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1015 e 1077 inclusive.
Descubra o poema correspondente como
uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1015 – Laços canto em metro incerto
Laços canto em metro incerto,
Das fronteiras buscando para além
O que o amor contém ao longe e ao perto,
Conjugando o que rimar desperto
Na vida e na palavra que a retém.
No ritmo desencontrado
Encontro a rima perfeita
Com quanto por todo o lado
Nos espreita.
Neste encontro aos encontrões
É que vislumbro o cariz
Mais constante das humanas relações.
Suspeito que o que me diz
Afinal é dos afectos a matriz.
1016 - Alterar |
|
Oiro, |
Como pode o oiro alterar o homem, |
Homem que é meramente humano? |
Como é que o tesoiro |
Comem |
Os olhos de água que de mim dimano? |
É que também nós o queremos |
E pagamos, regulares, |
Tributos extremos |
Aos que o oiro exibem, alvares. |
|
- Depois queixamo-nos, no meio da trama, |
De que, no fundo, ninguém nos ama. |
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1017 - Vida |
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Já que a vida é um portão, |
Uma trilha, |
Uma via |
A rumar ao Paraíso, |
Por que não |
Viver a maravilha, |
O prazer, a alegria, |
O amor de que preciso |
Com quem me quer |
À minha beira, |
Aqui junto à fogueira |
De quanto no mundo arder? |
|
Por que não buscar |
E prosseguir |
Tudo quanto desejar |
E rir e rir e rir? |
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1018 – Sangue |
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De meu sangue quem não for |
De assalto as emoções há-de lograr |
Mais fácil me tomar |
Que alguém de meu teor. |
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Nos braços dum estranho, |
Dele no coração, |
Lucro o inesperado ganho: |
- Ganho um espelho de eleição. |
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1019 – Porta |
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Pode ela não ser mais esperta, |
Importa, porém, que o creias |
Para te apaixonares, a porta aberta |
Por inteiro e não a meias. |
|
Porque todos queremos saber |
Mais dados do mistério, |
Como encaixa a peça que ocorrer |
Nas mais do pâzle sidéreo. |
|
A palavra seduz, |
Encurrala-nos num beco sem saída, |
Ela apenas ali sustenta a luz |
Na mão erguida. |
|
Todos queremos, acima de tudo, |
Crescer e mudar, |
Admirável mundo novo a que me grudo, |
Mesmo quando nunca saio do lugar. |
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1020 – Afectos |
|
Alguns afectos facilmente, |
Quando à luz pública expostos, |
Se corrompem de repente |
Nas praças, nas ruas, nos gostos. |
|
Do mártir a relíquia guarda-se no segredo |
Do templo para que o mistério |
A acrescente no credo, |
Lhe preserve o império. |
|
A jóia mais rara |
No cofre anda fechada, |
Cara |
E vigiada. |
|
A sacra sabedoria |
É do clero monopólio, |
Assim garantindo a magia |
E o sólio. |
|
Divulgar, |
Ao mesmo tempo que emana, |
É sempre banalizar, |
Profana. |
|
Se nosso amor é sagrado, |
(E é sagrado e mui discreto), |
Deve então ser preservado, |
Permanecer secreto. |
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1021 – Gera |
|
Um homem gera um filho, |
Este oferta-lhe dois netos |
E estes, quatro bisnetos, |
De modo que deste rastilho |
|
Borbota um caudal barulhento |
De gente com igual nome, |
Sangue igual que, lento e lento, |
O tempo longo consome |
|
A mimar eternidade. |
Gerar um filho desencadeia |
Um universo: |
Vem ódio, vem amizade, |
Anjos e demónios espalhados pela aldeia, |
O sublime e o abominável por todo o lado disperso. |
|
Reparo, |
Quando olho os meus, |
Neste sentido raro: |
- Sou quase Deus! |
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1022 – Contem |
|
Gostamos todos que nos contem histórias, |
Crianças eternas, |
Imaginamos verdadeiras as ternas |
Memórias |
Das palavras, |
Pomo-nos à rabiça do arado |
Do herói que rasga as lavras |
E, no fim de tudo imaginado, |
Julgamos compreendê-lo |
Porque a nós nos compreendemos, |
Perfeito e acabado |
O elo |
Entre ambos os extremos. |
|
E é tudo ilusão, |
Temos, às vezes, um vislumbre de quem somos |
E, no fim, não, |
Nunca temos a certeza que supomos. |
|
E, conforme a vida continua, |
Cada vez mais opacos a nós próprios devimos, |
Cada vez nos fere mais a pua |
De nossa incoerência: |
Quão mais nos cimos, |
Mais na decadência. |
|
Não há como atravessar a fronteira |
Doutrem para dentro |
Apenas porque não há mesmo maneira: |
- Em mim não entro. |
|
|
1023 – Admirar |
|
O amor tem o privilégio |
De levar a admirar mesmo a tolice. |
A ternura da mãe não tem limites |
Ante o sortilégio |
(Para os mais sandice) |
Do primeiro passo desajeitado |
Do filho à procura de desquites, |
Mal atremado. |
|
Espreita ali, entretanto, |
Dum novo mundo o encanto. |
|
|
1024 – Atrair |
|
Não há como a eloquência |
Para atrair a mulher. |
Jamais logra compreender |
Que um marido que a escutar |
Deve ter a prevalência |
Sobre o que sabe falar. |
|
Mas é a força da palavra |
Ouvida |
Que sempre por dentro a lavra, |
Em seguida. |
|
|
1025 – Maltrato |
|
Não maltrato coisa alguma |
Neste mundo. |
Nele entrei pelo amor fecundo |
Doutrem, em suma, |
E, para levar meu corpo e meu imo |
Da maturidade ao cimo |
Muita gente |
Teve de trabalhar e de estudar, renitente. |
|
Seria muita arrogância |
E bem mesquinha |
Destruir tanta fragrância |
Que seria incapaz |
De fazer renascer de minha vinha |
Em paz, |
Por quaisquer actividades precárias |
De minhas mãos solitárias. |
|
|
1026 – Vagueiam |
|
Os que vagueiam pelo derradeiro lugar |
No espectáculo do mundo |
Não têm outro meio de alcançar |
Os que adiante correm no longe profundo |
|
Senão pedras lhes atirando. |
Muitos povos vivem em tal conjuntura. |
Se muito para trás os forem deixando |
Os que se guindam a píncaros de formosura, |
|
Voando sozinhos, egoístas, distraídos, |
Alvos devirão das pedras dos ofendidos |
|
Que se sentirão justamente maltratados |
- Porque ignorados. |
|
|
1027 – Enfrentam |
|
Aqueles que enfrentam a morte |
Não cuidam nos degraus que galgaram, |
Nos feudos que ocuparam, |
Nos oiros que acumularam. |
|
O que quer que seja que lhes importe, |
No final, |
(Boa medida da vida desfiada), |
O que os empenha, real, |
São aqueles |
Que amaram e os amaram a eles, |
Mais nada, mais nada. |
No fim, desnudo, |
O anel do amor é tudo. |
|
|
1028 – Dinheiro |
|
Não creio que o dinheiro seja nobre. |
Entretanto, é desproporcionado |
Negar-lhe quanta importância lhe sobre, |
Embora avilte por excelência |
Havê-lo tornado |
O centro da existência. |
|
Do amor, porém, na periferia, |
Compra-lhe o azeite da almotolia |
|
Que alumia cada hora |
Que a vida nos demora.. |
|
|
1029 – Sexual |
|
O amor sexual a vantagem |
Tem de a carne ser |
Confirmação de qualquer |
Acto, evento, |
Fantasiosa viagem, |
Naquele momento. |
|
Tem a inelutável escala |
Do fado: |
O corpo fala |
E tudo é silenciado. |
|
|
1030 – Perto |
|
Anda bem perto de nós |
A felicidade acaso longe procurada, |
Num afecto natural, |
Na fraternidade de amigos, amor de pais, de avós, |
No abraço conjugal… |
|
Perante isto, |
Marcos da minha estrada |
Pelos quais subsisto, |
Tudo o mais é nada. |
|
|
1031 – Empenhar-se |
|
Empenhar-se pela humanidade em geral, |
Que fácil! |
A multidão anónima , que pungente ideal, |
Tão grácil |
Ser por aqueles, acolá, |
Cujo sofrimento nunca ninguém verá!… |
|
Isto não é nada, porém, |
Que amar o próximo verdadeiro, |
Aquele cuja dor descobrimos, enterrado no lameiro, |
Refém, |
Aqui colado quase a nós, |
Num dia inadiável desatá-lo dos cipós, |
Isto é que é amar, |
Tem da cordialidade o tom, |
O coração a sangrar, |
- Isto é que é ser bom! |
|
O mais que para o geral daqui vier |
É que então desta bondade há-de viver. |
|
|
1032 – Velocidade |
|
Um amor que me seduz |
Atinge-me à velocidade da luz. |
|
A separação é doutro tom: |
Chega à do som. |
|
Por isso, |
Depois do bom |
Que tudo foi, |
Queimado o chamiço, |
Remói |
E dói e dói e dói… |
|
|
1033 – Íntima |
|
Da vida uma estranheza |
É que ao vermos uma pessoa durante meses, |
Tão íntima se nos preza |
Que nem logramos imaginar, corteses, |
A vida sem ela. |
|
Um corte, porém, |
Na sequela |
Sobrevém |
E após a separação tudo continua |
De idêntica maneira. |
|
A companhia |
Que tão imprescindível parecia |
Actua, |
Afinal, como inútil parceira. |
|
A vida corre indiferente pela rua |
E nem sentimos, ao menos, |
A perda do amigo que perdemos. |
|
|
1034 – Canto |
|
Nada mais vão |
Que sobre quem amamos meditar. |
Tais cadeias |
De ideias |
São |
Como o canto guerreiro e popular |
Donde borbotam episódios |
Aos milhares |
De amores e de ódios, |
Mas cujo refrão, |
Contumaz, há-de sempre retornar |
E se repete, de versos aos pares, |
Mesmo quando para ninguém |
A propósito vem. |
|
|
1035 – Viu |
|
Ninguém me viu, ninguém, |
E nunca vim a descobrir se ela |
Chegou a pressentir meu parabém. |
Escarpas rochosas eu trepei, porém, |
Arrisquei a vida ao saltar cada cancela, |
A fim de poisar um ramo de rosas perfumadas |
De casa dela nas escadas. |
|
Sempre houve ali algo de doce, |
De alegremente triste, |
Dum poema que se esboce |
E só vagamente existe. |
Sempre me foi benfazejo |
E leva a que em mim tão fundo se aloje |
Que ainda hoje |
O sinto, mesmo se nada vejo. |
|
Apenas em horas de descrença |
De rosas esta aventura |
Se me antolha e apura |
Como inútil quixotesca benquerença. |
|
Haja Deus, haja Deus, |
Que dali ressuma um qualquer apelo aos céus. |
|
|
1036 – Sofri |
|
Tal é o amor: |
Muito sofri nas eras dele, entrementes, |
Como arrasta com ele tanta dor! |
E como tais cores não são nunca pertinentes: |
Afinal, que importarão |
Mil dores que por ele sofra ou não? |
|
Desde que borbote o inebriante convívio, |
O estreito e vital nó que nos liga a quanto é vivo, |
E o amor, de oblívio, |
Não arrefeça, esquivo… |
|
Darás tudo, mesmo os dias mais alegres, |
À custa embora de gritos e de prantos, |
Só para que teu olhar de novo integres |
No interior do santo dos santos. |
|
Dói amargo aos olhos e ao coração, |
Orgulho e vaidade aparam golpes cruéis, |
Mas depois, que pacificação: |
Ficamos tão humildes, tão calmos, tão fiéis |
E tão mais maduros em cada ramo podado! |
É de tal sorte |
Que, desta morte, |
Cada qual ressuscita por uma vez vivificado. |
|
|
1037 – Lume |
|
Relativamente ao amor, |
Toda a vida sou miúdo: |
O amor pela mulher sempre foi adorador, |
Culto depurador, |
Lume erguido a libertar-se, mudo, |
De meu coração turvado, |
Mãos erguidas para o céu estrelado |
Sob o manto azul. |
|
Venero a mulher como diferente, |
Enigmática e bela, |
Quentura soalheira do sul, |
Superior no encanto ausente-presente, |
Na unidade de ser caravela |
Para todos os roteiros |
De sonhos cimeiros. |
|
Estrelas, |
Picos de montes, |
Distam de nós, voláteis filomelas, |
Mais perto de Deus nos longínquos horizontes. |
|
Como da vida a agrura |
Lhe juntou abundante condimento, |
O amor pela mulher tanta amargura |
Me ofertou por alimento |
Como doçura. |
|
Permanecendo ela embora |
No alto pedestal, |
De druída minha atitude adoradora |
Facilmente naqueloutra se há transmudado, |
Cómica, penosa, irracional, |
De bobo troçado. |
|
|
1038 – Escapava-me |
|
Escapava-me e fugia, |
Fixava o mundo perdido, |
Para o ar livre me escapulia |
Em sonhos maravilhosos. |
E que sortido |
De gozos! |
|
De repente via tudo |
Como era cheio de cor, |
Belo demais sobretudo, |
Como a luz e como o alento |
Fluíam com estupor |
De tudo, livres ao vento. |
Verde límpido, eis o rio |
E vermelhos os telhados |
E os montes, tecido o fio, |
São azuis, com cambiantes |
De contraluz pelos lados, |
Mudam todos os instantes. |
|
E, contudo, esta beleza |
Em redor não me distrai. |
Em silêncio triste a preza |
Quem a goza e ali se esvai. |
|
Quanto mais belo era tudo |
Mais distante parecia |
De mim ficar, pois não tinha |
Parte alguma em tal entrudo, |
Ficava fora da via |
Como um doente de tinha. |
|
Meu pensamento sombrio |
Reencontrava o caminho |
Para ela em tal desvio: |
Se eu morrera de mansinho, |
Jamais ela o saberia, |
Por mim não perguntaria, |
Nem mesmo desgraça tal |
A perturbaria, |
Afinal. |
|
E, contudo, não sentia |
Desejo, nesta sequela, |
De ser notado algum dia |
Por ela. |
|
Por ela gostaria de fazer |
Ou de ofertar-lhe, em dádiva comezinha, |
Um inaudito qualquer |
Sem ela sequer adivinhar de quem provinha. |
|
|
1039 – Dignidade |
|
Apenas a via caminhar |
Em silente dignidade alegre |
E sentia-lhe, a par, |
A nobreza |
De ser tão simples que nem lei quer que lhe regre |
A cristalina simpleza. |
|
Depois, à tardinha, |
Sentava-me, pensativo, ao lusco-fusco, |
Até representar ante minha |
Evocação, |
Com a nitidez da emoção com que me ofusco, |
A aparição. |
|
Um temor secreto e doce |
Perpassava então |
Em minha alma de rapaz tímido e precoce. |
|
O momento breve de prazer se enevoava |
De rápidos horrores |
E logo me provocava |
Inesperadas dores. |
|
Como ela me era estranha, de repente, |
Me não conhecia, |
Nem, definitivamente, |
Por mim inquiria! |
E como meu belo sonho |
Era um assalto velado |
E medonho |
Dela ao ser bem-aventurado! |
|
Com tamanha acutilância e dor |
Quando isto sentia |
É que tão autêntica, viva, palpitante e com fulgor |
Por momentos a imagem lhe via |
Que uma onda escura e cálida o coração me enchia |
E provocava, no mesmo instante, |
Um doloroso estupor |
Até à pulsação mais distante. |
|
|
1040 – Tragédias |
|
As tragédias aproximam |
Muito mais profundamente |
Aqueles que elas vitimam. |
|
Irrelevante, |
É evidente |
A pequenez de cada instante, |
Do dia-a-dia a maldade |
Devém insignificante, |
Doravante não persuade |
Nenhum desentendimento. |
|
E quanto apoio e consolo |
Nos vem, naquele momento, |
Deste inesperado colo! |
|
|
1041 – Fraqueza |
|
A fraqueza do coração |
Dominado, |
Quando escravizado |
Pela paixão! |
|
O amor é uma posse fatal, |
Ninguém lhe desvenda a origem, |
Ninguém vislumbra por que vias chega, afinal, |
Ignoramos-lhe o remédio para a vertigem |
Do bem, do mal. |
|
Germina e desaparece |
Ordenado por leis obscuras, |
Ininteligíveis, sempre refece, |
E penetra-nos, no gozo |
E nas agruras, |
De terror misterioso. |
|
É o prazer e a maldição |
De nossa vida, |
Delícia e logo contusão |
De seguida, |
Eterno sofrimento |
Escondido por trás de cada momento. |
|
É tudo o que viso |
No sonho superno: |
O meu paraíso, |
O meu inferno. |
|
|
1042 – Precioso |
|
O mais precioso bem é o amor |
Mas, por isto mesmo, é o mais caro. |
Como não se dispor |
A pagá-lo, quando é tão raro? |
|
Pagam o custo duma carreira, |
O montante duma casa, |
Duma viagem passageira, |
Mas o dum amor que abrasa, |
|
Que é muito mais valioso |
Do que tudo isto, não! |
Apenas aceitam o gozo |
Gratuito, à mão. |
|
É verdade que fatiga na jornada, |
Mas o amor é tão jucundo |
Que o não trocaria por nada |
Que em troca me oferte o mundo. |
|
|
1043 – Unida |
|
Manter uma família |
Unida e feliz |
Requer perene vigília, |
Muito sacrifício, |
Humildade de raiz, |
Cedência constante e compromisso |
E a perenidade do exercício |
Para atear a chama em qualquer chamiço. |
|
Uma família erigida no amor |
Mora cada vez mais perto do céu. |
Quem a não pagar com suor |
E um bilhete de férias requereu, |
Aquele piquenique, |
Inicialmente belo, |
De egoísmos fica marcado pelo tique, |
De discussões pelo escalpelo. |
|
Mesmo que isto não seja eterno |
Será verdadeiramente o inferno. |
|
|
1044 – Estúpida |
|
Não compreende que definha |
A estúpida civilização |
Porque atrofiou o sentimento. |
Quero o ciúme que tinha, |
O amor, a compaixão, |
- Vivos a voar ao vento. |
É o que de criador |
Me resta individualmente. |
Abomino a tibieza sem cor |
Que me empalidece a mente. |
|
Uns para os outros misteriosos |
Seremos definitivamente. |
Não atentemos, gulosos, |
Do amor contra o império |
Que se alimenta deste mistério |
|
A vida espreita |
Ao respirar a maravilha que ali suspeita. |
|
|
1045 – Anónimas |
|
Com facilidade demais |
Os mortos mudam-se em anónimas fotografias |
A desbotar pelos cunhais, |
A amarelecer junto a lareiras vazias, |
Se não houver |
Nem amor nem ódio, mesmo esquivos, |
Que os venham manter |
Vivos. |
|
|
1046 – Carícias |
|
A melhor maneira de esquecer |
Carícias culpadas |
É afogá-las quenquer |
Nas delícias |
Desenfreadas |
De milhares doutras carícias. |
|
Para esquecer o pecado |
Que a miúdo |
Nos faz sentir soezes |
Como uma chaga de lado, |
O melhor é despojá-lo de conteúdo |
Cometendo-o mil vezes. |
|
Eis como a culpa |
Rodopia |
E, enquanto nos inculpa, |
Asfixia. |
|
Quantos desastres cometidos |
Para obliterar um só, de tempos idos! |
|
|
1047 – Quarto |
|
O quarto dum jovem morto, |
Duma ausência santuário, |
É de cobardia um horto |
Do vivo tumultuário. |
|
Poucos ousam conviver |
Com as lembranças |
E vi-las entretecer |
Do presente nas tranças. |
|
O sorriso infantil |
Da fotografia, |
Sempre igual em tal perfil, |
Ignora o correr de cada dia. |
|
Todos envelhecemos |
Enquanto ele rejuvenesce. |
Culpados nos vemos |
De não termos aproveitado |
A fugaz presença que lenta esquece, |
De não termos adivinhado |
Que se iria, num enleio, |
Abandonando tudo a meio, |
Deixando por resolver |
Uma tola querela qualquer… |
|
Apesar dos gestos tortos, |
Apesar do desatino, |
Nada agora pode ressuscitar os mortos |
Nem completar o destino. |
|
|
1948 – Imagem |
|
A imagem saudosa dum ente amado |
É fruto não apenas da memória, |
É o corpo inteiro avassalado |
A falar a todos os sentidos, |
|
Neles permanece guardada em glória |
A imagem saudosa dos gestos fugitivos, |
Indizível, |
De modo que nada faremos. |
Sem sentir o outro ao nosso lado |
Empunhando connosco os frágeis remos, |
Silente, invisível, |
Como o eterno desejado. |
|
|
1049 – Calendário |
|
O que realizam os romeiros |
No calendário dos séculos anda inscrito, |
É, nos carreiros, |
Um raio das rodas do carro que incito |
O tempo a calcorrear. |
|
Caminham rumo ao santuário, |
Devagar, |
Tal como fizeram as gerações passadas |
E como as vindoiras. |
No trilho vário, |
As pegadas |
São duradoiras. |
|
Ao caminharem com parentes, |
Vizinhos e conhecidos, |
Caminham também com os mortos jacentes |
E com os que estão ainda por nascer, |
Já prevenidos: |
A multidão visível |
É uma parte qualquer |
Da inumerável turbamulta invisível. |
|
Caminham todos juntos, todos, |
Através dos séculos, pelo mesmo caminho, |
O caminho que anula os tempos e os modos |
E une os vivos e os mortos no mesmo cadinho. |
|
Por tal caminho debandámos amanhã |
E chegaremos ontem: hoje |
É a eterna manhã |
Que jamais foge. |
|
|
1050 – Plétora |
|
Nem entre todos somos um, |
Nem cada um é o todo: |
Não há nem houve uno nenhum |
Mas cada um é tudo, de algum modo. |
Porém, não há todo, |
Falta sempre um. |
Não há todo nem um: há uns e todos, |
Sempre o plural dos engodos, |
A plétora incompleta, |
O nós buscando, com modos, |
O seu cada um, a meta |
Intransigente: |
Dele o complemento igual no diferente. |
|
|
1051 – Beijos |
|
Com os beijos o que importa |
É ser muito diligente. |
São nossa porta |
Da frente |
Da união, |
Beijar, |
É solene afirmação, |
O aperto de mão secreto |
A identificar |
Cada membro do grupo em concreto. |
|
Mesmo sabendo, porém, |
Como beijar é importante, |
Ocorre esquecê-lo por completo |
Por igual também. |
De repente, em dado instante, |
Descobrimos que há semanas |
Não trocamos o beijo de amante |
Entre esposa e marido, |
As antigas ganas |
Esmoreceram de olvido, |
E, num contexto de prosa, |
Doravante o apelo |
É de beijar apenas enquanto se goza |
Em pêlo. |
|
E, mesmo assim, |
É já uma sorte |
Se este beijo ainda não sofreu o corte, |
De vez no fim. |
|
|
1052 – Deveras |
|
Faça o que fizer na vida, |
Tenha o dinheiro que tiver, |
Se deveras apaixonado |
Não estiver |
Por tudo quanto fizer |
E se em prol dos outros, em seguida, |
Nada promover, |
Empenhado, |
- Jamais poderei, de raiz, |
Ser feliz. |
|
Perdi a vida, enganado, |
Por todo o lado. |
|
|
1053 – Produzem |
|
Biologicamente, |
Os adultos geram crianças. |
Espiritualmente, |
As crianças geram adultos. |
Quantos, nas franças |
Não crescem, estultos, |
Por ajudado não haverem |
As crianças a o fazerem! |
|
Assim formam as gerações |
Um cordão entrelaçado |
Que o mundo mantém atado |
Por gestos e corações. |
|
1054 – Capaz |
|
Ser capaz de ouvir atentamente, |
Expor a própria posição |
Sem nada esconder ao companheiro presente |
É qualidade em primeira mão. |
|
As crinças que tais quais |
Vejam os pais |
Deixam de temer a divergência, |
Uma vez que já não é desgraça, |
Mas o que numa convergência |
Mais tarde ou mais cedo se ultrapassa. |
|
|
1055 – Casamento |
|
O casamento é edificado |
Dos materiais disponíveis, |
Por isso em grande parte é improvisado, |
Feito de espontâneos consumíveis. |
|
Eis porque tão pouco sabemos |
Dele a respeito. |
Demasiadamente |
Pendente |
De aleatória inspiração, |
Inquietante demais, |
Jamais |
O entenderemos |
A preceito, |
Então. |
|
Dois amantes lado a lado, |
Que nevoeiro mais cerrado! |
|
|
1056 – Compartilhámos |
|
Tudo o que compartilhámos na jornada |
Foi um quarto, uma cama, |
Um tempo de nada. |
Jamais compartilhámos o sol, o vento na rama, |
Da chuva a chicotada. |
|
Quando estávamos juntos |
Era tão transitoriamente |
Que janais, em tempo tão veloz, |
Houve tempo suficiente |
Para nenhuns assuntos |
De sermos nós. |
|
O amor que acarto |
Não pode amadurecer |
Num quarto, |
Tem de sair por cada beco miúdo, |
Tem de acolher |
A partilha total de tudo: |
Alegrias dos terreiros, |
Aspirações ao píncaro mais agudo, |
Aguaceiros, |
O luar |
A murmurar |
Um mistério mudo, |
Tudo, tudo, tudo… |
|
- É o único trilho certeiro |
Para um amor verdadeiro. |
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1057 – Açúcar |
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O amor põe a cobertura |
Da açúcar na vida, |
Mas se o não encontro, o que me apura |
É uma perene ânsia |
Desmedida |
Por evocações da infância: |
A encontrar alento |
São o derradeiro apresto, |
O alimento |
Com que sustento |
Da vida o lento resto, |
Da beleza um longínquo grito, |
- Minha humilde fresta de infinito. |
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1058 – Ganha |
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Que ganha alguém, |
Por derradeiro, |
Se não tem |
O amor dum parceiro? |
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Apenas um par, |
Um noutro um refúgio secreto |
Capaz de criar, |
É capaz de manter, discreto, |
Longe, longe, a pestilência, momento a momento, |
Deste mundo de sofrimento. |
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O refúgio anuncia, |
Em contrapolo permanente, |
A semente |
Da alegria. |
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1059 – Grupo |
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Viver em grupo é o formato, |
O conteúdo é viver sozinho: |
Sou primeiro, no meu recato, |
E depois com os outros caminho. |
Então estarei com quenquer |
Sem deixar de ser. |
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1060 – Deficientes |
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Os deficientes vêm-nos ensinar, |
Não tanto corpos, mas almas a amar. |
Revelam que existe, |
Além do corpo retorcido, |
Algo que jamais viste |
Lá dentro escondido. |
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Por detrás daquele olhar, |
Daquele sorriso, |
Daquela expressão alvar, |
Há o mágico aviso. |
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Algo de infinito os une, tenaz, |
A quem os ama, |
Como mais ninguém é capaz. |
A trama |
Incondicional |
Dos que cuidam deles |
É o amor, o amor total |
Pelos cordeiros imbeles |
De sacrifício. |
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E é de salvação |
Divino ofício, |
A verdadeira |
E mais sacral |
Oração, |
A cimeira |
Oração derradeira. |
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1061 – Recebes |
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Só recebes o que dás. |
A questão é que de teu |
Nem sempre tens para dar |
Ou o que deres não faz |
Parte de teu eu, |
É só casca de secar, |
Defesa de quem perdeu. |
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Quando realmente tens, |
Sentes tudo o que conténs |
E dás. |
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A frequência do que deres |
Cada dia |
E a do que receberes, |
São a mesma energia. |
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1062 – Abrir |
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Abundância abrir é teu coração, |
Ir lá acima por ti dentro, |
O Amor incondicional vê-lo à mão, |
Senti-lo mergulhando em teu centro, |
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Levá-lo à terra e dividi-lo: |
Nada mais será como dantes. |
Logo ficarás tranquilo, |
Quão mais sementes implantes |
Mais enriqueces teu silo. |
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É com tal rumo de vida |
Te sintonizar |
E, com responsabilidade acrescida, |
Nunca mais te vitimizar. |
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Reparar |
No que tiveres de fazer, |
Não no retorno que houver. |
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Atrais abundância no dia |
Em que da abundância te desfocares, |
Para te focares no acto que principia |
Sem ligar à fartura que desencadeares. |
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1063 – Vandalismo |
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O vandalismo pede ajuda, |
Criança a chamar a atenção, |
A bater o pé no chão |
Enquanto de vez se não desgruda. |
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Gente que precisa que a olhemos, |
Nos emocionemos com as histórias: |
Deles os olhos que vemos |
Duma imensa solidão carregam as memórias. |
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O vândalo grita em desespero, |
O barulho é uivo de alerta. |
Saber porquê, eis o tempero |
Que a cuidar deles desperta. |
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Não julgues tanto, |
Rótulos não coloques, |
Pois nada é rotulável, entretanto, |
Quando de perto o foques. |
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1064 – Sexo |
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O sexo é o que à terra te prende |
E a alegria te dá mais fácil de confundir |
Com a da eternidade. |
Todos julgam que a mente é que rende: |
O cérebro é que há-de imprimir |
Um rosto à temporalidade. |
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Não é verdade, não é verdade. |
O mundo anda mal encaminhado, |
Por parâmetros mentais escravizado. |
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Quando a sexualidade |
Se puder expandir, |
Irão as paranóias diminuir |
A as doenças de obsessão, |
Oriundas do bloqueio |
Dos instintos sexuais, |
Murcharão |
A meio |
Dos friorentos tremedais. |
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O liberto a nível sexual |
Mais livre deixa fluir o coração |
E o afecto, de emocional, |
É meio caminho para o turbilhão |
Lá de cima, |
Iniciação |
À espiritualidade onde tudo se arrima. |
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O instinto sexual |
É pacífico, humano. |
Dele a repressão |
Leva ao anormal, |
À compulsão: |
É a base do dano, |
Desde a pedofilia ao abuso, |
E tudo pelo não-uso. |
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Germina como instinto normal, |
Puro, libertador. |
Aí principia tudo, afinal: |
- Está na tua mão o amor, |
Podes ser celestial. |
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1065 – Ego |
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O ego, o ego é que gora o ovo |
E os homens nunca entendem. |
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É o que faz com que comprem de novo, |
Não remendem. |
Ao comprar |
Sentem-se capazes, realizados, |
Nem reparam que se estão a concentrar |
Fora, fora de si, dispersados. |
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Nunca mais ninguém se vai apaixonar |
Por um objecto perdidamente |
E, enquanto iludido luxe, |
Morreu nosso amor urgente |
Ao ursinho de peluche, |
No insensível cataclismo |
Finou-se o romantismo. |
Tudo são relações falsas. |
Repara só na empatia |
Que, ao remendar um par de calças, |
Por tuas mãos se ali cria |
E quanta cumplicidade! |
Quem não cuida seus pertences |
Jamais lhe a vida invade |
Qualquer objecto que incenses. |
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E, nesta medida, |
Também |
Nunca deixará ninguém |
Entrar-lhe dentro da vida. |
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1066 – Custa |
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Quando alguém obtém proveito |
De alguém à custa do prejuízo, |
Nenhum proveito obtém de jeito, |
Tem é falta de juízo. |
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Semeando em redor a frustração, |
Que colheita há-de ter então? |
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Com míope vantagem tão pequena |
Valerá tanto custo a pena? |
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1067 – Basta |
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Para todos terem bastante |
Comida, roupa e casa |
E o mais que sonharem adiante, |
Equidade que tanto a história atrasa, |
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Basta que os povos da terra partilhem, |
Equitativos. |
Talvez os olhos então brilhem, |
Espantados e furtivos, |
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Ao descobrirem |
Que há mais do que o suficiente |
Para todos vivermos felizes. |
E rirem, rirem, |
Finalmente, |
Com os renovos |
De incontáveis matizes |
Dos povos. |
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1068 – Agrada |
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Quando à custa da própria integridade |
Alguém |
A outrem agrade, |
Não agrada a ninguém. |
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Se gostara de ti realmente, |
Outrem jamais desejaria |
Que fizeras algo contra ti, algum dia, |
Apenas para ele ficar contente. |
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1069 – Raiva |
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Quando se descobrem pontos comuns |
Entre os outros e nós, |
A raiva fica sem alvos nenhuns, |
Desatados os nós. |
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De repente entendes |
Que algo operas, não porque outrem quer, |
Mas porque o pretendes: |
As razões são tuas, já não de quenquer. |
1070 – Atitudes |
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Quando lograremos evitar |
Que as atitudes individuais |
Nos andem a separar |
Ou nos levem a sentir-nos mais, |
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Mais certos ou superiores |
Aos demais |
Que nos povoam os arredores? |
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Convictos de que um trilho individual, |
Político, filosófico, religioso, |
Social, económico ou sexual |
É mais certo, superior ou valioso, |
Caímos por todos os lados |
Em comportamentos desequilibrados. |
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Perdido o norte a nosso lugar, |
Todos findamos uns dos outros a nos separar. |
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E a segregação é o real |
Princípio e fim de todo o mal. |
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1071 – Amor |
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O Amor de verdade |
É a transcendência |
Da experiência |
De dualidade. |
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É uma vivência |
De união, |
De tal conformidade |
Que não há separação |
E é impensável a separabilidade. |
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A ideia de dualidade |
Devém ilusão |
E a de Unidade, |
Então, |
É a realidade. |
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1072 – Capaz |
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És capaz de amar toda a gente, |
Por norma, |
Toda a vida. |
A todos igualmente, |
Não da mesma forma |
Mas na mesma medida. |
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O amor não é quantificável, |
Não é racionável |
Em porções. |
Não podemos amar alguém um bocadinho |
E outro, muito. |
Nem é conforme as ocasiões, |
Nem sequer deveras lhe adivinho |
O intuito. |
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O amor não comporta nem sustém |
Qualquer divisão: |
Ou se ama alguém |
Ou não. |
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1073 – Energia |
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O amor é quem e o que tu és, |
A energia de que és feito, |
Que te mantém como um todo, |
Enraizado em teus pés |
Por sobre do mundo o pleito |
De engodo contra outro engodo. |
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És a energia da vida |
Que é sempre Deus realizado, |
Outra palavra erigida |
Para o amor constantemente germinado. |
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1074 – Demonstra |
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Demonstra de maneira diferente |
Teu amor humano toda a vida, |
Mas ama toda a gente |
Na mesma medida. |
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E, fecundo, |
Mudarás o mundo. |
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1075 – Queime |
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O amor |
Não é uma reacção, |
Por mais que queime o calor, |
- O amor é uma decisão! |
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Apenas quando radica na vontade |
Germina do animal a Humanidade. |
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1076 – Grupos |
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Os grupos dividem, |
As pessoas unificam. |
Uns dos outros nos elidem |
Os grupos, como função, |
Nisto é que se especificam. |
As pessoas, não. |
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É devir pessoa atar |
Nós e laços de união |
Em todo o tempo e lugar. |
Não é na desunião |
Mas na união de verdade |
Que todos encontrarão |
Verdadeira identidade. |
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Se há grupo que me constrói |
É o que nisto é medianeiro |
E nisto mais longe foi |
Abraçar o mundo inteiro. |
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1077 – Paixão |
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Qualquer paixão é o amor |
De transformar a existência |
Em acção, |
Combustível do motor |
Da criação, |
A tornar experiência |
Toda e qualquer concepção. |
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A paixão é aquela chama |
Que estimula a exprimir |
Quem somos em nossa trama. |
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Não a renegues ao ir, |
Que renegar a paixão |
É renegar quem tu és, |
Quem queres ser em teu chão |
Do imo à cabeça e aos pés. |
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O renunciador jamais |
Renega a paixão, apenas, |
Aos resultados finais |
O apego, fonte de penas. |
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Paixão é amor da feitura, |
Existir experienciado. |
Mas o que às vezes se apura |
Expectativa é dum dado. |
|
Viver sem expectativa, |
Sem precisar de tal dado, |
Isto é liberdade viva: |
Não a prende um resultado. |
|
Não há nada que a cative, |
É santidade |
Tal e qual como Deus vive |
Em verdade. |