vai apaixonar

Por um objecto perdidamente

E, enquanto iludido luxe,

Morreu nosso amor urgente

Ao ursinho de peluche,

No insensível cataclismo

Finou-se o romantismo.

Tudo são relações falsas.

Repara só na empatia

Que, ao remendar um par de calças,

Por tuas mãos se ali cria

E quanta cumplicidade!

Quem não cuida seus pertences

Jamais lhe a vida invade

Qualquer objecto que incenses.

 

E, nesta medida,

Também

Nunca deixará ninguém

Entrar-lhe dentro da vida.

 

 

1066 – Custa

 

Quando alguém obtém proveito

De alguém à custa do prejuízo,

Nenhum proveito obtém de jeito,

Tem é falta de juízo.

 

Semeando em redor a frustração,

Que colheita há-de ter então?

 

Com míope vantagem tão pequena

Valerá tanto custo a pena?

 

 

1067 – Basta

 

Para todos terem bastante

Comida, roupa e casa

E o mais que sonharem adiante,

Equidade que tanto a história atrasa,

 

Basta que os povos da terra partilhem,

Equitativos.

Talvez os olhos então brilhem,

Espantados e furtivos,

 

Ao descobrirem

Que há mais do que o suficiente

Para todos vivermos felizes.

E rirem, rirem,

Finalmente,

Com os renovos

De incontáveis matizes

Dos povos.

 

 

1068 – Agrada

 

Quando à custa da própria integridade

Alguém

A outrem agrade,

Não agrada a ninguém.

 

Se gostara de ti realmente,

Outrem jamais desejaria

Que fizeras algo contra ti, algum dia,

Apenas para ele ficar contente.

 

 

1069 – Raiva

 

Quando se descobrem pontos comuns

Entre os outros e nós,

A raiva fica sem alvos nenhuns,

Desatados os nós.

 

De repente entendes

Que algo operas, não porque outrem quer,

Mas porque o pretendes:

As razões são tuas, já não de quenquer.

 

 

1070 – Atitudes

 

Quando lograremos evitar

Que as atitudes individuais

Nos andem a separar

Ou nos levem a sentir-nos mais,

 

Mais certos ou superiores

Aos demais

Que nos povoam os arredores?

 

Convictos de que um trilho individual,

Político, filosófico, religioso,

Social, económico ou sexual

É mais certo, superior ou valioso,

Caímos por todos os lados

Em comportamentos desequilibrados.

 

Perdido o norte a nosso lugar,

Todos findamos uns dos outros a nos separar.

 

E a segregação é o real

Princípio e fim de todo o mal.

 

 

1071 – Amor

 

O Amor de verdade

É a transcendência

Da experiência

De dualidade.

 

É uma vivência

De união,

De tal conformidade

Que não há separação

E é impensável a separabilidade.

 

A ideia de dualidade

Devém ilusão

E a de Unidade,

Então,

É a realidade.

 

 

1072 – Capaz

 

És capaz de amar toda a gente,

Por norma,

Toda a vida.

A todos igualmente,

Não da mesma forma

Mas na mesma medida.

 

O amor não é quantificável,

Não é racionável

Em porções.

Não podemos amar alguém um bocadinho

E outro, muito.

Nem é conforme as ocasiões,

Nem sequer deveras lhe adivinho

O intuito.

 

O amor não comporta nem sustém

Qualquer divisão:

Ou se ama alguém

Ou não.

 

 

1073 – Energia

 

O amor é quem e o que tu és,

A energia de que és feito,

Que te mantém como um todo,

Enraizado em teus pés

Por sobre do mundo o pleito

De engodo contra outro engodo.

 

És a energia da vida

Que é sempre Deus realizado,

Outra palavra erigida

Para o amor constantemente germinado.

 

 

1074 – Demonstra

 

Demonstra de maneira diferente

Teu amor humano toda a vida,

Mas ama toda a gente

Na mesma medida.

 

E, fecundo,

Mudarás o mundo.

 

 

1075 – Queime

 

O amor

Não é uma reacção,

Por mais que queime o calor,

- O amor é uma decisão!

 

Apenas quando radica na vontade

Germina do animal a Humanidade.

 

 

1076 – Grupos

 

Os grupos dividem,

As pessoas unificam.

Uns dos outros nos elidem

Os grupos, como função,

Nisto é que se especificam.

As pessoas, não.

 

É devir pessoa atar

Nós e laços de união

Em todo o tempo e lugar.

Não é na desunião

Mas na união de verdade

Que todos encontrarão

Verdadeira identidade.

 

Se há grupo que me constrói

É o que nisto é medianeiro

E nisto mais longe foi

Abraçar o mundo inteiro.

 

 

1077 – Paixão

 

Qualquer paixão é o amor

De transformar a existência

Em acção,

Combustível do motor

Da criação,

A tornar experiência

Toda e qualquer concepção.

 

A paixão é aquela chama

Que estimula a exprimir

Quem somos em nossa trama.

 

Não a renegues ao ir,

Que renegar a paixão

É renegar quem tu és,

Quem queres ser em teu chão

Do imo à cabeça e aos pés.

 

O renunciador jamais

Renega a paixão, apenas,

Aos resultados finais

O apego, fonte de penas.

 

Paixão é amor da feitura,

Existir experienciado.

Mas o que às vezes se apura

Expectativa é dum dado.

 

Viver sem expectativa,

Sem precisar de tal dado,

Isto é liberdade viva:

Não a prende um resultado.

 

Não há nada que a cative,

É santidade

Tal e qual como Deus vive

Em verdade.